Carta 24: Sobre o desprezo pela morte

A carta aborda o medo da morte.  É um grande auxilio para as pessoas que precisam fazer o que deve ser feito, mesmo sob risco pessoal. Sêneca foi rico e poderoso, agiu como primeiro ministro de Roma nos 5 primeiros anos do reinado de Nero.   Também passou por muitos riscos e sofrimento.  Foi condenado a morte por Calígula, escapando por ajuda de amigos e ficou 8 anos exilado por determinação de Cláudio.  No fim foi condenado a cometer suicídio por Nero.

Sêneca aponta algo paradoxal no início de sua carta: Sêneca: “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro“(XXIV, §1)

Mas o futuro nunca chega e, portanto, você nunca pode ser totalmente infeliz.  Não devemos nos aborrecer com problemas futuros, tornando-os um problema do presente. Não se preocupe com as coisas antes do tempo.

“Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! ‘Eu morrerei’, você diz; você queria dizer: ‘Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte'”(XXIV, §17).


XXIV. Sobre o desprezo pela morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você escreve-me que está ansioso pelo resultado de um processo judicial, com o qual um oponente colérico está lhe ameaçando e você espera que eu lhe aconselhe a vislumbrar um desenlace feliz e a descansar em meio aos encantos da esperança lisonjeira. Por que seria necessário conjurar problemas, que devem ser resolvidos de uma vez tão logo que cheguem, ou antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro.

2. Mas conduzi-lo-ei à paz de espírito por uma outra rota: se você quer desencorajar toda a preocupação, suponha que o que você teme que poder acontecer certamente acontecerá, qualquer que seja o problema, então meça-o em sua própria mente e estime a quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é insignificante ou de curta duração.

3. E você não precisa gastar muito tempo em coletar ilustrações que o fortalecerão, cada época as produziu com abundância. Deixe seus pensamentos viajarem em qualquer época da história romana ou estrangeira e haverá múltiplos exemplos notáveis de feitos heroicos ou de intensa serenidade filosófica. Se perder este julgamento, pode acontecer algo mais grave do que você ser enviado ao exílio ou levado à prisão? Existe um pior destino que qualquer homem possa temer do que ser torturado pelo fogo ou sofrer uma morte violenta? Nomeie essas punições uma a uma e mencione os homens que as desprezaram, não é preciso sair à caça deles, é simplesmente uma questão de listá-los.

4. A sentença de condenação foi suportada por Rutílio102 como se a injustiça da decisão fosse a única coisa que o aborrecesse. O exílio foi suportado por Metelo103 com coragem, por Rutílio até mesmo com alegria, pois o primeiro só consentiu em voltar a Roma porque seu país o chamava, este se recusou a voltar quando Sula o convocou e ninguém naqueles dias ousava dizer não a Sula! Sócrates na prisão discursou e recusou-se a fugir quando certas pessoas lhe deram a oportunidade. Ele permaneceu lá, a fim de libertar a humanidade do medo das duas coisas mais graves: a morte e prisão.

5. Múcio104 colocou a mão no fogo. É doloroso ser queimado, mas quão mais doloroso é infligir tal sofrimento a si mesmo! Aqui estava um homem sem instrução filosófica, não preparado para enfrentar a morte e a dor por qualquer palavra de sabedoria e, equipado apenas com a coragem de um soldado, se puniu por sua ousadia infrutífera. Ele ficou de pé e observou sua própria mão direita caindo aos poucos sobre o braseiro do inimigo, nem retirou o membro dissolvente, com os seus ossos descobertos, até que seu inimigo removeu o fogo. Ele poderia ter conseguido algo mais bem-sucedido naquela batalha, mas nunca algo mais corajoso. Veja quão mais corajoso é um homem valente ao se assenhorar do perigo do que um homem cruel é para infringi-lo: Porsena estava mais pronto para perdoar Múcio por querer matá-lo do que Múcio para se perdoar por não ter matado Porsena!

6. “Oh”, diz você, “essas histórias foram repetidas à exaustão em todas as escolas, muito em breve, quando você chegar ao tema ‘Desprezo pela Morte’, você vai me falar sobre Catão”. Mas por que não lhe contar sobre Catão, como ele leu o livro de Platão naquela última noite gloriosa, com uma espada pousada sob o travesseiro? Ele tinha provido essas duas condições para seus últimos momentos, primeiro, que ele poderia ter a vontade de morrer, e segundo, que ele poderia ter os meios. Então ele regularizou seus negócios, assim como se pode ordenar o que está arruinado e perto de seu fim. Pensou que deveria fazer para que ninguém tivesse o poder de matá-lo ou a possibilidade de salvá-lo.

7. Desembainhando a espada, que tinha mantido sem mancha mesmo após todo derramamento de sangue, ele gritou: “Fortuna, você não conseguiu nada, resistindo a todos meus esforços. Eu tenho lutado até agora pela liberdade do meu país e não por mim mesmo, não me esforcei tão obstinadamente para ser livre, mas apenas para viver entre os livres. Agora, já que os assuntos da humanidade estão além da esperança, que Catão seja retirado para a segurança.

