Carta 25: Sobre a Mudança

Na Carta 25 Sêneca fala sobre  mudança e do árduo trabalho que esta sempre requer. Discute com  Lucílio sobre dois amigos em comum – um velho, um jovem, ambos precisando de alguma correção para colocar suas vidas de volta nos trilhos.  

Começa com algo óbvio que infelizmente foi esquecido nos tempos atuais: “Tomarei toda liberdade e franqueza, porque eu não amo uma pessoa se não estou disposto a ferir seus sentimentos.” (XXV, §1) Hoje, muito acreditam que “sentimentos” dos outros são sagrados e o bem supremo, preferem manter o outro em erro, sabendo que em breve sofrerão do que corrigí-los.

 Podemos ou devemos tentar mudar outra pessoa? Sêneca continua dizendo  que depende – o contexto é tudo e a mesma abordagem não vai funcionar em todo os casos. Então, quais são os contextos mais importantes a considerar, e quando é o momento certo para forçar uma mudança ao invés de esperar?

Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a não ter fé”. 

Essa é uma daquelas frases que descrevem ou melhor moldam o estoicismo e seu modo de viver. É mais importante ter fé e esforçar-se em direção ao seu objetivo do que realmente alcançá-lo.

No texto Sêneca retorna ao tema de se afastar da multidão das cartas 7 e 11 onde ele menciona que é ruim estar sozinho se você não for virtuoso o suficiente. Nesta carta ele esclarece as coisas.

O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão. Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontrolado; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um patife. (XXV, §7)


XXV. Sobre a mudança

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Em relação a estes dois amigos nossos, devemos avançar em linhas diferentes. As falhas de um devem ser corrigidas, as do outro devem ser esmagadas. Tomarei toda liberdade e franqueza, porque eu não amo uma pessoa se não estou disposto a ferir seus sentimentos. O que”, você diz, “você espera manter alguém de quarenta anos sob sua tutela? Considere sua idade, quão calejado ele é agora, impossível de ser modificado. Tal homem não pode ser remodelado, somente mentes jovens são moldadas!”

2. Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a faltar com meu dever. Você não precisa se desesperar a curar homens doentes, mesmo quando a doença é crônica, se você apenas se mantiver firme contra o excesso e forçá-los a submeter-se a muitas coisas contra a vontade deles. Quanto ao nosso outro amigo, também não estou suficientemente confiante, exceto pelo fato de que ele ainda tem um sentimento de vergonha suficiente para ruborizar-se por seus pecados. Essa modéstia deve ser fomentada: enquanto persistir em sua alma, haverá espaço para a esperança. Mas quanto a este seu veterano, acho que devemos tratar com mais parcimônia, para que ele não fique desesperado.

3. Não há melhor momento para se aproximar dele do que agora, quando ele tem um intervalo de descanso e parece que corrigiu suas falhas, pois se assemelha a um homem reconvertido. Outros foram enganados por essa intermitência virtuosa da parte dele, mas ele não me engana. Tenho a certeza de que essas falhas voltarão, por assim dizer, com juros compostos, pois estou certo de que estão em suspensão, mas não ausentes. Vou dedicar algum tempo ao assunto e tentar ver se algo pode ou não ser feito, mas só depois de experimentar saberei se pode ou não conseguir-se algum sucesso.

4. Mas você, como de fato está fazendo, mostra que é corajoso: alivia sua bagagem para a marcha. Nenhuma de nossas posses é essencial. Voltemos à lei da natureza, de acordo com ela as riquezas são disponibilizadas para nós. As coisas que realmente precisamos são gratuitas para todos, ou então baratas, a natureza almeja apenas pão e água. Ninguém é pobre de acordo com este padrão. Quando um homem limita seus desejos dentro destas fronteiras, pode desafiar a felicidade do próprio Júpiter, como diz Epicuro. Devo inserir nesta carta um ou mais de seus ditos:

5. “Faça tudo como se Epicuro estivesse observando você.” Não há nenhuma dúvida real de que é bom para todo homem ter designado um guardião sobre si mesmo e ter alguém que possa olhar para cima, alguém que possa considerar como uma testemunha de seus pensamentos. É, de fato, mais nobre viver da forma como você viveria se estivesse sob os olhos de algum homem bom, sempre ao seu lado, mas, no entanto, estou satisfeito se você apenas agir, em tudo o que fizer, como você agiria se alguém qualquer estivesse o observando, porque a solidão nos induz a todos os tipos de vícios.

6. E quando você tiver progredido tanto que tenha respeito por si mesmo, você pode dispensar seu assistente; mas até então, defina como um guardião sobre si mesmo a autoridade de algum homem, seja o grande Catão ou Cipião ou Lélio ou qualquer homem em cuja presença até mesmo patifes degenerados reprimiriam seus vícios. Enquanto isso, você deve se empenhar em fazer de si mesmo o tipo de pessoa em cuja companhia você não ousaria pecar. Quando este objetivo estiver cumprido e você começar a nutrir por si próprio alguma estima, gradualmente permitirei que você faça o que Epicuro, em outra passagem, sugere: O momento em que você mais deveria se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar entre a multidão.”

7. Você deve se fazer de um naipe diferente da multidão. Portanto, embora ainda não seja seguro retirar-se para a solidão, procure certos indivíduos; pois qualquer um é melhor em companhia de alguém, não importa quem, do que só em sua própria companhia. “O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão.” Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontido; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um homem sem caráter.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 23: Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

A carta 23 discorre sobre a distinção entre a alegria falsa e a verdadeira. Sêneca começa contando a Lucílio que deseja escrever-lhe sobre as coisas que importam, sem perder tempo falando do tempo ou outras trivialidades das quais as pessoas falam quando não têm nada a dizer. Ele então vai direto ao ponto:

Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. ” (XXIII, §1-2)

Essa, é claro, é uma versão da dicotomia estoica do controle: não controlamos os externos, por isso é tolice depositar nossa felicidade neles. A frase de Sêneca, “Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo.“, na verdade destaca a ideia de que encontrar alegria na solidez dos próprios julgamentos, em oposição à aquisição de coisas externas, é um objetivo importante do treinamento estoico e, de fato, o auge a ser alcançado.

Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria.” (XXIII, §3)

Normalmente, não precisaríamos aprender a sentir alegria, é uma emoção humana natural. O fato de termos que “aprender” como sentir alegria, entretanto, está perfeitamente de acordo com o princípio estoico de que os sentimentos básicos têm valor neutro e devem ser avaliados por nossa faculdade de julgamento, que tem o poder de dar ou retirar consentimento a tais sentimentos.  Isso parece bastante severo, Sêneca admite que o prazer é uma coisa boa (no sentido de ser um indiferente preferido), mas também está advertindo de que o prazer tem uma tendência a assumir o controle, distraindo-nos de atividades mais importantes. O que buscar, exatamente? Vem a resposta:

Você me pergunta qual é o verdadeiro bem, e de onde deriva? Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo dos presentes da fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho.” (XXIII,§7)

O problema é que muitos de nós levam muito tempo para perceber isso, e alguns de nós nunca percebem isso. É por isso que Sêneca conclui a carta com estas palavras memoráveis:

Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver… alguns homens deixam de viver antes de começarem. ”(XXIII,§11)

XXIII. Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você acha que eu vou escrever-lhe como a temporada de inverno tem nos tratado com gentileza, que aliás foi uma estação curta e suave, ou que primavera desagradável estamos tendo, tempo frio fora de época, e todas as outras trivialidades que as pessoas escrevem quando estão sem assunto? Não; vou transmitir algo que pode ajudar tanto a você como a mim. E o que deve ser esse “algo”, senão uma exortação à solidez da mente? Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento, é realmente o pináculo.

2. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. O homem que é incitado pela esperança de qualquer coisa, embora a tenha ao alcance, embora a tenha em fácil acesso e embora suas ambições nunca o tenham enganado, é perturbado e inseguro de si mesmo.

3. Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria. Você acha que agora estou roubando-lhe muitos prazeres quando eu tento acabar com os presentes da Fortuna, quando eu aconselho a evitar a esperança, a coisa mais doce que alegra nossos corações? Pelo contrário, eu não desejo nunca que você seja privado de alegria. Eu a teria inata em sua casa e ela nascerá lá apenas se estiver dentro de você. Outros objetos de conforto não enchem o peito de um homem, eles apenas suavizam a testa e são inconstantes, a menos que você acredite que aquele que ri tem alegria. A própria alma deve ser feliz e confiante, elevada acima de todas as circunstâncias.

4. Alegria real acredite, é uma questão muito séria. Pode alguém, você acha, menosprezar a morte com um semblante despreocupado ou com uma expressão jovial e alegre, como nossos jovens janotas estão acostumados a dizer? Ou então, pode abrir a porta para a pobreza ou restringir seus prazeres ou contemplar a tolerância da dor? Aquele que pondera estas coisas em seu coração está realmente cheio de alegria, mas não é uma alegria bem disposta. É apenas essa alegria, porém, da qual eu gostaria que você se tornasse o dono, pois nunca o deixará na mão quando encontrar sua fonte.

