Carta 104: Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

O Estoico retorna de férias e abre o ano com uma excelente carta, muito apropriada para essa época de pandemia, e pior ainda, polarização ideológica.

A carta apresenta uma visão do casamento do Seneca. Sua esposa Paulina se mostra preocupada com a saúde de Sêneca, que então decide se cuidar para tirar preocupação da esposa.

Uma faceta que sobressai desta carta é a reciprocidade entre Sêneca e Paulina – porque ela se preocupa com o bem-estar dele, ele se vê mais preocupado consigo mesmo como resultado. Este é um reforço cíclico do carinho; o carinho gera mais carinho. A relação conjugal cria um tipo de intimidade e proximidade que permite o desenvolvimento de um cuidado real. O princípio subjacente aqui é que é tarefa de um sábio lembrar que não vive apenas para si mesmo, mas também para os outros – daí o desprezo de Sêneca por aqueles que optam pelo suicídio sem levar em conta o impacto sobre aqueles que os cercam.

Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita. A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.” (CIV, 3)

Após a interessante passagem sobre seu casamento, Sêneca explica porque viajar ou mudar para outro lugar não é solução para os problemas pois “o homem que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares”. O motivo da perturbação é o próprio homem já que “Viaja o tempo todo em sua própria companhia!

A solução é enfrentar sem medo nossos problemas:

Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.” (CIV, 26)

Conclui a carta com exemplos de personalidades estoicas, em especial Marco Catão. Hoje a polarização ideológica sugere que precisamos escolher um lado, entre duas péssimas opções. Isso é falso. Catão passou por isso, e não escolheu César nem Pompeu:

Quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república. ..- E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva?” (CIV, 31-33)

Sempre existe mais do que duas opções, cuidado com as falsas dicotomias.

(imagem: O Casamento Romano por Emilio Vasarri)


CIV. Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu fugi para minha casa em Nomento, por que propósito, você acha? Para escapar da cidade? Não; para livrar-me de uma febre que seguramente estava a caminho do meu sistema. Já se apoderava de mim. Meu médico continuou insistindo que, quando a circulação está irregular, perturbando o equilíbrio natural, a doença está a caminho. Eu, portanto, ordenei que minha carruagem fosse preparada de imediato e insisti em partir, apesar dos esforços de minha esposa Paulina para me impedir; pois me lembrei das palavras do meu estimado Gálio,[1] quando ele começou a desenvolver uma febre em Acaia e pegou o navio imediatamente, insistindo que a doença não era do corpo, mas do lugar.

2. Foi o que observei para minha querida Paulina, que sempre pede para que cuide de minha saúde. Eu sei que seu próprio sopro de vida vai e vem com o meu e eu estou começando, em minha solicitude por ela, a ser solícito comigo. E, embora a velhice tenha me deixado corajoso para suportar muitas coisas, gradualmente estou perdendo essa benção que a idade avançada confere. Pois vem à minha mente que neste velho homem há também um jovem e a juventude precisa de ternura. Portanto, como não posso prevalecer sobre ela para que me ame com mais coragem, ela prevalece sobre mim para me estimular a ser mais cuidadoso.

3. Pois é preciso se entregar a emoções genuínas; às vezes, mesmo apesar de fortes razões, o sopro da vida deve ser chamado de volta e mantido em nossos próprios lábios, mesmo ao preço de grande sofrimento, por causa daqueles que consideramos queridos; porque o homem de bem não deve viver tanto quanto queira, mas o tanto quanto deve. Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita.[2] A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.

4. Dá prova de um grande coração ao voltar à vida por causa dos outros. E homens nobres muitas vezes fizeram isso. Mas esse procedimento também, acredito, indica o maior tipo de bondade: que, embora a maior vantagem da velhice seja a oportunidade de ser mais negligente em relação à autopreservação e a usar a vida de forma mais aventurada, deve-se cuidar da velhice com ainda maior cuidado se alguém entender que essa ação é agradável, útil ou desejável aos olhos de uma pessoa amada.

