Carta 27: Sobre o Bem que Permanece

Na carta 27 Sêneca fala dos problemas que prazeres passageiros causam e da incômoda culpa que deixam muito depois do prazer acabar.

“Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. ” (XXVII.2)

Sempre atual, Sêneca fala do pouco valor dado a sabedoria: “Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.” (XXVII.8)

Conclui a carta com mais um dito de Epicuro: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” (XXVII.9)

(Imagem, Denário de prata de Metelo Cipião, exemplo de conduta estoica segundo Sêneca)


XXVII. Sobre o Bem que permanece

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. “O que?”, diz você, “Está me dando conselhos?” De fato, você já se aconselhou, já corrigiu suas próprias falhas? É esta a razão por que você tem tempo livre para reformar outros homens? Não, não sou desavergonhado ao ponto de pretender curar meus semelhantes quando estou doente. Estou, no entanto, discutindo com você problemas que afetam a nos dois, e compartilhando o remédio com você, como se estivéssemos padecendo no mesmo hospital. Ouça-me, portanto, como faria se eu estivesse falando sozinho. Eu estou confessando a você meus pensamentos mais íntimos, e estou discutindo comigo mesmo, usando-o apenas como pretexto.
  2. Eu continuo gritando para mim mesmo: “Conte seus anos, e você terá vergonha de desejar e perseguir as mesmas coisas que você desejou em seus dias de juventude. Certifique-se desta única coisa antes de morrer, – deixe suas falhas perecerem antes. Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. Eles não são substanciais, eles não são confiáveis, mesmo se eles não nos prejudicam, eles são passageiros.
  3. Procure ao invés bens que permanecem. Mas não há tal bem, a não ser aquele descoberto pela alma por si mesma: só a virtude proporciona uma alegria eterna e tranquilizadora, mesmo que surja algum obstáculo, mas como uma nuvem passageira, que se interpõe frente ao sol, mas nunca prevalece contra ele. “
  4. Quando será sua vez de alcançar esta alegria? Até agora, você realmente não foi lerdo, mas você deve acelerar o seu ritmo. Resta muito trabalho; para enfrentá-lo, você deve usar todas suas horas de vigília, e todos seus esforços, se você deseja o resultado realizado. Este assunto não pode ser delegado a outra pessoa.
  5. O outro tipo de atividade intelectual admite assistência externa. Em nossa época havia um certo homem rico chamado Calvísio Sabino; ele tinha a conta bancária e o cérebro de um escravo liberto. Nunca vi um homem cuja boa fortuna tenha sido uma ofensa maior a sua propriedade. Sua memória era tão falha que ele às vezes esqueceria o nome de Ulisses, ou Aquiles, ou Príamo, nomes que conhecemos tão bem quanto conhecemos os de nossos próprios assistentes. Nenhum idoso senil, que não pode dar a homens seus nomes próprios, mas é compelido a inventar nomes para eles, – nenhum homem, eu digo, clama os nomes dos membros de sua tribo de forma tão atroz como Sabino costumava chamar os heróis de Troia e Aqueus. Mas, no entanto, ele desejava parecer erudito.
  6. Assim ele inventou este atalho para aprender: ele pagou preços fabulosos por escravos, – um para conhece Homero de cor e outro para Hesíodo; ele também delegou um escravo especial para cada um dos nove poetas líricos[1]. Você não precisa se admirar que ele tenha pago altos preços por esses escravos; se ele não os encontrava prontos à mão ele encomendava um a ser feito sob medida. Depois de recolher este séquito, ele começou a aborrecer seus convidados; Ele mantinha esses ajudantes ao pé de seu sofá, e pedia de vez em quando os versos para que ele os repetisse, que, muitas vezes, eram quebrados no meio de uma palavra.
  7. Satelio Quadrato, um instigador e, consequentemente, um puxa-saco de milionários fúteis, e também (pois esta qualidade vai com as outras duas) um zombador deles, sugeriu a Sabino que ele deveria ter filólogos para reunir os pedaços. Sabino observou que cada escravo havia lhe custado cem mil sestércios; Satelio respondeu: “Você poderia ter comprado tantas quantas estantes de livros por uma quantia menor.” Mas Sabino sustentou que o que qualquer membro de sua casa sabe, ele mesmo também sabe.
  8. Este mesmo Satelio começou a aconselhar Sabino a tomar lições de luta, mesmo doentio, pálido e magro como era, Sabino respondeu: “Como posso? Eu mal posso ficar vivo agora.” – “Não diga isso, eu lhe suplico” – replicou o outro -, “considere quantos escravos perfeitamente saudáveis você tem!” Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.
  9. Mas deixe-me pagar a minha dívida e dizer adeus: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” Epicuro repete este dizer de várias maneiras e contextos; mas nunca pode ser repetido em excesso, já que nunca é compreendido muito bem. Pois para algumas pessoas o remédio deve ser meramente prescrito; no caso de outras, deve ser forçado goela abaixo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Troia e Aqueus: a Ilíada era a leitura de matéria-prima dos estudantes romanos de elite, mas Calvísio, nem conseguia lembrar seus heróis homéricos. (Os assistentes pessoais atendiam os políticos fornecendo os nomes de quem eles encontravam no fórum.) Hesíodo era muito favorecido por suas máximas morais, mas os nove poetas líricos são muito menos propensos a fazer parte do repertório romano e a compra de nove escravos, um por cada poeta, certamente foi adicionado por Sêneca para animar a história.

