Carta 14: Sobre as razões para se retirar do mundo

Sêneca escreve esta carta durante um período de turbulência política e social em Roma, provavelmente refletindo sobre as suas próprias experiências e observações sobre os perigos da vida pública. A carta é estruturada em torno de conselhos práticos sobre como evitar os males que ameaçam a paz e segurança pessoal. É  a primeira carta na qual Sêneca explicitamente coloca orientação política em seus ensinamentos e diz a Lucílio que muitas vezes devemos considerar um governante tirano da mesma forma que uma tempestade: um capitão prudente desvia seu curso e não tenta mudar aquilo que sabe ser muito mais forte.

O estoicismo, em oposição ao epicurismo, defende participação na política e sociedade civil. Nesta carta Sêneca alerta para os limites de tal estratégia usando o exemplo de Catão que durante a guerra civil do fim da república combateu tanto Júlio Cesar como Pompeu.

A Carta 14 é uma rica fonte de conselhos sobre como viver de acordo com a virtude em tempos turbulentos. Sêneca não apenas discorre sobre a teoria estoica, mas oferece orientações práticas para viver uma vida que evite as armadilhas da ambição, do medo e da violência, promovendo uma filosofia de vida que valoriza a tranquilidade interior e a moderação.
Esta carta serve tanto como um guia para a conduta pessoal quanto como um reflexo sobre as complexidades da participação política e social, temas que continuam relevantes para o debate filosófico contemporâneo sobre ética e política.
 

Sêneca termina com um alerta sobre os riscos da busca por riquezas: “Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.” (XIV, §17)

XIV. Sobre as razões para se retirar do mundo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Confesso que todos temos um afeto inato por nosso corpo, admito que somos responsáveis por sua proteção, por cuidar bem dele. Eu não defendo que o corpo não deva ser saciado em tudo, mas mantenho que não devemos ser escravos dele. Será escravo de muitos aquele que faz de seu corpo seu mestre, que teme demasiadamente por ele, que julga tudo de acordo com o corpo.

2. Devemos nos conduzir não como se devêssemos viver para o corpo, mas como se não pudéssemos viver sem ele. Nosso grande amor por ele nos deixa inquietos de medo, nos sobrecarrega de cuidados e nos expõe a ofensas. A virtude é considerada inferior pelo homem que considera seu corpo muito importante. Devemos cuidar do corpo com o maior cuidado, mas também devemos estar preparados para quando a razão, o amor-próprio e o dever exigirem o sacrifício, entregá-lo às chamas.

3. Contudo, na medida do possível, evitemos tanto os desconfortos como os perigos e retiremo-nos a um terreno seguro, pensando continuamente em como repelir todos os objetos do medo. Se não me engano, há três classes principais: temos medo da carestia, tememos a doença e tememos os problemas que resultam da violência dos mais fortes.

4. E de tudo isso, o que mais nos assusta é o pavor que paira sobre nós da violência de nosso vizinho, pois é acompanhada por grande clamor e tumulto. Mas os males naturais que eu mencionei, carestia e doença, nos furtam silenciosamente sem terror aos olhos ou aos ouvidos. O outro tipo de mal vem, por assim dizer, sob a forma de grande desfile militar. Em torno dele há um séquito de espadas, fogo, correntes e uma multidão de animais para ser solta sobre as entranhas evisceradas dos homens.

5. Imagine-se submetido à prisão, à cruz, à tortura, aos ganchos,57 à forca e à empalação. Pense nos membros humanos rasgados por cavalos movidos em direções opostas, da camisa terrivelmente besuntada com materiais inflamáveis, e de todos os outros aparelhos inventados pela crueldade, além daqueles que eu mencionei! Não é de admirar, então, se nosso maior terror é de tal sorte, porque ele vem em muitas formas e sua parafernália é aterrorizante. Pois, assim como o torturador conquista mais por conta da quantidade de instrumentos que exibe – de fato, o espetáculo vence aqueles que teriam pacientemente resistido ao sofrimento – similarmente, de todos os agentes que coagem e dominam nossas mentes, os mais eficazes são aqueles ostensivos. Esses outros problemas não são, evidentemente, menos graves. Quero dizer fome, sede, úlceras do estômago e febre engolem nossas entranhas. Eles são, no entanto, secretos, eles não vociferam e se anunciam, mas os outros, com formidáveis vestimentas de guerra, prevalecem em virtude de sua ostentação e aparelhagem.

6. Vamos, portanto, cuidar para que nos abstenhamos de ofender. Às vezes é o povo que devemos temer; às vezes um grupo de oligarcas influentes no Senado, se o método de governar o Estado é tal que a maior parte do negócio é feita por esse grupo; e às vezes indivíduos equipados com poder pelo povo e contra o povo. É oneroso manter a amizade de todas essas pessoas, basta não fazer deles inimigos. Assim o sábio nunca provocará a ira daqueles que estão no poder, mais que isso, o sábio vai mesmo mudar seu curso, exatamente como iria desviar-se de uma tempestade se estivesse conduzindo um navio.

7. Quando você viajou para a Sicília, você precisou atravessar o estreito. Seu capitão foi imprudente e desdenhou o violento vento sul – vento que encrespa o mar siciliano e cria correntes poderosas – ou ele procurou a costa à esquerda? A praia pedregosa, de onde Caríbdis58 agita os mares em confusão. Seu capitão mais cuidadoso, entretanto, questiona aqueles que conhecem a localidade quanto às marés e ao significado das nuvens. Ele mantém seu curso longe daquela região notória por suas águas agitadas. Nosso sábio faz o mesmo, foge de um homem forte que pode ser nocivo a ele, fazendo questão de não parecer evitá-lo, porque uma parte importante de sua segurança reside em não buscar segurança abertamente; porque aquilo que se evita, se condena.

8. Portanto, devemos olhar ao redor e verificar como podemos nos proteger da multidão. E antes de tudo, não devemos ter ânsias como as dela, pois a rivalidade resulta em conflitos. Novamente, não possuamos nada que possa ser arrebatado de nós para o grande lucro de um inimigo conspirador. Permita que haja o menor espólio possível na sua pessoa. Ninguém se propõe a derramar o sangue de seus semelhantes por causa do sangue em si, ou de qualquer maneira, apenas muito poucos. Mais assassinos especulam sobre seus lucros do que em dar vazão ao próprio ódio. Se você está de mãos vazias, o salteador da estrada passa por você. Mesmo ao longo de uma estrada infestada, os pobres podem viajar em paz.

9. Em seguida, devemos seguir o velho ditado e evitar três coisas com especial cuidado: ódio, ciúme e desdém. E só a sabedoria pode mostrar-lhe como isso pode ser feito. É difícil seguir o meio termo, devemos ser cuidadosos para não deixar que o medo do ciúme nos leve a tornarnos desdenhosos, para que, quando escolhemos não menosprezar os outros, não deixemos que eles pensem que podem nos menosprezar. O poder de inspirar medo tem levado muitos homens a terem medo. Afastemo-nos de todas as maneiras, pois é tão nocivo ser desprezado quanto ser admirado.

10. Você deve, portanto, refugiar-se na filosofia. Essa busca, não só aos olhos dos homens bons, mas também aos olhos dos que são mesmo moderadamente maus, é uma espécie de emblema protetor. Pois o discurso no tribunal, ou qualquer outra busca por atenção popular, traz inimigos para um homem, mas a filosofia é pacífica e foca-se em seu próprio negócio. Os homens não podem desprezá-la, ela é honrada por cada profissão, até mesmo a mais vil entre elas. O mal nunca pode crescer tão forte e a nobreza de caráter nunca pode ser tão conspirada, que o nome da filosofia deixe de ser digno e sagrado. Filosofia em si, no entanto, deve ser praticada com calma e moderação.

11. “Muito bem, então,” você responde, “você considera a filosofia de Marco Catão como moderada?” A voz de Catão se esforçou para reprimir uma guerra civil. Catão segurou as espadas de chefes de clãs enlouquecidos. Quando alguns pereceram, vítimas de Pompeu e outros de César, Catão desafiou as duas facções ao mesmo tempo!

12. Não obstante, alguém pode muito bem questionar se, naqueles dias, um sábio deveria ter tomado alguma parte nos assuntos públicos e perguntado: “O que você quer dizer, Marco Catão? Não é agora uma questão de liberdade, há muito tempo a liberdade foi desmoronada e arruinada. A questão é se César ou Pompeu controlam o Estado. Por que, Catão, você deve tomar partido nessa disputa? Não é assunto seu, um tirano está sendo escolhido. O melhor pode vencer, mas o vencedor será condenado a ser o pior homem.” Refiro-me ao papel final de Catão. Mas mesmo nos anos anteriores o homem sábio não foi autorizado a intervir em tal pilhagem do Estado pois o que poderia fazer Catão senão erguer a voz e pronunciar palavras em vão? Em certa ocasião ele foi levado pelas mãos pela multidão, foi cuspido e forçosamente removido do foro e assinalado para o exílio, em outra, foi levado direto do senado para a prisão.

13. Contudo, consideraremos mais tarde59 se o sábio deve dar atenção à política, entretanto, peço-lhe que considere aqueles estoicos que, afastados da vida pública, se retiraram para a privacidade com o propósito de melhorar a existência dos homens e elaborar leis para a raça humana sem incorrer no descontentamento daqueles que estão no poder. O homem sábio não perturbará os costumes do povo, nem atrairá a atenção da população por quaisquer modos de vida novos.

14. “O que, então? Pode alguém que seguir este plano estar sempre seguro?” Não posso garantir-lhe isto mais do que posso garantir uma boa saúde no caso de um homem que observe a moderação embora, de fato, boa saúde resulte de tal moderação. Às vezes um navio afunda no porto, mas o que você acha que acontece em mar aberto? E quão mais cercado de perigo estaria um homem, que mesmo em seu retiro não está seguro, se ele estiver ocupado trabalhando em muitas coisas! As pessoas inocentes às vezes perecem, quem negaria isso? Mas os culpados perecem com mais frequência. A habilidade de um soldado não é julgada se ele recebe o golpe de morte através de sua armadura.

15. E, finalmente, o homem sábio considera a razão de todas as suas ações, mas não os resultados. O começo está em nosso próprio poder, a Fortuna decide o assunto, mas eu não permito que ela passe sentença sobre mim mesmo. Você pode dizer: “Mas ela pode infligir uma medida de sofrimento e de problemas.” Um bandido de estrada pode matar-me; condenar-me, isso jamais!

16. Agora você estende sua mão para o presente diário. Áureo, de fato, será o presente com o qual eu o agraciarei; e, na medida em que mencionamos o ouro, deixe-me dizer-lhe como o seu uso e gozo pode trazer-lhe maior prazer. “Aquele que menos precisa de riquezas, desfruta mais das riquezas”. “Nome do autor, por favor!”, você diz. Agora, para mostrar o quão generoso eu sou, é minha intenção elogiar os ditos de outras escolas. A frase pertence a Epicuro, ou Metrodoro, ou alguém daquela escola de pensamento particular.60

17. Mas que diferença faz quem disse as palavras? Elas foram proferidas ao mundo. Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade. Ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seus registros de juros, em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um guarda-livros.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


57 Os ganchos referidos eram usados para arrastar corpos de condenados até junto das “gemoniae scalae”, isto é, “ escadas dos gemidos”, de onde eram lançados ao rio Tibre.

58 Caríbdis (em grego: Χάρυβδις), na mitologia grega, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon.

59 Ver carta XXII neste volume.

60 Frase de Epicuro. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro X.

Carta 12: Sobre a Velhice

Na 12ª carta Sêneca explora a velhice não apenas como um estágio da vida, mas como uma fase repleta de ensinamentos e prazeres próprios. A carta reflete a autopercepção de Sêneca sobre sua própria velhice, utilizando exemplos cotidianos para ilustrar a passagem do tempo.