5. Isso também não é uma fonte de alegria mesquinha ou lucro; pois o que é mais encantador do que ser tão valorizado pela esposa que a própria existência se torna mais valiosa para si mesmo por esse motivo? Daí minha querida Paulina é capaz de me tornar responsável, não só por seus medos, mas também pelo meus.

6. Então você tem curiosidade em saber o resultado desta prescrição de viagem? Assim que escapei da atmosfera opressiva da cidade e daquele horrível odor de cozinhas que, quando em uso, derramam uma ruína de vapor e fuligem pestilentos, percebi imediatamente que minha saúde estava se reparando. E quão mais forte você acha que me senti quando cheguei às minhas vinhas! Sendo, por assim dizer, deixado sair para pastar, eu regularmente andei até minhas refeições! Então eu sou o meu “eu antigo” novamente, não sentindo agora nenhum langor no meu sistema ou qualquer letargia em meu cérebro. Estou começando a trabalhar com toda minha energia.

7. Mas o mero lugar ajuda pouco neste propósito, a menos que a mente seja totalmente mestre de si mesma, e possa, a seu gosto, encontrar retiro mesmo em meio a negócios. O homem, no entanto, que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares. Sócrates respondeu, quando uma certa pessoa se queixou de não ter recebido nenhum benefício de suas viagens: “Isso serve bem a você!  Viajou o tempo todo em sua própria companhia![3]

8. Oh que bênção seria para alguns homens se afastarem de si mesmos! Como são, eles causam a sim próprios aborrecimento, preocupação, desmoralização e medo! Que lucro há em cruzar o mar e em ir de uma cidade para outra? Se você quer escapar de seus problemas, não precisa de outro lugar, mas de outra personalidade. Talvez você tenha chegado a Atenas, ou talvez a Rodes; escolha qualquer país que você goste, qual a importância de seu caráter? Que importância têm os costumes dessa nova cidade se você leva os seus próprios para lá?

9. Suponha que você acredite que a riqueza seja um bem: a pobreza então irá angustiá-lo e, o que é mais lamentável, será uma pobreza imaginária. Pois você pode ser rico e no entanto, porque seu vizinho é mais rico, você se considerará pobre na mesma quantidade em que você fica atrás do seu vizinho. Você pode considerar sua posição social como boa; você ficará irritado com a nomeação de outra pessoa ao consulado; você ficará com ciúmes sempre que ler um nome várias vezes nos registros do estado. Sua ambição será tão frenética que se considerará o último na corrida se houver alguém na sua frente.

10. Ou você pode considerar a morte como o pior dos males, embora não haja nenhum mal lá, exceto o que precede a chegada da morte – o medo. Você ficará assustado, não só pelo real, mas por perigos imaginados e será lançado para sempre ao mar da ilusão. Que benefício será então

ter passado por tantas cidades,
Argos em seu vôo pelo meio do inimigo?

evasisse tot urbes
Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostis?[4]

Pois a própria paz proporcionará uma maior apreensão. Mesmo em meio a segurança, você não terá confiança se a sua mente já tiver recebido um choque; uma vez que tenha adquirido o hábito de pânico cego é incapaz de fornecer mesmo a sua própria segurança. Pois não evita o perigo, mas foge dele. No entanto, estamos mais expostos ao perigo quando viramos as costas.

11. Você pode julgar como o mais grave dos males perder qualquer um dos que você ama; enquanto tudo isso não seria menos insensato do que chorar porque as árvores que atraem seus olhos e adornam sua casa perdem sua folhagem. Considere tudo o que lhe agrada como se fosse uma planta florescente. Aproveite ao máximo enquanto está em folha, pois diferentes plantas em diferentes estações devem cair e morrer. Mas assim como a perda de folhas é uma coisa leve, pois elas nascem de novo, assim também é com a perda daqueles a quem você ama e considera o deleite da sua vida, pois podem ser substituídos mesmo que não possam nascer de novo.

