Quando algo negativo acontece, ou quando somos atingidos pela adversidade, não devemos nos surpreender, mas encarar isso como uma oportunidade de criar uma situação melhor.
Para os estoicos, todo desafio ou adversidade que encontramos é visto como uma oportunidade para testar e desenvolver nosso caráter interior. Além disso, acreditar que as desgraças nunca nos acontecerão é estar fora de sintonia com a realidade, por isso, devemos esperar ativamente por eventuais solavancos na estrada, e às vezes grandes solavancos.
Sêneca e a Transformação da Adversidade
Comecei a escrever esta nota em 12 de abril, dia em que Sêneca foi morto por seu tutelado e empregador, o Imperador Nero.
Apesar de Sêneca ter se tornado um dos homens mais ricos do Império Romano, sua vida foi repleta de consideráveis adversidades. No entanto ele tentou transformar essas desgraças em algo melhor, até mesmo a sentença de morte que recebeu de Nero.
Sob Calígula, como senador, Sêneca começou a acumular grandes riquezas pessoais, o que continuaria a fazer ao longo de sua vida. Mas essas recompensas financeiras eram de fato bênçãos mistas, pois sua vida se tornava cada vez mais perigosa, e muitas vezes sob grave ameaça. Os problemas de Sêneca começaram por volta da idade de quarenta e três anos, quando Calígula quis matá-lo por inveja da qualidade de seus discursos ao Senado. Afortunadamente, o círculo de amigos de Sêneca convenceu Calígula a não matá-lo afirmando que estava doente e que morreria em breve de toda forma.
Mais tarde, quando Sêneca completava os quarenta e cinco anos, o imperador Cláudio o exilou na ilha da Córsega por oito anos e tomou metade de seus bens, sob acusações falsas (a alternativa seria a morte). Esse exílio ocorreu apenas algumas semanas após a morte de seu único filho, que faleceu ainda quando criança (ocorrência comum na época), e implicou na separação completa de sua esposa.
Depois de passar oito anos em Córsega, onde conseguiu escrever bastante (até porque não havia mais nada que ele pudesse fazer lá), finalmente foi chamado de volta a Roma, mas apenas sob a condição de se tornar tutor do jovem Nero, que na época tinha onze anos de idade.
Sêneca não mediu esforços para ajudar Nero a desenvolver um bom caráter, como vemos no livro Da Clemência, dedicado ao jovem imperador. Infelizmente o projeto foi um fracasso total, Nero não tinha nenhum interesse em filosofia ou ética. À medida que Nero crescia, ele se interessava apenas pela sua auto-gratificação e no poder às custas dos outros, o que o transformava em um tirano e um monstro. No final, Nero mandou matar muitos que o rodeavam, incluindo sua própria mãe, seu irmão e depois sua esposa. Nero finalmente mandou matar Sêneca também, para não mencionar muitos outros.
Mas apesar desses sérios obstáculos, que hoje destruiriam psicologicamente muitas pessoas, a filosofia estoica de Sêneca o ajudou a suportar essas dificuldades e a transformá-las em algo positivo. Mesmo quando Nero forçou Sêneca a cometer suicídio – o que seria de longe preferível às formas alternativas de execução disponíveis – Sêneca aproveitou a ocasião de sua própria morte para dar uma última palestra sobre filosofia a vários amigos que estavam presentes, como Sócrates o fez quando foi obrigado a beber o veneno da cicuta.
Como um bom estoico, Sêneca havia se preparado para a morte ao longo de muitos anos, como parte de sua prática e treinamento filosófico, e não mostrou um único traço de preocupação ou medo ao entregar sua vida.
É relatado que ele disse, “Dado o fato de Nero ter matado sua mãe e seu irmão, não é de se estranhar que ele tenha matado também seu tutor”. E embora as últimas palavras de Sêneca sobre filosofia não tenham chegado até nós, é fácil imaginá-lo ecoando os ditos de Sócrates sobre sua morte: “Enquanto você pode me matar, você não pode me prejudicar.”
A carta 80, uma de minhas preferidas, se mostra atual e apropriada ao momento que estamos passando. Sêneca fala sobre os falsos valores que a sociedade contemporânea dá coisas mundanas. Critica que hoje “treinamos nossos corpos, enquanto quão poucos treinam suas mentes“.
Devido a crise do coronavírus, hoje nos dividimos entre aqueles que temem pela vida e os que temem pela pobreza. Sêneca diz que a liberdade não pode ser comprada ou vendida, mas buscada individualmente quando deixamos de temer a morte e a pobreza:
“… a liberdade não é possuída nem por aqueles que a compraram, nem por aqueles que a venderam. Você deve dar este bem a si mesmo, e buscá-lo por si mesmo. Antes de tudo, liberte-se do medo da morte, pois a morte põe a canga sobre nossos pescoços; então liberte-se do medo da pobreza.” (LXXX, 5)
Como se estivesse falando das redes sociais, das fotos postadas no Facebook e Instagram, Sêneca alerta sobre a felicidade fingida:
“Mas a alegria daqueles a quem os homens chamam de feliz é fingida, enquanto sua tristeza é pesada e supurada, e mais pesada, porque eles não podem, entretanto, exibir sua tristeza, mas devem fingir o papel da felicidade no meio das aflições que devoram seus próprios corações.” (LXXX, 6)
Assim como o comprador de um cavalo olha os dentes, ignorando a sela, e o comprador de escravos quer ver o corpo nu e não as vestes, devemos avaliar as pessoas, e a nós mesmo, não por posses ou cargos, mas por aquilo que realmente são:
“Mas por que eu falo dos outros? Se você deseja definir um valor em si mesmo, coloque ao lado seu dinheiro, suas propriedades, suas honrarias, e olhe para sua própria alma. No momento, você está tomando a palavra dos outros pelo o que você é ” (LXXX, 10)
1. Hoje eu
tenho algum tempo livre, graças não tanto a mim, mas sim aos jogos, que
atraíram todos os chatos para a luta de boxe[1].
Ninguém vai me interromper ou perturbar o trem de meus pensamentos, que irá em
frente com mais ousadia como resultado da minha própria confiança. A minha
porta não tem continuamente rangido em suas dobradiças nem minha cortina tem
sido puxada para o lado; meus pensamentos podem marchar com segurança, e isso é
tanto mais necessário para quem é independente e segue seu próprio caminho.
Posso então não seguir antecessores? Sim,
mas me permito descobrir algo novo, alterar, rejeitar. Eu não sou um escravo
deles, embora eu lhes dê minha aprovação.
2. E, no
entanto, essa foi uma palavra muito ousada que eu falei quando me assegurei de
que deveria ter um pouco de aposentadoria tranquila e ininterrupta. Pois bem,
uma grande ovação vem do estádio, e enquanto isso não me deixa distraído, ela
muda meu pensamento para um contraste sugerido por este mesmo barulho. Quantos homens, digo a mim mesmo, treinam
seus corpos, e quão poucos treinam suas mentes! Que multidões se reúnem aos
jogos, espúrios como são e dispostas apenas para o passatempo, – e que solidão
reina aonde as artes boas são ensinadas! Como são imbecis os atletas cujos músculos
e ombros nós admiramos!
3. A
questão que eu mais pondero é a seguinte: Se o corpo pode ser treinado a tal
grau de resistência que vai suportar os golpes e chutes de vários oponentes de
uma só vez e em tal grau que um homem pode durar o dia e resistir ao sol
escaldante no meio da poeira ardente, encharcado todo o tempo com seu próprio
sangue, – se isso puder ser feito, quanto mais facilmente a mente poderia ser fortalecida
para que pudesse receber os golpes da Fortuna e não ser conquistada, para que
pudesse lutar novamente depois de ser derrubada, depois que foi pisada e
espezinhada? Pois, embora o corpo precise de muitas coisas para ser forte, a
mente cresce de dentro, dando-se nutrição e exercício. Os atletas de lá devem
ter comida abundante, copiosa bebida, quantidades copiosas de óleo, e longo
treinamento também; mas você pode adquirir virtude sem equipamento e sem
despesas. Tudo o que vai fazer de você um homem bom está dentro de você.
4. E o que
você precisa para se tornar bom? Basta desejar. Mas que melhor coisa você
poderia desejar do que romper com essa escravidão, uma escravidão que nos
oprime a todos, uma escravidão que até mesmo nossas menores propriedades,
nascidas em meio a tal degradação, se esforça de toda maneira possível para nos
despojar? Em troca da liberdade eles entregam economias que rasparam enganando
suas próprias barrigas; você não estará ansioso para alcançar a liberdade a
qualquer preço, visto que você a reivindica como seu direito de primogenitura?
5. Por que lança olhares em direção a sua caixa forte? A liberdade não pode ser comprada. Portanto, é inútil entrar em seu livro-razão o item de “Liberdade”, pois a liberdade não é possuída nem por aqueles que a compraram, nem por aqueles que a venderam. Você deve dar este bem a si mesmo, e buscá-lo por si mesmo. Antes de tudo, liberte-se do medo da morte, pois a morte põe a canga sobre nossos pescoços; então liberte-se do medo da pobreza.
6. Se você
soubesse quão pouco mal há na pobreza; compare os rostos dos pobres com os dos
ricos; o homem pobre sorri com mais
frequência e mais genuinamente; seus problemas não vão em profundidade; mesmo
que alguma ansiedade vá de encontro com ele, passa como uma nuvem agitada. Mas a alegria daqueles a quem os homens
chamam de feliz é fingida, enquanto sua tristeza é pesada e supurada, e mais
pesada, porque eles não podem, entretanto, exibir sua tristeza, mas devem
fingir o papel da felicidade no meio das aflições que devoram seus próprios
corações.
7. Muitas
vezes me sinto chamado a usar a seguinte ilustração, e parece-me que nada
expressa mais eficazmente este drama da vida humana, onde nos são atribuídas as
partes que devemos desempenhar tão mal. Lá está o homem que atua no palco com
esplendido estilo de vida e a cabeça jogada para trás e diz:
Ei!, Eu sou aquele
quem Argos chama de senhor, a quem Pélope deixou terras que se espalham
Do Helesponto[2] e do mar Jónico
até o estreito
Ístmico.
En impero Argis;
regna mihi liquit Pelops,
Qua ponto ab Helles
atque ab Ionio mari
Urgetur Isthmos[3],
E quem é
esse homem? Ele é apenas um escravo; seu salário é de cinco medidas de grãos e
cinco denários[4].
8. Acolá
outro que, orgulhoso e rebelde e empolado pela confiança em seu poder, declama:
Recebe uma
miséria diária e dorme em trapos. Você pode falar da mesma maneira sobre todos
estes fanfarrões que você vê em liteiras acima das cabeças dos homens e acima
da multidão; em todos os casos sua felicidade é vestida como a máscara do ator.
Rasgue-a, e você vai desprezá-los.
9. Quando
você compra um cavalo, você pede que seu cobertor seja removido; você tira as
roupas dos escravos que são anunciados para venda, de modo que nenhuma falha
corporal possa escapar a sua observação; se você julgar um homem, você o julga
quando está envolvido em um disfarce? Os negociantes de escravos escondem sob
algum tipo de adorno qualquer defeito que possa ofender, e por essa razão os
próprios ornamentos despertam a suspeita do comprador. Se você avista uma perna
ou um braço que está amarrado em panos, você exige que ele seja desnudado e que
o próprio corpo seja revelado a você.