Carta 18: Sobre Festivais e Jejum

As Cartas oferecem algo além da filosofia: você tem vislumbres ocasionais da vida privada de Sêneca, bem como da vida em Roma no auge do poder imperial. Esse é um ótimo bônus além do conhecimento filosófico!

Esta é uma de minhas cartas prediletas, onde Sêneca dá o conselho de não se abster de se divertir, mas simplesmente não exagerar:

Mostra-se muito mais coragem permanecendo abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando; mas mostra maior autocontrole recusar-se a se afastar e fazer o que a multidão faz, mas de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando um dentre as multidões. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.”(XVIII, §4)

É exatamente assim que me sinto no Carnaval,  no Natal e assim por diante. Claro que queremos nos divertir e compartilhar um momento agradável da vida com nossa família e amigos. Mas nós temos que ficar bêbados ou doentes por comer demais para fazer isso?

Sêneca então aproveita o tópico em questão para apresentar um ponto mais geral sobre um exercício estoico padrão, auto-privação moderada:

 “separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza….só aquele está em afinidade com Deus, que pode desprezar a riqueza.” (XVIII, 12-13)

A carta de Sêneca não apenas critica a decadência moral e o excesso, mas oferece um guia prático para a vida virtuosa. Ela sugere que a verdadeira liberdade e paz interior vêm da capacidade de viver bem com pouco, de controlar as emoções, e de se preparar para as adversidades da vida. Este é um exemplo clássico da filosofia estoica aplicada ao comportamento individual em um contexto social.


XVIII. Sobre Festivais e Jejum

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É quase dezembro e mesmo assim a cidade está neste momento em um mormaço. A licença é dada para a folia geral. Tudo ressoa com poderosos preparativos, como se as Saturnálias74 diferissem do dia-a-dia usual! Tão verdadeiro é que a diferença é nenhuma, que considero correta a observação do homem que disse: “Uma vez dezembro foi um mês, agora é um ano.”

2. Se eu tivesse você comigo, eu ficaria feliz em trocar ideias e descobrir o que você acha que deve ser feito, se não devemos mudar nada em nossa rotina diária, ou se, nem que por compaixão com os costumes populares, nós devamos jantar em uma maneira mais alegre e despir a toga. Tal como é, nós, os romanos, trocamos nossas roupas por causa do feriado,75 embora em tempos antigos isso acontecia somente quando o Estado estava perturbado e caíra em desgraça.

3. Tenho a certeza de que, se eu o conheço bem, desempenhando o papel de um árbitro, teria desejado que não fôssemos nem como a multidão libertina em todos os sentidos, nem diferentes dela em absolutamente todos os aspectos, a menos que, talvez, esta seja apenas a época em que devamos estabelecer lei à alma e pedir que seja a única a abster-se de prazeres quando a multidão inteira se deixa ir em prazeres, pois esta é a prova mais segura que um homem pode obter de sua própria constância, se ele não busca as coisas que são sedutoras e o tentam ao luxo, nem é levado para elas.