12. “Novos amigos, no entanto, não serão os mesmos”. Não, nem você mesmo permanecerá o mesmo, você muda com todos os dias e a cada hora. Mas nos outros homens, você vê mais facilmente o que o tempo saqueia. Em seu próprio caso, a mudança está oculta, porque não ocorre visivelmente. Outros são arrebatados da vista, nós mesmos estamos sendo furtivamente afastados de nós mesmos. Você não pensará em nenhum desses problemas, nem aplicará remédios para essas feridas. Você, por sua própria vontade, estará semeando uma safra de problemas por alternância de esperança e desespero. Se você é sábio, misture esses dois elementos: não espere sem desespero, nem se desespere sem esperança.

13. Qual o benefício que a viagem em si mesma já conseguiu dar a qualquer um? Não restringiu o prazer, nem refreou o desejo, nem controlou o mau humor, nem aniquilou os assaltos selvagens da paixão, nem deu a oportunidade de livrar a alma do mal. Viajar não pode nos dar discernimento ou livrar-nos dos nossos erros, apenas mantém nossa atenção por um momento em uma certa novidade, enquanto as crianças param para se perguntar sobre algo que não é familiar.

14. Além disso, isso nos irrita, através da vacilação de uma mente que sofre de um agudo ataque de enjoo; o próprio movimento o torna mais agudo e inquieto. Daí os pontos que tínhamos procurado mais ansiosamente, deixamos ainda mais ansiosamente, os atravessamos voando corno aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram.

15. O que a viagem dará é familiaridade com outras nações: ela irá revelar-lhe montanhas de formas estranhas, ou estratos desconhecidos de planície, ou vales que são regados por riachos perenes, ou as características de algum rio que vem à nossa atenção. Observamos como o Nilo sobe e incha no verão, ou como o Tigre desaparece, correndo no subsolo através de espaços escondidos e depois aparece com grande amplidão. Ou como o rio Meandro,[5] esse assunto repetido e brinquedo de poetas, gira em curvas frequentes e muitas vezes em sinuosas torsões se aproxima de seu próprio canal antes de continuar seu curso. Mas esse tipo de informação não vai fazer de nós homens melhores ou mais saudáveis.

16. Devemos passar nosso tempo no aprendizado e cultivar aqueles que são mestres da sabedoria, estudando algo que foi investigado, mas não resolvido; com isso, a mente pode ser livrada da mais miserável servidão e conquistar sua liberdade. Na verdade, enquanto você ignorar o que deveria evitar ou procurar, ou o que é necessário ou supérfluo, ou o que é certo ou errado, você não estará viajando, mas simplesmente vagando.

17. Não haverá benefício para você nesta corrida de um lado para outro; pois você estará viajando com suas emoções e será seguido por suas aflições. Seguido não! Na realidade, você as está carregando e não as conduzindo. Daí elas pressionam você por todos os lados, continuamente lhe irritando e desgastando. É por remédio, e não paisagem, o que o doente deve procurar.

18. Suponha que alguém quebrou uma perna ou deslocou uma articulação, ele não embarca para outras regiões, mas ele chama o médico para arrumar o membro fraturado ou para movê-lo de volta ao seu lugar apropriado nas articulações. O que então? Quando o espírito está quebrado ou arruinado, você acha que essa mudança de lugar pode curá-lo? A enfermidade é muito profunda para ser curada por uma viagem.

19. Viajar não faz um médico ou um orador, nenhuma arte é aprendida simplesmente vivendo em um determinado lugar. Onde está a verdade, então? A sabedoria, a maior de todas as artes, pode ser obtida em uma viagem? Eu asseguro-lhe, viaje quanto quiser, nunca poderá estabelecer-se além do alcance do desejo, além do alcance do mau humor ou do alcance do medo; se fosse assim, a raça humana teria se reunido e peregrinado a tal local. Tais males, contanto que carregue com você suas causas, o sobrecarregarão e o preocuparão em suas perambulações sobre terra e mar.