10. Você vê aquele rei da Cítia ou da Sármata, com a cabeça adornada com o distintivo de seu ofício? Se você desejar ver o que ele vale, e saber o seu valor total, tire a sua coroa; muito mal se esconde debaixo dela. Mas por que eu falo dos outros? Se você deseja definir um valor em si mesmo, coloque ao lado seu dinheiro, suas propriedades, suas honrarias, e olhe para sua própria alma. No momento, você está tomando a palavra dos outros pelo o que você é.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Provavelmente uma
disputa em que os participantes juntaram pesos de chumbo às mãos para aumentar
a força dos golpes.
[2] Atual Dardanelos, é um estreito no noroeste
da Turquia ligando o mar Egeu ao mar de Mármara.
[4] Uma pequena moeda
de prata que era a de maior circulação no Império Romano. É geralmente aceito
que no fim da República e no início do Principado, um denário correspondia ao
salário diário de um trabalhador. Com um denário era possível comprar em torno
de 8 quilos de pão.
[5] Menelau, na
mitologia grega, foi um rei lendário de Esparta, irmão mais novo de Agamémnon.
O rapto da sua mulher (Helena) por Alexandre, deu origem à Guerra de Troia.
Como citamos anteriormente, durante o governo de Marco Aurélioocorreu a Peste Antonina que devastou o Império Romano, causando a morte de cinco milhões de pessoas.
Lidar com o medo da morte é tema recorrente das Meditações. A peste também é citada, como neste trecho, em que o imperador condena atitudes irracionais:
“corrupção da mente é uma doença muito mais grave do que qualquer peste equiparável no ar que nos cerca. Pois esta corrupção é uma peste animal tanto quanto eles são animais; mas a outra é uma peste de homens tanto quanto eles são homens.”
Todo o terceiro parágrafo aborda a atitude esperada diante da morte: Não ser descuidado, mas não temer.
Não despreze a morte, mas fique em paz com ela, pois esta também é uma daquelas coisas que a natureza quer. Pois tal como é ser jovem e envelhecer, e crescer e alcançar a maturidade, e ter dentes, barba e cabelos brancos, e conceber e estar grávida e procriar, e todas as outras operações naturais que as estações da sua vida trazem, tal também é a dissolução. Isto, portanto, é consistente com o caráter de um homem que reflete – não ser descuidado, nem impaciente, nem desdenhoso em relação à morte, mas esperar por ela como uma das operações da natureza. Como agora espera o momento em que a criança sairá do ventre de sua esposa, assim esteja pronto para o momento em que sua alma sair deste envelope. (Livro IX, 3)
Marco Aurélio faleceu há 1840 anos, em 17 de março de 180, durante uma expedição contra os marcomanos em Vindobona (atual Viena). Suas cinzas foram trazidas para Roma e depositadas no mausoléu de Adriano. Ele foi vítima da Peste Antonina que devastou a população do Império Romano, causando a morte de cinco milhões de pessoas, quase 5% da população do império.
“Em meados do século II d.C. a prosperidade comercial e financeira do Império Romano era formidável e quando Antonino Pio morreu, em 161, o superávit financeiro deixado para o seu sucessor, Marco Aurélio, era de 2,7 bilhões de sestércios. A crise que incapacitou o Império Romano no século II d.C. e feriu fatalmente sua supremacia não foi causada por um inimigo humano, mas por um vírus microscópico e legal. A ameaça invisível teve origem na Ásia Central, onde foi liberada na população em expansão no Mundo Antigo. Quando a pandemia chegou ao Oriente distante no ano de 161 d.C., começou a infligir mortes pavorosas na população do Império Han. Nas fronteiras militares, as forças chinesas perderam entre 30% e 40% de seus efetivos, com os soldados ou mortos ou debilitados pelos primeiros surtos mortais da infecção.
O vírus levou a mesma devastação às fortificadas fronteiras romanas e impôs maiores fatalidades entre as legiões do que qualquer horda bárbara pudesse desejar alcançar. A pandemia também espalhou a infecção através do núcleo mediterrâneo do império, transmitida nos bazares romanos lotados de pessoas conduzindo seus negócios. Pela primeira vez, desde a época de Augusto, houve um grave declínio nas finanças do Estado” (Roma e Oriente Distante, Raoul MacLaughlin)
Marco Aurélio conheceu a morte de perto, tanto em batalha como em casa, tendo perdido 6 dos seus 13 filhos. Se consolava da seguinte forma:
Outro indaga: Como não perderei meu filho? Você assim: Como não terei medo de perdê-lo? (IX, 40)
As Meditações contêm inúmeras passagens nos lembrando que a doença e morte são naturais e não devem ser temidas. Por exemplo, Aurélio diz:
“Não faça como se você fosse viver dez mil anos. A morte paira sobre você. Enquanto vive, enquanto está em seu poder, seja bom.” (IV,17)
“Tudo é efêmero, tanto quem se lembra como o que é lembrado”. (IV,35)
“Você é uma pequena alma carregando um cadáver”(IV,41)
“Alexandre o macedônio e seu noivo por morte foram levados ao mesmo estado; pois ou foram recebidos nos mesmos princípios seminais do universo, ou foram igualmente dispersos entre os átomos”. (VI, 24)
“como aqueles gladiadores semi-devorados por bestas selvagens, que embora cobertos com feridas e sangue, ainda suplicam ser mantidos mais um dia, embora eles ficarão expostos ao mesmo estado às mesmas garras e mordidas…”( X,8)
Donald Robertson autor de “How to Think Like a Roman Emperor: The Stoic Philosophy of Marcus Aurelius” escreveu um um relato dramatizado dos acontecimentos em torno da peste Antonina e a discussão desses eventos em relação à filosofia estoica encontrada. Recomendo a leitura: Stoicism in the Time of Plague
Na carta 78 Sêneca explica como a mente treinada em filosofia tem capacidade de cura. Para o estoicismo uma mente tranquila e receptiva, uma atitude serena e positiva, e um estado de equilíbrio e harmonia protegem a saúde do corpo.
A carta começa com a experiência pessoal de Sêneca, que sofria de problemas pulmonares, provavelmente asma. Conta que quase morreu, ficando reduzido a extrema magreza, mas que graças a filosofia recuperou suas forças:
“tudo o que eleva a alma ajuda o corpo também. Meus estudos foram minha salvação. Eu credito à filosofia que tenha recuperado minhas forças. Devo minha vida à filosofia, e essa é a menor das minhas obrigações!” (LXXVIII, 3)
Depois da anedota particular, Sêneca decompõe os elementos psicológicos da doença, que para ele são:
medo da morte;
dor corporal;
interrupção dos prazeres.
Então nos ensina como a filosofia pode aplacar cada um deles. Sobre a morte, afirma:
Você vai morrer, não porque você está doente, mas porque você está vivo; Mesmo após você tiver sido curado, o mesmo fim o espera; quando você se recuperar, não será da morte, mas da má saúde, que você escapou. (LXXVIII,6)
Em relação a dor, nos tranquiliza dizendo que a natureza nos fez de maneira que “nenhum homem pode sofrer severamente e por muito tempo“, afirmando que qualquer dor será “suportável ou curta.“
Depois foca no terceiro ponto, ou seja, a interrupção dos prazeres ocasionado pela doença. Para Sêneca nossos próprios desejos desaparecem quando aparece a enfermidade, então “não há amargura em ficar sem o que você deixou de desejar.“
Conclui a carta recomendando a Lucílio que foque no presente e lembre que mesmo doente um homem pode mostrar seu valor:
“Dois elementos devem ser erradicados de uma vez por todas: o medo do sofrimento futuro e a lembrança do sofrimento passado; já que este último não me preocupa mais, e o primeiro não me preocupa ainda.” (LXXVIII, 14)
“um homem pode mostrar bravura mesmo quando envolvido em pijama hospitalar. Você tem algo a fazer: lutar bravamente contra a doença.” (LXXVIII, 21)
1. Estou
desolado por ouvir que é frequentemente incomodado pelo catarro e por crises
curtas de febre que os seguem e, particularmente porque eu mesmo experimentei
esse tipo de doença e a desprezei em seus estágios iniciais. Pois quando eu
ainda era jovem, eu podia suportar dificuldades e mostrar um semblante ousado
para a doença. Mas eu finalmente sucumbi, e cheguei a tal estado que não podia
fazer nada além de fungar, reduzido a extrema magreza[1].
2. Eu frequentemente
debati com o impulso de terminar minha vida; mas a lembrança do meu velho pai
me manteve em pé. Pois eu refleti, não como corajosamente eu tinha o poder de
morrer, mas quão pouco poder ele teria em suportar corajosamente a perda de
mim. E assim me mandei viver. Por vezes
é um ato de bravura até mesmo viver.
3. Agora
vou dizer-lhe o que me consolou nesses dias, afirmando desde o início que estas
mesmas ajudas à minha paz de espírito eram tão eficazes quanto a medicina. Consolação
honrosa resulta em cura; e tudo o que
eleva a alma ajuda o corpo também. Meus estudos foram minha salvação. Eu credito
à filosofia que tenha recuperado minhas forças. Devo minha vida à filosofia, e
essa é a menor das minhas obrigações!
4. Meus
amigos, também, me ajudaram muito em atingir a boa saúde; eu costumava ser
confortado por suas palavras animadoras, pelas horas que passavam à minha
cabeceira e por sua conversa. Nada, meu excelente Lucílio, refresca e auxilia
um doente tanto quanto o afeto de seus amigos; nada mais rouba a expectativa e
o medo da morte. Na verdade, eu não podia acreditar que, se eles sobrevivessem
a mim, eu deveria morrer. Sim, repito, pareceu-me que eu deveria continuar a
viver, não com eles, mas através deles. Imaginei-me a não ceder a minha alma,
mas a transferir para eles. Todas estas coisas me deram a disposição de me
socorrer e suportar qualquer tortura; além disso, é um estado muito miserável
ter perdido o entusiasmo em morrer, e não ter nenhum entusiasmo em viver.
5. Esses,
então, são os remédios aos quais você deve recorrer. O médico prescreverá seus
passeios e seu exercício; ele o advertirá a não se tornar viciado na
ociosidade, como é a propensão do inválido inativo; ele ordenará que você leia
com mais força e exercite em seus pulmões as passagens e cavidades afetadas; ou
a navegar e sacudir suas entranhas por um movimento suave; ele recomendará o
alimento apropriado, e o momento apropriado para auxiliar sua força com vinho
ou abster-se dele a fim reduzir sua tosse. Mas quanto a mim, o meu conselho
para você é este, – e é uma cura, não apenas desta sua doença, mas para toda a
sua vida, – “Despreze a morte”. Não há sofrimento no mundo, quando
escapamos do medo da morte.
