Resenha: Discurso da servidão voluntária

O Discurso da servidão voluntária de Étienne de La Boétie é uma análise política sobre a obediência. Afirma que estados e governos são mais vulneráveis do que as pessoas imaginam e podem entrar em colapso em um instante: assim que o consentimento dos governados é retirado.

Não é em si um sobre filosofia estoica, mas é um grande exemplo de conduta estoica. Defende que ninguém deve ajudar tiranos, mesmo quando acredita que possa estar contribuindo para a redução da tirania. Boétie era leitor de Sêneca e conhecia sua obra e história, usando o filósofo e Trásea Peto, outro grande estoico, como exemplos de homens de caráter que experimentaram os custos da maldade:

Mesmo homens de caráter – se às vezes acontece de um tirano gostar o suficiente de um homem assim para mantê-lo em suas boas graças, porque nele brilham a virtude e a integridade que inspiram uma certa reverência mesmo nos mais depravados – mesmo homens de caráter, digo eu, não conseguiram por muito tempo evitar sucumbir à maldade comum e logo experimentaram os efeitos da tirania às suas próprias custas. Um Sêneca, um Burro, um Trásea, este triunvirato de homens esplêndidos será um lembrete suficiente de tal infortúnio.

No texto a natureza do Estado é investigada. O autor mostra seu assombro ao perceber como uma pequena minoria cria regras e reivindica autoridade para governar todos os outros, mantendo o monopólio da lei. Parece-lhe implausível que tal instituição tenha qualquer poder real pois pode ser derrubada em um instante, bastando para isso as pessoas simplesmente retirarem seu consentimento ao governo.

La Boétie então investiga o mistério que faz as as pessoas não se recusarem a obedecer, dado que é óbvio para ele de que todos estariam melhor sem o Estado. Isto o envia numa jornada especulativa para investigar o poder da propaganda, do medo e da ideologia em fazer com que as pessoas se conformem com sua própria sujeição. Seria covardia? Talvez. Hábito e tradição? Talvez. Talvez seja ilusão ideológica e confusão intelectual. Segundo Etienne, o governante cria uma pirâmide ilusória e transfere um pouco do poder para meia dúzia de tenentes, que repetem o processo. Esses subalternos, achando que realmente têm algum poder, submetem os abaixo deles com mão forte. Assim, o Estado submete uns por intermédio dos outros, e dá razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha. Para ele, ninguém deve trabalhar para o Estado, pois mesmo homens de caráter, com boas intenções, viram instrumentos da tirania e logo experimentaram os efeitos dessa tirania às suas próprias custas. Ele cita os exemplos de Sêneca Burro e Trásea no principado de Nero.

La Boétie prossegue, argumentando por que as pessoas devem retirar imediatamente seu consentimento ao governo. Ele exorta todas as pessoas a se erguerem e a abandonarem a tirania simplesmente recusando-se a admitir que o Estado está no comando. Para ele, o tirano não tem nada mais do que “o poder que vocês lhe conferem para destruí-los“. “Onde ele adquiriu olhos suficientes para espioná-lo, se você mesmo não os fornece? Como ele pode ter tantos braços para bater em vocês, se não os pega emprestados de vocês? Os pés que pisam em suas cidades, onde ele os adquire, se não são os seus próprios pés? Como ele tem qualquer poder sobre vocês, exceto através de vocês?

Então apresenta estas palavras inspiradoras: “Resolvam não servir mais, e serão imediatamente libertados. Não peço que coloquem as mãos sobre o tirano para derrubá-lo, mas simplesmente que não o apoiem mais; então o observarão, como um grande Colosso cujo pedestal foi arrancado, cair de seu próprio peso e quebrar-se em pedaços”.

Em todas estas áreas, o autor antecipou Jefferson, Thoreau, Arendt, Gandhi, Luther King e aqueles que derrubaram a tirania soviética. O ensaio tem profunda relevância para a compreensão da história sendo o grande inspirador da desobediência civil.

Como Rothbard escreve em sua famosa introdução, “O discurso de La Boetie tem uma importância vital para o leitor moderno –  uma importância que vai além do puro prazer de ler uma grande e seminal obra sobre filosofia política, ou, para o libertário, de ler o primeiro filósofo político libertário“. Para La Boétie, o problema que todos os adversários do despotismo encontram de forma particularmente difícil é de estratégia. Diante do poder devastador e aparentemente avassalador do Estado moderno, como se pode criar um mundo livre e diferente? Como é possível ir de um mundo de tirania para um mundo de liberdade? Com sua metodologia abstrata e atemporal, La Boétie oferece perspectivas vitais sobre este eterno problema.

Disponível nas lojas: Amazon, Kobo e Apple.

Estoicos assistem a Copa do Mundo?

Sim. Claro.

Apesar do Futebol ainda não ter sido inventado, os filósofos antigos abordaram o assunto de competição esportiva:

“Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar os estádios [lutas de gladiadores] ; pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.”(Sêneca, Carta VII.2)

“Do meu preceptor [eu aprendi] a não ter pertencido à facção nem dos Verdes, nem dos Azuis [corridas de cavalos], nem partidário dos Grandes-Escudos, nem dos Pequenos-Escudos [lutas de gladiadores] “(Marco Aurélio, Meditações – I.5)

“Raramente, quando a ocasião pedir, fala algo, mas não sobre coisa ordinária: nada sobre lutas de gladiadores, corridas de cavalos, nem sobre atletas, (…)– assuntos falados por toda parte” (Epiteto, Encherídion[33.2])

Não temos gladiadores hoje em dia, no entanto,  essas três passagens não são sobre rejeitar o prazer oferecido pelo futebol moderno, mas, ao contrário, sobre abordá-lo da maneira correta, no sentido de que pode proporcionar não apenas entretenimento, mas também oportunidades para praticar a virtude.

Antes de eu explicar, deixe-me lembrá-lo que assistir esportes é, na melhor das hipóteses, classificado entre os indiferentes preferidos, ou seja, o tipo de coisa que não faz de você uma pessoa melhor ou pior (não gostar de futebol não faz você mais inteligente). Ou seja, a atividade é moralmente neutra e, além disso, o resultado certamente não está sob seu controle. (Lembrem do 7×1)

Então, quais virtudes podemos treinar assistindo a um jogo de futebol? Todas elas! Especialmente se for ao estádio para assistir ao vivo, ou se estiver na presença de fãs da equipe adversária. Vamos ver:

  • Sabedoria prática (phronesis, ou prudência): Isto é o conhecimento do que é verdadeiramente bom ou mau. Se o “meu” time vence ou perde é irrelevante, o que significa que devo aceitar qualquer resultado com equanimidade.
  • Temperança: Assistir apenas alguns jogos selecionados (senão gastaríamos muito do nosso tempo, que segundo Sêneca, é o único bem que nunca recebemos de volta), e participar da festa com moderação (ao contrário, digamos, de um hooligan bêbado que incomoda as outras pessoas).
  • Coragem: bater palmas para a equipe adversária, ou um de seus jogadores, sempre que merecerem, mesmo que seus amigos e co-fãs fiquem constrangidos com o seu comportamento.
  • Justiça: trate tanto os jogadores quanto os torcedores do outro time como seres humanos, membros da mesma cosmópolis, não os insulte (nem a mãe do árbitro), e, é claro, não parta para a violência.

Agora, se você me der licença, a Argentina logo vai jogar com a Croácia.  Vai Croácia!!!

 

(imagem, escultura de Sêneca por Barron goleando os epicuristas)

(artigo baseado no texto de Massimo Pigliucci)