20. Você duvida que não adianta fugir deles? É disso que você está fugindo, daquilo que tem dentro de si. Consequentemente, reforme a si mesmo, tire o peso de seus próprios ombros e mantenha dentro de limites seguros os desejos que devem ser removidos. Limpe sua alma. Se você quiser aproveitar as suas viagens, faça com que o companheiro de suas viagens seja saudável. Enquanto esse companheiro é avaro e significante, a ganância irá controlar você; e enquanto você se junta a um homem arrogante, suas maneiras autoritárias também estarão próximas. Viva com um carrasco e você nunca se livrará da sua crueldade. Se um adúltero é seu companheiro, ele irá acender as paixões mais vulgares.

21. Se você quer ser despojado de suas falhas, deixe para trás os exemplos de falhas. O avarento, o trapaceiro, o valentão, o sádico, que lhe farão muito mal por estar perto de você, estão dentro de você. Mude, portanto, para melhores associações: viva com os Catãos, com Lélios, com Tuberão. Ou, se você gosta de viver com os gregos também, passe seu tempo com Sócrates e com Zenão: o primeiro irá mostrar-lhe como morrer se for necessário; o último como morrer antes que a necessidade o imponha.

22. Viva com Crisipo, com Posidônio:[6] eles farão você conhecer as coisas terrenas e as coisas celestiais, eles irão lhe oferecer trabalho duro sobre algo mais do que certos rebusques de linguagem e frases para o entretenimento dos ouvintes, eles irão lhe oferecer coragem e como crescer frente ameaças. O único porto protegido das tempestades da sua vida é o desprezo pelo futuro, uma posição firme, uma prontidão para receber os ataques da Fortuna direto no peito, sem se esconder nem virar as costas.

23. A natureza nos trouxe braveza de espírito e, assim como ela implantou em certos animais um espírito de ferocidade, em outros astúcia, em outros terror, da mesma forma ela nos deu um espírito ambicioso e elevado, o que nos leva a buscar uma vida de grande honra, e não da maior segurança, que mais se assemelha à alma do universo, que segue e imita tanto quanto nossas medidas mortais permitem. Este espírito avança em frente, confiante do sucesso e consideração.

24. É superior a todos, monarca de tudo o que vê; assim não deve ser subordinado a nada, não encontrando nenhuma tarefa muito pesada e nada forte o suficiente para pesar seus ombros, vergar sua energia.

Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte;

Terribiles visu formae letumque labosque;[7]

Não são nem um pouco terríveis, se alguém pode olhá-las com um olhar implacável e pode perfurar as sombras. Muitas vistas aterrorizadoras na noite, tornam-se ridículas de dia. “Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte”, nosso Virgílio disse com excelência que essas formas são temíveis, não na realidade, mas apenas “de olhar” – em outras palavras, elas parecem terríveis, mas não são.

25. E nessas visões, o que há lá, eu pergunto, tão inspirador do medo que o rumor proclamou? Por que, meu querido Lucílio, um homem tem medo de trabalho pesado ou uma implacável morte? Inúmeros casos ocorrem na minha mente de homens que pensam que o que eles mesmos não conseguem fazer é impossível, que afirmam que pronunciamos palavras que são muito grandes para a natureza do homem.

26. Mas quanto mais eu estimo esses homens! Eles podem fazer essas coisas, mas recusam fazê-las. A quem que já tentou, essas tarefas se mostraram falsas? O que já fez o homem, que parecesse fácil de fazer? Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.

27. Se, no entanto, você deseja um modelo, tome de Sócrates, um ancião que sofreu muito tempo, que foi atacado por todas as dificuldades e ainda assim não foi derrotado pela pobreza (já que seus problemas domésticos se tornaram mais onerosos) e pelo trabalho, incluindo o trabalho árduo do serviço militar. Ele foi muito tentado em casa, se pensamos em sua esposa, uma mulher de maneiras ásperas e de língua rabugenta ou pelas crianças cuja irascibilidade se mostrou mais como da mãe do que do pai. E se você considerar os fatos, ele viveu em tempo de guerra, sob a tirania e sob democracia, que é mais cruel do que guerras e tiranos.