8. Assim dizendo, ele infligiu uma ferida mortal sobre seu corpo. Depois que os médicos o cauterizaram, Catão tinha menos sangue e menos forças, mas não menos coragem, enfurecido agora não só contra César, mas também consigo mesmo, reuniu suas mãos desarmadas contra sua ferida e expulsou, em vez de liberar, aquela nobre alma que tinha sido tão desafiadora de todo poder mundano.

9. Eu não estou agora a amontoar estas ilustrações com o propósito de exercitar seu espírito, mas com o propósito de encorajá-lo a enfrentar o que é considerado ser o mais terrível. E vou encorajá-lo com mais facilidade, mostrando que não só homens resolutos desprezaram aquele momento em que a alma expira por último, mas que certas pessoas, que eram covardes em outros aspectos, se igualaram à coragem dos mais corajosos. Tomemos, por exemplo, Cipião105, o sogro de Cneu Pompeu:106 ele foi atirado sobre a costa africana por um vento de proa e viu seu navio no poder do inimigo. Ele, portanto, perfurou seu corpo com uma espada e quando perguntaram onde estava o comandante, ele respondeu: “Tudo está bem com o comandante”(Imperator se bene habet).

10. Estas palavras o elevaram ao nível de seus antepassados e não macularam a glória que o destino deu aos Cipiões na África. Foi uma grande ação conquistar Cartago, mas uma ação maior vencer a morte. “Tudo está bem com o comandante!” que forma de morrer haveria mais digna de um general e, especialmente, de um general das tropas de Catão?

11. Não remetê-lo-ei à história, nem colecionarei exemplos daqueles homens que ao longo dos séculos desprezaram a morte, pois são muitos. Considere essa nossa época, onde a prostração e o excesso de refinamento provocam queixas. Os exemplos incluirão homens de toda categoria, de toda Fortuna na vida, e de todas as épocas, que interromperam suas desgraças com a morte. Acredite em mim, Lucílio, a morte é tão pouco a temer que através de seus bons ofícios nada é temível.

12. Portanto, quando seu inimigo ameaçar, ouça despreocupadamente. Embora sua consciência o faça confiante, já que muitas coisas estão fora de seu controle, ambos esperam o que é absolutamente justo e se preparam contra o que é totalmente injusto. Lembre-se, no entanto, antes de tudo, de despir as coisas de tudo o que perturba e confunde e ver o que cada uma é no fundo, então você compreenderá que elas não contêm nada temível, com exceção do medo em si.

13. O que você vê acontecendo com meninos acontece também a nós mesmos que somos apenas meninos ligeiramente maiores: quando aqueles que eles amam, com quem eles se associam diariamente, com quem eles brincam, aparecem com máscaras, os meninos ficam assustados sem necessidade. Devemos tirar a máscara, não só dos homens, mas das coisas e restaurar a cada objeto seu próprio aspecto.

14. Por que são levantadas diante dos meus olhos espadas, fogueiras e uma multidão de verdugos que andam furiosos em torno de mim? Remova toda essa vã demonstração por trás da qual você se esconde e se engana! Não é senão a morte, a qual ontem mesmo um servo meu desprezou e afrontou sem temor! Para que toda essa grande ostentação, o chicote e o pelourinho? Por que preparam esses instrumentos de tortura, um para cada parte do corpo e todas essas outras máquinas inumeráveis para rasgar um homem um bocado de cada vez? Fora com todas essas coisas, que nos deixa entorpecidos de terror! E você, silencie os gemidos e ignore os gritos amargos da vítima que está na roda de tortura, pois não é outra coisa senão a dor, desprezada por aquele desgraçado atormentado pela gota, tolerada por um dispéptico, suportada corajosamente pela mulher em trabalho de parto. Menospreze você tal ofício! Se for possível suportar, é uma dor leve, se não, será uma dor breve!

15. Reflita sobre estas palavras que muitas vezes você ouviu e frequentemente proferiu. Além disso, prove pelo resultado se o que você ouviu e proferiu é verdade. Pois há uma acusação muito vergonhosa muitas vezes trazida contra a nossa escola: que lidamos com as palavras e não com as ações da filosofia. O que, você só neste momento aprende que a morte está pendente sobre sua cabeça, só neste momento de dor? Você nasceu para esses riscos. Pensemos em tudo o que pode acontecer como algo que acontecerá.

16. Eu sei que você realmente fez o que eu aconselho a fazer, eu agora lhe advirto que não afogue a sua alma nestas suas pequenas angústias. Se você fizer isso, a alma será entorpecida e terá muito pouco vigor disponível quando chegar a hora de levantar-se. Afaste seu pensamento de seu caso para o caso dos homens em geral. Diga a si mesmo que nossos pequenos corpos são mortais e frágeis. A dor pode alcançá-los de outras formas do que pelo poder do mais forte. Nossos próprios prazeres tornam-se tormentos. Banquetes trazem indigestão, bacanais trazem paralisia dos músculos e marasmo, hábitos libidinosos afetam os pés, as mãos e cada articulação do corpo.

17. Eu posso me tornar um homem pobre, eu serei então um entre muitos. Posso ser exilado, considerar-me-ei então nascido no lugar para o qual fui enviado. Eles podem me colocar em correntes. E então? Estou livre de obrigações agora? Contemple este fardo obstrutivo que é um corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! “Eu morrerei”, você diz. Você quer dizer: “Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte”.