6. Há três elementos sérios em cada doença: medo da morte, dor corporal e interrupção dos prazeres. Sobre a morte já foi dito, e eu vou acrescentar apenas uma palavra: este medo não é um medo da doença, mas um medo da natureza. Muitas vezes a doença adia a morte, e a visão da morte tem sido a salvação de muitos homens. Você vai morrer, não porque você está doente, mas porque você está vivo; Mesmo após você tiver sido curado, o mesmo fim o espera; quando você se recuperar, não será da morte, mas da má saúde, que você escapou.
7. Voltemos
agora à consideração da desvantagem característica da doença: é acompanhada por
grande sofrimento. O sofrimento, no entanto, é tornado suportável por
interrupções; pois a tensão da dor extrema deve chegar ao fim. Nenhum homem
pode sofrer severamente e por muito tempo; A natureza, que nos ama com muita
ternura, nos constituiu para fazer a dor suportável ou curta.
8. As dores
mais severas têm seu assento nas partes mais esbeltas de nosso corpo: nervos,
articulações e qualquer outra das passagens estreitas, machucam mais cruelmente
quando desenvolvem problemas dentro de seus espaços contraídos. Mas estas partes
tornam-se logo entorpecidas e, por causa da própria dor, perdem a sensação de
dor, seja porque a força vital, quando enquadrada em seu curso natural e
alterada para o pior, perde o poder peculiar através do qual prospera e através
da qual ela nos adverte, ou porque os humores enfermos do corpo, quando deixam
de ter um lugar em que possam fluir, são lançados de volta sobre si mesmos e
privam de sensação as partes em que causaram a congestão.
9. Tanto a
gota, não só nos pés como nas mãos, e toda a dor nas vértebras e nos nervos,
têm seus intervalos de descanso em momentos em que têm entorpecido as partes
que antes torturaram; as primeiras pontadas, em todos esses casos, são o que
causa a angústia, e seu início é determinado por lapso de tempo, de modo que há
um fim na dor quando o entorpecimento se inicia. A dor nos dentes, olhos e
ouvidos é mais aguda pelo fato de estar entre os estreitos espaços do corpo,
não menos aguda do que na própria cabeça. Mas se é mais violenta do que o
habitual, ela se transforma em delírio e estupor.
10. Isto é,
por conseguinte, um consolo para a dor excessiva, – que você deixará de
senti-la se sentir em excesso. A razão, entretanto, por que os inexperientes
são impacientes quando seus corpos sofrem é que eles não se habituaram a se
contentar em espírito. Eles têm estado intimamente associados com o corpo.
Portanto, um homem de mente elevada e sensível separa a alma do corpo, e convive
com a parte melhor ou divina, e somente na medida em que é obrigado, com a
parte queixosa e frágil.
11.
“Mas é uma dificuldade”, dizem os homens, “ficar sem os nossos
prazeres habituais, – jejuar, sentir sede e fome”. Estes são realmente
graves quando primeiro se abstém deles. Mais tarde o desejo morre, porque os
próprios apetites que levam ao desejo se cansam e nos abandonam; então o
estômago torna-se petulante, então o alimento pelo qual nós suplicávamos antes
se torna odioso. Nossos próprios desejos desaparecem. E não há amargura em ficar sem o que você deixou de desejar.
12. Além
disso, toda dor, por vezes, para, ou de qualquer modo afrouxa; além disso,
pode-se tomar precauções contra o seu retorno, e, quando ameaça, podemos
controlá-la por meio de remédios. Cada variedade de dor tem seus sintomas
premonitórios; isso é verdade, principalmente, na dor habitual e recorrente.
Podemos suportar o sofrimento que a doença ocasiona, quando consideramos seus
resultados com desprezo.
13. Mas não
por você mesmo faça as suas angústias mais pesadas carregando-as de queixas. A
dor é ligeira se seu juízo não acrescentou nada; mas se, por outro lado, você
começar a encorajar a si mesmo e dizer: “Não é nada, – é um assunto
insignificante, mantenha um coração forte e que em breve cessará”; Em
seguida, ao pensar que é leve, você vai torná-la leve. Tudo depende da opinião;
ambição, luxo, ganância, está ligado à opinião. É de acordo com a opinião que
sofremos.
14. Um
homem é tão miserável como se convenceu que seja. Creio que devemos acabar com
a queixa sobre os sofrimentos passados e com toda a linguagem como esta:
“Ninguém nunca esteve pior do que eu. Que sofrimentos, que males tenho
suportado! Ninguém pensa que eu me recuperarei. Minha família lamenta por mim,
e os médicos desistiram de mim! Homens que são torturados não são despedaçados
com tanta agonia!” No entanto, mesmo se tudo isso é verdade, é findo e
passou. Que benefício há na revisão de sofrimentos passados, e em ser infeliz,
só porque uma vez que você esteve infeliz? Além disso, todos acrescentam muito
aos seus próprios males e contam mentiras para si mesmo. E o que era amargo de
suportar é agradável de ter suportado; é natural regozijar-se com o fim dos
males. Dois elementos devem ser
erradicados de uma vez por todas: o medo do sofrimento futuro e a lembrança do
sofrimento passado; já que este último não me preocupa mais, e o primeiro não
me preocupa ainda.
15. Mas,
quando estivermos no meio dos problemas, deveríamos dizer:
Talvez um dia a
lembrança desta tristeza
vai até mesmo trazer
prazer.
Deixe um
homem lutar contra eles com toda a sua força: se uma vez cede, vai ser vencido;
mas se luta contra os seus sofrimentos, vencerá. De fato, no entanto, o que a
maioria dos homens faz é arrastar em suas próprias cabeças uma ruína que eles
deveriam tentar erradicar. Se você começar a retira seu apoio daquilo que lhe
faz avançar e cambaleia e está pronto para submergir, a derrota irá seguir você
e se apoiar mais pesadamente sobre você; mas se você se mantiver firme e se
decidir a revidar, ela será forçada para trás.
16. Que
golpes os atletas recebem no rosto e em todo o corpo! No entanto, por seu
desejo de fama, eles sofrem cada tortura, e eles sofrem essas coisas não só
porque eles estão lutando, mas para poder lutar. Seu próprio treinamento
significa tortura. Portanto, deixemos conseguir também o caminho para a vitória
em todas as nossas lutas, pois a recompensa não é uma guirlanda, nem um ramo de
palmeira, nem um trompetista que pede silêncio ao proclamar nossos nomes, mas
sim virtude, firmeza de alma e paz que é ganha para sempre, se a fortuna for
completamente vencida em qualquer combate. Você diz, “eu sinto dor
severa.”
17. O que
então; você será aliviado de senti-la, se você a suportar como uma mulher?
Assim como um inimigo é mais perigoso para um exército em retirada, também cada
problema que a fortuna nos traz nos ataca mais ainda se cedermos e virarmos as
costas. – “Mas o problema é sério”. O que? É para este propósito que
somos fortes, – para que tenhamos cargas leves a suportar? Você teria sua
doença prolongada, ou a faria rápida e curta? Se é longa, significa uma trégua,
permite-lhe um período para descansar a si mesmo, concede a você a bênção do
tempo em abundância; assim como surge, também deve retroceder. Uma doença curta
e rápida fará uma de duas coisas: ela irá saciar-se ou ser extinguida. E que
diferença faz se ela não é mais ou eu não o sou? Em ambos os casos, há um fim
da dor.
18. Isso,
também, ajudará – a focar a mente para pensamentos de outras coisas e, assim,
afastar-se da dor. Lembre-se de que atos honrados ou corajosos que fez;
considere o lado bom de sua própria vida. Discorra em sua memória aquelas
coisas que você particularmente admirou. Então pense em todos os homens
corajosos que superaram a dor: daquele que continuou a ler seu livro enquanto
permitiu o corte das veias com varizes; daquele que não cessava de sorrir,
embora aquele mesmo sorriso enfurecesse tanto seus torturadores que
experimentavam sobre ele todo instrumento de sua crueldade. Se a dor pode ser
conquistada por um sorriso, não será conquistada pela razão?
19. Você
pode me dizer agora o que você quiser – de resfriados, ataques de tosse que
trazem para cima partes de nossas entranhas, febre que enche nossos órgãos
vitais, sede, membros tão torcidos que as articulações se projetam em
diferentes direções; ainda pior do que estes são a estaca, a cremalheira, o
ferro em brasa, o instrumento que reabre as feridas enquanto as feridas estão
ainda inchadas e que impulsiona sua marca ainda mais profundamente. No entanto,
houveram homens que não pronunciaram gemidos em meio a essas torturas. – Mais
ainda! Diz o torturador; mas a vítima não implora por libertação. – Mais ainda!
Ele diz novamente; mas nenhuma resposta chega. – Mais ainda! A vítima sorri, e
de coração. Você não pode tentar, após um exemplo como este, também zombar da
dor?
20.
“Mas”, objeta, “a minha doença não me permite fazer nada,
afastou-me de todos os meus deveres”. É o seu corpo que é prejudicado pela
má saúde, e não a sua alma. É por esta razão que obstrui os pés do corredor e
dificulta a obra do sapateiro ou do artesão; mas se sua alma estiver
habitualmente em prática, você vai peticionar e ensinar, ouvir e aprender,
investigar e meditar. O que mais é necessário? Você acha que não está fazendo
nada se possui autocontrole mesmo doente? Você estará mostrando que uma doença
pode ser superada, ou de qualquer forma suportada.
21. Há, asseguro-lhe, um lugar para a virtude mesmo sobre um leito de hospital. Não é só a espada e a frente de batalha que provam a alma alerta e não conquistada pelo medo; um homem pode mostrar bravura mesmo quando envolvido em pijama hospitalar. Você tem algo a fazer: lutar bravamente contra a doença. Se ela não o obrigar a nada, não o seduzir a nada, é um exemplo notável que exibirá. Que grande assunto para a fama, se pudéssemos ter espectadores de nossa doença! Seja seu próprio espectador; busque seus próprios aplausos.
22.
Novamente, há dois tipos de prazeres. A doença restringe os prazeres do corpo,
mas não acaba com eles. Não, se a verdade for considerada, serve para excitá-los;
porque quanto mais sedento é um homem, mais ele gosta de beber; quanto mais
fome ele tem, mais prazer toma na comida. O que quer que se obtenha depois de
um período de abstinência é recebido com maior entusiasmo. O outro tipo, no
entanto, os prazeres da mente, que são maiores e menos incertos, nenhum médico
pode recusar ao doente. Quem procura estes e sabe bem o que são, despreza todos
os prazeres dos sentidos.
23. Os
homens dizem: “Pobre companheiro doente!” Mas por que? É porque ele
não mistura neve com o seu vinho, ou porque ele não reaviva o frio de sua
bebida – misturado como está em uma tigela de bom tamanho com lascas de gelo?
Ou porque não tem ostras frescas do Lago de Lucrino[3] abertas à sua mesa? Ou porque não há nenhum barulho de cozinheiros em sua sala
de jantar, pois eles trazem em seu aparelho de cozinha junto com seus
mantimentos? Pois o luxo já inventou essa moda – de levar a cozinha para
acompanhar o jantar, para que a comida não fique morna ou não seja
insuficientemente quente para um paladar já endurecido pelo mimo.
24.