Ele começa recordando uma visita recente a uma de suas casas de campo, durante as quais ele reclamou a um de seus funcionários que estava gastando muito dinheiro na manutenção. Mas seu zelador protestou que a casa estava envelhecendo, e os reparos eram, portanto, totalmente justificados. Então Seneca escreve: “E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando? “(XII, §1)

Qual deve ser a atitude da pessoa sábia em relação à velhice? Sêneca coloca muito vividamente a Lucílio:

Vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: ‘Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado’ E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Quando um homem diz: ‘Eu tenho vivido!’, toda manhã que acorda, recebe um bônus.“(XII.9)

Como ele frequentemente faz nas cartas, Sêneca termina com um “presente”, uma citação significativa de outro autor, que neste caso é: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação. (XII, §10), outra referência ao suicídio a ser escolhido sob certas circunstâncias.

O ditado acima é de ninguém menos que Epicuro, o principal rival da escola estóica. Sêneca, então, imagina Lucílio protestando: “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. (XII, §11)

Mais uma vez, uma bela frase e um exemplo de verdadeira sabedoria: não importa de onde a verdade venha, uma vez descoberta, é nossa propriedade coletiva.

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XII. Sobre a velhice

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Para onde quer que eu me vire, vejo evidências de meus avançados anos. Visitei recentemente a minha casa de campo e reclamei do dinheiro gasto na manutenção do prédio. Meu caseiro sustentou que as falhas não eram devidas a seu próprio descuido. Ele estava fazendo todo o possível, mas a casa era velha. E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando?

2. Eu estava com raiva e usei a primeira oportunidade de exalar meu mal humor na presença do caseiro. “Está claro!” Exclamei eu, “que esses plátanos estão negligenciados, não têm folhas, seus ramos são tão retorcidos e enrugados, os caules estão ásperos e desalinhados! Isso não aconteceria se alguém afofasse a terra sob seus pés e os regasse.” O caseiro jurou por meu gênio protetor46 que “ele estava fazendo todo o possível e nunca relaxou seus esforços, mas aquelas árvores eram velhas”. Só entre nós, eu havia plantado essas árvores, eu as tinha visto em sua primeira florada.

3. Então, virei-me para a porta e perguntei: “Quem é aquele quebrantado? Vocês fizeram bem em coloca-lo na entrada, porque ele já está de saída,47 onde você o pegou?” Mas o escravo disse: “Você não me reconhece, senhor? Sou Felício, você costumava me trazer pequenas imagens,48 meu pai era o Filósito, o zelador, e eu sou seu escravo querido”. “O homem está louco”, comentei. “Meu escravo predileto tornou-se um menininho de novo? Mas é bem possível, seus dentes estão caindo.”49

4.Estou obrigado a admitir que minha velhice se tornou aparente. Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheia de prazer se alguém sabe como usá-la. As frutas são mais bem-vindas quando quase passadas. A juventude é mais encantadora em seu fim, o último drinque deleita o ébrio: é o copo que o sacia e dá o toque final em sua embriaguez.

5. Cada prazer reserva para o fim as maiores delícias que contém. A vida é mais deliciosa quando está em declive mas ainda não atingiu o fim abrupto. E eu mesmo acredito que o período que se encontra, por assim dizer, à beira do telhado, possui prazeres próprios. Ou então, o próprio fato de não desejarmos prazeres, toma o lugar dos próprios prazeres. Como é reconfortante ter cansado o apetite e ter acabado com ele!

6. “Mas,” você diz, “é um incômodo estar olhando a morte no rosto!A Morte, no entanto, deve ser olhada no rosto por jovens e velhos. Nós não somos convocados de acordo com nossa classificação alfabética na lista do censor.50 Além disso, ninguém é tão velho que seria impróprio para ele esperar mais um outro dia de existência. E um dia, lembre-se, é uma etapa na jornada da vida. Nosso escopo de vida é dividido em partes, consiste em grandes círculos que encerram menores. Um círculo abraça e limita o resto, atinge desde o nascimento até o último dia da existência. O próximo círculo limita o período de nossa juventude. O terceiro limita toda a infância em sua circunferência. Outra vez, há, em uma classe em si, o ano. Contém dentro de si todas as divisões de tempo pela adição da qual obtemos o total da vida. O mês é limitado por um anel mais estreito. O menor círculo de todos é o dia, mas mesmo um dia tem seu começo e seu término, seu nascer e seu pôr-do-sol.

7. Por isso Heráclito,51 cujo estilo obscuro lhe deu seu sobrenome, observou: “Um dia é igual a todos os dias”. Diferentes pessoas têm interpretado o ditado de maneiras diferentes. Alguns afirmam que os dias são iguais em número de horas, e isso é verdade pois se por “dia” queremos dizer vinte e quatro horas de tempo, todos os dias devem ser iguais, na medida em que a noite adquire o que o dia perde. Mas outros sustentam que um dia é igual a todos os dias por meio da semelhança, porque o espaço de tempo mais longo não possui nenhum elemento que não possa ser encontrado em um único dia, a saber, a luz e a escuridão, e até a eternidade faz esses revezamentos mais numerosos, não diferentes quando é mais curto e diferente novamente quando é mais longo…52

8. Portanto, todos os dias deveriam ser regulados como se fechassem a série, como se estivessem completando nossa existência. Pacúvio,53 que por muito tempo ocupava a Síria, costumava realizar um ritual de sepultamento em sua própria honra, com vinho e banquetes fúnebres, e depois ser levado da sala de jantar para seu sarcófago, enquanto os eunucos aplaudiam e cantavam em grego: “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida!

9. Assim Pacúvio vinha enterrando-se todos os dias. Vamos, no entanto, fazer por um bom motivo o que ele costumava fazer por um motivo vil, vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer:

Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado.54

E se os deuses se agradam em acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Esse homem é o mais feliz e está seguro em sua própria posse de si mesmo, pois pode esperar o amanhã sem receio. Quando um homem diz: “Eu tenho vivido!”, toda manhã ao acordar, recebe um bônus.

10. Mas agora eu devo concluir a minha carta. “O quê?”, você diz, “virá a mim sem qualquer contribuição?” Não tenha medo, trago algo e, melhor, mais do que algo, muito. Pois o que há de mais nobre do que o seguinte provérbio de que eu faço desta carta portadora: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.55 Claro que não. Em todos os lados encontram-se muitos caminhos curtos e simples para a liberdade e agradeçamos aos deuses que nenhum homem possa ser mantido na vida. Podemos desprezar os próprios constrangimentos que nos prendem.

11. “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem? Qualquer verdade, eu sustento, é minha propriedade. E continuarei a amontoar citações de Epicuro sobre você, para que todas as pessoas que juram pelas palavras de outrem e que valorizam o orador e não o que é dito, compreendam que as melhores ideias são domínio público.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


46 Na religião pagã romana, o gênio (genius) era uma das divindades domésticas individualmente associada a cada homem. Cada um possuía o seu genius (e a mulher seu juno). Especialmente venerado era o genius do chefe de família.

47 Uma alusão irônica ao funeral romano; os pés do cadáver apontando para a porta.

48 Pequenas figuras, geralmente de terracota, eram frequentemente dadas às crianças como presente durante o festival da Saturnalia. Neste festival, era costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, entre senhores e escravos. Nessa ocasião os escravos gozavam de uma grande liberdade em relação aos seus senhores. Ver Horácio, Sátiras, livro II, 7.

49 O antigo escravo se assemelha a uma criança na medida em que está perdendo os dentes (mas pela segunda vez).

50 Seniores” em contraste com “iuniores”.

51 Heráclito de Éfeso (ca 535 a.C. – 475 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o “Pai da dialética”. Recebeu a alcunha de “O Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, “Sobre a Natureza”, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.

52 O texto apresenta aqui uma lacuna.

53 A Síria era legalmente governada por Élio Lâmia, nomeado por Tibério, que, impedido de sair de Roma, administrava a província por intermédio do seu legado Pacúvio. Ver Tácito, Anais.

54 Trecho de Eneida, de Virgílio.

55 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 7: Sobre multidões

A sétima carta de Sêneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.

Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura  ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:

Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!‘ (VII, §4-5)”

Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. “(VII, §6)”

(imagem: Pollice Verso (polegar para baixo) – por Jean-Léon Gérôme )


VII. Sobre multidões

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado, alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.

2. Ligar-se à multidão é prejudicial. Não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar algum espetáculo, pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.

3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão, mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva.1 Eles estão expostos a golpes em todos os pontos e ninguém nunca desfere golpes em vão.

4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos, ao meio-dia, os jogam aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia para o intervalo.

5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo. Mas e você? Que crime você cometeu, pobre colega, que mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco de gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você2 não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender por si a ser cruel.

6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão: é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles. Tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultivemos nossas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.

7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância: o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta? Você deve imitar ou abominar o mundo.

8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau, simplesmente porque eles são muitos, nem deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo pois os homens aprendem enquanto ensinam.

9. O vão orgulho em divulgar suas habilidades não deve induzi-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adequasse a tal multidão; mas como ela é, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitem sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços. Foi por si mesmo que você aprendeu.

10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com você três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito3 diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão e uma multidão apenas tanto como um homem.

11. O seguinte também foi nobremente falado por ele ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor. Eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.4

12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens o louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro, seus autênticos bens são internos.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados eram frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceriam por toda a parte do dia.

2 A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

3 Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. – 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C. Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.

Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia:  “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


IV. Sobre os terrores da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.

2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.

3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.

4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.

5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.

6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.

7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.

8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?

9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.

10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5] Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.

11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1]  A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.

[2] Nome de Calígula.

[3] Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.

[4] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[5] O Jardim de Epicuro.

[6] Ver Epicuro, Cartas e Princípios. A mesma citação é repetida na carta 27, neste volume, e também na carta 119. Ver Cartas de um Estoico, Volume III.

Gladiadores em Carnuntum

Hoje, contrariando os ensinamentos de Sêneca, tive a oportunidade de assistir a uma luta de gladiadores nas ruínas de um anfiteatro romano em Carnuntum (60Km de Viena).

Vale a pena ler a a Carta 7, Sobre multidões, de Sêneca, que é toda baseada nos espetáculos das arenas.

O evento começou com uma cerimônia religiosa em latim (e alemão ) depois houve várias lutas simuladas.

Familia Gladiatoria Carnuntina
Gladiadores aguardando sua vez de lutar
Luta encenada
Lictores com suas Fasces.

Sêneca cita frequentemente as lutas de gladiadores. Sempre criticando o espetáculo, as vezes tirando lições dos condenados.

A Carta 93: Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento, termina, como de costume, com uma analogia fantástica, desta vez usando os gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:

12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário* do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

* Espoliário na Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.

Carta 102: Sobre as indicações de nossa imortalidade

Na carta 102 são abordados dos assuntos, primeiro uma indagação de Lucílio sobre se boa reputação após a morte é considera um bem para os estoicos. Sêneca responde essa questão, mas logo em seguida passa para aquilo que realmente queria falar: sobre a imortalidade de alma, ou se a vida continua após a morte do corpo.

Sêneca então mostra a visão cosmopolita do estoicismo e faz analogia de nossa vida terrena como sendo semelhante a vida de um feto no útero, ou seja, apenas uma preparação para a etapa seguinte:

“A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento.” (CII, §21)

“Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. “ (CII, §23)

A carta é excelente em sua totalidade e merece leitura atenta. Ao final, Sêneca concede também aos ateus, dizendo que mesmo quem assim pensa pode continuar a ser útil depois de morto pois somos “ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.” (CII, §30).

Imagem A Morte de Sócrates por Jacques-Louis David.