18. Não sou tão tolo para repetir neste momento os argumentos que Epicuro lançava e dizer que os terrores deste mundo são inúteis, que Íxion107 não gira em torno de sua roda, que Sísifo108 não arca com o peso de sua pedra, que as entranhas de um homem não podem ser restauradas e devoradas todos os dias. Ninguém é tão infantil como para temer Cérbero,109 ou as sombras, ou o traje espectral daqueles que são unidos por nada senão por seus ossos expostos. A morte nos aniquila ou nos desnuda. Se nós somos liberados então, lá permanece a melhor parte, depois que a tormenta é retirada, se somos aniquilados, nada permanece, tanto o que é bom quanto o que é mau são igualmente removidos.

19. Permita-me neste momento citar um versículo seu, primeiro insinuando que, quando você o escreveu, você quis dizer isso para si mesmo, não menos do que para os outros. É ignóbil dizer uma coisa e acreditar em outra e quão mais ignóbil é escrever uma coisa e acreditar em outra! Lembro-me de um dia que você estava lidando com o conhecido, que não caímos mortos de repente, mas que avançamos para a morte em passos lentos, morremos todos os dias.

20. Porque cada dia um pouco de nossa vida nos é tirada, mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. Contando até ontem, todo o tempo passado é tempo perdido. O próprio dia que passamos agora é compartilhado entre nós e a morte. Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu, da mesma forma, a hora final em que deixamos de existir não provoca por si só a morte, ela apenas completa o processo de morte. Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.

21. Ao descrever essa situação, você disse em sua eloquência costumeira, pois você é sempre impressionante mas nunca tão cáustico como quando está colocando a verdade em palavras apropriadas: “a morte vem gradualmente, a que nos leva é a morte última!” . Eu prefiro que você leia suas próprias palavras em vez de minha carta, pois então ficará claro para você que esta morte, da qual temos medo, é a última, mas não a única morte.

22. Vejo o que você está procurando, você está perguntando o que eu empacotei em minha carta, qual ditado estimulante de algum mestre, qual preceito útil. Assim, vou enviar-lhe algo que trata deste assunto em discussão. Epicuro censura aqueles que desejam, tanto quanto aqueles que se esquivam da morte: “É absurdo, diz ele, correr para a morte porque você está cansado da vida, quando é a sua maneira de viver que o fez correr para morte.

23. E em outra passagem: “O que é tão absurdo quanto buscar a morte, quando é por medo da morte que você roubou a paz da sua vida?” E você pode acrescentar uma terceira declaração do mesmo cunho: “Os homens são tão irrefletidos, não, tão loucos, que alguns, por medo da morte, se obrigam a morrer”.110

24. Qualquer dessas ideias que você ponderar, irá tonificar sua mente para a resistência tanto à morte quanto à vida. Pois precisamos ser admoestados e fortalecidos em ambos os sentidos, não amar ou odiar a vida em demasia. Mesmo quando a razão nos aconselha a acabar com ela, tal impulso não deve ser adotado sem reflexão ou precipitadamente.

25. O homem sóbrio e sábio não deve bater em retirada da vida, ele deve fazer uma saída conveniente. E acima de tudo, ele deve evitar a fraqueza que tomou posse de tantos, o desejo da morte. Pois assim como há uma tendência irrefletida da mente para com outras coisas, assim, meu caro Lucílio, há uma tendência irrefletida para a morte. Isso muitas vezes se apodera dos homens mais nobres e espirituosos, assim como dos covardes e dos abjetos. Os primeiros desprezam a vida, os últimos acham-na fastidiosa e não lhe suportam o peso.

26. Outros também são movidos por uma saciedade de fazer e ver as mesmas coisas e não tanto por um ódio à vida como por estarem enfastiados com ela. Deslizamos para essa condição, enquanto a própria filosofia nos empurra, e dizemos: “Quanto tempo devo suportar as mesmas coisas? Eu continuarei a acordar e dormir, estar com fome e ser saciado, ter calafrios e transpirar? Não há fim para nada, todas as coisas estão ligadas em uma espécie de círculo, elas fogem e elas são perseguidas. A noite está próxima aos calcanhares do dia, o dia aos calcanhares da noite, o verão termina no outono, o inverno apressa-se depois do outono e o inverno se suaviza na primavera, toda a natureza assim passa, só para voltar. Eu não vejo nada de novo, mais cedo ou mais tarde, o homem enjoa disto também.” Há muitos que pensam que a vida, não sendo dolorosa, é supérflua.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


102 Públio Rutílio Rufo despertou o ódio da ordem equestre, à qual pertencia a maior parte dos republicanos. Em 92 a.C., foi acusado de extorsão justamente por estes provincianos que havia tentado proteger e, apesar da acusação ser amplamente tida como falsa, o júri, composto quase que inteiramente de equestres, o condenou. Rufo aceitou o veredito resignado, um comportamento estoico esperado para um discípulo de Panécio. Cícero, Lívio, Veleio Patérculo e Valério Máximo concordam em que era um homem honrado e íntegro e a sua condenação foi resultado de uma conspiração.

103 Quinto Cecílio Metelo Numídico, foi eleito cônsul em 109 a.C. e censor em 102 a.C. e era o líder da facção aristocrática dos optimates no Senado Romano. Quando Saturnino obrigou os senadores a jurarem uma lei agrária no prazo de cinco dias sob pena de multa, Metelo preferiu exilar-se voluntariamente em Rodes a se submeter ao que considerava um grande desatino, o que resultou na sua expulsão do Senado e na perda de sua cidadania romana.