4. Mostra-se muito mais coragem permanecendo-se abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando, mas mostra-se maior autocontrole ficar na multidão e recusar-se a fazer o que ela faz, agindo de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando apenas um dentre a multidão. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.

5. Estou tão firmemente decidido, no entanto, a testar a constância de sua mente que, extraindo dos ensinamentos de grandes homens, eu também lhe darei uma lição: reserve um certo número de dias, durante os quais você se contentará com a alimentação mais barata e escassa, com vestes grosseiras e ásperas, dizendo a si mesmo: “É esta a situação que eu temia?

6. É precisamente em tempos despreocupados que a alma deve endurecer-se de antemão para ocasiões de maior estresse e é enquanto a Fortuna é amável que se deve fortalecer contra sua violência. Em dias de paz, o soldado executa manobras, lança obras de terraplenagem sem inimigo à vista e se exercita, a fim de se tornar indiferente à labuta inevitável. Se você não quer que um homem recue quando a crise chegar, treine-o antes que ela chegue. Tal é o curso que esses homens seguiram que, em sua imitação de pobreza, quase todos os meses chegavam quase à miséria, de forma que eles nunca recuarão do que ensaiaram com tanta frequência.

7. Você não precisa supor que eu quero dizer refeições como Tímon,76 ou “cabines de homem pobre”,77 ou qualquer outro dispositivo que luxuosos milionários usam para enganar o tédio de suas vidas. Deixe a cama de palha ser real e o manto, grosseiro; deixe o pão ser duro e sujo. Resistir a tudo isso por três ou quatro dias por vez, às vezes por mais, para que possa ser um teste de si mesmo em vez de um mero passatempo. Então, asseguro-lhe, meu querido Lucílio, que saltará de alegria quando obtiver um bocado de comida e compreenderá que a paz de espírito de um homem não depende da Fortuna, pois mesmo quando irritada ela concede o suficiente para as nossas necessidades.

8. Não há nenhuma razão entretanto para que você pense que está fazendo qualquer coisa grande; porque você estará apenas fazendo o que muitos milhares de escravos e muitos milhares de pobres estão fazendo todos os dias. Mas você pode beneficiar-se disso, pois você não vai fazê-lo sob coação e que será tão fácil para você suportá-lo permanentemente tanto como para fazer experiência de vez em quando. Vamos praticar nossos golpes no “boneco”; nos fazer íntimos com a pobreza, para que a Fortuna não nos pegue despreparados. Seremos ricos com mais conforto se uma vez descobrirmos que a pobreza está longe de ser um fardo.

9. Mesmo Epicuro, o grande mestre do prazer, costumava observar intervalos declarados, durante os quais ele satisfazia a sua fome de maneira sovina, desejava ver se, assim, ficava aquém da plena e completa felicidade e, se fosse assim, em que quantia ficava aquém, e se essa quantidade valia a pena comprar ao preço de um grande esforço.78 De qualquer forma, ele faz tal declaração na conhecida carta escrita a Polieno.79 Na verdade, ele se vangloria de que ele próprio viveu com menos de um asse (centavo),80 mas que Metrodoro, cujo progresso ainda não era tão grande, precisava de um asse inteiro.

10. Você acha que pode haver plenitude em tal alimentação? Sim e há prazer também, não aquele prazer falso e fugaz que precisa de um estímulo de vez em quando, mas um prazer que é firme e seguro. Pois, embora a água, a farinha de cevada e as crostas de pão de cevada não sejam uma dieta alegre, no entanto, é o tipo mais elevado de prazer poder obter alegria deste tipo de alimento e ter reduzido suas necessidades a esse mínimo que nenhuma injustiça da Fortuna pode arrebatar.

11. Mesmo comida das prisões é mais generosa e aqueles que foram condenados à pena de morte não são tão mal alimentados pelo homem que deve executá-los. Portanto, que alma nobre se deve ter, para descer de próprio arbítrio a uma dieta que mesmo aqueles que foram condenados à morte receariam! Isso é de fato prevenir-se das lanças da má Fortuna.