5. O rendimento das minas medíocres fica na superfície; naquelas que são realmente ricas, as veias emboscam-se profundamente e elas trarão retornos mais generosos para aquele que mergulha continuamente. Assim também são bugigangas que deleitam a multidão comum, pois proporcionam apenas um prazer superficial, colocado somente como um revestimento, sendo este como uma alegria banhada, a qual falta base real. Mas a alegria de que falo, aquela a que estou me esforçando para conduzi-lo, é algo sólido, revelando-se mais plenamente à medida que você nela penetra.

6. Portanto, peço-lhe, meu querido Lucílio, faça a única coisa que pode tornar-lhe realmente feliz: despreze todas as coisas que brilham exteriormente e que são oferecidas a você ou a qualquer outro, olhe para o verdadeiro bem e alegre-se apenas naquilo que vem de seu depósito. E o que quero dizer com “seu depósito”? Eu quero dizer de seu próprio eu, que é a melhor parte de você. O corpo frágil também, embora não consigamos fazer nada sem ele, deve ser considerado apenas necessário e não tão importante. Ele nos envolve em prazeres fúteis, de curta duração, logo a serem lamentados. A menos que sejamos ajuizados por um extremo autocontrole, tais prazeres serão transformados em antagônicos. Isso é o que quero dizer: o prazer, a menos que tenha sido mantido dentro dos limites, tende a nos precipitar no abismo da tristeza. Mas é difícil manter limites dentro daquilo que você acredita ser bom. O verdadeiro bem pode ser cobiçado com segurança.

7. Você me pergunta qual é o verdadeiro bem e de onde ele deriva. Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo pelos presentes da Fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho. Para os homens que saltam de um propósito para outro, ou sequer saltam, mas são carregados por uma espécie de aventura, como podem essas pessoas vacilantes e instáveis possuírem qualquer bem que é fixo e duradouro?

8. Existem poucos que controlam a si mesmos e seus negócios por um propósito direcionado. O restante não prossegue, eles são simplesmente varridos, como objetos flutuando em um rio. E desses objetos, alguns são retidos por águas lentas e são transportados suavemente, outros são despedaçados por uma corrente mais violenta, alguns, que estão mais próximos da margem, são deixados lá onde a correnteza afrouxa e outros são levados para o mar pelo avanço da correnteza. Portanto, devemos decidir o que desejamos e manter-nos firmes nesse propósito.

9. Agora é a hora de pagar minha dívida. Eu posso dar-lhe um provérbio de seu amigo Epicuro e assim livrar esta carta de sua obrigação. “É lamentável estar-se perpetuamente começando a vida.”101 Ou outra, que talvez expressará melhor o significado: “Vivem mal aqueles que estão sempre começando a viver”.

10. Você está certo em perguntar por que. O ditado certamente precisa de um comentário. O que se passa é que a vida de tais pessoas é sempre incompleta. Mas um homem não pode estar preparado para a aproximação da morte se ele acaba de começar a viver. Precisamos tornar nosso objetivo já ter vivido o suficiente. Ninguém pensa que tenha feito isso, se está sempre na etapa de planejar sua vida.

11. Você não precisa pensar que há poucos deste tipo, praticamente todos são de tal cunho. Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver. E se isso lhe parece surpreendente, acrescento o que mais o surpreenderá: alguns homens deixaram de viver antes mesmo de terem começado.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


Carta 22: Sobre a Futilidade de Meias Medidas

Sêneca discute a importância de se afastar das ambições mundanas e da vida pública para alcançar uma existência verdadeiramente filosófica e estoica. Ele argumenta que a retirada dessas buscas vazias deve ser feita com cuidado e na hora certa, comparando-o com a estratégia de um gladiador no ringue.  A análise de Sêneca começa com as desculpas típicas das pessoas  em busca de riqueza:

A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo.” Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima;” (XXII, §4)

Observe um ponto sutil aqui: Sêneca não está dizendo que a prosperidade não vale a pena prosseguir. É, afinal, um preferido indiferente. Lucílio estava preocupado com suas próprias ocupações. É por isso que seu amigo lembra que ele não tem nenhuma obrigação de viver freneticamente.

Sêneca então acrescenta: “Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão na minha recepção? Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância; eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.” (XXII, §9)

Este é um belo parágrafo, vale a pena meditar. Comece com o fim: as pessoas amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as próprias dificuldades. De fato, e o que realmente é gratificante na vida é a experiência em si, não tanto o resultado final. Você já esteve em uma caminhada? Claro, há satisfação quando você chega ao cume e pode olhar para a vista. Mas é todo o processo, bolhas e tudo, que vale a pena.

Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter; você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão.” (XXII, §10-11)

Novamente, que bela frase, especialmente no final: a pior escravidão é aquela a quem nos condenamos, mesmo sem perceber.  A carta termina com uma contemplação mais geral da morte, que Sêneca diz ser o teste final de nossa virtude e nossa filosofia. No entanto, muitos simplesmente não conseguem, ou talvez não desejem ouvir, a mensagem, e é por isso que Sêneca conclui com esse sentimento: “Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem a viver nobremente, mas é impossível a qualquer homem viver por muito tempo” (XXII, §17).


XXII. Sobre a futilidade de meias medidas

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você já entendeu, a este ponto, que deve retirar-se daquelas buscas exibicionistas e ilusórias. Mas você ainda deseja saber como isso pode ser realizado. Há certas coisas que só podem ser apontadas por alguém que está presente. O médico não pode receitar por carta o tempo adequado para comer ou tomar banho, ele deve sentir o pulso. Há um velho ditado sobre gladiadores, que eles planejam sua luta no ringue a medida que observam atentamente algo no olhar do adversário, algum movimento de sua mão, até mesmo algum detalhe de seu corpo passa uma dica.

2. Podemos formular regras gerais e colocá-las por escrito, quanto ao que geralmente é feito ou deveria ser feito, tal conselho pode ser dado, não somente a nossos amigos ausentes, mas também às gerações seguintes, à posteridade.98 No que diz respeito, no entanto, a esta segunda questão, quando ou como o seu plano deve ser realizado, ninguém vai aconselhar a distância, temos de nos aconselhar na presença da situação real.

3. Você deve estar não somente presente em corpo, mas vigilante na mente, se você quiser aproveitar de oportunidade fugaz. Consequentemente, olhe ao redor por uma oportunidade, se você a vê, agarre-a e com toda sua energia e com toda sua força dedique-se a esta tarefa: livrar-se daqueles outros afazeres. Agora ouça atentamente o alvitre que vou oferecer: é minha opinião que você deve retirar-se desse tipo de existência ou então da existência completamente. Mas eu também defendo que você deva tomar um caminho suave, para que você possa desatar, em vez de cortar o nó que você tem se empenhando tanto em amarrar; apenas se não houver outra maneira de soltá-lo, então poderá cortá-lo. Nenhum homem é tão covarde que prefira pendurar-se em suspense para sempre do que soltar-se de uma vez por todas.

4. Enquanto isso, e isso é de primeira importância, não se prejudique, esteja satisfeito com o negócio ao qual você se dedicou ou, como prefere que as pessoas pensem, o negócio que lhe foi imposto. Não há nenhuma razão pela qual você deva estar lutando por mais tarefas, se o fizer, perderá toda a credibilidade e os homens verão que não foi uma imposição. A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo”. Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima. Uma parada tem seu significado, mesmo que esta não ofereça resistência, em vez de pedir ansiosamente por mais favores da Fortuna.

5. Você deveria me expulsar, se eu não só lhe aconselhasse, mas também não chamasse outros para aconselhá-lo; e cabeças mais sábias do que as minhas, homens diante dos quais eu vou colocar qualquer problema sobre o qual estou ponderando. Leia a carta de Epicuro sobre esta matéria, é dirigida a Idomeneu. Epicuro pede que se apresse o mais rápido que puder, a bater em retirada antes que alguma influência mais forte se apresente e retire dele a liberdade de fugir.99

6. Mas ele também acrescenta que ninguém deve tentar nada, exceto no momento em que possa ser feito de forma adequada e oportuna. Então, quando a ocasião procurada chegar, esteja pronto. Epicuro nos proíbe de cochilar quando estamos planejando fugir, ele nos oferece a esperança de uma liberação das provações mais duras, desde que não tenhamos pressa demais antes do tempo, nem que sejamos muito lentos quando chegar o momento.

7. Agora, eu suponho, você também está procurando a posição dos estoicos. Não há realmente nenhuma razão pela qual alguém deva criticar essa escola para você em razão de sua dureza; de fato, sua prudência é maior do que sua coragem. Talvez você esteja esperando que a escola diga palavras como estas: “É vil recuar diante de uma tarefa. Lute pelas obrigações que você uma vez aceitou. Nenhum homem é corajoso e sério se ele evita o perigo, seu espírito se fortalece com a própria dificuldade de sua incumbência”.