104 Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola). Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a ameaça etrusca representada por Lar Porsena. Depois de rechaçar um primeiro ataque, os romanos se refugiaram atrás das muralhas da cidade e Porsena iniciou um cerco. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso e disse: “Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!”. Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse libertado.

105 Quinto Cecílio Metelo Pio Cipião Násica, conhecido como Metelo Cipião, foi um político da gente Cecília Metela da República Romana eleito cônsul em ٥٢ a.C. com Pompeu. Liderou tropas contra as forças de César, principalmente na Batalha de Farsalo (٤٨ a.C.) e na Batalha de Tapso (٤٦ a.C.) e foi derrotado.

106 Cneu Pompeu, conhecido também como Pompeu, o Jovem (79 a.C. – 12 de Abril 45 a.C.), foi um político romano da segunda metade do século I a.C., no período tardio da República Romana.

107 Íxion foi amarrado a uma roda em chamas. No lugar das cordas, os deuses utilizaram serpentes. Íxion foi condenado a girar eternamente no calor do inferno.

108 Sísifo foi obrigado a empurrar uma pedra até o topo de uma das montanhas do submundo, sendo que toda vez que estava chegando ao cume, a rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando assim, o labor de Sísifo uma punição eterna.

109 Cérbero era um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.

110 Ver as três citações em Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 13: Sobre Medos infundados

Esta é uma de minhas cartas preferidas. Sêneca aborda o principal fator atrapalha nosso desenvolvimento, o medo.

O que lhe impede de procurar seu trabalho dos sonhos, de fazer arte, de viajar pelo mundo, de se expor? É o Medo. É simples assim. Podemos dar a desculpa de estarmos ocupados ou em mal momento ou não ter talento ou recursos ou um milhão de outras coisas, mas na realidade muitas vezes é o medo que nos segura.

A 13° carta defende cinco pontos principais:

  1. Conhecer seu medo é derrotá-lo;
  2. As coisas são muitas vezes piores em sua mente;
  3. Não deixe que outros lhe assustem;
  4. Antecipar um fracasso não vale a pena;
  5. Explore o que poderia realmente dar errado;

Começa argumentando que temos que experimentar certas coisas para construir nosso caráter e desenvolver resistência contra elas:

Nenhum lutador pode ir com alta expectativa para a luta se ele nunca foi espancado, o único concorrente que pode entrar com confiança na luta é o homem que viu seu próprio sangue, que sentiu seus dentes chacoalharem sob o punho do seu adversário, que foi derrubado e sentiu toda a força da carga do seu adversário, que foi abatido não só no corpo, mas também em espírito, aquele que, quantas vezes cai, levanta-se novamente com maior teimosia do que nunca.“(XIII, §2)

Ele continua:

Existem mais coisas, Lucílio, susceptíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade… Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. “(XIII, §4)

Ambas as passagens mais tarde se tornaram no refrão principal de Epicteto: devemos nos distanciar de nossas primeiras impressões, considerá-las racionalmente e decidir se dar ou retirar aprovação a elas. De fato, sofremos com mais frequência na imaginação do que na realidade, porque a realidade é muitas vezes mais suportável do que nossos medos nos deixa acreditar.

Sêneca nos encoraja a viver com mais coragem, racionalidade e equilíbrio emocional, enfrentando a vida sem se deixar abater por medos que muitas vezes são ilusórios. A mensagem finaliza com uma crítica à procrastinação na vida, sugerindo que a verdadeira vida é vivida no presente, não no preparo para um futuro que pode nunca chegar.


XIII. Sobre medos infundados

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu sei que você tem muita garra. Pois mesmo antes de você começar a equipar-se com máximas que eram saudáveis e poderosas para superar obstáculos, você estava se orgulhando de sua disputa com a Fortuna; e isso é ainda mais verdadeiro agora que você se atracou com a Fortuna e testou seus poderes. Pois nossos poderes nunca podem inspirar uma fé implícita em nós mesmos, a não ser quando muitas dificuldades tenham nos cortejado por inúmeros lados e ocasionalmente tenham se atracado conosco. Somente dessa maneira o verdadeiro espírito pode ser testado, o espírito que nunca consentirá em submeter-se à jurisdição de coisas externas a nós, aquele que nunca abdicará do seu livre arbítrio.

2. Esta é marca de tal espírito. Nenhum lutador pode ir com alta expectativa para a luta se ele nunca foi espancado, o único concorrente que pode entrar com confiança na luta é o homem que viu seu próprio sangue, que sentiu seus dentes chacoalharem sob o punho do seu adversário, que foi derrubado e sentiu toda a força da carga do seu adversário, que foi abatido não só no corpo, mas também em espírito, aquele que, quantas vezes cai, levanta-se novamente com maior teimosia do que nunca.

3. Então, para manter a minha analogia, a Fortuna foi muitas vezes no passado preponderante sobre você e mesmo assim você não se rendeu, mas saltou ereto e manteve a sua posição ainda mais determinadamente. Pois a virilidade ganha muita força ao ser desafiada. No entanto, se você aprovar, permita-me oferecer algumas salvaguardas adicionais pelas quais você pode se fortalecer.