“Pobre doente!” – Ele vai comer tanto quanto pode digerir. Não haverá
javali diante de seus olhos, banido da mesa como se fosse uma carne comum; e no
seu aparador não haverá amontoado nenhum de carne de peito de pássaros, porque
o enoja ver pássaros servidos inteiros. Mas que mal lhe foi feito? Você vai
jantar como um homem doente, ou às vezes, como um homem sadio.
25. Todas
estas coisas, no entanto, podem ser facilmente suportadas – o mingau, a água
morna, e qualquer outra coisa que parece insuportável para um homem exigente,
para quem está chafurdando no luxo, doente na alma e não no corpo – se apenas
deixarmos de estremecer com a morte. E deixaremos, apenas quando tivermos
adquirido o conhecimento dos limites do bem e do mal; então, e só então, a vida
não nos cansará, nem a morte nos fará temer.
26. Porque
o excesso de si mesmo nunca pode aproveitar uma vida que avalia todas as coisas
que são múltiplas, grandes, divinas; Só o ócio inútil costuma fazer os homens
odiarem suas vidas. Para aquele que percorre o universo, a verdade nunca pode
esmorecer; serão as inverdades que irão enfastiar.
27. E, por
outro lado, se a morte se aproxima com seu chamado, mesmo que intempestivo em
sua chegada, mesmo cortado em seu primor, um homem já provou o gosto de tudo o
que uma vida mais longa poderia dar. Tal homem, em grande medida, chegou a
compreender o universo. Ele sabe que as coisas honrosas não dependem do tempo
para o seu crescimento; mas qualquer
vida deve parecer curta para aqueles que medem seu comprimento por prazeres que
são vazios e por isso sem limites.
28.
Refresque-se com pensamentos como estes, e, entretanto, reserve algumas horas
para nossas cartas. Chegará um tempo em que nos uniremos novamente; por mais
curto que este tempo possa ser, vamos fazê-lo longo, sabendo como empregá-lo.
Pois, como afirma Posidônio: “Um só dia entre os sábios dura mais do que a
vida mais longa dos ignorantes”.
29. Enquanto isso, agarre-se a este pensamento e abrace-o de perto: não ceda à adversidade; não confie na prosperidade; mantenha diante de seus olhos todo o alcance do poder da Fortuna, como se ela certamente fosse fazer tudo o que pode fazer. Aquilo que há muito tempo se espera vem mais suavemente.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] A tal ponto que
Calígula, inimigo de Sêneca, se absteve de executá-lo, com o pretexto que logo
morreria.
[3] Lago de Lucrino é
um lago de água salgada da Campânia, no sul da Itália. Nos dias romanos, sua
pescaria era importante e suas ostras muito apreciadas – como são ainda hoje.
Caro Epicteto: Estou preocupado com o coronavírus. Dizem que é uma pandemia, e que até 70% da população mundial pode ser contaminada. Já há casos aqui em SP. Eu não quero ficar doente, ou que a minha família fique doente. Como posso ficar em segurança?
– Paulista Apreensivo
Caro escravo: Todos nós vamos morrer. Talvez de coronavírus, talvez de câncer, talvez de um ataque cardíaco. O quê? Achava que era imortal? Que importa se vai morrer na próxima semana, com febre e pulmões cheios de catarro, ou daqui a 50 anos, enrugado e fraco e incapaz de se lembrar do seu próprio nome? Deixe a sua hora da morte para o destino. Enquanto isso, lave as mãos por 30 segundos, não toque no rosto, diga à sua família que você os ama e tente ser uma boa pessoa.
Não é o coronavírus que o perturba, mas apenas o seu julgamento sobre ele.
Na carta 77, Sêneca volta a abordar o tema suicídio e sua aprovação pelo estoicismo. Interessante fazer um paralelo com a morte do próprio filósofo, que foi condenado a cometer suicídio por Nero. Ele não revelou nenhum medo da morte, e muito pelo contrário, abraçou-a. Essa carta ajuda a entender o porquê.
Sêneca separa o medo da morte em suas partes componentes:
medo de adoecer;
medo do que é desconhecido;
medo de deixar as coisas desfeitas na Terra;
medo de como se deixará para trás os entes queridos; e,
medo da dor.
Onde estes componentes coincidem, há uma combinação de emoções que é difícil lidar de uma só vez porque tudo acontece de repente. Portanto, a tarefa é fazer “flexões emocionais”, para lidar com a morte. Sêneca aconselha que a melhor maneira de fazer isso é a maneira como nos preparamos regularmente para lidar com problemas emocionais: praticar. Para isso, descreve na carta exemplos de casos de suicídios:
“Não havia necessidade de espada ou de derramamento de sangue; por três dias ele jejuou e teve uma tenda colocada em seu próprio quarto. Em seguida, uma banheira foi trazida; permaneceu nela por um longo tempo e, à medida que a água quente continuava a derramar-se sobre ele, ele gradualmente faleceu”. (LXXVII, 9)
“Você acha, suponho, que agora seria correto eu citar alguns exemplos de grandes homens. Não, vou citar o caso de um menino. A história do rapaz espartano foi preservada: tomado prisioneiro enquanto ainda um adolescente: “Eu não serei um escravo!” E cumpriu a sua palavra;(LXXVII, 13)
Para Sêneca, “Em qualquer ponto que você deixe de viver, desde que você saia nobremente, sua vida é completa.”
1. De repente, chega à nossa visão hoje os navios “alexandrinos”, quero dizer aqueles que normalmente são enviados adiante para anunciar a chegada da frota; eles são chamados de “barcos de correio”. Os camponeses estão felizes em vê-los; Toda a plebe de Puteoli[1] está nas docas e pode reconhecer os barcos “alexandrinos”, não importa quão grande a multidão de navios, pelo próprio recorte de suas velas. Pois somente eles podem manter as suas velas superiores, que todos os navios usam quando no alto-mar.
2. Porque
nada propulsiona um navio tão bem como sua lona superior; que é de onde a maior
parte da velocidade é obtida. Assim, quando a brisa se enrijece e se torna mais
forte do que é confortável, eles colocam suas velas mais a baixo; pois o vento
tem menos força perto da superfície da água. Assim, quando eles atingem Capri e
o promontório de onde
Gigante Palas vigia sobre o pico tempestuoso,
Alta proceiloso speculatur vertice Pallas,
Todas as
outras embarcações são convidadas a contentar-se com a vela maior, e a vela
superior destaca-se visivelmente nos barcos alexandrinos.
3. Enquanto
todo mundo se movia e se apressava para a beira d’água, sentia muito prazer na
minha preguiça, porque, embora logo recebesse cartas de meus amigos, não tinha
pressa de saber como meus negócios estavam progredindo no exterior, ou que
notícias traziam as cartas; há algum tempo eu não tenho perdas nem ganhos.
Mesmo se não fosse um homem velho, não poderia ter ajudado a sentir prazer
nisso; mas como é, o meu prazer foi muito maior. Pois, por mais minúsculas que
fossem minhas posses, ainda teria de ter mais dinheiro para viagem do que
jornadas para viajar, especialmente porque esta viagem em que partimos é uma
que não precisa ser seguida até o fim.
4. Uma
expedição será incompleta se parar no meio caminho, ou em qualquer lugar deste
lado do nosso destino; mas a vida não é incompleta se for honrada. Em qualquer ponto que você deixe de viver,
desde que você saia nobremente, sua vida é completa. Muitas vezes, no
entanto, deve-se abandonar corajosamente, e nossas razões, portanto, não
precisam serem importantes; pois nem as razões graves nos mantêm aqui.
5. Túlio
Marcelino, um homem que você conheceu muito bem, que na juventude era uma alma
tranquila e envelheceu prematuramente, adoeceu de um mal que não era
desesperador; mas era prolongado e problemático, e exigia muita atenção; daí
ele começou a pensar em morrer. Ele reuniu muitos de seus amigos. Cada um deles
deu conselhos a Marcelino, o amigo temeroso instando-o a fazer o que tinha
decidido fazer; o amigo lisonjeiro e blandicioso dando conselhos que supunha
que seriam mais agradáveis a Marcelino;
6. Mas
nosso amigo estoico, homem raro, e para elogiá-lo em linguagem que ele merece,
um homem de coragem e vigor o admoestou melhor, como me parece. Pois ele
começou da seguinte maneira: “Não se atormente, meu caro Marcelino, como
se a questão que você está ponderando fosse importante, não é importante viver,
todos os seus escravos vivem e todos os animais; mas é importante morrer de
forma honrosa, sensata e corajosa. Reflita quanto tempo você tem feito a mesma
coisa: comida, sono, luxúria – esta é a ronda diária de cada um. O desejo de
morrer pode ser sentido não só pelo homem sensível ou o homem corajoso ou
infeliz, mas até mesmo pelo homem que está apenas saciado.
7.
Marcelino não precisava de alguém para exortá-lo, mas sim alguém para ajudá-lo;
seus escravos se recusaram a cumprir suas ordens. O estoico, portanto, removeu
seus medos, mostrando-lhes que não havia risco envolvido para a criadagem,
exceto quando era incerto se a morte do mestre fora desejada ou não; além
disso, é uma prática tão ruim matar seu senhor como é impedi-lo de se matar à
força.
8. Então
sugeriu ao próprio Marcelino que seria um ato gentil distribuir presentes para
aqueles que o haviam acompanhado ao longo de toda a sua vida, quando essa vida
estava terminada, assim como, quando um banquete é terminado, a parte restante
é dividida entre os participantes que estão à mesa. Marcelino era de uma
disposição condescendente e generosa, mesmo quanto a própria propriedade; assim
distribuiu poucas somas entre seus escravos pesarosos, e também os consolou.
9. Não
havia necessidade de espada ou de derramamento de sangue; por três dias ele
jejuou e teve uma tenda colocada em seu próprio quarto. Em seguida, uma
banheira foi trazida; permaneceu nela por um longo tempo e, à medida que a água
quente continuava a derramar-se sobre ele, ele gradualmente faleceu, não sem
uma sensação de prazer, como ele mesmo observou, – tal sentimento como uma
extinção lenta costuma dar. Aquele de nós que já desmaiou sabe por experiência
o que é este sentimento.
10. Esta
pequena anedota em que eu tenho divagado não será desagradável para você. Pois
verá que seu amigo não partiu nem com dificuldade nem com sofrimento. Embora se
suicidasse, ele se afastou com suavidade, saindo da vida. A anedota também pode
ser de alguma utilidade; Pois muitas vezes uma crise exige apenas esses exemplos.
Há momentos em que devemos morrer e não estamos dispostos; às vezes morremos e
não estamos dispostos.
11. Ninguém
é tão ignorante a ponto de não saber que devemos morrer em algum momento; no
entanto, quando alguém se aproxima da morte, alguém se vira para fugir, treme e
lamenta. Você não o consideraria um
completo tolo aquele que chorasse por não ter estado vivo por mil anos? E não é
tanto quanto um tolo aquele que chora porque não estará vivo daqui a mil anos?
É tudo o mesmo; você não será, e você não era. Nenhum destes períodos de
tempo pertence a você.