8. Ser-lhe-ão faladas palavras como estas, se a sua perseverança tiver um objetivo que valha a pena, se você não tiver que fazer ou sofrer algo indigno de um bom homem. Além disso, um bom homem não se desperdiçará com o trabalho desprezível e desacreditado, nem estará ocupado apenas por estar ocupado. Nem ele, como você imagina, se tornará tão envolvido em esquemas ambiciosos que terá que suportar continuamente o seu fluxo e refluxo. Não, quando ele vê os perigos, incertezas e riscos em que foi anteriormente jogado, ele vai se retirar, não virando as costas para o inimigo, mas retrocedendo pouco a pouco para uma posição segura.

9. Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão de clientes na minha recepção nem escolta para a minha liteira?” Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância, eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.

10. Os homens se queixam de suas ambições da mesma forma que se queixam de suas amantes, em outras palavras, se você penetrar seus sentimentos reais, você vai encontrar, não ódio, mas uma passageira implicância. Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter, você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar.

11. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão. Se, no entanto, você pretende se livrar dessa escravidão, se a liberdade é genuinamente agradável aos seus olhos e se você procurar apoio para este propósito único, que você possa ter a Fortuna de realizar este propósito sem perpétua irritação. Como pode toda a escola de pensadores estoicos não aprovar a sua conduta? Zenão, Crisipo e todos de seu grupo dar-lhe-ão conselho que é moderado, honrável e apropriado ao culto do seu próprio bem.

12. Mas se você se virar e olhar ao redor a fim de ver o quanto pode levar com você e quanto dinheiro você pode manter para equipar-se para a vida de ócio, você nunca vai encontrar uma saída. Nenhum homem pode nadar até a terra e levar sua bagagem com ele. Ascenda-se à uma vida superior, com a benevolência dos deuses, mas que não seja benevolência do tipo que os deuses dão aos homens quando, com rostos gentis e amáveis, outorgam males magníficos, justificando que coisas que irritam e torturam sejam concedidas em resposta às orações.

13. Eu estava colocando o selo nesta carta, mas deve ser aberta outra vez, a fim de que possa entregar a você a contribuição usual, levando com ela alguma palavra nobre. E há uma coisa que me ocorre, eu não sei o que é maior, sua verdade ou sua nobreza de enunciação. “Falado por quem?” Você pergunta. Por Epicuro, pois ainda estou me apropriando dos pertences de outros homens.

14. As palavras são: “Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de nela entrar100. Tome alguém de sua relação, jovem, velho ou de meia-idade, você verá que todos têm igualmente medo da morte e são igualmente ignorantes sobre a vida. Ninguém tem nada terminado, porque mantivemos adiando para o futuro todos os nossos empreendimentos. Nenhum pensamento na citação dada acima me agrada mais do que isso, que insulta velhos como sendo infantis.

15. “Ninguém”, diz ele, “deixa este mundo de maneira diferente daquele que acaba de nascer”. Isso não é verdade, porque somos piores quando morremos do que quando nascemos, mas é nossa culpa e não da natureza. A natureza deveria repreender-nos, dizendo: “O que é isso? Eu lhe trouxe ao mundo sem desejos ou medos, livre da superstição, da traição e das outras maldições, sem qualquer outro vício da mesma natureza. Saiam como eram quando entraram!

16. Um homem capturou a mensagem da sabedoria se ele puder morrer despreocupado como era ao nascer, mas a realidade é que estamos todos tremulantes na aproximação do temido final. Nossa coragem nos falha, nossas bochechas empalidecem, nossas lágrimas caem, embora sejam inúteis. Mas o que é mais vil do que se angustiar no próprio limiar da paz eterna?

17. A razão, entretanto, é que somos despojados de todos os nossos bens, abandonamos a carga de nossa vida e estamos em perigo, pois nenhuma parte da mesma foi acondicionada no porão, tudo foi lançado ao mar e se afastou. Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem viver nobremente, enquanto é impossível a qualquer homem viver por muito tempo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


Carta 21: Sobre o reconhecimento que meus escritos o trarão

A vigésima primeira carta de Seneca é muito peculiar. Enquanto estoicos não procuram fama, Sêneca promete a Lucílio manter seu nome conhecido após sua morte. Ele parece até se gabar do alcance e da importância de seus próprios escritos. Isso faz com que a carta pareça “não-estoica”, contudo falsa modéstica não é estoicismo e, principalmente, Sêneca estava certo, a promessa foi integralmente cumprida!

Eu encontrarei benevolência entre gerações posteriores; posso levar comigo nomes que durarão tanto quanto o meu.” (XXI, §5)

Curiosamente, o que é mais valioso desta carta não é ensinado diretamente por Sêneca, mas o repetido de Epicuro: se você busca algo, não tente aumentá-lo, mas tente diminuir seu desejo. E é o mesmo com tudo que você luta: não corra atrás, mas controle o seu desejo.

Se você quiser enriquecer Pítocles, disse ele, não adicione dinheiro, mas subtraia seus desejos…. Se você quiser fazer Pítocles honroso, não adicione às suas honras, mas subtraia de seus desejos, Se você desejar que Pítocles tenha prazer para sempre, não adicione a seus prazeres, mas subtraia de seus desejos” ...  (XXI, §7-8)

Enquanto a escola epicurista e a escola estoica estão em desacordo em muitos pontos, há também um grande terreno comum. Muitas vezes pensamos nos estoicos como seres sem emoção, racionais e nos epicuristas como hedonistas buscadores de prazer. A verdade é, como sempre, tem mais nuances. Talvez seja isso que se possa aprender com essa carta.


XXI. Sobre o reconhecimento que meus escritos lhe trarão

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você conclui que está tendo dificuldades com aqueles homens sobre quem me escreveu? Sua maior dificuldade é com você mesmo, pois você é seu próprio obstáculo. Você não sabe o que quer. Você é melhor em escolher o curso correto do que em segui-lo. Você vê aonde está a verdadeira felicidade, mas não tem coragem de alcançá-la. Deixe-me dizer-lhe o que lhe impede, visto que você não o percebe.

2. Você acha que este cargo, que você deseja abandonar, é de importância, e depois de decidir por aquele estado ideal de calma que você espera atingir, você é retido pelo brilho de sua vida presente, a qual tem intenção de abandonar, como se estivesse prestes a cair em um estado de trevas e imoralidade. Isso é um erro, Lucílio. Passar de sua vida presente para outra é uma promoção. Há a mesma diferença entre essas duas vidas, como existe entre o mero reflexo e a luz real: a última tem uma fonte definida dentro de si, a outra toma seu brilho emprestado; a primeira é suscitada por uma claridade que vem do exterior e qualquer um que se coloque entre a fonte e o objeto transforma imediatamente este último em uma densa sombra, mas a outra tem um brilho que vem de dentro. São seus próprios estudos que farão você brilhar e o tornarão eminente, permita-me mencionar o caso de Epicuro.

3. Ele estava escrevendo a Idomeneu92 e tentando levá-lo de uma existência exibicionista para uma reputação segura e firme. Idomeneu era naquele tempo um ministro do Estado que exercia uma autoridade severa e tinha assuntos importantes à mão. “Se”, disse Epicuro, “você é atraído pela fama, minhas cartas o farão mais famoso do que todas as coisas que você estima e que o fazem estimado.” 93

4. Epicuro falou perfidamente? Quem hoje conheceria Idomeneu, se não tivesse o filósofo gravado seu nome nessas suas cartas? Todos os grandes senhores e sátrapas,94 até mesmo o próprio rei, que foi peticionado pelo cargo que Idomeneu procurava, estão imersos em profundo esquecimento. As cartas de Cícero evitaram o perecimento do nome de Ático.95 De nada teria aproveitado Ático ter Agripa como genro, Tibério como marido de sua neta e um Druso César como bisneto. Mesmo estando rodeado desses poderosos nomes, nunca se falaria seu nome se Cícero não o tivesse associado a si mesmo.

5. A força inexpugnável do tempo rolará sobre nós, alguns poucos grandes homens elevarão suas cabeças acima dela e, embora destinados derradeiramente aos mesmos reinos do silêncio, batalharão contra o esquecimento e manterão seu terreno por muito tempo. O que Epicuro podia prometer a seu amigo, o mesmo lhe prometo, Lucílio. Eu encontrarei benevolência entre gerações posteriores, posso levar comigo nomes que durarão tanto quanto o meu. Nosso poeta Virgílio prometeu um nome eterno a dois heróis e está mantendo sua promessa:

Bem-aventurado par de heróis! Se minha canção tem poder,

O registro de seus nomes nunca será apagado

do livro do Tempo, enquanto ainda

A tribo de Enéias mantiver o Capitólio,

Aquela rocha impassível e a majestade Romana,

O império se manterá.96

6. Sempre que os homens são empurrados para a frente pela Fortuna, sempre que eles se tornam parte integrante da influência de outrem, sempre que eles encontram abundante favor, suas casas são providas apenas enquanto eles próprios mantêm sua posição; quando eles a deixam, eles desaparecem imediatamente da memória dos homens. Mas no caso da habilidade inata, o respeito por ele aumenta e não só a honra se acumula no próprio homem, mas em todos que o têm ligado a sua memória.