4. Existem mais coisas, Lucílio, suscetíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade. Eu não estou falando com você na linha estoica, mas em meu estilo mais suave. Pois é a nossa maneira estoica, falar de todas essas coisas que provocam gritos e gemidos, tanto sem importância como irrelevantes. Mas você e eu devemos proferir palavras grandiosas embora, os deuses sabem, verdadeiras. O que eu aconselho você a fazer é, não ser infeliz antes que a crise chegue, já que pode ser que os perigos que o empalidecem como se estivessem o ameaçando agora, nunca cheguem sobre você; eles certamente ainda não chegaram.

5. Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. Temos o hábito de exagerar, imaginar e antecipar a tristeza. A primeira dessas três faltas pode ser adiada no momento, porque o assunto está em discussão e o caso ainda está no tribunal, por assim dizer. O que eu chamo de insignificante, você considerará ser mais grave pois é claro que eu sei que alguns homens riem enquanto são açoitados e que outros estremecem com um tapa orelha. Consideraremos mais tarde se esses males derivam seu poder, de sua própria força ou de nossa própria fraqueza.

6. Faça-me um favor; quando os homens o rodeiam e tentam convencê-lo a acreditar que você é infeliz, considere não o que você ouve, mas o que você sente e tome conselho com seus sentimentos e se questione independentemente, porque você sabe seus próprios assuntos melhor do que qualquer um. Pergunte: “Há alguma razão por que essas pessoas devam compadecer-se de mim, por que elas deveriam estar preocupados ou até mesmo temerem alguma contaminação de mim, como se problemas pudessem ser transmitidos? Existe algum mal envolvido ou é apenas uma questão de mau relato, em vez de um mal? Coloque a pergunta voluntariamente a si mesmo: “Estou atormentado sem razão suficiente, estou melancólico e estou a converter o que não é mal no que é mal?

7. Você pode retorquir com a pergunta: “Como vou saber se meus sofrimentos são reais ou imaginários?” Aqui está a regra para tais assuntos: somos atormentados por coisas presentes ou por coisas vindouras ou por ambas. Quanto às coisas presentes, a decisão é fácil. Avalie se sua pessoa goza de liberdade e saúde e que você não sofra de nenhuma violência física. Quanto ao que lhe acontecerá no futuro, veremos mais adiante. Hoje não há nada de errado.

8. “Mas,” você diz, “algo vai acontecer.” Em primeiro lugar, considere se suas provas dos problemas futuros são certas. Pois é mais comum que nos incomodemos com as nossas apreensões e que sejamos zombados por aquele zombador, o boato, que costuma instalar guerras, mas muito mais frequentemente liquida indivíduos. Sim, meu caro Lucílio, concordamos muito rapidamente com o que as pessoas dizem. Não colocamos à prova as coisas que causam o nosso medo, não as examinamos a fundo, titubeamos e nos retiramos exatamente como soldados que são forçados a abandonar seu acampamento por causa de uma nuvem de poeira levantada pelo estampido do gado ou são lançados em pânico pela divulgação de algum rumor não autenticado.

9. E, de alguma forma, é o relatório negligente que nos perturba mais. Pois a verdade tem seus próprios limites definidos, mas o que surge da incerteza é entregue à adivinhação e à licença irresponsável de uma mente assustada. É por isso que nenhum medo é tão ruinoso e tão incontrolável como o medo causado pelo pânico. Pois alguns medos são infundados, mas este medo é imbecil.

10. Vejamos, pois, atentamente o assunto. É provável que alguns problemas nos acontecerão, mas não é um fato presente. Quantas vezes o inesperado aconteceu! Quantas vezes o esperado nunca chegou a passar! E mesmo que seja destinado a ser, o que é que vale correr para encontrar seu sofrimento? Você sofrerá em breve, quando chegar a hora, então, enquanto isso, olhe para a frente, para coisas melhores.

11. O que você ganhará fazendo isso? Tempo. Haverá muitos acontecimentos, entretanto, que servirão para adiar ou para terminar ou para transmitir a uma outra pessoa as experimentações que estão próximas ou mesmo em sua própria presença. Um incêndio abriu o caminho para a fuga. Os homens foram derrotados por uma catástrofe. Às vezes o movimento da espada é parado na garganta da vítima. Alguns homens sobreviveram aos seus próprios carrascos. Mesmo a má Fortuna é inconstante. Talvez venha, talvez não, entrementes, agora, não está aqui. Então, esperemos coisas melhores.

12. A mente às vezes modela para si as formas falsas do mal quando não há sinais que apontem para algum mal, interpreta da pior forma alguma palavra de significado duvidoso ou imagina algum rancor pessoal ser mais sério do que realmente é, considerando não quão irritado o inimigo está, mas a que extensão poderá chegar sua ira. Mas a vida não vale a pena ser vivida, e não há limites para nossas dores, se entregarmos nossos medos ao máximo possível. Neste assunto, deixe a prudência ajudá-lo e despreze o medo com um espírito resoluto mesmo quando ele está à vista. Se você não pode fazer isso, combata uma fraqueza com outra e tempere o seu medo com esperança. Não há nada tão certo nesse assunto de medo como as coisas que tememos darem em nada e as coisas que esperamos nos decepcionarem, zombando de nós.