12. Você
foi lançado sobre este ponto do tempo; se você o pudesse fazer mais longo, por
quanto tempo você o faria? Por que chorar? Por que rezar? Você está tomando
dores sem propósito.
Desista de pensar que suas orações podem dobrar Decretos divinos de seu fim predestinado.
Estes
decretos são inalteráveis e fixos; eles são governados por uma compulsão
poderosa e eterna. Seu objetivo será o objetivo de todas as coisas. O que há de
estranho nisso para você? Você nasceu para estar sujeito a esta lei; este
destino aconteceu ao seu pai, à sua mãe, aos seus antepassados, a todos os que
vieram antes de você; e sucederá a todos os que vierem após. Uma sequência que
não pode ser quebrada ou alterada por qualquer poder liga todas as coisas e
arrasta todas as coisas em seu curso.
13. Pense
na multidão de homens condenados à morte que virão depois de você, das
multidões que irão contigo! Você morreria mais corajosamente, suponho, na
companhia de muitos milhares; e ainda há muitos milhares, tanto de homens como
de animais, que neste exato momento, enquanto você é irresoluto sobre a morte,
estão respirando pela última vez, de várias maneiras. Mas você, – você
acreditou que algum dia não alcançaria o destino para o qual você sempre
viajou? Toda viagem tem seu fim.
14. Você
acha, suponho, que agora seria correto eu citar alguns exemplos de grandes
homens. Não, vou citar o caso de um menino. A história do rapaz espartano foi
preservada: tomado prisioneiro enquanto ainda um adolescente, ele continuou
chorando em seu dialeto dórico[3],
“Eu não serei um escravo!” E cumpriu a sua palavra; na primeira vez
foi ordenado que fizesse um serviço humilde e degradante, – e o comando era
buscar um pinico de quarto, – ele partiu seu cérebro contra a parede.
15. Tão
perto está a liberdade, e alguém ainda é escravo? Você não preferiria que seu
próprio filho morresse assim do que alcançasse a velhice como um fraco
submisso? Por que, então, você está angustiado, quando até mesmo um menino pode
morrer tão bravamente? Suponha que você se recuse a segui-lo; você será
conduzido. Tome em seu próprio controle o que está agora sob o controle de
outro. Você não vai pegar emprestado a coragem do menino e dizer: “Eu não
sou escravo!”? Infeliz companheiro, você é um escravo dos homens, você é
um escravo do seu negócio, você é um escravo da vida. Pois a vida, se a coragem para morrer faltar, é escravidão.
16. Você
tem algo que vale a pena esperar? Seus próprios prazeres, que fazem com que
você se demore e lhe segura, já estão exaustos. Nenhum deles é uma novidade
para você, e não há nenhum que não tenha se tornado odioso porque já está
enfastiado por ele. Você sabe o sabor do vinho e dos licores. Não faz diferença
se centenas ou milhares de medidas passam por sua bexiga; você não é nada senão
um filtro. Você é conhecedor do sabor da ostra e do salmonete; o seu luxo não
deixou nada a ser desbravado em anos vindouros; e ainda assim estas são as
coisas das quais você é arrancado involuntariamente.
17. O que
mais você lamentaria ter retirado de você? Amigos? Mas quem pode ser um amigo
para você? País? O que? Você considera o suficiente seu país para se atrasar
para o jantar? A luz do sol? Você iria extingui-la, se pudesse; pois o que é
que você já fez que estivesse apto a ser visto na luz? Confesse a verdade; não
é porque você almeja a câmara do senado ou o fórum, ou mesmo pelo o mundo da
natureza, que você gostaria de adiar a morte; é porque você é relutante em
deixar o mercado de peixe, embora você tenha esgotado seus estoques.
18. Você
tem medo da morte; mas como você pode desprezá-la no meio de uma ceia de
cogumelos[4]?
Você deseja viver; bem, você sabe como viver? Você tem medo de morrer. Mas
venha agora: esta sua vida é algo além da morte? Caio César estava passando
pela Via Latina, quando um homem saiu das fileiras dos prisioneiros, com a
barba grisalha pendendo até o peito, e implorando para ser morto. “O
que!” Disse César, “você está vivo agora?” Essa é a resposta que
deve ser dada aos homens a quem a morte viria como um alívio. “Você tem
medo de morrer, o que! Você está vivo agora?”
19.
“Mas,” diz um, “eu desejo viver, pois estou empenhado em muitas
buscas honrosas. Eu sou relutante em deixar os deveres da vida, os quais estou
cumprindo com lealdade e zelo.” Certamente
você está ciente de que morrer também é um dos deveres da vida? Você não está
abandonando nenhum dever; porque não há um número definido estabelecido que você
seja obrigado a completar.
20. Não há vida que não seja curta. Comparado com o mundo da natureza, mesmo a vida de Nestor era curta, ou Sátia[5], a mulher que mandou esculpir em sua lápide que tinha vivido noventa e nove anos. Algumas pessoas, veja, vangloriam-se de suas longas vidas; mas quem poderia ter suportado a velha senhora se ela tivesse tido a sorte de completar seu centésimo ano? É com a vida como é com uma peça de teatro – não importa por quanto tempo a ação é tecida – mas quão boa é a atuação. Não faz diferença em que ponto você para. Pare quando quiser; apenas providencie que o ato de encerramento seja bem realizado[6].
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Puteoli, na baía
de Nápoles, foi o quartel-general na Itália do importante comércio de grãos com
o Egito, no qual os magistrados romanos contavam para alimentar a população.
[3] O dórico ou dório era um dialeto do grego
antigo. Suas variantes eram faladas no sul e no leste da península do
Peloponeso, em Creta, Rodes e em algumas ilhas do sul do mar Egeu, em outras
cidades na costa da Ásia Menor.
[4] Sêneca pode estar evocando a
morte do Imperador Cláudio.
[5] Exemplo
tradicional de velhice, mencionado por Marcial e por Plínio o velho.
[6] Compare as últimas palavras do
Imperador Augusto: amicos percontatus
ecquid iis videretur mimum vitae commode transegisse (Suet. Aug. 99).
Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem viver nobremente, enquanto é impossível a qualquer homem viver por muito tempo.
Esta é uma carta brilhante, mais longa do que o habitual. Lendo a carta sabemos que Sêneca está a viver a velhice, e pelas cartas anteriores sabemos que Lucílio é um pouco mais novo do que ele. Sêneca começa por dizer que tem passado seu tempo a ouvir as palestras de um filósofo. Ele antecipa, gracejando, a desorientação que pode vir do amigo ao ouvir que um velho está assistindo a aulas com uma classe de jovens, mas Sêneca responde que não deve ser visto como um descrédito.
Na verdade: “Você deve continuar aprendendo enquanto for ignorante“(LXXVI, 3) e afirma que não há nada mais tolo que recusar a aprender apenas porque não o fizemos antes.
Aprendemos que existe apenas um bem, “Ou seja, aquilo que é honroso” Sêneca continua a explicar que tudo é julgado bom ou mau de acordo com o fim a que se destina, e para nós homens, apesar de partilharmos muito com os animais, o nosso fim pretendido está na razão.
“E qual qualidade é melhor no homem? É a razão; em virtude da razão ele supera os animais, e é superado apenas pelos deuses. A razão perfeita é, portanto, o bem peculiar do homem; Todas as outras qualidades ele compartilha em algum grau com animais e plantas.” (LXXVI,9)
Em seguida, prossegue dando um panorama detalhado do que é bom. Aprendemos que “a virtude não cairá sobre ti por acaso“. Para nós, meros mortais, ser virtuoso significa ser autodeterminado. Devemos escolher ser virtuosos. Também aprendemos que a virtude (ou sabedoria) não é conquistada por um pequeno esforço ou pouca fadiga:
Por que você espera? A sabedoria não vem por acaso para homem nenhum. O dinheiro virá por si mesmo; títulos serão dados a você; influência e autoridade serão talvez impelidos sobre você; mas a virtude não cairá sobre você por acaso. Nem o conhecimento dela pode ser ganho por esforço leve ou pequeno trabalho; mas trabalhar vale a pena quando se está prestes a ganhar todos os bens em um único golpe. (LXXVI, 6)
Sêneca continua (esta é uma carta bastante longa) sobre como é errado chamar outras coisas de bens, usando o argumento de que, como os Deuses não possuem riquezas ou cargos, eles deveriam ser piores do que nós, pois nós possuímos ou procuramos possuir essas coisas.
1. Você tem
me ameaçado com sua inimizade, se eu não lhe manter informado sobre todas as
minhas ações diárias. Mas veja, agora, em que termos francos você e eu vivemos,
pois vou confiar até mesmo o seguinte fato aos seus ouvidos. Tenho ouvido as
palestras de um filósofo; já passaram quatro dias desde que comecei a
frequentar sua escola e a ouvir sua arenga, que começa às duas horas. “Um
bom tempo de vida para isso!” Você diz. Sim, muito bem! Agora, o que é mais tolo do que se recusar a
aprender, simplesmente porque há muito tempo não aprendemos?
2. “O
que você quer dizer? Devo seguir a moda definida pelos janotas e jovens?”
Mas estou muito bem se esta é a única coisa que desacredita meus anos em
declínio. Homens de todas as idades são admitidos nesta sala de aula. Você
retruca: “Ficamos velhos apenas para tagarelar com os jovens?” Mas se
eu, velho, for ao teatro, às corridas, e não permitir que um duelo na arena
seja travado até o fim sem a minha presença, devo corar por assistir a uma
palestra de filósofo?
3. Você
deve continuar aprendendo enquanto você é ignorante, – até ao fim de sua vida,
se há algo no provérbio. E o provérbio se adequa ao presente caso, assim como
qualquer outro: “Enquanto você
viver, continue aprendendo a viver“. Por tudo isso, há também algo que
eu possa ensinar naquela escola. Você pergunta, o que eu posso ensinar? Que até
um velho deveria continuar aprendendo.
4. Mas
tenho vergonha da humanidade, tantas vezes quanto entro na sala de aula. No meu
caminho para a casa de Metronax eu sou obrigado a passar, como você sabe, bem
ao lado do Teatro Napolitano. O prédio está lotado; os homens estão decidindo,
com enorme zelo, quem tem direito a ser chamado de um bom flautista; mesmo o
gaiteiro grego e o arauto atraem suas multidões. Mas no outro lugar, onde a
questão discutida é: “O que é um homem bom?” E a lição que aprendemos
é “como ser um bom homem”, muito poucos estão presentes, e a maioria
pensa que mesmo estes poucos estão envolvidos em atividade inútil; eles são
chamados de desocupados de cabeça vazia. Espero que eu possa ser abençoado com
esse tipo de zombaria; pois devemos escutar em espírito sereno as injúrias do
ignorante; quando alguém está marchando em direção ao objetivo da honra,
deve-se desprezar o desprezo.
5.
Prossiga, então, Lucílio, e apresse-se, para ser compelido a aprender em sua
velhice, como é o caso comigo. Não, você deve se apressar ainda mais, porque
por muito tempo você não se aproximou do assunto, que é um que se pode mal
aprender completamente quando se é velho. – Quanto progresso vou fazer? Você
pergunta. Tanto quanto tentar fazer.