28. A guerra durou vinte e sete anos; findas as hostilidades o estado tornou-se vítima dos trinta tiranos, dos quais muitos eram inimigos pessoais.[8] Por último veio o clímax da condenação sob as mais graves acusações: acusaram-no de perturbar a religião do estado e de corromper a juventude, porque declararam ter influenciado a juventude a desafiar os deuses, desafiar o conselho e desafiar o Estado em geral. Em seguida, veio a prisão e o copo de veneno. Mas todas essas medidas mudaram a alma de Sócrates tão pouco que nem mudaram suas feições. Que distinção maravilhosa e rara! Ele manteve essa atitude até o fim e nenhum homem viu Sócrates eufórico ou deprimido. Em meio a todos os distúrbios da Fortuna, ele não estava perturbado.

29. Você deseja outro caso? Pegue o do Marco Catão, o jovem, a quem a Fortuna tratou de uma forma mais hostil e mais persistente. Mas ele resistiu, em todas as ocasiões, e em seus últimos momentos, no momento da morte, mostrou que um homem corajoso pode viver apesar da Fortuna, pode morrer apesar dela. Toda a sua vida foi passada em guerra civil, ou sob um regime político que logo criaria uma guerra civil. E você pode dizer que ele, tanto quanto Sócrates, declarou lealdade à liberdade em meio a escravidão – a menos que você pense que Pompeu, César e Crasso foram aliados da liberdade!

30. Ninguém jamais viu Catão mudar, não importa a frequência com que a república mudou: ele manteve-se o mesmo em todas as circunstâncias – como pretor, na derrota, sob acusação, na sua província, perante a assembleia, no exército, na morte. Além disso, quando a república estava em uma crise de terror, quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república.

31. Se você obtiver uma imagem mental desse período, você pode imaginar de um lado as pessoas e todo o proletariado ansioso pela revolução – do outro, os senadores e os cavaleiros, os homens escolhidos e honrados da comunidade; e havia entre eles – a República e Catão. Eu lhe digo, você ficará maravilhado quando você vir

O filho de Atreu e Príamo, e Aquiles, inimigo dos dois.

Atriden Priamumque et saevom ambobus Achillen.[9]

Seguindo Aquiles, Catão acusa um tanto quanto acusa o outro, procura que ambas facções deponham suas armas.

32. E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva? Então ele morreu por sua própria decisão.

33. Você vê que o homem pode suportar o trabalho: Catão, a pé, liderou um exército através dos desertos africanos. Você vê que a sede pode ser suportada: ele percorreu colinas cobertas de sol, arrastando os restos de um exército espancado e sem suprimentos, passando por falta de água e vestindo uma armadura pesada. Sempre foi o último a beber das poucas fontes que encontraram. Você vê que a honra e a desonra também podem ser desprezadas: pois relatam que no próprio dia em que Catão foi derrotado nas eleições para a pretura, ele jogou um jogo de bola. Você vê também que o homem pode ser livre do medo de superiores: porque Catão atacou César e Pompeu ao mesmo tempo, em um momento em que ninguém ousou entrar em conflito com um sem se esforçar para agradar o outro. Você vê que a morte pode ser desprezada, bem como o exílio: Catão infligiu o exílio sobre si mesmo e, finalmente, a morte. Entre um e outro, a guerra.

34. E, se apenas estivermos dispostos a retirar nossos pescoços do jugo, podemos manter um coração tão forte contra tantos terrores como esses. Mas antes de mais, devemos rejeitar os prazeres; eles nos tornam fracos e afeminados; eles nos fazem grandes demandas e, além disso, nos compelem a fazer grandes exigências da Fortuna. Em segundo lugar, devemos desprezar a riqueza: a riqueza é o diploma da escravidão. Abandone o ouro e a prata e qualquer outra coisa que seja um fardo sobre nossas casas ricamente mobiladas. A liberdade não pode ser obtida de mão beijada. Se você definir um alto valor para a liberdade, você deve definir um valor reduzido para todo o resto.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Lúcio Júnio Gálio Aneano, senador romano e irmão de Sêneca. É conhecido pelo julgamento de Paulo em Corinto relatado nos Atos dos Apóstolos.