CII. Sobre as indicações de nossa imortalidade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Assim como um homem é importuno quando desperta um sonhador de seus sonhos agradáveis – pois ele está arruinando um prazer que pode ser irreal, mas, no entanto, tem a aparência da realidade –  da mesma maneira sua carta me causou ruptura. Pois me trouxe de volta abruptamente, absorvido que estava em uma meditação agradável e pronto para prosseguir se tivesse sido permitido.

2. Estava prazerosamente investigando a imortalidade da alma ou melhor, pelos deuses,  acreditando nessa doutrina! Pois eu estava dando crédito às opiniões dos grandes autores, que não só aprovam, mas prometem essa condição agradável. Eu estava me entregando a uma esperança tão nobre, pois eu já estava cansado de mim, começando a desprezar os fragmentos da minha existência aniquilada e sentindo que estava destinado a passar para a infinidade do tempo e na herança da eternidade, quando de repente fui despertado pelo recebimento de sua carta e perdi meu lindo sonho. Mas, assim que eu puder me liberar de você, eu vou tentar rememorar minha linha de pensamento e salvá-la.

3. Havia uma observação, no início da sua carta, de que eu não havia explicado todo o problema ao tentar provar uma das crenças da nossa escola, que a reputação adquirida após a morte é um bem, pois não resolvi o problema com o qual geralmente somos confrontados: “nenhum bem resulta de soluções de continuidade, mas a reputação é constituída por uma solução de continuidade.

4. O que você está perguntando, meu querido Lucílio, pertence a outro tópico do mesmo assunto e foi por isso que adiei os argumentos, não só sobre esse tópico, mas também em outros tópicos que também abordaram o mesmo fundamento. Pois, como você sabe, certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. Consequentemente, lidei com a parte essencial do assunto que tem a ver com a conduta moral[1] – ou seja, se é tolo e inútil se preocupar com o que está além do nosso último dia, ou se nossos bens morrem com a gente e não resta mais nada daquele homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa que nós não perceberemos quando ela suceder, é possível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela possa valer.

5. Todas essas coisas têm uma visão moral as conduzindo e, portanto, foram inseridas sob o tópico apropriado. Mas as observações dos dialéticos em oposição a essa ideia tiveram que ser peneiradas e portanto, foram deixadas de lado. Agora que você exige uma resposta para todas elas, eu examinarei todas as suas afirmações em bloco e depois as refutarei individualmente.

6. A menos que eu faça uma observação preliminar, será impossível entender minhas refutações. E qual é essa observação preliminar? Simplesmente isto: existem certos corpos contínuos, como um homem; existem certos corpos compostos, como navios, casas e tudo o que é o resultado da união de partes separadas em uma soma total. Existem certos outros constituídos por coisas distintas, cada membro permanecendo separado – como um exército, uma população ou um senado – pois as pessoas que constituem tais corpos estão unidas em virtude de lei ou função, mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Bem, quais outras observações preliminares ainda desejo fazer?

7. Simplesmente isso: acreditamos que nada é bom, se for composto de coisas distintas. Pois um único bem deve ser enquadrado e controlado por uma única alma e a qualidade essencial de cada bem individual deve ser única. Isso poderia ser provado quando você desejar, entretanto, mesmo assim, teve que ser posto de lado, porque nossas próprias armas estão sendo usadas contra nós.

8. Os adversários falam assim: “Você diz que nenhum bem pode ser composto de coisas que são distintas? No entanto, essa reputação da qual você fala, é simplesmente a opinião favorável dos homens de bem. Assim como a reputação não consiste em observações de uma pessoa e como uma má reputação não consiste na desaprovação de uma pessoa, tal renome não significa que apenas agradamos a uma pessoa boa. Para se constituir em renome, é necessário o acordo de muitos homens dignos e louváveis. Isso resulta da decisão de um número – em outras palavras, de pessoas que são distintas. Portanto, a reputação não é um bem.”

9. A segunda objeção diz, novamente: “a reputação é o louvor dado a um homem bom por homens de bem. Louvor significa fala: agora a fala é um enunciado com um significado particular e uma expressão, mesmo dos lábios dos homens de bem, não é um bem em si. Pois qualquer ato de um bom homem não é necessariamente bom, ele grita seus aplausos e silva sua desaprovação, mas não se chama o grito ou a vaia de bens, mesmo que sua conduta possa ser admirada e louvada – não mais do que alguém poderia aplaudir um espirro ou uma tosse. Portanto, a reputação não é um bem.”

10. “Finalmente, diga-nos se o bem pertence àquele que louva ou a quem é louvado: se você diz que o bem pertence a quem é louvado, você estaria em um caminho tolo como se dissesse que é minha a boa saúde do meu vizinho. Mas louvar homens dignos é uma ação honrosa; assim, o bem é exclusivamente do homem que faz o louvor, do homem que realiza a ação, e não de nós, que estamos sendo louvados. E, no entanto, essa é a questão em discussão, que você quer provar.

11. Devo agora responder apressadamente às distintas objeções. A primeira pergunta ainda é, se qualquer coisa boa pode consistir em coisas de distintas – e há votos emitidos nos dois lados. Mais uma vez, a reputação precisa de muitos votos? A reputação pode ser satisfeita com a decisão de um único homem de bem: é um bom homem que decide que somos homens de bem.

12. Então a réplica é: “O quê! Você definiu a reputação como a estima de um indivíduo e a má reputação como a conversa fiada rancorosa de um único homem? Glória, também, levamos a ser mais generalizada, pois exige o acordo de muitos homens.” Mas a posição dos muitos é diferente daquela de um. E por que? Porque se o bom homem pensa bem de mim, isso equivale praticamente a ser bem pensado por todos os homens bons; pois todos vão pensar o mesmo, se eles me conhecerem. O seu julgamento é semelhante e idêntico. O efeito da verdade é igual. Eles não podem discordar, o que significa que eles necessariamente manteriam a mesma visão, não podendo manter juízos diferentes.

13. “A opinião de um homem”, você diz, “não é suficiente para criar glória ou renome”. No primeiro caso, um julgamento é uma ponderação universal porque todos, se lhes fosse pedido, teriam uma única opinião; no outro caso, no entanto, homens de caráter diferente dão juízos divergentes. Você encontrará emoções desconcertantes – tudo duvidoso, inconstante, não confiável. E você pode supor que todos os homens são capazes de manter uma opinião? Até mesmo um indivíduo não mantém uma única opinião. Com o bom homem é a verdade que causa a crença e a verdade tem apenas uma função e uma semelhança; enquanto na segunda classe de que falei, as ideias com as quais eles concordam são infundadas. Além disso, aqueles que são falsos nunca são firmes: são irregulares e discordantes.

14. “Mas o louvor”, diz o objetor, “não é senão um enunciado e um enunciado não é um bem”. Quando eles dizem que o renome é o louvor concedido ao bem pelo bem, o que eles referem não é um enunciado, mas um julgamento. Pois um bom homem pode permanecer em silêncio; mas se ele decide que uma certa pessoa é digna de louvor, essa pessoa é objeto de louvor.

15. Além disso, o louvor é uma coisa, e discurso laudatório é outra. O último exige um enunciado também. Portanto, ninguém fala de “um louvor fúnebre”, mas diz “discurso laudatório” – pois sua função depende da fala. E quando dizemos que um homem é digno de louvor, asseguramos haver bondade nele, não em palavras, mas em julgamento. Portanto, a boa opinião, mesmo de alguém que em silêncio sente aprovação interior de um homem bom, é louvor.

16. Mais uma vez, como eu disse, o louvor é uma questão de alma e não de discurso; pois a fala traz o louvor que a mente concebeu e publica-o à atenção dos muitos. Pois julgar um homem digno de louvor, é louvá-lo. E quando nosso trágico poeta nos canta que é maravilhoso “ser louvado por um herói muito louvado”, ele quer dizer, “por alguém digno de louvor”. Mais uma vez, quando um bardo igualmente venerável diz: “Louvor dá vida às artes”, ele não significa dar louvor, pois isso prejudica as artes. Nada tem corrompido oratória e todos os outros estudos que dependem de ouvir tanto quanto a aprovação popular.

17. A reputação exige necessariamente palavras, mas a glória pode se contentar com os julgamentos dos homens e é suficiente sem a palavra falada. É satisfeita não só em aprovação silenciosa, mas mesmo diante de protestos abertos. Existe, na minha opinião, essa diferença entre a reputação e glória – a última depende dos julgamentos dos muitos; mas a reputação, dos julgamentos de homens de bem.

18. A réplica vem: “Mas de quem é o bem deste renome, esse louvor prestado a um homem bom por homens bons? É de quem é louvado por alguém ou de quem louva?” Dos dois, eu digo. É meu próprio bem, porque sou louvado, porque naturalmente nasço para amar todos os homens e me alegro por ter feito boas ações e me felicito por eu ter encontrado homens que expressam suas ideias de minhas virtudes com gratidão; que eles sejam gratos, é um bem para muitos, mas também é um bem para mim. Pois o meu espírito está assim ordenado, que posso considerar o bem dos outros homens como meus – em qualquer caso, aqueles de cujo bem eu sou a causa.

19. Este bem é também o bem daqueles que fazem o louvor, pois é aplicado por meio da virtude. E todo ato de virtude é um bem. Meus amigos não poderiam ter encontrado essa bênção se eu não tivesse sido um homem de estampa correta. É, portanto, uma boa pertença a ambos os lados – o que é louvado quando se merece – tão verdadeiramente quanto uma boa decisão é o bem daquele que toma a decisão e também daquele a favor de quem a decisão foi tomada. Você duvida de que a justiça seja uma benção para o seu possuidor, bem como para o homem a quem o louvor devido foi pago? Louvar o merecedor é a justiça, portanto, o bem pertence a ambos os lados.

20. Esta será uma resposta suficiente para esses comerciantes em sutilezas. Mas não deve ser nosso propósito discutir as coisas com inteligência e arrastar a filosofia de sua majestade a jogos de palavras tão insignificantes. Quão melhor é seguir a estrada aberta e direta, ao invés de planejar uma rota tortuosa que você deve retraçar com problemas infinitos! Pois tal argumentação nada mais é do que o esporte de homens que habilmente fazem malabarismos uns com os outros.

21. Diga-me quão de acordo com a natureza é permitir que a mente atinja o universo ilimitado! A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento, toda a cúpula arredondada dentro da qual a terra e o mar, dentro do qual o ar que separa o humano do divino também os une e onde todas as estrelas tomam turno em sentinela.

22. Mais uma vez, a alma não suportará uma extensão estreita da existência. “Todas as eras”, diz a alma, “são minhas, nenhuma época está fechada para grandes mentes, todo o tempo está aberto para o progresso do pensamento. Quando chegar o dia de separar o celestial de sua mistura terrena, eu vou deixar o corpo aqui onde eu o encontrei e, por minha própria vontade, me entregarei aos deuses. Agora não estou separada deles, mas sou simplesmente detida em uma prisão lenta e terrena.”

23. Estes atrasos da existência mortal são um prelúdio para a vida mais longa e melhor. Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. Um começo diferente, uma condição diferente, nos aguarda.

24. Ainda não podemos, exceto em intervalos raros, suportar a luz do céu, portanto, olhe para a frente sem temer a hora marcada, a última hora do corpo, mas não da alma. Examine tudo o que reside em você, como se fosse bagagem em um quarto de hotel: você deve viajar. A natureza deixa-lhe tão desnudo na partida quanto como na entrada.

25. Você não pode levar mais do que trouxe, além disso, você deve descartar a maior parte do que você trouxe com você para a vida: você será despojado da própria pele que o cobre, que foi sua última proteção, você será despojado da carne e perderá o sangue que circulou pelo seu corpo, você será despojado de ossos e nervos, a armação dessas partes fracas e transitórias.