12. Comece então, meu caro Lucílio, a seguir o costume destes homens, e separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza: “Desafie, ó amigo meu, desprezar o ponto de vista da riqueza e molde-se com afinidade com seu Deus.”81

13. Pois só aquele que está em afinidade com Deus, pode desprezar a riqueza. É óbvio que não o proíbo de possuí-la, mas gostaria que chegasse ao ponto em que a possuísse intrepidamente. Isso só pode ser realizado persuadindo-se de que você pode viver feliz tanto sem ela, quanto com ela, mas sempre considerando que as riquezas podem possivelmente lhe iludir.

14. Mas agora devo começar a dobrar a minha carta. “Pague sua dívida primeiro!”, você clama. Aqui está um texto de Epicuro; ele vai pagar a conta: “Raiva desgovernada produz loucura.82 Você não pode evitar saber a verdade dessas palavras, já que você tem não só escravos, mas também inimigos.

15. Mas, de fato, esta emoção resplandece contra todas as espécies de pessoas, brota tanto do amor quanto do ódio e se mostra não menos em assuntos sérios do que em brincadeira e esporte. E não faz diferença a importância da provocação, mas em que tipo de alma ela penetra. Da mesma forma com o fogo: não importa quão grande é a chama, mas sobre o que ela cai. Pois madeiras sólidas têm repelido um fogo muito grande, por outro lado, matéria seca e facilmente inflamável nutre a menor chama em um incêndio. Assim é com a raiva, meu caro Lucílio: o resultado de uma raiva poderosa é a loucura, e, portanto, a raiva deve ser evitada, não apenas para que possamos escapar do excesso, mas para que possamos ter uma mente saudável.83

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


74 Saturnália era um festival da Antiga Roma em honra ao deus Saturno, se estendendo com festividades até 23 de dezembro. O feriado era celebrado com um sacrifício no Templo de Saturno, no Fórum Romano; um banquete público, seguido de troca de presentes em privado; festa contínua e uma atmosfera de carnaval que derrubava as normas sociais romanas. As Saturnálias mesclavam elementos que em parte correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a licenciosidade) se aproximam do Carnaval. Na sátira “A Apocoloquintose do divino Cláudio” Sêneca diz que Cláudio “qual príncipe de Carnaval, celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro” (8.2) e, mais para frente, após sua morte, “eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar sempre!” (12.2).

75 pilleus era usado por escravos recém-libertados e pela população romana em ocasiões festivas. Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra (“agitação”), ou por roupa de luto (“calamidades”). Ver Marcial.

76 Tímon de Fliunte, filho de Timarco, foi um filósofo cético grego, pupilo de Pirro de Élis, célebre autor de poemas satíricos.

77 Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples.

79 Polieno de Lâmpsaco foi anteriormente um matemático da Grécia Antiga e posteriormente um discípulo de Epicuro. Apesar de matemático, diz-se que convenceu Epicuro de que a geometria era um desperdício de tempo.

80 É, como esperado, impossível uma equivalência entre as moedas romanas e moedas atuais. De qualquer modo “um asse” é um valor mínimo, poderíamos expressar por “um tostão” ou “um centavo”.

81 Trecho de Eneida de Virgílio, VIII, 364.

83 Ver tratado “Sobre a Ira”.

Pensamento do Dia #08: (Carta 22: Sobre a Futilidade de Meias Medidas)

Esteja satisfeito com o negócio ao qual você se dedicou, ou, como prefere que as pessoas pensem, o negócio que lhe foi imposto. Não há nenhuma razão pela qual você deva estar lutando para mais; se o fizer, perderá toda a credibilidade, e os homens verão que não foi uma imposição. A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo.” Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima;

Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita?  Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância; eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si. Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter; você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar.

É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão.