[2] Relativo a, ou natural de Síbaris, antiga cidade grega do sul da Itália. Diz-se de, ou pessoa dada aos prazeres físicos, à voluptuosidade, à indolência.

[3] Para esse mesmo assunto, ver carta XXVIII – Sobre viajar como cura para o descontentamento. (Volume I)

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio, III, 282

[5] NT: O rio Büyük Menderes (cujo nome em latim é Maeander, também chamando Meandro) é um rio no sudoeste da Turquia. Nasce no centro-oeste da Turquia, perto de Dinar, correndo oeste para o mar Egeu, desaguando perto da antiga cidade de Mileto.

[6] Esses homens são padrões ou intérpretes das virtudes. Os primeiros nomes representam respectivamente coragem, justiça e autocontrole. Sócrates é o sábio ideal, Zenão, Crisipo e Posidônio são, por sua vez, o fundador, o organizador e o modernizador do estoicismo. Ver George Stock, Estoicismo.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio, VI, 277

[8] NT: Tirania dos Trinta vai de 431 a 404 B.C. (Guerra do Peloponeso).

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 50: Sobre nossa cegueira e sua cura

As cartas 49 a 58 foram escritas enquanto Sêneca viajava, o que remete ao primeiro ensinamento da Carta 50, que nossos problemas não são externos, mas intrínsecos a cada um de nós:

“estamos aptos a atribuir certas faltas ao lugar ou ao tempo; mas essas falhas nos seguirão, não importa como mudamos nosso lugar.” (L,1)

Logo passa a contar um caso pessoal, uma ilustração da vida extravagante da alta classe romana. Fala da bufão (bobo da casa) particular de sua esposa que fica cega e não percebe.   Sêneca diz que isso é comum às pessoas, que não percebem seus próprios defeitos:

“Eu não sou egoísta, mas não se pode viver em Roma de qualquer outra maneira. Eu não sou extravagante, mas mera vida na cidade exige um grande desembolso. Não é culpa minha que eu tenha uma disposição colérica,  é devido à minha juventude.”
Por que nos enganamos? O mal que nos aflige não é externo, está dentro de nós, situado em nossos próprios entraves; por isso alcançamos a saúde com mais dificuldade, porque não sabemos que estamos doentes.”(L,3-4)

Conclui a carta dizendo que “Aprender virtude significa desaprender o vício.”(L,7) e que uma vida virtuosa é fácil de ser levada se superarmos as dificuldades e resistências iniciais:

“A mente deve, portanto, ser forçada a começar; daí em diante, o remédio não é amargo; pois assim que nos cura, começa a dar prazer.” (L, 9)

(Imagem: Stańczyk durante um baile na corte da Rainha Bona diante da perda de Smolensk, uma pintura de Jan Matejko)