26. Aquele dia que você teme como sendo o fim de todas as coisas, é o nascimento de sua eternidade. Por que postergar? Deixe de lado seu fardo, como se você não tivesse deixado previamente o corpo que era o seu esconderijo! Você se agarra ao seu fardo, você luta. No seu nascimento também foi necessário um grande esforço na parte da sua mãe para libertá-lo. Você chora e lamenta e, no entanto, esse mesmo choro aconteceu no nascimento também. Mas naquela ocasião podia ser desculpado – pois você veio ao mundo inteiramente ignorante e inexperiente. Quando você deixou a proteção calorosa e cuidadosa do útero de sua mãe, um ar mais livre passou em seu rosto, então você estremeceu com o toque de uma mão áspera e olhou com surpresa para objetos desconhecidos, ainda frágil e ignorante de todas as coisas.

27. Mas agora não é novidade ser separado daquilo que você já fez parte. Deixe seus membros já inúteis com resignação e dispense esse corpo em que você morou por tanto tempo. Será despedaçado, enterrado fora da vista e decomposto. Por que se abater? Isto é o que normalmente acontece: quando nascemos, as secundinas[2] sempre perecem. Por que amar uma coisa como se fosse sua própria posse? Era apenas a sua cobertura. Chegará o dia que irá rompê-la e ir para longe da companhia do ventre desagradável e fétido.

28. Afaste-se disso o máximo que puder e afaste-se do prazer, exceto daqueles que podem estar ligados a coisas essenciais e importantes. Afaste-se disso mesmo agora e reflita sobre algo mais nobre e mais elevado. Algum dia os segredos da natureza serão revelados a você, a névoa será removida de seus olhos e a luz brilhante fluirá em você de todos os lados. Imagine-se o quão grande é o brilho quando todas as estrelas misturam seus brilhos, nenhuma sombra perturbará o céu limpo. Toda a extensão do céu brilhará uniformemente, pois o dia e a noite são trocados apenas na atmosfera mais baixa. Então você vai dizer que você viveu na escuridão, depois de ter visto, em seu estado perfeito, a luz perfeita – aquela luz que agora você vê sombriamente com visão constrangida até o último grau. E, no entanto, tão distante quanto esteja, você já olha para ela com admiração, o que você acha que será a luz celestial quando você a vir em seu próprio âmbito?

29. Esses pensamentos não permitem que nada mesquinho se estabeleça na alma, nada vil, nada cruel. Eles sustentam que os deuses são testemunhas de tudo. Eles nos ordenam encontrar a aprovação dos deuses, nos preparar para nos juntarmos a eles em algum momento futuro e planejar a imortalidade. Aquele que apreendeu essa ideia não retrocede frente a nenhum exército atacante, não é aterrorizado pela trombeta e nem é intimidado por nenhuma ameaça.

30. Um homem que aguarda com expectativa pela morte, não sente medo. Mesmo aquele também, que acredita que a alma permanece somente enquanto for agrilhoada ao corpo, que se dispersa imediatamente após o perecimento,[3] mesmo quem assim pensa e age, pode continuar a ser útil depois de morto. Pois embora seja tirado da visão dos homens, ainda assim

a grande virtude do herói, a grande nobreza da sua raça continua a viver no nosso espírito.Multa viri virtus animo multusque recursat Gentis honos.[4]

Considere o quanto somos ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Nenhuma das cartas conservadas é dedicada à discussão deste problema.

[2] NT: Secundinas: placenta, cordão umbilical e membranas, normalmente expulsos do útero após o parto.

[3] Referência aos epicuristas. Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 101: Sobre a futilidade do planejamento prévio

Na carta 101 Sêneca fala sobre a tolice de adiar o estudo da filosofia, isto é, aprender como viver uma boa vida, e focar em negócios, com a esperança de, no futuro, estar “bem provido” para uma vida de estudos. Sêneca diz que nunca sabemos o dia de nossa morte, logo, devemos estar todos os dias preparados:

No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.” (CI, 7)

Sêneca, um dos homens mais ricos de seu tempo, faz uma observação muito correta e interessante para quem deseja enriquecer: diz que existem dois bons caminhos para a riqueza material: saber como ganhar dinheiro ou conservá-lo, “pois qualquer um desses dois pode fazer um homem rico.”

Na carta Sêneca defende que não devemos nos apegar a viva a qualquer custo. Ele dá o exemplo de Caio Mecenas, que preferia consumir-se por dor, morrer membro por membro, ao invés de expirar de uma vez por todas. Termina a carta com uma poderosa frase:

O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo.” (CI, 15)

Imagem: Virgílio, Horácio e Mecenas, por Charles François Jalabert


CI. Sobre a Futilidade do Planejamento prévio

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Todos os dias e todas as horas revelam-nos o que somos, e nos lembram com uma nova evidência de que nos esquecemos das nossas fraquezas e fragilidades; então, enquanto planejamos a eternidade, eles nos obrigam a olhar a morte sobre nossos ombros. Você me pergunta o que significa esse preâmbulo? Refere-se a Cornélio Sinésio, um equestre romano distinguido e capaz, quem você conheceu. De origem humilde, ele atingiu a grande sucesso, e o resto do caminho já se mostrava fácil diante dele. Pois é mais fácil crescer em dignidade social do que começar a ascensão.

2. E a riqueza é muito lento para chegar onde há pobreza; até que possa se fugir dela, vai hesitante, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca mais para. Sinésio já estava ao lado da riqueza, ajudado nessa direção por dois ativos muito poderosos: saber como ganhar dinheiro e como conservá-lo também, pois qualquer um desses dons poderia ter feito dele um homem rico.

3. Aqui estava uma pessoa que vivia muito simplesmente, cuidadoso com a saúde e riqueza. Ele, como de costume, me visitou no início da manhã e então passou o dia inteiro, até o anoitecer, à beira do leito de um amigo que estava seriamente e irremediavelmente doente. Depois de um jantar confortável, de repente ele foi apanhado por um agudo ataque de angina e, com a respiração firmemente bloqueada por sua garganta inchada, mal viveu até o amanhecer. Então, dentro de poucas horas depois de cumprir todos os deveres de um homem sadio e saudável, ele caiu morto!

4. Aquele que estava aventurando investimentos por terra e mar, que também entrara na vida pública e não deixara nenhum tipo de negócio sem ser testado, durante a própria realização do sucesso financeiro e durante a própria investida dos bens pecuniários aos seus cofres, foi arrebatado deste mundo!

Enxerte agora as suas peras, Meliboeus, e pode suas videiras em ordem!Insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine vites.[1]

Mas quão tolo é delimitar e fazer planos para um longa vida, quando nem sequer é proprietário do dia seguinte! Que loucura é traçar esperanças de grande alcance! Dizer: “Vou comprar e construir, emprestar a juros e receber dinheiro, ganhar títulos de honra e, então, velho e cheio de anos, vou me entregar a uma vida privada para estudos estando bem provido.

5. Acredite em mim quando digo que tudo é duvidoso, mesmo para aqueles que são prósperos. Ninguém tem o direito de desenhar para si mesmo seu futuro. Aquilo que nós seguramos desliza através de nossas mãos e a sorte nos corta exatamente na hora que estamos com estoque cheio. O tempo escoa por lei racional, mas na escuridão para nós; e o que significa para mim saber que o curso da natureza é certo, quando o meu é incerto?

6. Planejamos viagens distantes e adiamos o retorno depois de percorrer costas estrangeiras, planejamos o serviço militar e as recompensas lentas de campanhas difíceis, buscamos poder e as promoções de um cargo a outro e, ao mesmo tempo, a morte está ao nosso lado. Mas como nunca pensamos nisso, a não ser que afete ao nosso próximo, os casos de morte nos pressionam dia a dia, para permanecer em nossas mentes apenas enquanto despertam nossa surpresa.

7. No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.

8. A maior falha na vida é que está sempre imperfeita, a se completar, e que uma certa parte dela é adiada. Aquele que diariamente coloca os toques finais de sua vida nunca está com falta de tempo. E, no entanto, a partir desse desejo surge o medo e a ânsia de um futuro que destrói a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver, nossas almas perturbadas são colocadas em um estado de medo inexplicável.

9. Como, então, devemos evitar essa vacilação? Há apenas um jeito, como não há nenhuma previsão em nossa vida, se for fechada em si mesmo. Pois só está preocupado com o futuro aquele a quem o presente não é satisfatório. Mas quando eu pago à minha alma o devido, quando uma mente equilibrada sabe que um dia não difere da eternidade, seja qual for o dia ou o problema que o futuro possa trazer. Nesse caso a alma se destaca em alturas elevadas e ri sinceramente para si mesmo quando pensa na sucessão interminável dos tempos. Pois quais distúrbios podem resultar da mudança e da instabilidade da Fortuna, se se nós estivermos firmes perante a instabilidade?

10. Portanto, meu querido Lucílio, comece imediatamente a viver e conte cada dia separado como uma vida separada. Aquele que assim se preparou, aquele cuja vida cotidiana tenha sido um todo arredondado, está tranquilo em sua mente; mas aqueles que vivem só pela esperança descobrem que o futuro imediato desliza sempre de suas mãos e que a ganância toma seu lugar, e o medo da morte, uma maldição que traz maldição sobre todo o resto. Daí veio aquela oração mais degradada, na qual Mecenas não se recusa a sofrer fraqueza, deformidade e, como clímax, até mesmo a dor da crucificação apenas para que prolongasse o sopro da vida em meio a esses sofrimentos:[2]

11. Faça-me fraco na mão, fraco com pé mancando, Imponha uma corcunda inchada, afrouxe meus dentes instáveis; Enquanto exista vida, estou bem; mantenha-me indo Mesmo que eu, á dura cruz fique empaladoDebilem facito manu, debilem pede coxo, Tuber adstrue gibberum, lubricos quate dentes ; Vita dum superest, benest; hanc mihi, vel acuta Si sedeam cruce, sustine.

12. Lá está ele, orando por aquilo que, se tivesse sucedido a ele, seria a coisa mais lamentável do mundo! E buscando um adiamento do sofrimento, como se estivesse pedindo por vida! Deveria considerá-lo mais desprezível se desejasse viver até o momento da crucificação: “Não!”, Ele chora, “você pode enfraquecer meu corpo somente se deixar o sopro de vida na minha carcaça maltratada e ineficaz! Mutile-me se quiser, mas permita-me, disforme e deformado como eu estou, apenas um pouco mais de tempo no mundo! Você pode me pregar e colocar meu lugar na cruz lancinante!” Vale a pena aturar a própria ferida, e manter-se empalado sobre um pelourinho, que só pode adiar algo que é o bálsamo dos problemas, o fim da punição? Vale a pena tudo isso apenas para possuir o sopro de vida que finalmente deverá ser entregue?

13. O que você pediria para Mecenas, a não ser a indulgência dos deuses? O que ele quer dizer com versos tão efeminados e indecentes? O que ele quer dizer ao contemporizar com tal medo? O que ele quer dizer com mendigar vil à vida? Ele nunca ouviu Virgílio ler as palavras:

Diga-me, a morte é tão miserável quanto isso?Usque adeone mori miserum est ?[3]

Ele pede o clímax do sofrimento e – o que é ainda mais difícil de suportar – prolongamento e extensão do sofrimento. E o que ele ganha desse modo? Simplesmente o benefício de uma existência mais longa. Mas que tipo de vida é uma morte vagarosa?

14. Pode ser encontrado quem prefira consumir-se por dor, morrer membro por membro ou deixar a vida esvair gota por gota, ao invés de expirar de uma vez por todas? Pode alguém ser encontrado disposto a ser preso à árvore amaldiçoada,[4] há muito doente, já deformado, inchado com tumores no peito e nos ombros e respirando a vida em meio a uma agonia prolongada? Eu acho que teria muitas desculpas para morrer mesmo antes de montar a cruz! Negue, agora, se puder, que a natureza é muito generosa ao tornar a morte inevitável.