6. Por que
você espera? A sabedoria não vem por acaso para homem nenhum. O dinheiro virá
por si mesmo; títulos serão dados a você; influência e autoridade serão talvez
impelidos sobre você; mas a virtude não cairá sobre você por acaso. Nem o
conhecimento dela pode ser ganho por esforço leve ou pequeno trabalho; mas
trabalhar vale a pena quando se está prestes a ganhar todos os bens em um único
golpe.
7. Pois não há senão um único bem, isto é, o que é honroso; em todas aquelas outras coisas que a opinião geral aprova, você não encontrará nenhuma verdade ou certeza. Pois a verdade, no entanto, é que há apenas um bem, ou seja, o que é honroso, agora vou dizer-lhe, na medida em que julgar que na minha carta anterior eu não aprofundei a discussão o suficiente, e acho que essa teoria foi recomendada a você em vez de provada. Também vou comprimir as observações de outros autores em curto passo.
8. Tudo é
estimado pelo padrão de seu próprio bem. A videira é valorizada pela sua
produtividade e o sabor do seu vinho, o veado pela sua velocidade. Nós
perguntamos, com respeito às bestas de carga, quão resistente são suas ancas;
pois seu único uso é carregar fardos. Se um cão é usado para encontrar o rastro
de um animal selvagem, a agudeza do olfato é de primeira importância; se para
pegar sua presa, a rapidez; se para atacar e lutar, coragem. Em cada coisa que
a qualidade deve ser a melhor para a qual a coisa é trazida a existência e pela
qual ela é julgada.
9. E qual
qualidade é melhor no homem? É a razão; em
virtude da razão ele supera os animais, e é superado apenas pelos deuses. A
razão perfeita é, portanto, o bem peculiar do homem; Todas as outras qualidades
ele compartilha em algum grau com animais e plantas. O homem é forte; assim
é o leão. O homem é bonito; assim é o pavão. O homem é rápido; assim é o
cavalo. Não digo que o homem seja superado em todas essas qualidades. Eu não
estou procurando encontrar o que é maior nele, mas o que é peculiarmente seu. O
homem tem corpo; assim também têm a árvores. O homem tem o poder de agir e
mover-se à vontade; Assim como animais e vermes. O homem tem uma voz; mas quão
mais alta é a voz do cão, quão mais estridente a da águia, quão mais profunda a
do touro, quão mais doce e melodiosa aquela do rouxinol!
10. O que
então é peculiar ao homem? Razão. Quando é certa e atingiu a perfeição, a
felicidade do homem está completa. Assim, quanto tudo é louvável e tenha
chegado ao fim pretendido por sua natureza, quando trouxer seu bem peculiar à
perfeição, e se o bem peculiar do homem é a razão; então, se um homem trouxer
sua razão à perfeição, ele é louvável e preparou o fim adequado à sua natureza.
Esta razão perfeita é chamada virtude,
e é também o que é honroso.
11. Daí que
só no homem um bem pertence só ao homem. Pois agora não estamos buscando
descobrir o que é um bem, mas o que é bom para o homem. E se não houver outro
atributo que pertença peculiarmente ao homem, exceto a razão, então a razão
será seu único bem peculiar, mas um bem que vale a pena todo o resto reunido.
Se qualquer homem é mau, ele será, eu suponho, considerado com desaprovação; se
bom, eu suponho que será considerado com aprovação. Portanto, esse atributo do
homem pelo qual ele é aprovado ou desaprovado é o seu principal e único bem.
12. Você
não duvida se isso é um bem; você meramente duvida se é o único bem. Se um
homem possui todas as outras coisas, tais como saúde, riquezas, linhagem, um
salão de recepção lotado, mas é confessadamente mau, você vai desaprová-lo. Da
mesma forma, se um homem não possui nenhuma das coisas que eu mencionei, e não
tem dinheiro, ou uma escolta de clientes, ou uma posição social e uma linha
nobre de avôs e bisavôs, mas é confessadamente bom, você vai aprová-lo.
Portanto, este é o único bem peculiar do homem, e o possuidor dele deve ser
louvado mesmo que lhe falte outras coisas; mas aquele que não o possui, embora
possua tudo o mais em abundância, é condenado e rejeitado.
13. O mesmo
vale para os homens quanto para as coisas. Diz-se que um navio é bom não quando
está decorado com cores caras, nem quando a sua proa está coberta de prata ou
ouro ou a sua carranca esculpida em marfim, nem quando está carregado com as
receitas imperiais ou com a riqueza dos reis, mas quando está firme e seguro e
teso, com linha de junção que mantêm fora a água, robusto o suficiente para
suportar o esbofetear das ondas, obediente ao seu leme, rápido e impassível
frente aos ventos.
14. Irá
falar bem de uma espada, não quando o seu cinto é de ouro, ou a sua bainha
cravejada de pedras preciosas, mas quando a sua borda é fina para cortar e sua
ponta pode perfurar qualquer armadura. Pegue a régua do carpinteiro: não
perguntamos como é bonita, mas quão reta é. Cada coisa é elogiada em relação a
esse atributo que é tomado como seu padrão, em relação ao que é a sua qualidade
peculiar.
15.
Portanto, no caso do homem também, não é pertinente para a questão saber
quantos acres ele ara, quanto dinheiro ele tem a juros, quantos convidados
comparecem às suas recepções, quão cara é a carruagem em que ele se encontra,
quão transparente são os copos de onde ele bebe, mas como ele é bom. Ele é bom,
no entanto, se sua razão é bem-ordenada e direita e adaptada ao que sua
natureza tem decidido.
16. É isso
que se chama virtude; é isso que entendemos por “honroso”; é o único
bem do homem. Pois, já que só a razão
traz o homem à perfeição, só a razão, quando aperfeiçoada, torna o homem feliz. Este, aliás, é o único bem do homem, o único meio pelo qual ele é feito feliz.
Nós realmente dizemos que essas coisas também são bens que são promovidos e
reunidos pela virtude, isto é, todas as obras da virtude; mas a própria virtude
é por isso o único bem, porque não há bem sem virtude.
17. Se todo
bem está na alma, então tudo que fortifica, eleva e amplia a alma, é um bem; a
virtude, no entanto, torna a alma mais forte, mais elevada e maior. Pois todas
as outras coisas que despertam os nossos desejos, deprimem a alma e a
enfraquecem, e quando pensamos que elas estão elevando a alma, elas
simplesmente a estão soprando e enganando-a com muito vazio. Portanto, só isso
é bom, o que torna a alma melhor.
18. Todas
as ações da vida, tomadas como um todo, são controladas pela consideração do
que é honrado ou vil; é com referência a estas duas coisas que nossa razão é
governada em fazer ou não fazer uma coisa particular. Explicarei o que quero
dizer: Um homem bom fará o que julgar
que será honrado fazer, mesmo que envolva labuta; o fará mesmo que envolva dano
a ele; o fará mesmo se envolver perigo; novamente, ele não fará o que é vil,
mesmo que lhe traga dinheiro, ou prazer, ou poder. Nada o afastará daquilo
que é honroso, e nada o tentará à infâmia.
19.
Portanto, se for determinado invariavelmente a seguir o que é honrado,
invariavelmente evitar baixeza, e em cada ato de sua vida ter respeito por
estas duas coisas, não considerando nada mais como bom senão o que é honroso, e
nada mais como ruim exceto o que é vil; se a virtude sozinha não é pervertida
nele e, por si mesma, mantém seu curso uniforme, então a virtude é o único bem
do homem, e nada mais pode acontecer a ele que possa torná-lo outra coisa senão
o bem. Ele escapou a todo o risco de mudança; a estupidez pode evoluir em direção à sabedoria, mas a sabedoria nunca
escorrega de volta à estupidez.
20. Você
pode talvez lembrar o meu ditado que as coisas que foram em geral desejadas e
temidas foram pisoteadas por muitos homens em momentos de paixão súbita. Foram
encontrados homens que colocariam suas mãos nas chamas, homens cujos sorrisos
não poderiam ser interrompidos pelo torturador, homens que não derramariam uma
lágrima no funeral de seus filhos, homens que encontrariam a morte com firmeza.
É o amor, por exemplo, a raiva, a luxúria, que desafiaram os perigos. Se uma
teimosia momentânea pode realizar tudo isto quando despertada por alguma agulha
que pica o espírito, quanto mais pode ser realizado pela virtude, que não age
impulsivamente ou repentinamente, mas uniformemente e com uma força que é
duradoura!
21.
Segue-se que as coisas que são muitas vezes desprezadas pelos homens que são
movidos por uma paixão súbita, e sempre desprezadas pelos sábios, não são bens
nem males. A virtude em si é, portanto, o único bem; ela marcha orgulhosamente
entre os dois extremos da fortuna, com grande desprezo por ambos.
22. Se, no
entanto, você aceitar a opinião de que há algo de bom além do que é honrado,
todas as virtudes vão sofrer. Pois nunca será possível conquistar e manter
qualquer virtude, se há algo fora de si que a virtude deve levar em
consideração. Se existe tal coisa, então está em desacordo com a razão, da qual
nascem as virtudes, e também com a verdade, que não pode existir sem razão.
Qualquer opinião, no entanto, que está em desacordo com a verdade, é errada.
23. Um bom
homem, você admitirá, deve ter o mais alto senso de dever para com os deuses.
Por isso ele suportará com espírito imperturbável o que quer que lhe aconteça; pois
ele saberá que isso aconteceu como resultado da lei divina, pela qual toda a
criação se move. Sendo assim, haverá para ele um bem, e apenas um, ou seja, o
que é honroso; pois um de seus ditames é que obedecer aos deuses e não
resplandecer em raiva por infortúnios repentinos ou lamentar nosso destino, mas
aceitar pacientemente o destino e obedecer aos seus mandamentos.
24. Se
qualquer coisa, exceto o honroso for boa, seremos perseguidos pela ganância por
vida, e pela ganância pelas coisas que fornecem vida com seus acessórios, um
estado intolerável, não sujeito a limites, instável. O único bem, portanto, é o
que é honroso, o que está sujeito a limites.
Tenho declarado que a vida do homem seria mais abençoada do que a dos deuses, se as coisas que os deuses não desfrutam fossem bens, tais como dinheiro e cargos de dignidade. E ainda, se essas coisas são bens que usamos para o bem dos nossos corpos, nossas almas estão piores quando libertadas; e isso é contrário à nossa crença, dizer que a alma é mais feliz quando é confinada e aprisionada do que quando é livre e se lançou para o universo. (LXXVI, 25)
26. Eu também disse que se essas coisas que os animais estúpidos possuem igualmente como o homem são bens, então os animais estúpidos também levarão uma vida feliz; que é naturalmente impossível. É preciso suportar todas as coisas em defesa daquilo que é honroso; mas isso não seria necessário se existisse qualquer outro bem além do que é honroso. Embora esta questão tenha sido bastante discutida por mim em uma carta anterior[1], a discuti resumidamente e brevemente através do raciocínio.