L. Sobre nossa cegueira e sua cura

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Recebi sua carta muitos meses depois que você a postou; portanto, pensei que era inútil perguntar ao transportador com o que você estava ocupado. Ele deveria ter uma memória particularmente boa se puder lembrar disso! Mas espero que a esta altura você esteja vivendo de tal maneira que eu possa ter certeza de que você esteja ocupado, não importa onde você possa estar. Com o que mais você estaria ocupado, a não ser melhorar a si mesmo, deixando de lado algum erro, e chegando a entender que as faltas que você atribui às circunstâncias estão em si mesmo? De fato, estamos aptos a atribuir certas faltas ao lugar ou ao tempo; mas essas falhas nos seguirão, não importa como mudamos nosso lugar.
  2. Você conhece a Harpaste, a bufão particular da minha mulher; ela acabou permanecendo em minha casa, um fardo incorrido de um legado. Eu particularmente desaprovo essas extravagâncias; sempre que eu quiser desfrutar de piadas de um palhaço, não sou obrigado a procurar longe; eu posso rir de mim mesmo. Agora esta palhaça de repente ficou cega. A história soa incrível, mas eu lhe asseguro que é verdade: ela não sabe que ela é cega. Ela continua pedindo a sua criada para mudar de aposentos; ela diz que seus apartamentos são muito escuros.
  3. Você pode ver claramente que o que nos faz sorrir no caso de Harpaste acontece a todos nós também; ninguém entende que é avarento, ou que é cobiçoso. No entanto, os cegos pedem um guia, enquanto vagamos sem um, dizendo: “Eu não sou egoísta, mas não se pode viver em Roma de qualquer outra maneira. Eu não sou extravagante, mas mera vida na cidade exige um grande desembolso. Não é culpa minha que eu tenha uma disposição colérica, ou que eu não tenha estabelecido qualquer esquema de vida definido, é devido à minha juventude.”
  4. Por que nos enganamos? O mal que nos aflige não é externo, está dentro de nós, situado em nossos próprios entraves; por isso alcançamos a saúde com mais dificuldade, porque não sabemos que estamos doentes. Suponhamos que começamos a cura; quando devemos livrar-nos de todas essas doenças, com toda a sua virulência? Atualmente, nem mesmo consultamos o médico, cujo trabalho seria mais fácil se fosse chamado quando a queixa estivesse em seus estágios iniciais. As mentes tenras e inexperientes seguiriam seu conselho se ele indicasse o caminho certo.
  5. Nenhum homem tem dificuldade em retornar à natureza, a não ser o homem que desertou a natureza. Nós ruborizamos ao receber conselhos sadios; mas, pelos céus, se achamos vil procurar um professor desta arte, também devemos abandonar qualquer esperança de que um tão grande bem possa ser inculcado em nós por mero acaso. Não, precisamos trabalhar. Para dizer a verdade, até mesmo a obra não é grande, se apenas, como eu disse, começarmos a moldar e reconstruir nossas almas antes que elas sejam endurecidas pelo pecado. Mas eu não perco as esperanças nem por um pecador contumaz.
  6. Não há nada que não se renda ao tratamento persistente, a atenção concentrada e cuidadosa; por mais que a madeira possa ser dobrada, você pode torná-la direta novamente. O calor retifica vigas torcidas, e a madeira que cresceu naturalmente em outra forma é moldada artificialmente de acordo com nossas necessidades. Quão mais facilmente a alma se permite moldar, flexível como é e mais complacente do que qualquer líquido! Pois o que mais é a alma do que o ar em um determinado estado? E você vê que o ar é mais adaptável do que qualquer outra matéria, na medida em que é menos denso do que qualquer outro.
  7. Não há nada, Lucílio, que o impeça de entreter boas esperanças sobre nós, apenas porque estamos ainda sob o domínio do mal, ou porque há muito temos sido possuídos por ele. Não há homem a quem uma boa mente venha diante de uma maligna. É a mente má que primeiro domina a todos nós. Aprender virtude significa desaprender o vício.
  8. Devemos, portanto, prosseguir na tarefa de nos livrar das faltas com mais coragem, porque, uma vez entregue a nós, o bem é uma possessão eterna; A virtude não é ignorada. Pois antagonistas encontram dificuldade em se apegar onde não pertencem, portanto, eles podem ser expulsos e empurrados para longe; mas qualidades que vêm a um lugar que é legitimamente delas permanecem fielmente. A virtude é consoante à natureza; O vício é oposto a ela e hostil.
  9. Mas embora as virtudes, quando admitidas, não possam partir e sejam fáceis de guardar, contudo os primeiros passos na abordagem delas são difíceis, porque é característico de uma mente fraca e doente ter medo do que não é familiar. A mente deve, portanto, ser forçada a começar; daí em diante, o remédio não é amargo; pois assim que nos cura, começa a dar prazer. Goza-se das outras curas somente depois que a saúde é restaurada, mas um trago de filosofia é ao mesmo tempo saudável e agradável.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.