7. A fim de que Idomeneu não seja introduzido gratuitamente na minha carta, ele deve compensar o endividamento de sua própria conta. Foi a ele quem Epicuro dirigiu o conhecido ditado que o incitava a enriquecer Pítocles, mas não rico do jeito vulgar e equivocado. Se você quiser enriquecer Pítocles”, disse ele, “não adicione dinheiro, mas subtraia seus desejos.97

8. Esta ideia é muito clara para necessitar maior explicação e muito inteligente para precisar de reforço. No entanto, há um ponto sobre o qual eu gostaria de alertá-lo: não considere que esta afirmação se aplica apenas às riquezas, seu valor será o mesmo, não importa como você a aplique. “Se você quiser fazer Pítocles honroso, não adicione às suas honras, mas subtraia de seus desejos”, “Se você desejar que Pítocles tenha prazer para sempre, não adicione a seus prazeres, mas subtraia de seus desejos”, “Se você deseja fazer Pítocles um homem velho, enchendo sua vida ao máximo, não adicione a seus anos, mas subtraia de seus desejos.”

9. Não há razão para que você considere que essas palavras pertencem somente a Epicuro, elas são propriedade pública. Penso que devemos fazer em filosofia como costumam fazer no Senado: quando alguém faz uma moção da qual eu aprovo até certo ponto, peço-lhe que faça sua moção em duas partes e eu voto pela parte que eu aprovo. Assim, fico ainda mais contente de repetir as ilustres palavras de Epicuro, para que eu possa provar àqueles que recorrem a ele por um mau motivo, pensando que terão uma tela para seus próprios vícios, que devem viver honrosamente, não importa qual escola sigam.

10. Vá ao pequeno jardim de Epicuro e leia o lema esculpido lá:

“Estranho, aqui você fará bem em se demorar, aqui nosso bem mais elevado é o prazer.”

O zelador daquela morada, amável anfitrião, estará pronto para você, ele o receberá com farinha de cevada e também servirá água em abundância, com estas palavras: “Você não está bem entretido? Este jardim”, diz ele, “não aguça o apetite, ele o apaga, nem o deixa mais sedento com cada gole, ele abranda a sede por um remédio natural, um remédio que não exige nenhuma recompensa. Este é o ‘prazer’ em que eu tenho envelhecido.”

11. Ao falar com você, no entanto, eu me refiro a esses desejos que recusam alívio, que carecem de suborno para cessar. Pois em relação aos desejos excepcionais, que podem ser adiados, que podem ser corrigidos e controlados, eu tenho este pensamento para compartilhar com você: um prazer desse tipo é natural, mas não é necessário; não lhe devemos nada, tudo o que é gasto com ele é uma prenda gratuita. A barriga não ouve conselhos, faz exigências, importuna. E mesmo assim, não é uma credora problemática, você pode despachá-la a pequeno custo, desde que somente você lhe dê o que você deve, não meramente tudo que você poderia dar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


92 Idomeneu de Lampsaco, foi um amigo e discípulo de Epicuro.

94 Sátrapa era o nome dado aos governadores das províncias, chamadas satrapias, nos antigos impérios Aquemênida e Sassânida da Pérsia. Cada satrapia era governada por um sátrapa, que era nomeado pelo rei.

95 Tito Pompónio Ático foi um cavaleiro romano e Patrono das Letras. Ático é recordado como grande amigo e confidente de Cícero, sendo-lhe dedicado o tratado deste filósofo sobre a amizade, De Amicitia. A correspondência entre os dois está preservada nos dezesseis volumes das “Cartas a Ático” (Epistulae ad Atticum).

96 Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 20: Sobre praticar o que se prega

A carta de Sêneca a Lucílio é um tratado filosófico sobre integridade, consistência entre o que se fala e o que se faz, e a busca por sabedoria. Sêneca exorta Lucílio a viver de acordo com seus princípios, criticando a hipocrisia de pregar simplicidade enquanto vive no luxo.

É um lembrete gritante de que o estoicismo é uma filosofia prática, destinada a ser implantada diariamente durante a vida, e não simplesmente contemplada quando podemos ler por lazer.

Essa linha de raciocínio leva Sêneca a sugerir  o exercício da autodeprivação moderada. Os exercícios de privação, então, têm múltiplas funções: eles testam nossa resistência, eles nos preparam para possíveis adversidades, eles nos lembram que muitas coisas que achamos que precisamos não são realmente necessárias, e eles reajustam nosso ciclo hedônico, fazendo-nos apreciar o que nós já temos.

Sêneca conclui com uma mensagem de força e bem-estar, reforçando a ideia de que a riqueza verdadeira e a felicidade derivam da liberdade interna alcançada através da virtude, não da posse material.  Em resumo, oferece uma visão profunda sobre como a filosofia deve ser uma prática vivida, que transforma não apenas o pensamento, mas a vida e o caráter do indivíduo.

XX. Sobre praticar o que se prega

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Se você está em boa saúde e se você se considera digno de finalmente se tornar seu próprio mestre, estou contente. Pois será minha a glória se eu puder salvá-lo das inundações de golpes sem esperança de fim. Porém, meu caro Lucílio, peço e suplico, por sua parte, que deixe a sabedoria penetrar em sua alma e teste seu progresso, não por mero discurso ou escrita, mas por força de coração e redução do desejo. Prove suas palavras por suas ações.

2. Diferente do propósito daqueles que discursam e tentam ganhar a aprovação de uma multidão de ouvintes, é o propósito daqueles que seduzem os ouvidos dos jovens e dos ociosos por meio de argumentação fluente. A filosofia nos ensina a agir, não a falar; exige de cada homem que viva de acordo com o seu próprio padrão, que a sua vida não esteja em desacordo com as suas palavras e que, além disso, sua vida interior não seja destoante, mas em harmonia com todas as suas atividades. Isto, eu digo, é o mais alto dever e a mais alta prova de sabedoria, que ações e palavras estejam em acordo, que um homem deva ser sempre o mesmo sob todas as condições. “Mas,” você responde, “quem pode manter este nível?” Muito poucos, com certeza, mas há alguns. É de fato um empreendimento árduo e não digo que o filósofo possa sempre manter o mesmo ritmo. Mas ele sempre pode seguir o mesmo caminho.

3. Observe-se então, e veja se suas vestes e sua casa são inconsistentes, se você se trata generosamente, mas sua família mal, se você come frugalmente, mas ainda constrói casas luxuosas. Você deve aplicar, de uma vez por todas, um único padrão de vida e deve regular toda a sua vida de acordo com este padrão. Alguns homens se restringem em casa mas andam empertigados diante do público. Tal discordância é uma falha e indica uma mente vacilante que ainda não pode manter seu equilíbrio.

4. E eu posso dizer-lhe, ainda, de onde surge esta instabilidade e este desacordo de ação e propósito: é porque nenhum homem decide o que deseja, e mesmo que o tenha feito, não persiste nisso, desiste, não só vacila, mas volta para a conduta que abandonou e repudiou.

5. Portanto, omitindo as antigas definições de sabedoria e incluindo todo o modo de vida humana, posso ficar satisfeito com o seguinte: “O que é sabedoria? Sempre desejar as mesmas coisas e sempre recusar as mesmas coisas”.88 Você pode acrescentar uma pequena condição, que o que se deseja, seja o certo, já que nenhum homem pode sempre estar satisfeito com a mesma coisa, a menos que esta seja a coisa certa.

6. Por isso os homens não sabem o que desejam, a não ser no momento em que desejam; nenhum homem decidiu de uma vez por todas desejar ou recusar. O julgamento varia de dia para dia e muda para o oposto, fazendo com que muitos homens passem a vida em uma espécie de jogo. Prossiga, portanto, como você começou; talvez você seja levado à perfeição, ou a um ponto no qual só você considere aquém da perfeição.

7. “Mas o que,” você diz, “se tornará a minha casa cheia de gente sem uma renda?” Se você parar de apoiar essa gente, ela se sustentará, ou talvez vá aprender graças à pobreza o que não pode aprender por conta própria. A pobreza manterá com você seus amigos verdadeiros e provados, você será livrado dos homens que não o procuraram por você mesmo, mas por algo que você tem. Não é certo, no entanto, que você ame a pobreza, ainda que apenas por essa única razão, para mostrar por quem você é amado? Ou quando chegará esse ponto, quando ninguém disser mentiras para congratulá-lo!