15. Muitos homens estão preparados para entrar em pechinchas ainda mais vergonhosas: trair amigos para viver mais ou voluntariamente aviltar seus filhos e, assim, aproveitar a luz do dia que é testemunha de todos os seus pecados. Devemos nos livrar desse desejo de vida e aprender que não faz diferença quando o seu sofrimento vem, porque em algum momento você é obrigado a sofrer. O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo. Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Trecho de Éclogas de Virgílio (também chamadas de Bucólicas).

[2] Horácio, seu amigo íntimo, escreveu “para animar o Macenas desanimado”; e Plínio menciona suas febres e sua insônia “perpetua febris … Eidem triennio supremo nullo horae momento contigit somnus”.

[3] Trecho de Aneida, de Virgílio.

[4] Infelix arbor, i.e. a cruz.

Carta 99: Sobre consolo a quem se encontra em luto

Na carta 99 Sêneca fala sobre a consolação estoica para aqueles que sofrem com a morte. É uma carta severa, na qual vemos que o estoicismo pode ser duro, mas oferece um caminho para o fim do luto.

Nesta carta, Sêneca é bastante firme em sua oposição ao Epicurismo, contudo quebra o mito de que o estoicismo e insensível ao sofrimento:

Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.” (XCIX, 15)

Ou seja, o estoico sente emoções e sofre por elas, apenas tenta mante-las sob controle, ao invés de ficar sob controle delas.

Imagem: Morte tocando violino, por Frans Francken.


XCIX. Sobre consolo a quem se encontra em luto

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Anexei uma cópia da carta que escrevi a Marulo[1] na ocasião da perda de seu filho em tenra idade – morte que, fiquei sabendo, ele suportou com quase nula coragem, comportando-se de forma bastante afeminada em sua dor. Nesta carta não observei a forma habitual de condolências: pois não acreditava que ele deveria ser tratado suavemente já que, na minha opinião, ele merecia críticas e não consolação. Quando um homem é atingido e está achando difícil suportar um ferimento grave, devemos fazer sua vontade por um tempo: permitamos que ele satisfaça seu pesar ou, de qualquer forma, dissipe o primeiro choque, até que a dor vá esmorecendo e perca a violência inicial.

2. Mas aqueles que adotam indulgência no sofrimento devem ser repreendidos imediatamente e devem saber que existe alguma insensatez, mesmo nas lágrimas.[2] “É consolação que você procura? Deixe-me dar-lhe uma repreensão em vez disso! Você se comporta como uma mulher na maneira em que você encara a morte do seu filho, o que faria se tivesse perdido um amigo íntimo? Um filho, um filho pequeno de futuro incerto está morto, apenas um fragmento de tempo foi perdido!

3. Nós caçamos desculpas para o sofrimento, nós até mesmo proferimos queixas injustas sobre a Fortuna, como se a Fortuna nunca nos desse motivos para reclamar! Mas eu realmente acreditava que você possuísse espírito suficiente para lidar com problemas concretos, sem contar os problemas irreais sobre os quais os homens se lamentam por força do hábito. Se você tivesse perdido um amigo (o maior golpe de todos),[3] mesmo assim você deveria tentar se regozijar por tê-lo possuído em vez de lamentar sua perda.

4. Mas muitos homens não conseguem contar quão variados foram seus ganhos, quão ótimas foram as suas alegrias. Sofrimento como o seu tem isso entre outros males: não é apenas inútil, mas ingrato. Foi tudo em vão ter tido tantos amigos? Durante tantos anos, em meio a associações tão próximas, depois de uma comunhão tão íntima de interesses pessoais, nada foi realizado? Você enterra a amizade com um amigo? E por que lamentar-se por ter perdido, se não foi útil tê-lo tido? Acredite-me, grande parte daqueles que amamos, embora o acaso tenha removido suas pessoas, ainda permanecem conosco. O passado é nosso e não há nada mais seguro para nós do que aquilo que se foi.

5. Nós somos ingratos pelos ganhos passados porque esperamos o futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não fosse ser rapidamente misturado com o passado. As pessoas estabelecem um limite estreito para suas alegrias se elas só as aproveitam no presente, tanto o futuro quanto o passado servem para nosso deleite: um pela antecipação e o outro pelas memórias, mas o primeiro é contingente e pode não acontecer, enquanto o segundo é certo. Que loucura é, portanto, perder o controle sobre o que é o mais certo de tudo? Vamos descansar contentes com os prazeres que nos foram dados a desfrutar, se no entanto, enquanto nós os desfrutamos, a alma não foi perfurada como uma peneira, apenas para perder novamente o que havia recebido.

6. Existem inúmeros casos de homens que, sem lágrimas, enterraram filhos no auge da vida – homens que voltaram da pira funerária para a câmara do Senado ou para quaisquer outros deveres oficiais e imediatamente se ocuparam de outra coisa. E com razão pois, em primeiro lugar, é inútil se afligir se não for receber ajuda da aflição. Em segundo lugar, é injusto se queixar sobre o que aconteceu com um homem, mas que está reservado a todos. Mais uma vez, é tolo lamentar a perda, quando existe um intervalo tão curto entre os perdidos e os perdedores. Portanto, devemos ser mais resignados em espírito, porque acompanharemos de perto aqueles que perdemos.

7. Observe a rapidez do Tempo – a mais rápida das coisas – considere a brevidade do curso ao longo do qual aceleramos à velocidade máxima, perceba essa multidão de humanos que se esforça para o mesmo ponto com breves intervalos entre eles – mesmo quando eles parecem mais longos, aquele que você conta como morto simplesmente se postou à frente.[4] E o que é mais irracional do que lamentar o seu antecessor, quando você mesmo deve viajar a mesma jornada?

8. Um homem lamenta um evento que ele sabe que irá acontecer? Ou, se não pensar que a morte está no futuro do homem, se enganou. Um homem lamenta um evento que admite ser inevitável? Quem se queixa da morte de alguém, está se queixando de que ele era humano. Todos estamos vinculados pelo mesmo termo: aquele que tem o privilégio de nascer, está destinado a morrer.

9. Períodos de tempo nos separam, a morte nos nivela. O período que se situa entre o nosso primeiro dia e o nosso último é inconstante e incerto: se você o contar pelos problemas, é longo até para um rapaz, se por sua velocidade, é escasso mesmo para um idoso. Tudo é instável, traiçoeiro e mais incerto do que qualquer clima. Todas as coisas são jogadas e se deslocam para os seus opostos ao comando da Fortuna, em meio a esta turbulência de assuntos mortais, nada além da morte está mais certamente reservado a qualquer um. E, no entanto, todos os homens se queixam da única coisa da qual nenhum deles é iludido.

10. “Mas ele morreu na infância”. Eu ainda não estou preparado para dizer que aquele que rapidamente chega ao fim de sua vida conseguiu o melhor da barganha, voltemos a considerar o caso daquele que atingiu a velhice. Quão exíguo é o tempo que ele tem de vantagem sobre a criança! Pondere a grande extensão do abismo do tempo e considere o universo e depois contraste nossa vida humana com o infinito, então você verá quão breve é aquilo pelo que oramos e que procuramos alongar.

11. Quanto deste tempo é desperdiçado com o choro, quanto com preocupação! Quanto com orações para a morte antes da chegada da morte, quanto com nossa saúde, quanto com nossos medos! Quanto é ocupado por nossos anos de inexperiência ou de esforço inútil! E metade de todo esse tempo é desperdiçado em dormir. Adicione, além disso, nossos problemas, nossas dores, nossos perigos e você compreenderá que, mesmo da vida mais longa, a vida real é a menor parcela.

12. No entanto, quem irá admitir algo como: “Não está em melhor condição um homem que tem permissão para voltar para casa rapidamente, cuja jornada é realizada antes que ele fique cansado”? A vida não é um bem nem um mal: é simplesmente o lugar onde o bem e o mal existem. Por isso, este menino não perdeu nada além de uma aposta onde a chance de perder era mais provável que a de ganhar. Ele poderia ter se tornado sóbrio e prudente, ele poderia, via educação cuidadosa, ter sido moldado ao melhor padrão, mas (e esse medo é mais razoável), ele poderia ter se tornado exatamente como muitos.

13. Observe os jovens da linhagem mais nobre cuja extravagância os jogou na arena[5], note aqueles homens escravos de suas paixões próprias e as de outros em luxúria mútua, cujos dias nunca passam sem embriaguez ou algum ato vergonhoso, assim será claro para você que havia mais a temer do que a esperar. Por esta razão, você não deve dar desculpas para o sofrimento ou exasperar os ligeiros revezes, indignando-se.

14. Eu não estou exortando você a fazer um esforço e se levantar a grandes alturas, pois a minha opinião sobre você não é tão baixa que me faça pensar que é necessário que invoque todos os seus poderes para enfrentar esse problema que não é dor, é uma mera picada – e é você mesmo quem está transformando isso em dor. Sem dúvida, a filosofia lhe fará bom serviço, se você puder suportar corajosamente a perda de um menino que ainda era melhor conhecido por sua babá do que por seu pai.

15. E então? Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.

16. O que então devemos fazer? Deixe-nos permitir que caiam, mas não ordenemo-las a fazê-lo, deixe-as, de acordo com a emoção, inundar os nossos olhos, mas não como a mera atuação. Deixe-nos, de fato, não adicionar nada ao sofrimento natural, nem o aumentar seguindo o exemplo dos outros. A exibição do sofrimento faz mais demandas do que o próprio sofrimento. Como poucos homens estão tristes em sua própria companhia! Eles lamentam mais alto para serem ouvidos, pessoas, que reservadas e silenciosas quando sozinhas, são induzidas a novos acessos de lágrimas quando veem outras perto delas! Nessas ocasiões elas se debatem, embora pudessem fazer isso com mais facilidade se ninguém estivesse presente para controlá-las, nessas ocasiões elas rezam pela morte, nessas ocasiões elas se revolvem em seus leitos. Mas seu sofrimento afrouxa com a saída dos espectadores.

17. Neste assunto, como em outros também, estamos cometemos a falha de nos ajustar ao padrão dos muitos e de atuamos de acordo ao que é convencional e não ao que é certo. Nós abandonamos a natureza e nos rendemos à multidão, que nunca é boa conselheira em nada e, a este respeito, como em todos os outros, é modelo de inconstância. As pessoas veem um homem que sofre seu sofrimento com bravura: o chamam de desalmado e selvagem; elas veem um homem que colapsa e se agarra aos seus mortos: o chamam de efeminado e fraco.

18. Tudo, portanto, deve ser baseado na razão. Mas nada é mais tolo do que cortejar uma reputação de tristeza e sancionar lágrimas, pois eu acredito que, em um homem sábio, algumas lágrimas caem por consentimento, outras por sua própria força. Eu vou explicar a diferença da seguinte maneira: quando a primeira notícia de alguma grave perda nos choca, quando abraçamos o corpo que em breve passará de nossos braços para as chamas funerárias, então as lágrimas são expelidas de nós pela necessidade da natureza. E a força vital, ferida pelo golpe de tristeza, sacode o corpo inteiro e também os olhos que, pressionados, fazem fluir a umidade que neles se encontra.

19. Lágrimas como essas caem por um processo próprio, processo esse involuntário, mas diferentes são as lágrimas que permitimos escapar quando nós meditamos em memória daqueles que perdemos. E há nelas uma certa tristeza quando lembramos o som de uma voz agradável, uma conversa cordial e os afazeres de outrora, em tal momento os olhos se afrouxam, por assim dizer, com alegria. A esse tipo de lágrimas nos entregamos, já o primeiro tipo nos subjuga.

20. Não há portanto, somente porque um grupo de pessoas está em sua presença ou sentado ao seu lado, nenhum motivo para você segurar ou derramar suas lágrimas, sejam elas impedidas ou derramadas, elas nunca são tão vergonhosas como quando fingidas. Deixe-as fluir naturalmente. Mas é possível que as lágrimas fluam dos olhos daqueles que estão quietos e em paz. Elas costumam fluir sem prejudicar a influência do sábio, com tanta restrição que elas não mostram nenhuma carência de sentimento ou auto respeito.