13. Consequentemente, pese cuidadosamente as suas esperanças assim como os seus temores, e sempre que todos os elementos estiverem em dúvida, decida em seu favor. Acredite no que você preferir. E se o medo ganha a maioria dos votos, incline-se na outra direção de qualquer maneira e deixe de incomodar sua alma, refletindo continuamente que a maioria dos mortais, mesmo quando não têm problemas realmente à mão, certamente os têm esperados no futuro, e tornam-se excitados e inquietos Ninguém resiste ao próprio impulso que tomou, quando começa a ser incitado à frente; nem regula o seu medo de acordo com a realidade. Ninguém diz: “o autor da história é um tolo e quem crê nela é um tolo, assim como aquele que a fabricou.” Nós nos deixamos derivar com cada brisa, estamos assustados com as incertezas, como se estivessem certas. Não observamos com moderação. A menor coisa vira o jogo e nos coloca imediatamente em pânico.

14. Mas eu tenho vergonha tanto de admoestá-lo severamente ou tentar iludi-lo com remédios tão suaves. Deixe outro dizer. “Talvez o pior não aconteça”. Você mesmo deve dizer. “Bem, e se isso acontecer, vamos ver quem ganha, talvez isso aconteça para o meu melhor interesse, pode ser que tal morte derrame crédito sobre a minha vida”. Sócrates foi enobrecido pelo chá de cicuta. Retire da mão de Catão56 sua espada, que lhe assegurou a liberdade, e você o privará da maior parte de sua glória.

15. Estou lhe exortando por demasiado tempo, já que você precisa de recordação e não de exortação. O caminho para o qual lhe guiarei não é diferente daquele em que a sua natureza o guia, você nasceu para a conduta que eu descrevo. Portanto, há mais razão para reforçar e alegrar as boas qualidades que já existem em você.

16. Mas agora, para fechar a minha carta, tenho apenas de estampar o selo habitual, ou seja, consignar uma mensagem nobre a ser entregue a você: “O tolo, com todos seus outros defeitos, tem este também: ele está sempre se preparando para viver.” Reflita, meu estimado Lucílio, o que significa essa palavra, e você verá quão revoltante é a inconstância dos homens que estabelecem cada dia novos fundamentos de vida e começam a construir novas esperanças mesmo à beira da sepultura.

17. Olhe dentro de sua própria mente para instâncias individuais, você pensará em homens velhos que estão se preparando naquela mesma hora para uma carreira política ou para viajar ou para o negócio. E o que é mais mesquinho do que se preparar para viver quando você já é velho? Eu não devo dar o nome do autor deste lema, exceto que é pouco conhecido e não é um daqueles ditos populares de Epicuro que eu me permiti elogiar e apropriar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


56 Marco Pórcio Catão Uticense), também conhecido como Catão, o Jovem, (para se distinguir do seu bisavô, Marco Pórcio Catão, o Velho), (Roma, 95 a.C. – Útica, 46 a.C.) foi um político romano célebre pela sua inflexibilidade e integridade moral. Partidário da filosofia estoica, era avesso a qualquer tipo de suborno. Opunha-se, particularmente, a Júlio César. Suicidou-se depois da vitória deste na Batalha de Tapso.

Carta 12: Sobre a Velhice

Na 12ª carta Sêneca explora a velhice não apenas como um estágio da vida, mas como uma fase repleta de ensinamentos e prazeres próprios. A carta reflete a autopercepção de Sêneca sobre sua própria velhice, utilizando exemplos cotidianos para ilustrar a passagem do tempo.

Ele começa recordando uma visita recente a uma de suas casas de campo, durante as quais ele reclamou a um de seus funcionários que estava gastando muito dinheiro na manutenção. Mas seu zelador protestou que a casa estava envelhecendo, e os reparos eram, portanto, totalmente justificados. Então Seneca escreve: “E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando? “(XII, §1)

Qual deve ser a atitude da pessoa sábia em relação à velhice? Sêneca coloca muito vividamente a Lucílio:

Vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: ‘Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado’ E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Quando um homem diz: ‘Eu tenho vivido!’, toda manhã que acorda, recebe um bônus.“(XII.9)

Como ele frequentemente faz nas cartas, Sêneca termina com um “presente”, uma citação significativa de outro autor, que neste caso é: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação. (XII, §10), outra referência ao suicídio a ser escolhido sob certas circunstâncias.

O ditado acima é de ninguém menos que Epicuro, o principal rival da escola estóica. Sêneca, então, imagina Lucílio protestando: “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. (XII, §11)

Mais uma vez, uma bela frase e um exemplo de verdadeira sabedoria: não importa de onde a verdade venha, uma vez descoberta, é nossa propriedade coletiva.

——

XII. Sobre a velhice

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Para onde quer que eu me vire, vejo evidências de meus avançados anos. Visitei recentemente a minha casa de campo e reclamei do dinheiro gasto na manutenção do prédio. Meu caseiro sustentou que as falhas não eram devidas a seu próprio descuido. Ele estava fazendo todo o possível, mas a casa era velha. E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando?