8. Assim, deixe que seus pensamentos, seus esforços, seus desejos, ajudem a torná-lo satisfeito com seu próprio eu e com os bens que brotam de si mesmo e empenhe todas as orações à divindade! Que felicidade poderia se aproximar de você? Traga-se a uma posição humilde, da qual você não pode ser expulso e na qual você possa estar com maior espontaneidade, a contribuição contida nesta carta irá se referir a esse assunto; eu a concederei imediatamente.

9. Embora você possa olhar com desconfiança, Epicuro, mais uma vez, ficará contente em liquidar meu endividamento: “Acredite! Suas palavras serão mais imponentes se você dormir em uma cama estreita e usar trapos, pois nesse caso você não estará simplesmente dizendo, você estará demonstrando sua verdade.89 De qualquer modo, escuto com um espírito diferente as palavras de nosso amigo Demétrio, depois que o vi recostado sem sequer um manto para cobri-lo, e, mais do que isso, sem tapetes para deitar. Ele não é apenas um mestre da verdade, mas uma testemunha da verdade.

10. “Não pode um homem, no entanto, desprezar a riqueza quando ela está em seu próprio bolso?” Claro, também é de grande alma, quem vê riquezas amontoadas em torno de si e, depois de se perguntar longa e profundamente porque elas chegaram em sua posse, sorri e vê, em vez de sentir, que elas são suas. Significa muito não ser estragado pela intimidade com as riquezas e é verdadeiramente grande quem é pobre em meio às riquezas.

11. “Sim, mas eu não sei”, vem a objeção, “como o homem de quem você fala sofrerá a pobreza, se cair nela de repente?”. Nem eu, Epicuro, sei se o pobre de quem você fala vai desprezar as riquezas, se a pobreza, de repente, chegar a ele; portanto, no caso de ambos, é a mente que deve ser avaliada e devemos investigar se o seu homem está satisfeito com a sua pobreza e se o meu homem está descontente com suas riquezas. A cama estreita e os trapos são uma prova fraca de suas boas intenções se não for deixado claro que a pessoa referida sofre essas provações não por necessidade, mas por escolha.

12. É, contudo, a marca de um espírito nobre não se precipitar em tais coisas por serem melhores, mas pô-las em prática, porque são desse modo fáceis de suportar. E são fáceis de suportar, Lucílio. Quando, no entanto, você chegar a elas depois de uma longa prova, elas são ainda agradáveis, pois contêm uma sensação de liberdade, sem a qual nada é agradável.

13. Considero, conforme já lhe disse em outra carta,90 essencial fazer o que os grandes homens fazem com frequência: reservar alguns dias para nos prepararmos para a pobreza real por meio da pobreza simulada. Há mais razão para fazer isso, porque estamos impregnados de luxo e consideramos todos os deveres árduos e onerosos. Em vez disso, deixe a alma ser despertada de seu sono, ser estimulada e ser lembrada de que a natureza prescreveu muito pouco para nós. Nenhum homem nasce rico. Todo homem, quando vê pela primeira vez a luz, é condenado a se contentar com leite e trapos. Tal é o nosso começo e ainda assim chegamos a pensar que os reinos todos são muito pequenos para nós!91

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


88 Sêneca aplica à sabedoria a mesma definição de amizade de Salústio, “ idem velle atque idem nolle, ea demui firma amicitia est”.

90 Ver neste volume, Carta XVIII, 5.

91 Adaptado do epigrama sobre Alexandre o Grande, “hic est quem non capit orbis” em Plutarco.

Carta 19: Sobre Materialismo e Retiro

Nesta carta Sêneca nos alerta sobre a verdadeira amizade e mais uma vez mostra os riscos da ganância.

Sêneca diz que devemos escolher nossos amigos sem pensar nos benefícios que iremos receber destes, ou que a eles daremos: “é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos, certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor; uma grande faz dele um inimigo.” (XIX, §11)

Termina a carta com mais uma citação de Epicuro: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.” (XIX, § 10)

A carta é um chamado para uma vida menos materialista e mais introspectiva, onde a verdadeira riqueza reside na paz interna e relações genuínas.


XIX. Sobre materialismo e retiro

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Pulo de alegria sempre que recebo suas cartas. Pois me enchem de esperança, não são meras presunções sobre você, mas garantias reais. E rogo que continue neste caminho, pois que melhor pedido eu poderia fazer a um amigo do que um que possa ser feito para seu próprio bem? Se possível, vá se retirando aos poucos de todos os negócios de que fala e se você não pode fazer isto, afaste-se de vez, mesmo com prejuízo. Já gastamos bastante do nosso tempo; vamos na velhice começar a arrumar nossa bagagem.

2. Certamente não há nada nisso que os homens possam cobiçar. Passamos nossas vidas em alto mar, que morramos no porto. Não que eu aconselhe você a tentar ganhar renome por seu retiro. O retiro não deve ser alardeado nem ocultado. Não ocultado, eu digo, porque não vou exortá-lo a rejeitar todos os homens como loucos e depois procurar a si mesmo um refúgio no ócio.84 Ao invés, que seu ócio não seja notável; que seu ócio, sem atrair atenções, não passe totalmente despercebido.

3. Em segundo lugar, aqueles cuja escolha é livre desde o início irão deliberar sobre essa questão: se eles querem ou não passar a vida em obscuridade. No seu caso, não há uma livre escolha. Sua habilidade e energia o empurraram para os negócios do mundo, assim temos o encanto de seus escritos e as amizades que você fez com homens famosos e notáveis. A fama já o conquistou. Você pode se afundar nas profundezas da obscuridade e se esconder completamente, contudo seus atos anteriores o revelarão.

4. Você não pode manter-se à espreita no escuro, muito do brilho anterior lhe seguirá onde quer que vá. Você poderá, contudo, reivindicar para si mesmo a desejada paz sem ser detestado por ninguém, sem qualquer sensação de perda e sem dores da alma ou remorso. Por que você deixaria para trás algo que você pode imaginar-se relutante em abandonar? Seus clientes? Mas nenhum desses homens lhe corteja por você mesmo, eles meramente cortejam algo de você. As pessoas costumavam caçar amigos, mas agora elas caçam o dinheiro; se um velho solitário muda seu testamento, o visitante assíduo se transfere para outra porta. Grandes coisas não podem ser compradas por pequenas somas, por isso considere se é preferível desistir de seu próprio eu verdadeiro, ou apenas de alguns de seus pertences.

5. Que você tivesse o privilégio de envelhecer em meio às circunstâncias limitadas de sua origem e que sua Fortuna não o tivesse elevado a tais alturas! Você foi afastado da oportunidade da vida saudável por sua rápida ascensão à prosperidade, pela sua província, pelo seu cargo de procurador85 e por tudo o que tais coisas prometem. Em seguida, você vai adquirir responsabilidades mais importantes e depois delas, ainda mais. E qual será o resultado?

6. Por que esperar até que não haja nada para você desejar? Esse tempo nunca chegará. Nós sustentamos que há uma sucessão de causas, das quais o destino é tecido. Da mesma forma, você pode ter certeza, há uma sucessão em nossos desejos, pois cada um começa onde seu antecessor termina. Você foi empurrado para uma existência que nunca, por si só, porá fim a sua miséria e sua escravidão. Retire seu pescoço cansado do jugo; é melhor tê-lo cortado de uma vez por todas, do que escoriado eternamente.

7. Se você se mantiver em privacidade, tudo estará em menor escala, mas você ficará abundantemente satisfeito; na sua condição atual, no entanto, não há satisfação na abundância que é jogada em cima de você por todos os lados. Você prefere ser pobre e saciado ou rico e faminto? A prosperidade não é apenas gananciosa, mas também é exposta à ganância dos outros. E desde que nada o satisfaça, você mesmo não pode satisfazer os outros.

8. “Mas”, você diz, “como posso me retirar?” De qualquer maneira que lhe agrade. Reflita quantos riscos você correu por causa do dinheiro e quanto trabalho você empreendeu para um título! Você deve ousar algo para ganhar tempo livre também – ou então envelhecerá em meio às preocupações de atribuições no exterior e, posteriormente, a deveres cívicos em seu país, vivendo em agitação e em inundações de novas responsabilidades, que ninguém jamais conseguiu evitar por discrição ou por reclusão. Qual a influência no caso tem seu desejo pessoal de uma vida isolada? Sua posição no mundo deseja o oposto! E se, ainda agora, você permitir que essa posição cresça mais? Tudo o que for adicionado aos seus sucessos será adicionado aos seus medos e preocupações.