21. Podemos, asseguro-lhe, obedecer à natureza e ainda manter a nossa dignidade. Vi homens dignos de reverência, durante o enterro daqueles próximos e queridos, com semblantes sobre os quais o amor foi escrito, claro, mesmo depois que todo o aparato do luto foi removido e que não mostrou outra conduta do que aquela de verdadeira emoção. Há uma graciosidade mesmo no sofrimento. Isso deve ser cultivado pelo sábio, mesmo em lágrimas; assim como em outros assuntos também, há uma certa suficiência, é com o imprudente que tanto as dores quanto as alegrias transbordam.

22. Aceite com um espírito sereno o que é inevitável. Por acaso lhe aconteceu algo inacreditável, extraordinário? Ou que seja inédito? Quantos homens neste momento estão fazendo arranjos para funerais! Quantos estão comprando roupas de luto! Quantos estão chorando, quando você mesmo encerrou seu luto! Tão frequentemente quanto você reflete sobre a perda de seu filho, reflita também sobre o homem, que não tem nenhuma promessa segura de nada, a quem a Fortuna não acompanha inevitavelmente os confins da velhice, mas deixa-o ir apenas até qualquer ponto que julga adequado.

23. Você pode, no entanto, falar com frequência sobre os falecidos e celebrar sua memória na medida do possível. Essa memória irá retornar a você com mais frequência se você receber sua chegada sem amarguras, pois ninguém gosta de conversar com alguém que é triste e muito menos com a própria tristeza. As conversas dele, as brincadeiras de infância que fazia, se você as escutava com prazer, relembre delas frequentemente, afirme com decisão que ele poderia ter realizado todas as esperanças que você concebeu em seu espírito paterno.

24. De fato, esquecer os amados mortos, enterrar a memória junto com seus corpos, encharcá-los com lágrimas e depois deixar de pensar neles: essa é a marca de uma alma inferior à do homem. Pois é assim que os pássaros e as bestas amam seus jovens, seu afeto é rapidamente despertado e quase atinge loucura, mas esfria totalmente quando seu objeto morre. Essa qualidade não beneficia um homem de bom senso. Este deve continuar a lembrar, mas deve deixar de lamentar.

25. E, em nenhum caso, aprovo a observação de Metrodoro, de que há um certo prazer inerente à tristeza e que se deve obter esse prazer em momentos como estes. Estou citando as palavras reais de Metrodoro em ‘Cartas de Metrodoro à irmã’: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor e que é preciso captar no próprio momento”.[6]

26. Não tenho dúvidas sobre quais serão seus sentimentos nesses assuntos, pois o que é mais vil do que “perseguir” o prazer no meio do luto – sim, em luto – e mesmo entre as lágrimas de alguém perseguir o que dará prazer? Estes são os homens que nos acusam de um rigor muito grande, caluniando nossos preceitos por causa da suposta dureza – porque, dizem eles, declaramos que o sofrimento não deve ser colocado na alma, ou então deve ser descartado imediatamente. Mas qual é o mais incrível ou desumano: não sentir nenhum sofrimento pela perda de um amigo ou ir a procura do prazer no meio do sofrimento?

27. O que nós estoicos aconselhamos é honrável: quando a emoção provoca um fluxo moderado de lágrimas e, por assim dizer, deixa de efervescer, a alma não deve ser entregue ao sofrimento. Mas o que você quer dizer, Metrodoro, ao afirmar que na grande dor deveria haver uma mistura de prazer? Esse é o método doce para pacificar as crianças, essa é a maneira como acalmamos os gritos dos bebês, derramando leite em suas gargantas! Mesmo no momento em que o corpo do seu filho está na pira, ou seu amigo em seu último suspiro, você não sofrerá a suspensão do prazer, em vez de agradar seu próprio sofrimento com prazer? O que é o mais honrado:  remover o sofrimento de sua alma ou admitir o prazer até mesmo na companhia do sofrimento? Eu disse “admitir”? Não, eu quero dizer “perseguir” e também através do próprio sofrimento.

28. Metrodoro diz: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor”. Nós, estoicos, podemos dizer isso, mas você não pode. O único bem que você reconhece é o prazer e o único mal, a dor. Que relação pode haver entre um bem e um mal? Mas suponha que tal relação exista; agora, a todo tempo, deveria ser descartada? Devemos examinar o sofrimento também e ver com que elementos de deleite e prazer está rodeado?

29. Certos remédios, que são benéficos para algumas partes do corpo, não podem ser aplicados a outras partes porque a estas são, de certa forma, irritantes e impróprios. O que, em certos casos, funcionaria para um bom propósito sem qualquer prejuízo ao respeito próprio, pode tornar-se impróprio por causa da situação da ferida. Você também não ficaria envergonhado de curar a tristeza com o prazer? Não, este ponto dolorido deve ser tratado de forma mais drástica. Isto é o que você deve recomendar de preferência: que nenhuma sensação de mal pode alcançar alguém que esteja morto, pois se pode alcançá-lo, ele não está morto.

30. E eu digo que nada pode machucar aquele que é tão insignificante, pois se um homem pode ser ferido, ele está vivo. Você acha que ele está mal porque ele não existe mais ou porque ele ainda existe como alguém? E, no entanto, nenhum tormento pode vir a ele pelo fato de não existir mais, pois que sentimento pode pertencer a alguém que não existe? Nem tampouco do fato de que ele existe, pois ele escapou da maior desvantagem que a morte tem em si, ou seja, a inexistência.

31. Digamos, portanto a um homem que chora com saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o universo, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de toda a sucessão dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nada. E ainda assim, ó loucura humana, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é a existência!

32. Estas palavras que eu escrevi para você, não com a ideia de que você deva esperar de mim uma cura em uma data tão tardia – pois é claro para mim que você se contou tudo o que você vai ler na minha carta – mas com a ideia de que eu deveria repreendê-lo, mesmo pelo leve atraso durante o qual você regrediu de seu verdadeiro ser e que eu deva encorajá-lo para o futuro, despertar seu espírito contra a Fortuna e ficar atento a todos os seus golpes, não como se eles fossem possíveis, mas como se fossem inevitáveis e certos de chegar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Provavelmente Quinto Júnio Marulo que foi um senador romano da gente Júnia nomeado cônsul sufecto para o nundínio de setembro a dezembro de 62. Ver Tácito, Anais, XIV, 48.

[2] Como Lipsius assinalou, o restante da carta de Sêneca consiste na citada carta a Marulo.

[3] A visão romana difere da visão moderna, assim como esta carta é bastante mais severa do que a Carta LXIII (sobre a morte de Flaco).

[4] Linguagem quase idêntica às palavras finais da carta LXIII: “quem putamus perisse, praemissus est

[5] Na época de Nero muitos jovens de classe nobre passaram a participar dos jogos de arena e corridas de biga, seguindo o (mau) exemplo do imperador. Ver Francis Holland no livro “Sêneca, Vida e Filosofia”.

[6] Ver Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, livro X

Carta 93: Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento

Chegamos a primeira carta do volume III das Cartas de Sêneca. E começa com uma carta fantástica, uma das mais citadas e comentadas de toda obra senequiana.

Mais uma vez o tema é o medo da morte e sua irracionalidade. Começa nos alertando de que não devemos amaldiçoar os deuses e aceitar a decisão divina. Para os estoicos Deus e Natureza eram equivalentes:

você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente” (XCIII, 2)

O principal argumento de Sêneca é que devemos nos preocupar com a qualidade, não com a duração da vida. Uma vida plena é uma vida de virtude, não uma longa: “vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade(XCIII, 4)

A carta termina, como de costume, com uma analogia fantástica com gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:

Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário do que no anfiteatro?” (XCIII, 12)

Imagem: Espoliário por Juan Luna


XCIII. Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Ao ler a carta em que você estava lamentando a morte do filósofo Metronax – como se ele pudesse e de fato, devesse ter vivido mais –  senti falta do espírito de justiça que abunda em todas as suas discussões sobre homens e coisas, mas falta a você quando se aproxima de um assunto falho a todos nós. Em outras palavras, eu vi muitos que lidam justamente com seus semelhantes, mas nenhum que lida de maneira justa com os deuses. Nós criticamos todos os dias a Fortuna, dizendo: “Por que A foi levado no meio de sua carreira? Por que B não é levado? E aquele? Por que prolongar sua velhice, que é um fardo para si mesmo, bem como para outros?

2. Mas diga-me, por favor, você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente; para alcançar uma vida longa, você só precisa do destino, mas para viver corretamente você precisa da alma. Uma vida é muito longa se for uma vida plena; mas a plenitude não é alcançada até que a alma tenha fornecido a si mesmo o bem próprio, isto é, até assumir o controle sobre si mesmo.

3. Qual o benefício que este homem mais velho obtém dos oitenta anos em que passou em ociosidade? Uma pessoa como ele não viveu; ele se atrasou na vida. Nem ele morreu tarde na vida; ele simplesmente morreu por muito tempo. “Ele viveu oitenta anos?” Isso depende da data a partir da qual você considera sua morte! Seu outro amigo, no entanto, partiu na floração de sua masculinidade.

4. Mas ele cumpriu todos os deveres de um bom cidadão, um bom amigo, um bom filho; em nenhum caso, ele deixou a desejar. Sua idade pode ter sido incompleta, mas sua vida foi completa. O outro homem viveu oitenta anos? Não, ele existiu oitenta anos, a não ser que, por acaso, você quis dizer com “ele viveu” o que queremos dizer quando dizemos que uma árvore “vive”. Por favor, vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade. Deixe-nos medi-la pelo desempenho dela, não pela duração dela. Você saberia onde está a diferença entre este homem robusto que, desprezando a Fortuna, serviu através de cada batalha da vida e alcançou o Bem Supremo da vida, e aquela outra pessoa sobre cuja cabeça passaram muitos anos? O primeiro existe mesmo depois da morte dele; o último estava morto antes mesmo de morrer.

5. Devemos, portanto, louvar, e considerar em companhia do bem-aventurado, aquele homem que investiu bem sua parcela do tempo, por menor que tenha sido atribuída a ele; pois essa pessoa viu a verdadeira luz. Ela não foi um entre a multidão comum. Ela não só viveu, mas também floresceu. Às vezes, ela desfrutava de céus limpos; às vezes, como muitas vezes acontece, era apenas através das nuvens que via o resplendor da poderosa estrela[1]. Por que você pergunta: “Quanto tempo ele viveu?” Ele ainda vive! Em um passo ele atravessou para a posteridade e se entregou à guarda da memória.

6. E, no entanto, eu não negaria a mim alguns anos adicionais; embora, se o espaço da minha vida for encurtado, não direi que tenha faltado qualquer coisa que seja essencial para uma vida feliz. Pois não planejei viver até o último dia prometido pelas minhas esperanças gananciosas; não, eu olhei todos os dias como se fossem o meu último. Por que pedir a data do meu nascimento, ou se eu ainda estou inscrito na lista dos homens mais jovens[2]? O que eu tenho é meu.

7. Assim como alguém de pequena estatura pode ser um homem perfeito, da mesma forma uma vida curta pode ser uma vida perfeita. Idade se classifica entre as coisas externas. Quanto tempo eu vou existir não é minha decisão, mas quanto tempo eu vou continuar a existir no meu jeito atual está sob meu controle. Esta é a única coisa que você tem o direito de exigir de mim, – que eu deixe de medir anos sem glória, como se estivessem na escuridão, e que me dedique a viver em vez de ser carregado ao longo da vida.