27. Mas uma
opinião desse tipo nunca lhe parecerá verdadeira, a não ser que você exalte a
sua mente e se pergunte se, no chamamento do dever, você está disposto a morrer
pelo seu país e comprar a segurança de todos os seus concidadãos ao preço de si
próprio; se ofereceria o seu pescoço não só com paciência, mas também com
alegria. Se faria isso, não há nenhum outro bem em seus olhos. Pois está
desistindo de tudo para adquirir este bem. Considere quão grande é o poder
daquilo que é digno de honra: você morrerá por seu país, mesmo que sem aviso
prévio, quando sabe que deve fazê-lo.
28. Às
vezes, como resultado de uma conduta nobre, ganha-se grande alegria, mesmo em
um espaço de tempo muito curto e fugaz; e embora nenhum dos frutos de uma ação
feita será entregue para o executor depois que ele está morto e removido da
esfera dos assuntos humanos, ainda a simples contemplação de uma ação que deve
ser feita é um deleite, e os corajosos e o homem reto, imaginando para si as
recompensas de sua morte, – recompensas como a liberdade de seu país e a
libertação de todos aqueles para quem está pagando a sua vida, – participa do
maior prazer e goza do fruto do seu próprio risco.
29. Mas
aquele homem que também está privado dessa alegria, a alegria que é oferecida
pela contemplação de algum último esforço nobre, saltará à sua morte sem
hesitar um momento, contente em agir com justiça e obediência. Além disso, pode
confrontá-lo com muitos desencorajamentos; você pode dizer: “Seu ato será
rapidamente esquecido”, ou “Seus companheiros cidadãos lhe oferecerão
escassos agradecimentos”. Ele responderá: “Todas estas coisas estão
fora do meu encargo, meus pensamentos estão na ação em si, eu sei que isso é
honroso, portanto, onde quer que eu seja levado e convocado pela honra,
irei”.
30. Este é,
portanto, o único bem, e não só toda alma que atingiu a perfeição tem
consciência disso, mas também toda alma que é por natureza nobre e de instintos
corretos; todos os outros bens são triviais e mutáveis. Por esta razão, somos
perseguidos se os possuímos. Mesmo que, pela bondade da Fortuna, forem nos
dados, eles pesam profundamente sobre os seus proprietários, sempre os
pressionando e às vezes esmagando-os.
31. Nenhum
dos que vemos vestidos de púrpura é feliz, como qualquer um desses atores sobre
os quais a peça concede um cetro e um manto enquanto no palco; eles passam
empertigados a sua hora diante de uma casa abarrotada, com o peito estufado e
saltos altos; mas quando uma vez que eles fazem a sua saída o salto alto é
removido e eles retornam à sua própria estatura. Nenhum daqueles que foram
elevados a uma altura mais alta pelas riquezas e honras é realmente grande. Por
que então parece grandioso para você? É porque você está medindo o pedestal
junto com o homem. Um anão não é alto, apesar de estar em pé sobre uma
montanha; uma estátua colossal ainda será alta, mesmo que você a coloque em um
poço.
32. Este é
o erro em que trabalhamos; esta é a
razão pela qual somos enganados: não valorizamos ninguém no que ele é, mas
acrescentamos ao próprio homem as armadilhas em que está vestido. Mas
quando você quiser investigar o verdadeiro valor de um homem, e saber que tipo
de homem ele é, olhe para ele quando estiver nu; faça-o desistir de sua
propriedade herdada, seus títulos, e os outros enganos da fortuna; deixe-o
mesmo sem seu corpo. Considere sua alma, sua qualidade e sua estatura, e assim
aprenda se sua grandeza é emprestada, ou se é sua propriamente.
33. Se um
homem pode contemplar com olhos inabaláveis o brilho de uma espada, se ele sabe
que não faz diferença para ele se sua alma fugirá através de sua boca ou
através de uma ferida em sua garganta, você pode chamá-lo feliz; você também
pode chamá-lo de feliz se, quando ele é ameaçado com tortura corporal, quer
seja o resultado de um acidente ou do poder do mais forte, ele pode sem
preocupação ouvir falar de correntes, ou de exílio, ou de todos os medos
inúteis que agitam as mentes dos homens, e podem dizer:
“Oh donzela, nenhuma nova forma súbita de trabalho ressurge diante dos meus olhos; Dentro da minha alma Eu tenho prevenido e examinado tudo.”
“Non ulla laborum, O virgo, nova mi facies inopinave surgit; Omnia praecepi atque animo mecum ipse peregi[2].
Hoje é você
quem me ameaça com esses terrores; mas sempre me assustei com eles e me
preparei como homem para encontrar o destino dos homens.
34. Se um mal foi considerado de antemão, o
golpe é suave quando ele vem. Para o tolo, porém, e para aquele que confia
na fortuna, cada evento à medida que chega “vem de uma forma nova e
súbita”, e uma grande parte do mal, para os inexperientes, consiste em sua
novidade. Isto é provado pelo fato de que os homens resistem com mais coragem,
quando se acostumaram a elas, as coisas que tinham no início considerado como
dificuldades.
35. Portanto, o sábio acostuma-se ao chegar da angústia, aliviando por longas reflexões os males que os outros aliviam por longas tolerâncias. Às vezes ouvimos o inexperiente dizer: “Eu sabia que isso estava reservado para mim”. Mas o sábio sabe que todas as coisas lhe estão reservadas. O que quer que aconteça, ele diz: “Eu sabia disso.”
A carta 70 é uma de minha favoritas. Não só pelo tema e solução apresentada, mas também porque ilustra vivamente o cotidiano de Roma, narrando episódios da vida de nobres, escravos e gladiadores.
A carta, provavelmente escrita no ano 63 AD, começa comentando uma visita recente de Sêneca a Pompeia, terra natal de Lucílio. Mal sabia Sêneca que em pouco mais de uma década a cidade seria completamente destruída, soterrada por cinzas e lava na erupção do Vesúvio em 79 AD.
O assunto é o suicídio. Ao contrário das doutrinas contemporâneas que consideram o assunto taboo ou pecado grave, o estoicismo defende a prática, sob certas circunstâncias. Segundo Sêneca, o sábio:
… viverá o tempo que for necessário, não tanto quanto puder. Ele vai lembrar em que lugar, com quem, e como deve conduzir a sua existência, e o que está prestes a fazer. Ele sempre reflete sobre a qualidade, e não sobre a quantidade, de sua vida.” (LXX, 4-5).
E justifica esta saída como alternativa a tortura, pois entende que “morrer bem significa escapar do perigo de viver mal”. A eutanásia também é permitida e justificada:
Devo aguardar a crueldade da doença ou do homem, quando eu posso partir em meio à tortura e livrar-me de meus problemas? Esta é a única razão pela qual não podemos nos queixar da vida; ela não segura ninguém contra a sua vontade. A humanidade está bem situada, porque nenhum homem é infeliz, exceto por sua própria culpa. Viva, se assim desejar; se não, você pode retornar ao lugar de onde veio. (LXX,15)
Conclui a carta com exemplos de suícidos nobre, como de Catão, de nobre corruptos e por fim de escravos e criminosos condenados aos jogos de gladiadores. Exemplos vividos e muito gráficos:
“Durante o segundo ato, em um simulacro de luta marítima, um dos bárbaros enfiou profundamente em sua própria garganta uma lança que lhe fora dada para uso contra seu inimigo. (…) Ele disse: “Por que eu deveria estar armado e ainda esperar a morte vir?” Esta apresentação foi ainda mais notável por causa da lição que os homens aprenderam de que morrer é mais honroso do que matar. (LXX,26)
LXX. Sobre o momento adequado para fazer a derradeira viagem
Saudações de Sêneca a Lucílio.
Depois de um longo espaço de tempo, eu vi sua amada Pompeia. Fui assim trazido de novo face a face com os dias da minha juventude. E me pareceu que eu ainda podia fazer, não, que tinha feito há pouco tempo atrás, todas as coisas que eu fiz lá quando jovem.
Navegamos ao largo da vida, Lucílio, como se estivéssemos em uma viagem, e como no mar, para citar nosso poeta Virgílio: As terras e as cidades são deixadas para trás.[1] Mesmo assim, nesta jornada onde o tempo voa com a maior velocidade, colocamos abaixo do horizonte primeiro a nossa infância e depois a nossa juventude, e depois o espaço que se situa entre a juventude e a meia-idade e as fronteiras em ambos e, em seguida, os melhores anos da própria velhice. Por fim, começamos a ver a fronteira geral da raça humana.
Tolos que somos, acreditamos que este é um recife perigoso; mas é o porto, onde devemos algum dia atracar, que nunca podemos recusar entrar; e se um homem chegou a este porto em seus primeiros anos, não tem mais direito de reclamar do que um marinheiro que fez uma viagem rápida. Pois alguns marinheiros, como você sabe, são enganados e retidos por ventos fracos, e ficam cansados e doentes da calma letargia; enquanto outros são levados rapidamente para casa por ventos constantes.
Você pode considerar que a mesma coisa nos acontece: a vida levou alguns homens com a maior rapidez para o porto, o porto qual eles eram obrigados a alcançar, mesmo que eles demorassem no caminho, enquanto a outros ela tem afligido e assediado. Pois a essa vida, como você sabe, nem sempre devemos nos apegar. Pois meramente viver não é um bem, mas sim viver bem. Por conseguinte, o sábio viverá o tempo que for necessário, não tanto quanto puder.
Ele vai lembrar em que lugar, com quem, e como deve conduzir a sua existência, e o que está prestes a fazer. Ele sempre reflete sobre a qualidade, e não sobre a quantidade, de sua vida. Assim como há muitos eventos em sua vida que lhe dão problemas e perturbam sua paz de espírito, ele se liberta. E este privilégio é dele, não só quando a crise está sobre ele, mas também quando a Fortuna parece estar o traindo; então ele olha com cuidado e vê se deve ou não deve terminar sua vida por causa disso. Ele sustenta que não faz diferença para ele se sua decolagem é natural ou auto infligida, se ela vem mais tarde ou mais cedo. Ele não a considera com medo, como se fosse uma grande perda; porque nenhum homem pode perder muito quando ainda uma gotícula permanece.
Não se trata de morrer mais cedo ou mais tarde, mas de morrer bem ou mal. E morrer bem significa escapar do perigo de viver mal. É por isso que eu considero as palavras do conhecido Telésforo[2] como as mais covardes. Esta pessoa foi jogada em uma jaula por seu tirano, e alimentado lá como algum animal selvagem. E quando um certo homem o aconselhou a pôr fim à sua vida pelo jejum, ele respondeu: “Um homem pode esperar alguma coisa enquanto tiver vida”.
Isso pode ser verdade; mas a vida não é para ser comprada a qualquer preço. Não importa quão grandes ou garantidas certas recompensas possam ser, não me esforçarei para alcançá-las ao preço de uma vergonhosa confissão de fraqueza. Devo acreditar que a Fortuna tem todo o poder sobre a pessoa que vive, em vez de acreditar que ela não tem poder sobre alguém que sabe como morrer?
No entanto, há momentos em que um homem, ainda que a morte certa paire sobre ele e saiba que a tortura lhe está reservada, irá se abster de dar uma mão à sua própria punição, entretanto, para si, daria uma mão. É loucura morrer por medo de morrer. O carrasco está acerca de você; espere por ele. Por que antecipar ele? Por que assumir a gestão de uma tarefa cruel que pertence a outrem? Você inveja o privilégio de seu carrasco, ou simplesmente o alivia de sua tarefa?