9. Neste ponto, gostaria de citar uma frase de Mecenas, que falou a verdade quando em seu auge: “é a própria altitude que fulmina os picos!”. Se você me perguntar em que livro essas palavras são encontradas, elas ocorrem no volume intitulado Prometeu.86 Ele simplesmente queria dizer que esses altos picos têm seus cumes rodeados de trovoadas. Mas será que qualquer poder vale tão alto preço que um homem como você jamais conseguiria, para obtê-lo, adotar um estilo tão pervertido? Mecenas era de fato um homem de recursos, que teria deixado um grande exemplo para o oratório romano seguir se sua boa Fortuna não o tivesse tornado afeminado; não, se não o tivesse emasculado! Um fim como o dele também o espera, a não ser que você baixe imediatamente as velas e, diferentemente de Mecenas, esteja disposto a aproximar-se da costa! Mecenas só o fez tarde demais…

10. Este texto de Mecenas poderia ter quitado minha divida com você, mas tenho certeza, conhecendo-lhe, de que obterá uma penhora contra mim e que não estará disposto a aceitar o pagamento da minha dívida em moeda tão grosseira e vil. Seja como for, devo recorrer ao relato de Epicuro. Ele diz: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.87

11. Este privilégio não será seu a menos que você se afaste do mundo, caso contrário, você terá como convidados apenas aqueles que seu secretário selecionar na multidão de peticionários. No entanto, é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos. Certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor, uma grande faz dele um inimigo.

12. “O quê?”, você diz, “Bondades não estabelecem amizades?” Elas as estabelecem se tiverem o privilégio de escolher aqueles que devam recebê-las e se forem colocadas judiciosamente, em vez de serem espalhadas ao acaso. Portanto, enquanto você está começando a criar uma mente própria, aplique esta máxima do sábio: considere que é muito mais importante a pessoa beneficiada do que o montante do benefício!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


84 O “ócio” para os romanos, e principalmente Sêneca, significa o abandono das ocupações públicas e da participação na vida política. Não se confunde com “ociosidade”. Ver tratado “Sobre o ócio”.

85 O procurador fazia o trabalho de um questor em uma província imperial. Posições em Roma a que Lucílio poderia ter acesso seriam as de praefectus annonae, encarregado do fornecimento de grãos, ou praefectus urbi, Diretor de Segurança Pública e outros.

86 Não se sabe mais sobre esta obra.

Carta 17: Sobre Filosofia e Riquezas

A Carta XVII de Sêneca a Lucílio é uma reflexão profunda sobre a relação entre a riqueza, a pobreza, e a sabedoria, enfatizando a importância da filosofia para alcançar uma vida plena e livre de preocupações materiais. Mais uma vez Sêneca aborda a questão da pouca importância do dinheiro para a felicidade e nos exalta a colocar o estudo da filosofia em primeiro plano, deixando a acumulação de riquezas em segundo.

Tal conselho, vindo de um dos mais ricos homens de Roma pode parecer hipócrita, e o próprio Sêneca era alvo de seus críticos, que perguntavam: “Por que você fala muito melhor do que vive?” Sêneca em seus escritos discorre sobre a possibilidade de alguém ser rico, até mesmo extremamente rico, e manter a integridade ética. Existem três critérios principais para isso, Sêneca nos diz.

  1. O rico virtuoso deve manter a atitude correta, alheia e não-escrava em relação à sua riqueza, possuindo-a sem obrigação e disposto a desistir de tudo quando necessário: “Ele é um grande homem que usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa a prata como se fosse barro“. (Carta 98:  Sobre a inconstância da fortuna)
  2. Em segundo lugar, ele deve adquirir riquezas de maneira moralmente legítima, para que seu dinheiro não seja “manchado de sangue ”.
  3. Em terceiro lugar, ele deve usar suas riquezas generosamente, para beneficiar os menos favorecidos do que ele – uma disposição que convida à comparação com o trabalho de caridade praticado por filantropos ricos em nosso próprio tempo.

Conciliar a riqueza com os ensinamentos de Sêneca pode ser visto como um desafio de viver segundo os princípios da filosofia enquanto se navega pelas realidades do mundo. Ele não defende a rejeição total da riqueza, mas sim um uso judicioso e virtuoso dela, sempre com a mente voltada para a virtude e o bem comum. A riqueza, para Sêneca, deve ser um instrumento para a prática da filosofia, não um fim em si mesmo, e ele mesmo tentou demonstrar isso através de sua vida e ensinamentos, embora nem sempre tenha sido visto como consistente em sua prática.


XVII. Sobre filosofia e riquezas

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Elimine todas as coisas desse tipo se você é sábio. Ou melhor, para que seja sábio! Objetive uma mente sã, rápida e com toda a sua força. Se qualquer vínculo o retém, desfaça-o ou corte-o. “Mas”, diz você, “minha propriedade me atrasa, desejo fazer tal arranjo, que me sustente quando não puder mais trabalhar, para que a pobreza não seja um fardo para mim, ou eu mesmo um fardo para os outros.

2. Você não parece, ao dizer isto, conhecer a força e o poder desse bem que você está considerando. De fato, você compreende tudo o que é importante, o grande benefício que a filosofia confere, mas você ainda não discerne com precisão suas várias funções, nem sabe quão grande é a ajuda que recebemos da filosofia em tudo. Para usar a linguagem de Cícero, “ela corre em nosso auxílio”,70 ela não só nos ajuda nas maiores questões, mas também desde a menor. Siga meu conselho, chame a sabedoria em consulta, ela irá aconselhá-lo a não sentar para sempre em seu livro-razão.

3. Sem dúvida, seu objetivo, que você deseja alcançar com tal adiamento de seus estudos, é que a pobreza não lhe aterrorize. Mas e se ela for algo a se desejar? As riquezas têm impedido muitos homens de alcançarem a sabedoria, a pobreza é desembaraçada e livre de cuidados. Quando a trombeta soa, o homem pobre sabe que não está sendo atacado, quando há um grito de “fogo”, ele só procura uma maneira de escapar e não se pergunta o que pode salvar; se o homem pobre deve ir para o mar, o porto não ressoa, nem os cais são abalados com o séquito de um indivíduo. Nenhuma multidão de escravos envolve o homem pobre, escravos para cujas bocas o mestre deve cobiçar as plantações férteis de seus vizinhos.

4. É fácil preencher poucos estômagos, quando eles são bem treinados e anseiam nada mais, a não ser serem preenchidos. A fome custa pouco. O escrúpulo custa muito. A pobreza está satisfeita com o preenchimento de necessidades urgentes. Por que, então, você deve rejeitar a Filosofia como uma amiga?

5. Mesmo o homem rico segue seu caminho quando é sensato. Se você deseja ter tempo livre para sua mente, seja um pobre homem ou se assemelhe a um pobre homem. O estudo não pode ser útil a menos que você se esforce para viver simplesmente, e viver simplesmente é pobreza voluntária. Então, fora com todas as desculpas como: “Eu ainda não tenho o suficiente, quando eu ganhar a quantidade desejada, então vou me dedicar inteiramente à filosofia.” E, no entanto, este ideal, que você está adiando e colocando em segundo lugar, deve ser assegurado em primeiro lugar. Você deve começar com ele. Você retruca: “Eu desejo adquirir algo para viver.” Sim, mas aprenda enquanto você está adquirindo, pois se alguma coisa o impede de viver nobremente, nada pode impedi-lo de morrer nobremente.

6. Não há nenhuma razão pela qual a pobreza deva nos afastar da filosofia, não, nem mesmo a real carestia. Pois, quando se aprofunda na sabedoria, podemos suportar até a fome. Os homens suportaram a fome quando suas cidades foram sitiadas e que outra recompensa por sua resistência eles obtiveram a não ser não cair sob o poder do conquistador? Quão maior é a promessa de liberdade eterna e a certeza de que não precisamos temer nem aos deuses nem aos homens! Mesmo que nós morramos de fome, devemos alcançar essa meta.

7. Os exércitos suportam toda a maneira de carestia, vivem de raízes e resistem à fome com alimentos repugnantes demais para mencionar.71 Tudo isso eles têm sofrido para ganhar um reino e, o que é mais assombroso, ganhar um reino que será de outro. Será que algum homem hesitaria em suportar a pobreza a fim de libertar sua mente da loucura? Portanto, não se deve procurar primeiro acumular riquezas. Pode-se chegar na filosofia, mesmo sem dinheiro para a passagem.

8. É mesmo assim. Depois de ter possuído todas as outras coisas, também deseja possuir sabedoria? É a filosofia o último requisito da vida, uma espécie de suplemento? Não, seu plano deve ser este: ser um filósofo agora, quer você tenha alguma coisa, quer não. Se você já tem alguma coisa, como você sabe que já não tem muito? Mas se você não tem nada, procure o discernimento primeiro, antes de qualquer outra coisa.