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Pensamento do Dia #6: (Sobre Festivais e Jejum, 6-7)

Reserve um certo número de dias, durante os quais você se contentará com a alimentação mais barata e escassa, com vestes grosseiras e ásperas, dizendo a si mesmo: “É esta a situação que eu temia?“. É precisamente em tempos tranquilos que a alma deve endurecer-se de antemão para ocasiões de maior estresse, e é enquanto a fortuna é amável que se deve fortalecer contra violência. Em dias de paz, o soldado executa manobras, lança obras de terraplenagem sem inimigo à vista, e se exercita, a fim de se tornar indiferente a labuta inevitável. Se você não quer que um homem recue quando a crise chegar, treine-o antes que ela chegue.

(Sêneca, Carta XVIII. Sobre Festivais e Jejum, 6-7 ) (Imagem: Daniele Crespi, Jejum de São Carlos Borromeo)

Pensamento do Dia #4 (Razões para se retirar do mundo, 5)

Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.

(Sêneca, Carta XIV. Sobre as razões para se retirar do mundo, 5) (Imagem: Homen contando dinheiro – por Cornelis de Man)

Carta 2: Sobre a falta de foco no Estudo

 
 
Sêneca fala sobre a falta de foco, tanto no estudo e leitura como em viagens de forma indiscriminada.  Começa a série de citações de Epicuro, já que tenta trazer Lucílio do epicurismo para o estoicismo: “Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. … Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.
 
(imagem Godfrey Kneller, A Scholar in His Study, about 1668)
 
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II. Sobre a falta de foco na leitura

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Julgando pelo que você me escreve e pelo que eu ouço, eu estou formando uma boa opinião a respeito de seu futuro. Você não corre para cá e para lá e se distrai mudando sua morada; pois tal inquietação é o sinal de um espírito desordenado. A principal indicação, na minha opinião, de uma mente bem ordenada é a habilidade de um homem em permanecer em seu lugar e ficar bem em sua própria companhia.

2. Tenha cuidado, no entanto, porque esta leitura de muitos autores e livros de qualquer espécie tendem a torná-lo dispersivo e instável. Você deve permanecer entre um número limitado de mestres pensadores e digerir suas obras, para que construa ideias firmes em sua mente. Estar em todo lugar significa também estar em lugar nenhum. Quando uma pessoa gasta todo o seu tempo em viagens ao estrangeiro, ela termina por ter muitos conhecidos, mas nenhum amigo. E a mesma coisa deve ser válida para os homens que não procuram o conhecimento íntimo de um único autor, mas visitam todos de uma maneira precipitada e apressada.

3. O alimento não faz bem e não é assimilado pelo corpo se ele deixa o estômago assim que é comido; nada impede uma cura tanto quanto a mudança frequente de medicamento; nenhuma ferida cicatrizará quando for tentado um bálsamo após outro; uma planta que é movida frequentemente nunca pode crescer forte. Não há nada tão eficaz que possa ser útil enquanto está sendo deslocado. E na leitura de muitos livros há distração. Por conseguinte, uma vez que não é possível ler todos os livros que você pode possuir, é suficiente possuir apenas tantos livros quanto você pode ler.

4. “Mas”, você responde, “eu desejo mergulhar primeiramente em um livro e então em outro”. Eu lhe digo que é o sinal de gula brincar com muitos pratos; pois quando são múltiplos e variados, eles enfastiam, mas não alimentam. Então você deve sempre ler autores de qualidade; e quando você anseia por uma mudança, retroceda àqueles que você leu antes. Cada dia adquira algo que o fortaleça contra a pobreza, contra a morte e contra outros infortúnios; e depois de ter examinado muitos pensamentos, selecione um para ser completamente digerido naquele dia.

5. Esta é minha própria prática; das muitas coisas que eu li, eu reivindico uma parte para mim. A reflexão para hoje é uma que eu descobri em Epicuro. Isso porque eu sou acostumado a entrar até mesmo no campo do inimigo[♦], não como um desertor, mas como um batedor.

6. Ele diz: “É um bem desejável conservar a alegria em plena pobreza.” Na verdade, se estiver satisfeito, não é pobreza. Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. De que importa o que um homem tem guardado em seu cofre, ou em seu armazém, quão grandes são os seus rebanhos e quão gordos são os seus dividendos, se ele cobiça a propriedade do seu vizinho e não conta os seus ganhos passados, mas as suas esperanças de ganhos vindouros? Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[♦] Estoicismo em oposição ao Epicurismo.