Sócrates poderia ter terminado sua vida jejuando; ele poderia ter morrido por fome em vez de por veneno. Mas, em vez disso, passou trinta dias na prisão esperando a morte, não com a ideia de “tudo pode acontecer”, ou “tão longo intervalo dá espaço para esperanças”, mas para mostrar-se submisso às leis e fazer seus últimos momentos uma edificação para seus amigos. O que teria sido mais tolo do que desprezar a morte, e ainda temer veneno?
Escribonia, uma mulher do tipo severo, era uma tia de Drusus Libo[3]. Este jovem era tão estúpido quanto bem-nascido, com ambições mais elevadas do que qualquer pessoa poderia esperar nessa época, ou de um homem como ele em qualquer época. Quando Libo foi removido do senado em sua liteira, embora certamente com um grupo muito reduzido de seguidores, pois todos os seus parentes o abandonaram, quando ele não era mais um criminoso, mas apenas um corpo, ele começou a considerar se deveria cometer suicídio ou aguardar a morte. Escribonia disse-lhe: “Que prazer você tem em fazer o trabalho do outro?” Mas ele não seguiu seu conselho; ele colocou mãos violentas sobre si mesmo. E estava certo, afinal, pois quando um homem está condenado a morrer em dois ou três dias pelo prazer de seu inimigo, ele estará realmente “fazendo a obra de outro homem” se continuar a viver.
Portanto, não se pode fazer uma declaração geral sobre a questão se, quando um poder além do nosso controle nos ameaça com a morte, devemos antecipar a morte ou esperar por ela. Pois há muitos argumentos para nos puxar em qualquer direção. Se uma morte é acompanhada pela tortura, e a outra é simples e fácil, por que não agarrar a segunda? Assim como seleciono o meu navio quando eu estou prestes a viajar ou minha casa quando me proponho a tomar uma residência, então eu vou escolher a minha morte quando estiver prestes a afastar-me da vida.
Além disso, assim como uma vida prolongada não significa necessariamente uma melhor, uma morte prolongada significa necessariamente uma situação pior. Não há ocasião em que a alma deva estar em melhor disposição do que no momento da morte. Deixe a alma partir ao se sentir impelida a ir; quer procure a espada, ou a forca, ou algum veneno que ataca as veias, deixe-a prosseguir e arrebentar os laços de sua escravidão. Todo homem deve tornar sua vida aceitável para os outros, além de si mesmo, mas sua morte semente para si mesmo. A melhor forma de morte é a que gostamos.
São tolos os que refletem assim: “Uma pessoa dirá que minha conduta não foi corajosa o suficiente, outra, que era demasiado teimoso, um terceiro, que um tipo particular de morte teria demostrado mais espírito”. O que você deve realmente refletir é: “O que tenho em consideração é um propósito com o qual a opinião dos homens não tem nenhuma importância!” Seu único objetivo deve ser escapar da Fortuna o mais rápido possível; caso contrário, não haverá falta de pessoas que vão pensar mal do que você fez.
Você pode encontrar homens que professam a sabedoria e ainda assim defendem que não se deve oferecer violência à própria vida, e consideram anátema para um homem para ser o meio de sua própria destruição; devemos esperar, dizem eles, pelo fim decretado pela natureza. Mas aquele que diz isso não vê que está fechando o caminho para a liberdade. A melhor coisa que a lei divina nos concedeu foi que nos permitiu uma entrada na vida, mas muitas saídas.
Devo aguardar a crueldade da doença ou do homem, quando eu posso partir em meio à tortura e livrar-me de meus problemas? Esta é a única razão pela qual não podemos nos queixar da vida; ela não segura ninguém contra a sua vontade. A humanidade está bem situada, porque nenhum homem é infeliz, exceto por sua própria culpa. Viva, se assim desejar; se não, você pode retornar ao lugar de onde veio.
Muitas vezes você foi medicado para aliviar dores de cabeça. Você teve veias cortadas com a finalidade de reduzir o seu peso. Se você furar seu coração, um ferimento escancarado não é necessário – um bisturi abrirá o caminho para essa grande liberdade, e tranquilidade pode ser comprada ao custo de uma picada de agulha. O que, então, nos torna preguiçosos e indolentes? Nenhum de nós pensa que algum dia deva partir desta casa da vida; exatamente como antigos inquilinos não se mudam por predileção por um lugar particular e por costume, mesmo apesar de maus-tratos.
Você gostaria de estar livre da limitação de seu corpo? Viva nele como se estivesse prestes a deixá-lo. Continue pensando no fato de que algum dia você será privado dessa posse; então você será mais corajoso frente a necessidade de partir. Mas como um homem tomará o pensamento de seu próprio fim, se ele anseia todas as coisas sem fim?
E ainda não há nada tão essencial para considerarmos. Pois nossa formação em outras coisas talvez seja supérflua. Nossas almas foram preparadas para enfrentar a pobreza; mas nossas riquezas têm se mantido firmes. Nós estamos munidos de armas para desprezar a dor; mas tivemos a sorte de possuir corpos sadios e saudáveis, e por isso nunca fomos forçados a pôr essa virtude à prova. Aprendemos a suportar corajosamente a perda daqueles que amamos; mas a Fortuna nos preservou todos a quem amamos.
É nesta única questão que chegará o dia em que precisamos testar nosso treinamento. Não precisa pensar que apenas os grandes homens tiveram a força de romper os laços da servidão humana; você não precisa acreditar que isso não possa ser feito senão por um Catão, – Catão, que com a mão arrancou o espírito que não tinha conseguido liberar pela espada[4]. Não, homens da mais baixa sorte escaparam por um poderoso impulso e, quando não lhes foi permitido morrer por sua própria conveniência, ou se escolher os instrumentos da morte, arrebataram tudo o que estava disposto à mão, e por pura força transformaram objetos que eram por natureza inofensivos em armas próprias.
Por exemplo, ultimamente havia em uma escola de treinamento para gladiadores de animais selvagens um alemão, que estava sendo preparando para a exposição matinal; ele se retirou para se aliviar, – a única coisa que lhe era permitido fazer em segredo e sem a presença de um guarda. Enquanto estava assim ocupado, agarrou uma escova com cabo de madeira, que era devotada aos mais vis usos, e a enfiou, suja como estava, em sua garganta; assim ele bloqueou sua traqueia, e sufocou a respiração de seu corpo. Isso foi verdadeiramente um insulto à morte!
Sim, é verdade, não foi uma maneira muito elegante ou conveniente de morrer; mas o que é mais tolo do que ser minucioso sobre a morte? Que corajoso! Ele certamente merecia ser autorizado a escolher seu destino! Como bravamente ele teria empunhado uma espada! Com que coragem ele teria se atirado nas profundezas do mar, ou em um precipício! Limitado totalmente de recursos, ele ainda encontrou uma maneira de se equipar para a morte. Daí você pode entender que nada, a não ser a vontade pode adiar a morte. Que cada homem julgue a ação deste fervoroso indivíduo como quiser, contanto que estejamos de acordo – que a morte mais horrível é preferível à escravidão mais justa.
Na medida em que comecei com uma ilustração tirada da vida humilde, continuarei com esse tipo de coisa. Pois os homens se exigirão mais, ao verem que a morte pode ser desprezada até pela classe mais desprezada dos homens. Os Catões, os Cipiãos e os outros cujos nomes costumamos ouvir com admiração, consideramos que estão além da esfera da imitação; mas agora vou provar que a virtude de que falo é encontrada tão frequentemente na escola de treinamento dos gladiadores como entre os líderes em uma guerra civil.
Recentemente um gladiador, que tinha sido enviado para a exposição da manhã, estava sendo transportado em uma carroça junto com os outros prisioneiros; balançando a cabeça como se estivesse pesado de sono, deixou cair a cabeça até o ponto em que a prendeu nos raios da roda; então ele manteve seu corpo em posição o tempo suficiente para quebrar seu pescoço pela revolução da roda. Ele escapou fazendo uso do carro que o levava ao seu castigo.
Quando um homem deseja irromper e tomar sua partida, nada se interpõe em seu caminho. É um espaço aberto no qual a natureza nos protege. Quando o nosso apuro é tal que permita, nos devemos olhar ao redor para uma saída fácil. Se você tem muitas oportunidades prontas à mão, por meio das quais pode se libertar, você pode fazer uma seleção e pensar sobre a melhor maneira de ganhar a liberdade; mas se uma chance é difícil de encontrar, em vez da melhor, arrebate o que for próximo ao melhor, mesmo que seja algo inédito, algo novo. Se não faltar a coragem para morrer não faltará a inteligência.
Veja como até mesmo a classe mais baixa de escravo, quando o sofrimento o incentiva, é despertada e descobre uma maneira de enganar até mesmo os guardas mais vigilantes! É realmente grande aquele que não só deu a si mesmo a ordem de morrer, mas também encontrou os meios. Eu prometi, entretanto, mais algumas ilustrações tiradas dos mesmos jogos.
Durante o segundo ato, em um simulacro de luta marítima, um dos bárbaros enfiou profundamente em sua própria garganta uma lança que lhe fora dada para uso contra seu inimigo. “Por que, oh, por que,” ele disse, “há muito tempo não escapei de toda esta tortura e toda esta zombaria? Por que eu deveria estar armado e ainda esperar a morte vir?” Esta apresentação foi ainda mais notável por causa da lição que os homens aprenderam de que morrer é mais honroso do que matar.
O que então? Se tal espírito é possuído por homens depravados e perigosos, não será possuído também por aqueles que se treinaram para enfrentar tais contingências por meditação longa, e pela razão, a senhora de todas as coisas? É a razão que nos ensina que o destino tem várias maneiras de abordar, mas o mesmo fim, e que não faz diferença em que ponto o inevitável evento começa.
A razão também nos aconselha a morrer, se pudermos, segundo nosso gosto; se isso não puder ser, ela nos aconselha a morrer de acordo com nossa capacidade e a aproveitar qualquer meio que se ofereça para cometer violência a nós mesmos. É criminoso “viver por roubo”; mas, por outro lado, é muito nobre “morrer por roubo”.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] “Terraeque urbesque recedunt” Trecho de Eneida de Virgílio.
[2] Telésforo de Rodes, ameaçado pelo tirano Lisímaco, é citado como um exemplo extremo de punição cruel no texto “Sobre a Ira”, mas é usado aqui para ilustrar a covardia de qualquer vítima que não prefere a morte a uma vida desonrada.
[3] Libo, um parente remoto da família imperial, foi acusado de planejar uma conspiração contra Tibério e condenado formalmente à morte. Sua tia Escribonia, a penúltima esposa de Augusto e a mãe de sua única criança Julia, tomou a linha de que o suicídio (como era esperado nessas circunstâncias) seria poupar seu executor a responsabilidade de matá-lo.
[4] Catão tentou o suicídio cortando seu abdômen com sua espada. Não obtendo êxito, arrancou com a própria mão seu intestino.