9. “Mas,” você diz, “eu irei carecer das necessidades da vida.” Em primeiro lugar, você não pode carecer delas, porque a natureza exige pouco e o homem sábio adapta suas necessidades à natureza. Mas se maior necessidade chegar, o sábio rapidamente se despedirá da vida e deixará de ser um problema para si mesmo. Se, no entanto, seus meios de existência forem escassos e reduzidos, ele fará o melhor deles, sem se angustiar ou se preocupar com nada mais do que com as necessidades básicas. Fará justiça ao seu ventre e aos seus ombros com espírito livre e feliz, rir-se-á da agitação dos homens ricos e dos caminhos confusos daqueles que se abalam em busca da riqueza,

10. e dirá: “Por que, por sua própria vontade, adia a vida real para o futuro distante? Para que algum juro seja depositado, ou por algum dividendo futuro ou para um lugar no testamento de algum velho rico, quando você pode ser rico aqui e agora? A sabedoria oferece a riqueza à vista e paga em dobro àqueles em cujos olhos ela tornou a riqueza supérflua.” Estes comentários referem-se a outros homens; você está mais perto da classe rica. Mude a sua idade e você terá muito.72 Mas em todas as idades, o que é necessário permanece o mesmo.

11. Eu poderia encerrar minha carta neste momento se eu não o tivesse acostumando mal. Não se pode cumprimentar a realeza sem trazer um presente e no seu caso eu não posso dizer adeus sem pagar um preço. Mas o que será? Tomarei emprestado de Epicuro: “A aquisição de riquezas tem sido para muitos homens não um fim, mas uma mudança, de problemas”.73

12. Não me admiro. Pois a culpa não está na riqueza, mas na própria mente. Aquilo que fez da pobreza um fardo para nós, torna as riquezas também um fardo. Assim como pouco importa se você coloca um homem doente em uma cama de madeira ou sobre uma cama de ouro, pois onde quer que ele seja movido ele vai levar sua doença com ele, também não é preciso se importar se a mente doente é outorgada às riquezas ou à pobreza. O padecimento vai com o homem.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


70 Ver Cícero, Hortensius.

71 Ver ensaio Sobre a Ira III, XX, 2 onde Sêneca relata como os soldados de Cambises, devido à imprudência deste soberano, se viram forçados a comer as solas de seus sapatos cozidas ao fogo.

72 Isto é, imagine-se jovem. Outra intepretação é mude de época, verá que tem mais que seus antepassados.

73 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 14: Sobre as razões para se retirar do mundo

Sêneca escreve esta carta durante um período de turbulência política e social em Roma, provavelmente refletindo sobre as suas próprias experiências e observações sobre os perigos da vida pública. A carta é estruturada em torno de conselhos práticos sobre como evitar os males que ameaçam a paz e segurança pessoal. É  a primeira carta na qual Sêneca explicitamente coloca orientação política em seus ensinamentos e diz a Lucílio que muitas vezes devemos considerar um governante tirano da mesma forma que uma tempestade: um capitão prudente desvia seu curso e não tenta mudar aquilo que sabe ser muito mais forte.

O estoicismo, em oposição ao epicurismo, defende participação na política e sociedade civil. Nesta carta Sêneca alerta para os limites de tal estratégia usando o exemplo de Catão que durante a guerra civil do fim da república combateu tanto Júlio Cesar como Pompeu.

A Carta 14 é uma rica fonte de conselhos sobre como viver de acordo com a virtude em tempos turbulentos. Sêneca não apenas discorre sobre a teoria estoica, mas oferece orientações práticas para viver uma vida que evite as armadilhas da ambição, do medo e da violência, promovendo uma filosofia de vida que valoriza a tranquilidade interior e a moderação.
Esta carta serve tanto como um guia para a conduta pessoal quanto como um reflexo sobre as complexidades da participação política e social, temas que continuam relevantes para o debate filosófico contemporâneo sobre ética e política.
 

Sêneca termina com um alerta sobre os riscos da busca por riquezas: “Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.” (XIV, §17)

XIV. Sobre as razões para se retirar do mundo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Confesso que todos temos um afeto inato por nosso corpo, admito que somos responsáveis por sua proteção, por cuidar bem dele. Eu não defendo que o corpo não deva ser saciado em tudo, mas mantenho que não devemos ser escravos dele. Será escravo de muitos aquele que faz de seu corpo seu mestre, que teme demasiadamente por ele, que julga tudo de acordo com o corpo.

2. Devemos nos conduzir não como se devêssemos viver para o corpo, mas como se não pudéssemos viver sem ele. Nosso grande amor por ele nos deixa inquietos de medo, nos sobrecarrega de cuidados e nos expõe a ofensas. A virtude é considerada inferior pelo homem que considera seu corpo muito importante. Devemos cuidar do corpo com o maior cuidado, mas também devemos estar preparados para quando a razão, o amor-próprio e o dever exigirem o sacrifício, entregá-lo às chamas.

3. Contudo, na medida do possível, evitemos tanto os desconfortos como os perigos e retiremo-nos a um terreno seguro, pensando continuamente em como repelir todos os objetos do medo. Se não me engano, há três classes principais: temos medo da carestia, tememos a doença e tememos os problemas que resultam da violência dos mais fortes.

4. E de tudo isso, o que mais nos assusta é o pavor que paira sobre nós da violência de nosso vizinho, pois é acompanhada por grande clamor e tumulto. Mas os males naturais que eu mencionei, carestia e doença, nos furtam silenciosamente sem terror aos olhos ou aos ouvidos. O outro tipo de mal vem, por assim dizer, sob a forma de grande desfile militar. Em torno dele há um séquito de espadas, fogo, correntes e uma multidão de animais para ser solta sobre as entranhas evisceradas dos homens.

5. Imagine-se submetido à prisão, à cruz, à tortura, aos ganchos,57 à forca e à empalação. Pense nos membros humanos rasgados por cavalos movidos em direções opostas, da camisa terrivelmente besuntada com materiais inflamáveis, e de todos os outros aparelhos inventados pela crueldade, além daqueles que eu mencionei! Não é de admirar, então, se nosso maior terror é de tal sorte, porque ele vem em muitas formas e sua parafernália é aterrorizante. Pois, assim como o torturador conquista mais por conta da quantidade de instrumentos que exibe – de fato, o espetáculo vence aqueles que teriam pacientemente resistido ao sofrimento – similarmente, de todos os agentes que coagem e dominam nossas mentes, os mais eficazes são aqueles ostensivos. Esses outros problemas não são, evidentemente, menos graves. Quero dizer fome, sede, úlceras do estômago e febre engolem nossas entranhas. Eles são, no entanto, secretos, eles não vociferam e se anunciam, mas os outros, com formidáveis vestimentas de guerra, prevalecem em virtude de sua ostentação e aparelhagem.

6. Vamos, portanto, cuidar para que nos abstenhamos de ofender. Às vezes é o povo que devemos temer; às vezes um grupo de oligarcas influentes no Senado, se o método de governar o Estado é tal que a maior parte do negócio é feita por esse grupo; e às vezes indivíduos equipados com poder pelo povo e contra o povo. É oneroso manter a amizade de todas essas pessoas, basta não fazer deles inimigos. Assim o sábio nunca provocará a ira daqueles que estão no poder, mais que isso, o sábio vai mesmo mudar seu curso, exatamente como iria desviar-se de uma tempestade se estivesse conduzindo um navio.

7. Quando você viajou para a Sicília, você precisou atravessar o estreito. Seu capitão foi imprudente e desdenhou o violento vento sul – vento que encrespa o mar siciliano e cria correntes poderosas – ou ele procurou a costa à esquerda? A praia pedregosa, de onde Caríbdis58 agita os mares em confusão. Seu capitão mais cuidadoso, entretanto, questiona aqueles que conhecem a localidade quanto às marés e ao significado das nuvens. Ele mantém seu curso longe daquela região notória por suas águas agitadas. Nosso sábio faz o mesmo, foge de um homem forte que pode ser nocivo a ele, fazendo questão de não parecer evitá-lo, porque uma parte importante de sua segurança reside em não buscar segurança abertamente; porque aquilo que se evita, se condena.

8. Portanto, devemos olhar ao redor e verificar como podemos nos proteger da multidão. E antes de tudo, não devemos ter ânsias como as dela, pois a rivalidade resulta em conflitos. Novamente, não possuamos nada que possa ser arrebatado de nós para o grande lucro de um inimigo conspirador. Permita que haja o menor espólio possível na sua pessoa. Ninguém se propõe a derramar o sangue de seus semelhantes por causa do sangue em si, ou de qualquer maneira, apenas muito poucos. Mais assassinos especulam sobre seus lucros do que em dar vazão ao próprio ódio. Se você está de mãos vazias, o salteador da estrada passa por você. Mesmo ao longo de uma estrada infestada, os pobres podem viajar em paz.

9. Em seguida, devemos seguir o velho ditado e evitar três coisas com especial cuidado: ódio, ciúme e desdém. E só a sabedoria pode mostrar-lhe como isso pode ser feito. É difícil seguir o meio termo, devemos ser cuidadosos para não deixar que o medo do ciúme nos leve a tornarnos desdenhosos, para que, quando escolhemos não menosprezar os outros, não deixemos que eles pensem que podem nos menosprezar. O poder de inspirar medo tem levado muitos homens a terem medo. Afastemo-nos de todas as maneiras, pois é tão nocivo ser desprezado quanto ser admirado.