8. E qual, você pergunta, é o máximo da envergadura da vida? É viver até você possuir sabedoria. Aquele que alcançou a sabedoria alcançou, não o mais longínquo, mas o mais importante objetivo. Tal pessoa pode realmente exultar com ousadia e dar graças aos deuses – sim e a si mesmo também – e ela pode considerar-se credora da natureza por ter vivido. Ela certamente terá o direito de fazê-lo, pois ela lhe retribuiu com uma vida melhor do que recebeu. Ela estabeleceu o padrão de um homem bom, mostrando a qualidade e a grandeza de um homem bom. Tivesse mais um ano adicionado, seria apenas como o passado.

9. E ainda quanto tempo devemos continuar vivendo? Tivemos a alegria de aprender a verdade sobre o universo. Sabemos de que origens a natureza surge; como ela regula o curso dos céus; por mudanças sucessivas que ela invoca o ano; como ela acabou com todas as coisas que já existiram e estabeleceu-se como o único fim de seu próprio ser. Sabemos que as estrelas se movem por sua própria direção, e que nada, exceto a terra, permanece imóvel, enquanto todos os outros corpos correm com rapidez ininterrupta[3]. Sabemos como a lua ultrapassa o sol; por que é que, o mais lento, deixa o mais rápido atrás; de que maneira ela recebe a luz, ou a perde de novo; o que traz a noite e o que traz de volta o dia. Para esse lugar você deve ir para que tenha uma visão mais próxima de todas essas coisas.

10. “E, no entanto,” diz o sábio: “Eu não partirei mais valentemente por causa dessa esperança – porque julgo que está claro diante de mim o caminho para meus próprios deuses. Certamente, ganhei a admissão à presença deles e, de fato, já estive em suas companhias, eu enviei minha alma para eles como eles já tinham enviado a deles para mim. Mas suponha que eu seja totalmente aniquilado, e que, após a morte, não subsista nada mortal, não tenho menos coragem, mesmo que quando eu parta, meu curso leve a nenhum lugar. Mas”, você diz, “ele não viveu tantos anos quanto poderia ter vivido”.

11. Existem livros que contêm poucas linhas, admiráveis e úteis, apesar do tamanho deles; e também existem os Anais de Tanúsio[4] – você sabe o volume do livro e o que os homens dizem dele. Este é o caso da longa vida de certas pessoas, um estado que se assemelha aos Anais de Tanúsio!

12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário[5] do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Isto é, o Sol.

[2] Referência ao comitia centuriata, Assembleia das centúrias, dividida em Juniores homens com idade entre 17 e 46 e Seniores com idade entre 46 e 65.

[3] A tese do geocentrismo era uma ideia contestada também na época de Sêneca como pode ser visto no seu livro Questões Naturais no livro VII em que discute o movimento dos cometas.

[4] Tanúsio Geminus foi um historiador. Chegou  a ser mencionado por Suetônio em Diuus Julius, IX. A expressão de Sêneca (“que os homens dizem dele”) é uma reminiscência de cacata carta do poema de Catulo.

[5] Espoliário na m Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.

Carta 82: Sobre o medo natural da morte

300

Após algum tempo, retomamos a programação normal, as cartas de Sêneca. Na carta 82 mais uma vez o tema é a medo da morte, usando o assunto para se aprofundar num conceito muito importante do estoicismo: o significado de “indiferente“.

A carta é interessante pois mostra a independência de Sêneca ao discordar e criticar Zenão, o fundador do estoicismo. Sêneca diz que não é papel de um filósofo discutir silogismos e dialética, mas sim criar mecanismos para nos ajudar a enfrentar ansiedades e medos:

“Mas, de minha parte, recuso-me a reduzir tais assuntos a uma questão de regras dialéticas ou às sutilezas de um sistema completamente desgastado. Fora, eu digo, com todo esse tipo de coisa que faz um homem sentir-se, quando lhe é proposta uma pergunta, que ele está cercado e forçado a admitir uma premissa, e então o faz dizer uma coisa em sua resposta quando sua verdadeira opinião é outra”. (LXXXII, 19)

A definição de Indiferentes de Sêneca é a clássica do estoicismo:

Eu classifico como “indiferente” – ou seja, nem o bem nem o mal – a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte. Nenhuma dessas coisas é intrinsecamente gloriosa; mas nada pode ser glorioso além delas. Pois não é a pobreza que louvamos, é o homem a quem a pobreza não pode humilhar ou dobrar. (…) É a maldade ou a virtude que concede o nome de bem ou mal. Um objeto não é por sua própria essência nem quente nem frio; ele é aquecido quando jogado em um forno, e resfriado quando colocado em água”. (LXXXII, 10-11;14)

Contudo, Sêneca diz que chamar a morte de indiferente é “forçar a barra” e que as pessoas dificilmente concordariam com isso. Portanto, embora a morte seja algo indiferente, não é, algo que seja facilmente ignorado, pois:

“Não é natural que um homem proceda de bom grado a um destino que acredita ser ruim; ele irá lentamente e com relutância. Mas nada glorioso pode resultar da relutância e covardia; a virtude não faz nada sob compulsão”. (LXXXII, 17)

Sêneca conclui a carta citando os trezentos de Leônidas e os Fábios, exemplos de comandantes que conduziram seus exércitos para a morte certa pois era o que deveria ser feito.


Imagem cena do filme 300.

Iria usar a pintura clássica de Leônidas nas Termópilas por Jacques Louis David… mas por algum motivo, esses guerreiros não me convencem.


LXXXII. Sobre o medo natural da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Já deixei de estar ansioso por você. “Quem, então, dos deuses”, você pergunta, “você encontrou um fiador?” Um deus, deixe-me dizer-lhe, que não engana ninguém, – uma alma em amor com o que é reto e bom. A melhor parte de si mesmo está em terreno seguro. A fortuna pode infligir dano a você; o que é mais pertinente é que não tenho medo de que você cause dano a si mesmo. Proceda como você começou, e resolva-se neste modo de vida, não com luxo, mas com calma.

2. Prefiro estar em apuros ao invés de em luxo; e você deve interpretar melhor o termo “em apuros”, como o uso popular costuma interpretá-lo: viver uma vida “dura”, “áspera”, “cansativa”. Nós costumamos ouvir a vida de certos homens enaltecidas dessa forma, quando eles são objetos de impopularidade: “Fulano vive luxuosamente”; mas com isso eles querem dizer: “Ele é amolecido pelo luxo.” Pois a alma é efeminada gradualmente e enfraquecida até corresponder ao sossego e preguiça em que se encontra. Eis que não é melhor para alguém que é mesmo um homem se endurecer, ter ânimo vigoroso? Em seguida, estes mesmos fanfarrões temem que o que fizeram de suas próprias vidas. Há muita diferença entre estar ocioso e estar enterrado!

3. “Mas”, você diz, “não é melhor até mesmo estar ocioso do que girar nesses redemoinhos de distração empresarial?” Ambos os extremos devem ser depreciados – tanto a tensão e lassidão. Considero que aquele que está deitado em um leito perfumado não é menos morto do que aquele que é arrastado pela forca do carrasco. Ociosidade sem estudo é a morte; é um túmulo para o homem vivo.

4. Qual é a vantagem da aposentadoria? Como se as verdadeiras causas de nossas ansiedades não nos seguissem através dos mares! Que esconderijo existe, onde o medo da morte não possa entrar? Que covil pacífico existe, tão fortificado e até agora seguro que a dor não o encha de medo? Onde quer que você se esconda, os males humanos farão um alvoroço ao redor. Há muitas coisas externas que nos cercam, para nos enganar ou pesar sobre nós; há muitas coisas dentro das quais, mesmo em meio à solidão, se preocupam e fermentam.

5. Portanto, envolva-se com a filosofia, uma muralha inexpugnável. Embora seja assaltada por muitos mecanismos, a Fortuna não pode encontrar passagem nela. A alma permanece em terreno inatacável, quando abandona as coisas externas; é independente em sua própria fortaleza; e cada arma que é atirada fica aquém do alvo. A fortuna não tem o longo alcance com que creditamos a ela; ela não pode atingir ninguém a não ser aquele que se apega a ela.

6. Vamos então recuar dela o mais que pudermos. Isso só será possível para nós por via do autoconhecimento e da natureza[1]. A alma deve saber para onde vai e de onde veio, o que é bom para ela e o que é mau, o que procurar e o que evitar, e o que a razão distingue entre o que é desejável e indesejável e, assim, domina a loucura de nossos desejos e acalma a violência de nossos medos.

7. Alguns homens se lisonjeiam de terem controlado esses males sozinhos, mesmo sem o auxílio da filosofia; mas quando algum acidente os tira da guarda, uma confissão tardia de erro é arrancada deles. Suas palavras atrevidas perecem de seus lábios quando o torturador lhes ordena que estendam suas mãos, e quando a morte se aproxima! Poderia dizer a esse homem: “Era fácil para você desafiar males que não estavam próximos, mas aqui vem a dor, que você declarou que poderia suportar, aqui vem a morte, contra a qual você se gabou! O chicote estala, a espada cintila:

Ah, mostra agora, Eneias, a sua coragem, a sua energia!”Nunc anirais opus, Aenea, nunc pectore firmo.[2]

8. Esta força de coração, no entanto, virá de estudo constante, desde que você pratique, não com a língua, mas com a alma, e desde que você se prepare para enfrentar a morte. Para se capacitar para encontrar a morte, você não pode esperar nenhum incentivo ou elogio daqueles que tentam fazer você acreditar, por meio de sua lógica minuciosa, que a morte não é nenhum mal. Pois eu tenho prazer, ó excelente Lucílio, em zombar dos absurdos dos gregos, dos quais, para minha contínua surpresa, ainda não consegui me livrar.

9. Nosso mestre Zenão usa um silogismo como este: “Nenhum mal é glorioso, mas a morte é gloriosa, portanto a morte não é mal[3]“. Uma cura, Zenão! Fiquei livre do medo; doravante, não hesitarei em pôr meu pescoço sobre o patíbulo. Você não vai pronunciar palavras mais severas em vez de despertar um moribundo para o riso? De fato, Lucílio, eu não poderia facilmente dizer-lhe se aquele que pensa que esta removendo o medo da morte por estabelecer este silogismo é o mais tolo, ou aquele que tenta refutá-lo, como se tivesse algo a ver com o assunto!

10. Pois o próprio contestante propôs um contra silogismo, baseado na proposição de que consideramos a morte como “indiferente” – uma das coisas que os gregos chamam de “Adiáfora[4]”. “Nada”, diz ele, “que é indiferente pode ser glorioso, a morte é gloriosa, portanto a morte não é indiferente”. Você compreende a falácia complicada que está contida neste silogismo. – a mera morte não é, de fato, gloriosa; Mas uma morte corajosa é gloriosa. E quando você diz: “Nada que seja indiferente é glorioso”, eu te concedo isso, e declaro que nada é glorioso exceto quando trata de coisas indiferentes. Eu classifico como “indiferente” – ou seja, nem o bem nem o mal – a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte.

11. Nenhuma dessas coisas é intrinsecamente gloriosa; mas nada pode ser glorioso além delas. Pois não é a pobreza que louvamos, é o homem a quem a pobreza não pode humilhar ou dobrar. Nem é o exílio que louvamos, é o homem que se retira para o exílio no espírito em que teria enviado outro para o exílio[5]. Não é a dor que louvamos, é o homem a quem a dor não coagiu. Ninguém elogia a morte em si, mas o homem cuja alma a morte tira antes que possa amaldiçoa-la.

12. Todas estas coisas não são em si nem honradas nem gloriosas; mas qualquer uma delas que a virtude tem visitado e tocado é feita honrada e gloriosa pela virtude; elas se limitam ao meio, e a questão decisiva é apenas se a maldade ou a virtude tem sobrepujado sobre elas. Por exemplo, a morte que no caso de Catão é gloriosa, no caso de Brutus[6] é vil e vergonhosa. Pois este Brutus, condenado à morte, estava tentando obter protelação; retirou-se um instante para se aliviar; quando convocado para morrer e ordenado a desnudar sua garganta, ele exclamou: “Vou mostrar a minha garganta, se apenas eu puder viver!” Que loucura é fugir, quando é impossível voltar atrás! “Vou desnudar minha garganta, se eu puder viver!” Ele chegou muito perto de dizer também: “mesmo sob Antônio!” Este sujeito merecia, de fato, ser condenado à vida!