2. Eu estava com raiva e usei a primeira oportunidade de exalar meu mal humor na presença do caseiro. “Está claro!” Exclamei eu, “que esses plátanos estão negligenciados, não têm folhas, seus ramos são tão retorcidos e enrugados, os caules estão ásperos e desalinhados! Isso não aconteceria se alguém afofasse a terra sob seus pés e os regasse.” O caseiro jurou por meu gênio protetor46 que “ele estava fazendo todo o possível e nunca relaxou seus esforços, mas aquelas árvores eram velhas”. Só entre nós, eu havia plantado essas árvores, eu as tinha visto em sua primeira florada.

3. Então, virei-me para a porta e perguntei: “Quem é aquele quebrantado? Vocês fizeram bem em coloca-lo na entrada, porque ele já está de saída,47 onde você o pegou?” Mas o escravo disse: “Você não me reconhece, senhor? Sou Felício, você costumava me trazer pequenas imagens,48 meu pai era o Filósito, o zelador, e eu sou seu escravo querido”. “O homem está louco”, comentei. “Meu escravo predileto tornou-se um menininho de novo? Mas é bem possível, seus dentes estão caindo.”49

4.Estou obrigado a admitir que minha velhice se tornou aparente. Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheia de prazer se alguém sabe como usá-la. As frutas são mais bem-vindas quando quase passadas. A juventude é mais encantadora em seu fim, o último drinque deleita o ébrio: é o copo que o sacia e dá o toque final em sua embriaguez.

5. Cada prazer reserva para o fim as maiores delícias que contém. A vida é mais deliciosa quando está em declive mas ainda não atingiu o fim abrupto. E eu mesmo acredito que o período que se encontra, por assim dizer, à beira do telhado, possui prazeres próprios. Ou então, o próprio fato de não desejarmos prazeres, toma o lugar dos próprios prazeres. Como é reconfortante ter cansado o apetite e ter acabado com ele!

6. “Mas,” você diz, “é um incômodo estar olhando a morte no rosto!A Morte, no entanto, deve ser olhada no rosto por jovens e velhos. Nós não somos convocados de acordo com nossa classificação alfabética na lista do censor.50 Além disso, ninguém é tão velho que seria impróprio para ele esperar mais um outro dia de existência. E um dia, lembre-se, é uma etapa na jornada da vida. Nosso escopo de vida é dividido em partes, consiste em grandes círculos que encerram menores. Um círculo abraça e limita o resto, atinge desde o nascimento até o último dia da existência. O próximo círculo limita o período de nossa juventude. O terceiro limita toda a infância em sua circunferência. Outra vez, há, em uma classe em si, o ano. Contém dentro de si todas as divisões de tempo pela adição da qual obtemos o total da vida. O mês é limitado por um anel mais estreito. O menor círculo de todos é o dia, mas mesmo um dia tem seu começo e seu término, seu nascer e seu pôr-do-sol.

7. Por isso Heráclito,51 cujo estilo obscuro lhe deu seu sobrenome, observou: “Um dia é igual a todos os dias”. Diferentes pessoas têm interpretado o ditado de maneiras diferentes. Alguns afirmam que os dias são iguais em número de horas, e isso é verdade pois se por “dia” queremos dizer vinte e quatro horas de tempo, todos os dias devem ser iguais, na medida em que a noite adquire o que o dia perde. Mas outros sustentam que um dia é igual a todos os dias por meio da semelhança, porque o espaço de tempo mais longo não possui nenhum elemento que não possa ser encontrado em um único dia, a saber, a luz e a escuridão, e até a eternidade faz esses revezamentos mais numerosos, não diferentes quando é mais curto e diferente novamente quando é mais longo…52

8. Portanto, todos os dias deveriam ser regulados como se fechassem a série, como se estivessem completando nossa existência. Pacúvio,53 que por muito tempo ocupava a Síria, costumava realizar um ritual de sepultamento em sua própria honra, com vinho e banquetes fúnebres, e depois ser levado da sala de jantar para seu sarcófago, enquanto os eunucos aplaudiam e cantavam em grego: “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida!

9. Assim Pacúvio vinha enterrando-se todos os dias. Vamos, no entanto, fazer por um bom motivo o que ele costumava fazer por um motivo vil, vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer:

Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado.54

E se os deuses se agradam em acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Esse homem é o mais feliz e está seguro em sua própria posse de si mesmo, pois pode esperar o amanhã sem receio. Quando um homem diz: “Eu tenho vivido!”, toda manhã ao acordar, recebe um bônus.

10. Mas agora eu devo concluir a minha carta. “O quê?”, você diz, “virá a mim sem qualquer contribuição?” Não tenha medo, trago algo e, melhor, mais do que algo, muito. Pois o que há de mais nobre do que o seguinte provérbio de que eu faço desta carta portadora: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.55 Claro que não. Em todos os lados encontram-se muitos caminhos curtos e simples para a liberdade e agradeçamos aos deuses que nenhum homem possa ser mantido na vida. Podemos desprezar os próprios constrangimentos que nos prendem.

11. “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem? Qualquer verdade, eu sustento, é minha propriedade. E continuarei a amontoar citações de Epicuro sobre você, para que todas as pessoas que juram pelas palavras de outrem e que valorizam o orador e não o que é dito, compreendam que as melhores ideias são domínio público.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


46 Na religião pagã romana, o gênio (genius) era uma das divindades domésticas individualmente associada a cada homem. Cada um possuía o seu genius (e a mulher seu juno). Especialmente venerado era o genius do chefe de família.