10. Você deve, portanto, refugiar-se na filosofia. Essa busca, não só aos olhos dos homens bons, mas também aos olhos dos que são mesmo moderadamente maus, é uma espécie de emblema protetor. Pois o discurso no tribunal, ou qualquer outra busca por atenção popular, traz inimigos para um homem, mas a filosofia é pacífica e foca-se em seu próprio negócio. Os homens não podem desprezá-la, ela é honrada por cada profissão, até mesmo a mais vil entre elas. O mal nunca pode crescer tão forte e a nobreza de caráter nunca pode ser tão conspirada, que o nome da filosofia deixe de ser digno e sagrado. Filosofia em si, no entanto, deve ser praticada com calma e moderação.

11. “Muito bem, então,” você responde, “você considera a filosofia de Marco Catão como moderada?” A voz de Catão se esforçou para reprimir uma guerra civil. Catão segurou as espadas de chefes de clãs enlouquecidos. Quando alguns pereceram, vítimas de Pompeu e outros de César, Catão desafiou as duas facções ao mesmo tempo!

12. Não obstante, alguém pode muito bem questionar se, naqueles dias, um sábio deveria ter tomado alguma parte nos assuntos públicos e perguntado: “O que você quer dizer, Marco Catão? Não é agora uma questão de liberdade, há muito tempo a liberdade foi desmoronada e arruinada. A questão é se César ou Pompeu controlam o Estado. Por que, Catão, você deve tomar partido nessa disputa? Não é assunto seu, um tirano está sendo escolhido. O melhor pode vencer, mas o vencedor será condenado a ser o pior homem.” Refiro-me ao papel final de Catão. Mas mesmo nos anos anteriores o homem sábio não foi autorizado a intervir em tal pilhagem do Estado pois o que poderia fazer Catão senão erguer a voz e pronunciar palavras em vão? Em certa ocasião ele foi levado pelas mãos pela multidão, foi cuspido e forçosamente removido do foro e assinalado para o exílio, em outra, foi levado direto do senado para a prisão.

13. Contudo, consideraremos mais tarde59 se o sábio deve dar atenção à política, entretanto, peço-lhe que considere aqueles estoicos que, afastados da vida pública, se retiraram para a privacidade com o propósito de melhorar a existência dos homens e elaborar leis para a raça humana sem incorrer no descontentamento daqueles que estão no poder. O homem sábio não perturbará os costumes do povo, nem atrairá a atenção da população por quaisquer modos de vida novos.

14. “O que, então? Pode alguém que seguir este plano estar sempre seguro?” Não posso garantir-lhe isto mais do que posso garantir uma boa saúde no caso de um homem que observe a moderação embora, de fato, boa saúde resulte de tal moderação. Às vezes um navio afunda no porto, mas o que você acha que acontece em mar aberto? E quão mais cercado de perigo estaria um homem, que mesmo em seu retiro não está seguro, se ele estiver ocupado trabalhando em muitas coisas! As pessoas inocentes às vezes perecem, quem negaria isso? Mas os culpados perecem com mais frequência. A habilidade de um soldado não é julgada se ele recebe o golpe de morte através de sua armadura.

15. E, finalmente, o homem sábio considera a razão de todas as suas ações, mas não os resultados. O começo está em nosso próprio poder, a Fortuna decide o assunto, mas eu não permito que ela passe sentença sobre mim mesmo. Você pode dizer: “Mas ela pode infligir uma medida de sofrimento e de problemas.” Um bandido de estrada pode matar-me; condenar-me, isso jamais!

16. Agora você estende sua mão para o presente diário. Áureo, de fato, será o presente com o qual eu o agraciarei; e, na medida em que mencionamos o ouro, deixe-me dizer-lhe como o seu uso e gozo pode trazer-lhe maior prazer. “Aquele que menos precisa de riquezas, desfruta mais das riquezas”. “Nome do autor, por favor!”, você diz. Agora, para mostrar o quão generoso eu sou, é minha intenção elogiar os ditos de outras escolas. A frase pertence a Epicuro, ou Metrodoro, ou alguém daquela escola de pensamento particular.60

17. Mas que diferença faz quem disse as palavras? Elas foram proferidas ao mundo. Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade. Ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seus registros de juros, em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um guarda-livros.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


57 Os ganchos referidos eram usados para arrastar corpos de condenados até junto das “gemoniae scalae”, isto é, “ escadas dos gemidos”, de onde eram lançados ao rio Tibre.

58 Caríbdis (em grego: Χάρυβδις), na mitologia grega, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon.

59 Ver carta XXII neste volume.

60 Frase de Epicuro. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro X.

Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

A oitava carta de Sêneca aborda a tensão entre a vida contemplativa e a ação social, uma questão central no estoicismo e na filosofia em geral. Sêneca defende um isolamento temporário não como um fim em si mesmo, mas como meio de melhor servir à sociedade, refletindo sobre o valor da introspecção e do estudo intenso.

Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar. “Fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade.

A carta de Sêneca encontra ressonância na modernidade, onde a busca por sucesso e bens materiais muitas vezes ofusca a busca por sabedoria e contentamento interior. A ideia de que a verdadeira liberdade vem da submissão à filosofia, ou a um sistema de valores elevados, é uma mensagem que ainda ressoa.

Uma frase forte da oitava carta de Sêneca a Lucílio, que resume muitos dos temas centrais da carta e do estoicismo em geral, é:
“Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia.”
Essa frase encapsula a ideia de que a verdadeira liberdade humana não vem da autonomia externa ou das posses materiais, mas da adesão a uma vida guiada pela razão e pela virtude, que é a essência da filosofia estoica. Ela sugere que a liberdade verdadeira é alcançada através da submissão à disciplina filosófica, que nos liberta das illusões e vicissitudes da fortuna e das paixões descontroladas.

(Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


VIII. Sobre o isolamento do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Uma objeção sua: “Você sugere que se evite a multidão, se retire do contato dos homens e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?”1 Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior.2 Nunca passo um dia em ociosidade, aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso. E quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechados, eu os mantenho em sua tarefa.

2. Tenho me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios. Estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para elas.3 Há certos conselhos sadios que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito, pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.

3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os presentes da fortuna, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação”. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados. Isso porque nós pensamos que nós as mantemos em nosso poder, mas são elas que nos prendem.

4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento, nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”. A fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.

5. Apegue-se pois, a esta regra sadia e sólida para a vida: que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande.

6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte ou carimbo meu selo sobre uma decisão ou presto ajuda ao senado ou por palavra ou ação presto meu apoio a um candidato qualquer? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas: eles estão lidando ao mesmo tempo com os planos humano e divino.

7. Mas devo parar e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade, pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”.4 O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da filosofia é a liberdade.

8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Publílio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços!5

9. Vou citar um versículo dele que diz respeito à filosofia e, particularmente, aquela frase sobre a qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:

Ainda é alheio o que você ganhou do acaso .

Alienum est omne, quicquid optando evenit.5

10. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: “O que a Fortuna fez não é seu”. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: “O bem que pode ser dado, pode ser removido.” Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo. Ao contrário dos epicuristas, que defendiam uma vida à margem das obrigações políticas e sociais, os estoicos aconselhavam a participação ativa do sábio nos assuntos do estado. Isto explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Sêneca. Ver George Stock, Estoicismo.

2 As condições sócio-políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como fez Sêneca a partir de 63 quando perdeu influência sobre Nero. Ver o tratado Sobre o Ócio em que Sêneca aprofunda o assunto.

3 Essas Cartas!

5 “excalceatis”, referência a comediantes ou mímicos.

6  Provérbios de Publílio Siro (Século 1 a.C.). Também conhecido como Publilio Sirio, ou como Publilius Syrius ou Publio Sirio. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Na carta 5 Sêneca explica o significado do lema estoico  “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado:

…Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.” (Carta 5, §7-8)

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

V. Sobre a virtude do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar, eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, a não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre suas vestes ou seu estilo geral de vida.

2. Devem ser evitados trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo. E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.

3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova de uma vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário, caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.

4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o senso comum, a humanidade, o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza”,1 mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, tomar comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.

5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado razoavelmente sem grande dispêndio. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio que eu sanciono. Nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral, todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.

6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e eles todos?” Sim, distinção muito grande. Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.

7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato2 que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes estão, contudo, realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

8. Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.

9. Animais evitam os perigos que veem e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça, pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a previsão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Lema da escola estoica.

2 NT: Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes. Não se conhecem outros detalhes da sua vida, mas era um filósofo eminente entre os estoicos deste período. Era um escritor prolífico, ainda que não tenha chegado nenhum escrito até aos nossos dias. Diógenes Laércio menciona seis tratados de sua autoria.