13. Mas, como eu comentava, você vê que a morte em si não é nem um mal nem um bem; Catão experimentou a morte com a maior honra, Brutus do modo mais indigno. Tudo, se você adicionar virtude, assume uma glória que não possuía antes. Falamos de um quarto muito claro, mesmo que o mesmo quarto seja completamente escuro durante a noite.

14. É o dia que o enche de luz, e a noite que rouba a luz; assim é com as coisas que chamamos de indiferentes ou “intermediárias”, como a riqueza, a força, a beleza, os títulos, a realeza e os seus opostos, a morte, o exílio, a má saúde, a dor e todos esses males, medos que nos perturbam em maior ou menor grau; é a maldade ou a virtude que concede o nome de bem ou mal. Um objeto não é por sua própria essência nem quente nem frio; ele é aquecido quando jogado em um forno, e resfriado quando colocado em água. A morte é honrosa quando relacionada com aquilo que é honroso; como honroso quero dizer virtude e uma alma que despreze as piores dificuldades.

15. Além disso, há grandes distinções entre essas qualidades que chamamos de “medianas”. Por exemplo, a morte não é tão indiferente quanto a questão de saber se os cabelos devem ser usados lisos ou cacheados. A morte pertence àquelas coisas que não são realmente más, mas ainda têm nelas uma aparência de mal; pois há arraigado em nós o amor próprio, o desejo de existência e autopreservação, e também a aversão pela extinção, porque a morte parece roubar-nos de muitos bens e nos retirar da abundância a que nos acostumamos. E há outro elemento que nos distingue da morte, já estamos familiarizados com o presente, mas ignoramos o futuro em que nos transferiremos, e nos afastamos do desconhecido. Além disso, é natural temer o mundo das sombras, onde a morte supostamente nos conduz.

16. Portanto, embora a morte seja algo indiferente, não é, no entanto, uma coisa que possamos facilmente ignorar. A alma deve ser afiada pela longa prática, para que possa aprender a suportar a visão e a aproximação da morte. A morte deve ser desprezada mais do que costuma ser desprezada. Porque acreditamos em muitas das histórias sobre a morte. Muitos poetas se esforçaram para aumentar sua má reputação; eles retratam a prisão no mundo inferior e a terra oprimida pela noite eterna, onde

o gigantesco porteiro do Orca, estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roídas, assusta com o seu ladrar incessante as almas exangues!”Ingens ianitor Orci Ossa super recubans antro semesa cruento, Aeternum latrans exsangues terreat umbras.[7]

Mesmo se você possa ganhar o seu ponto e provar que estas são meras histórias[8] e que nada deve ser temido pelos mortos, outro medo se apodera de você. Pois o medo de ir ao mundo subterrâneo é igualado pelo medo de não ir a lugar algum.

17. Em face dessas noções, que a opinião duradoura tem alimentado em nossos ouvidos, como pode a corajosa resistência sobre morte ser algo mais que glorioso e digno de se classificar entre as maiores realizações da mente humana? Pois a mente nunca se elevará à virtude se acreditar que a morte é um mal; mas ela se elevará se considerar que a morte é uma questão indiferente. Não é natural que um homem proceda de bom grado a um destino que acredita ser ruim; ele irá lentamente e com relutância. Mas nada glorioso pode resultar da relutância e covardia; a virtude não faz nada sob compulsão.

18. Além disso, nenhum ato que um homem faz é honroso, a menos que tenha se dedicado a ele e atendido a ele com todo o seu coração, rebelando contra ele com nenhuma porção de seu ser. Quando, no entanto, um homem afronta um mal, seja pelo medo de males piores, seja na esperança de bens cujo alcance é suficiente para poder engolir o único mal que ele deve suportar – nesse caso o julgamento do agente é puxado em duas direções. Por um lado, está o motivo que o obriga a realizar seu propósito; por outro, o motivo que o restringe e o faz fugir de algo que despertou sua apreensão ou o levou ao perigo. Por isso, ele está rasgado em diferentes direções; e se isso acontecer, a glória de seu ato se foi. Pois a virtude realiza seus planos somente quando o espírito está em harmonia consigo mesmo, sem nenhum elemento de medo em qualquer de suas ações.

Não ceda ao mal, mas ainda valente vá, onde tua fortuna permitir.Tu ne cede malis, sed contra audentior ito Qua tua te fortuna sinet.[9]

19. Você não pode “ainda valente ir“, se está convencido de que essas coisas são os males reais. Arranque esta ideia de sua alma; caso contrário, suas apreensões permanecerão indecisas e, assim, restringirão o impulso à ação. Você será empurrado para aquilo para o qual deveria avançar como um soldado. Aqueles da nossa escola, é verdade, pensam que o silogismo de Zenão está correto, mas que o segundo que mencionei, que é contrario ao dele, é enganoso e errado. Mas, de minha parte, recuso-me a reduzir tais assuntos a uma questão de regras dialéticas ou às sutilezas de um sistema completamente desgastado. Fora, eu digo, com todo esse tipo de coisa que faz um homem sentir-se, quando lhe é proposta uma pergunta, que ele está cercado e forçado a admitir uma premissa, e então o faz dizer uma coisa em sua resposta quando sua verdadeira opinião é outra. Quando a verdade está em jogo, devemos agir com mais franqueza; e quando o medo deve ser combatido, devemos agir com mais coragem.

20. Essas questões, que os sofistas envolvem em sutilezas, prefiro resolver e pesar racionalmente, com o objetivo de conquistar a convicção e não de forçar o julgamento. Quando um general está prestes a levar ao combate um exército preparado para encontrar a morte por suas esposas e filhos, como ele os exorta à batalha? Lembro-o dos Fábios[10], que assumiram por um único clã uma guerra que dizia respeito a todo o Estado. Eu aponto os espartanos em guarda no próprio desfiladeiro das Termópilas![11] Eles não têm esperança de vitória, nenhuma esperança de retornar. O lugar onde eles estão será o seu túmulo.

21. Em que palavras você encoraja-os a trancar o caminho com seus corpos e assumir sobre si a ruína de toda a sua tribo, e recuar da vida em vez de seu posto? Poderia dizer: “O mal não é glorioso, mas a morte é gloriosa, por isso a morte não é um mal?” Que discurso persuasivo! Depois de tais palavras, quem hesitaria em se jogar sobre as lanças serradas dos inimigos e morrer aos seus pés? Mas pegue Leônidas: quão bravamente ele discursou aos seus homens! Ele disse: “Companheiros, vamos ao nosso café da manhã, sabendo que vamos jantar no Hades[12]!” A comida destes homens não lhes pareceu amargas em suas bocas, ou grudou lhes em suas gargantas, ou escorregou de seus dedos; ansiosamente eles aceitaram o convite para o café da manhã, e para jantar também!

22. Pense também no famoso general romano[13]; seus soldados haviam sido enviados para ocupar uma posição e, quando estavam prestes a atravessar um enorme exército do inimigo, dirigiu-se a eles com as palavras: Vocês devem ir agora, companheiros soldados, para o outro lugar, de onde não há “obrigação” sobre o seu retorno! Você vê, então, como a virtude é direta e peremptória; mas qual homem sobre a terra poderia com sua lógica enganosa tornar mais corajoso ou mais ereto? Em vez disso, quebra o espírito, que nunca deve ser forçado a lidar com pequenos e espinhosos problemas quando algum grande trabalho está sendo planejado.

23. Não são os trezentos, é toda a humanidade que deve ser aliviada do medo da morte. Mas como você pode provar a todos aqueles homens que a morte não é nenhum mal? Como você pode superar as noções de toda a nossa vida passada, – noções com as quais somos tingidos desde nossa infância? Que socorro você pode descobrir para o desespero do homem? O que você pode dizer que fará com que os homens se atirem, ardentes em zelo, no meio do perigo? Por qual discurso persuasivo você pode desviar esse sentimento universal de medo, por qual força de inteligência pode desviar a convicção da raça humana que se opõe firmemente a você? Você propõe construir palavras de ordem para mim, ou encadear silogismos mesquinhos? É preciso grandes armas para derrubar grandes monstros.

24. Você se lembra da serpente feroz na África, mais funestra para as legiões romanas do que a própria guerra, e atacada em vão por flechas e pedras; não podia ser ferida mesmo por Apolo Pítio, já que seu tamanho enorme, e a tenacidade com que combinava com sua massa corporal, faziam lanças, ou qualquer arma usada pela mão do homem, resvalar para fora. Foi finalmente destruída por rochas iguais em tamanho a mós[14]. Você está, então, usando armas insignificantes como a sua mesmo contra a morte? Você pode impedir o ataque de um leão por uma sovela[15]? Seus argumentos são realmente afiados; mas não há nada mais afiado do que uma haste de trigo. E certos argumentos são tornados inúteis e ineficazes por sua própria sutileza.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sobre a importância do conhecimento da natureza para o autoconhecimento veja o prefácio das Naturales Quaestiones que Sêneca dedicou ao seu amigo Lucílio.

[2] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[3] Veja Diógenes Laércio, Livro VII, §40.

[4] Adiáfora (em grego antigo: ἀδιάφορα adiaforon) é uma palavra de uso polissêmico, tendo sido utilizada primeiramente pelos estoicos, como algo que não era nem obrigatório, nem proibido. Em outros contextos, possui também um sentido de “insignificante”. Sendo assim, são classificados adiáforos os assuntos que não alteram, nem para mais, nem para menos a essência de algo.

[5] Mais uma vez, o célebre exemplo de Rutílio.

[6] Presumivelmente, D. Junius Brutus, que finalmente incorreu a inimizade de Octavio e Antônio. Ele foi vergonhosamente morto por um Gaulês enquanto fugia para se juntar M. Brutus na Macedônia.

[7] Trecho invertido de Eneida, de Virgílio. Sêneca citava de cor, daí a falha. – O “porteiro do Orco” é

Cérbero, o cão infernal de três cabeças.

[8] Também em As Troianas, tragédia escrita por Sêneca, ele chama às tradicionais descrições do mundo infernal de “ocos boatos, palavras sem sentido, fábulas semelhantes a pesadelos”. Mostrando o completo o acordo entre estoicos e epicuristas neste ponto.

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio. VI, 95-6

[10] Os Fábios eram os membros do clã Fábia (em latim: gens Fabia; pl. Fabii), uma das mais antigas gentes patrícias da Roma Antiga. Tiveram um papel muito importante logo depois da fundação da República Romana. A casa dos Fábios derivou seu maior prestígio por sua coragem patriótica pelo trágico destino de 306 de seus membros na Batalha do Crêmera, em 477 a.C..

[11] A Batalha das Termópilas foi travada no contexto da Segunda Guerra Médica entre uma aliança de pólis gregas liderados pelo rei de Esparta Leônidas I e o Império Aquemênida de Xerxes I. A batalha durou três dias e se desenrolou no desfiladeiro das Termópilas em agosto ou setembro de 480 a.C.

[12] Hades na mitologia grega, é o deus do mundo inferior e dos mortos. Seu nome era usado frequentemente para designar tanto o deus quanto o reino que governa, nos subterrâneos da Terra.

[13] Calpúrnio, na Sicília, durante a primeira guerra púnica.

[14] Mó (do latim mola) é cada uma do par de pedras duras, redondas e planas com as quais, nos moinhos, se trituram grãos.

[15] Sovela é uma ferramenta utilizada em curtumes e marcenarias que é usada para fazer um furo no couro.