47 Uma alusão irônica ao funeral romano; os pés do cadáver apontando para a porta.

48 Pequenas figuras, geralmente de terracota, eram frequentemente dadas às crianças como presente durante o festival da Saturnalia. Neste festival, era costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, entre senhores e escravos. Nessa ocasião os escravos gozavam de uma grande liberdade em relação aos seus senhores. Ver Horácio, Sátiras, livro II, 7.

49 O antigo escravo se assemelha a uma criança na medida em que está perdendo os dentes (mas pela segunda vez).

50 Seniores” em contraste com “iuniores”.

51 Heráclito de Éfeso (ca 535 a.C. – 475 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o “Pai da dialética”. Recebeu a alcunha de “O Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, “Sobre a Natureza”, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.

52 O texto apresenta aqui uma lacuna.

53 A Síria era legalmente governada por Élio Lâmia, nomeado por Tibério, que, impedido de sair de Roma, administrava a província por intermédio do seu legado Pacúvio. Ver Tácito, Anais.

54 Trecho de Eneida, de Virgílio.

55 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Na carta 5 Sêneca explica o significado do lema estoico  “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado:

…Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.” (Carta 5, §7-8)

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

V. Sobre a virtude do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar, eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, a não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre suas vestes ou seu estilo geral de vida.

2. Devem ser evitados trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo. E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.

3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova de uma vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário, caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.

4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o senso comum, a humanidade, o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza”,1 mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, tomar comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.

5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado razoavelmente sem grande dispêndio. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio que eu sanciono. Nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral, todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.

6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e eles todos?” Sim, distinção muito grande. Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.

7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato2 que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes estão, contudo, realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

8. Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.

9. Animais evitam os perigos que veem e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça, pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a previsão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Lema da escola estoica.

2 NT: Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes. Não se conhecem outros detalhes da sua vida, mas era um filósofo eminente entre os estoicos deste período. Era um escritor prolífico, ainda que não tenha chegado nenhum escrito até aos nossos dias. Diógenes Laércio menciona seis tratados de sua autoria.

Carta 105: Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Na carta 105 Sêneca lista as causas de insegurança e como evitá-las. Segundo ele, as coisas que levam os homens a se atacarem são inveja, o ódio, o medo e o desprezo. Ele então aprofunda cada uma das causas, mas faz um alerta, pois “algumas pessoas se sentem ofendidas sem terem tido razões para tal”.

O conselho final é para a paz mental é nunca fazer o mal:

O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. … Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. … Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso. (CV, 7-8)

(Imagem: Giovani Battista Pittoni, Crasso saqueia o templo de Jerusalém)


CV. Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Devo dizer-lhe certas coisas às quais deve prestar atenção para viver com mais segurança, sem sobressaltos. No entanto escute meus preceitos como se eu estivesse aconselhando você a manter sua saúde em seu território em Ardea. Reflita sobre as coisas que levam o homem a destruir o homem: você descobrirá que elas são a esperança, a inveja, o ódio, o medo e o desprezo.

2. Agora, de tudo isso, o desprezo é o menos nocivo, tanto assim que muitos haviam se escondido atrás dele como uma espécie de cura. Quando um homem lhe despreza, ele o fere, com certeza, mas ele prossegue; e ninguém persistentemente ou com propósito determinado machuca uma pessoa que despreza. Mesmo na batalha, os soldados prostrados são negligenciados: os homens lutam com aqueles que se mantêm firmes.

3. E você pode evitar as esperanças invejosas dos ímpios, desde que você não tenha nada que possa agitar os maus desejos dos outros e enquanto não possuir nada de notável. Pois as pessoas anseiam mesmo coisas pequenas, se estas capturarem a atenção ou forem de ocorrência rara. Você escapará da inveja se você não se expuser à visão pública, se você não se vangloriar de suas posses, se você entender como desfrutar das coisas de forma privada. O ódio ocorre ao entrar em conflito com outros e isso pode ser evitado ao nunca provocar ninguém; ou então, às vezes, não é motivado por nada e o senso comum irá mantê-lo a salvo dele. No entanto, essa espécie de ódio tem sido perigosa para muitos; algumas pessoas foram odiadas sem terem tido razões para inimizade pessoal.

4. Quanto a não ser temido, uma Fortuna moderada e uma disposição fácil garantirão isso; os homens devem saber que você é o tipo de pessoa que pode ser ofendida sem perigo e sua reconciliação deve ser fácil e segura. Além disso, é tão problemático ser temido em casa como no exterior; é tão ruim ser temido por um escravo quanto por um homem livre. Pois cada um tem força o suficiente para causar algum dano. Além disso, aquele que é temido teme também. Ninguém conseguiu despertar o terror e viver em paz.

5. O desprezo continua a ser discutido. Aquele que fez dessa qualidade um complemento de sua própria personalidade, que é desprezado porque deseja ser desprezado e não porque deve ser desprezado, tem a medida do desprezo sob seu controle. Qualquer inconveniente a este respeito pode ser dissipado por ocupações honrosas e por amizades com homens que tenham influência com uma pessoa influente; com estes homens, lhe será útil ter contato, mas não se enredar, para que a proteção não custe mais do que o próprio risco.

6. Nada, no entanto, irá ajudá-lo tanto quanto manter-se quieto – falando muito pouco com os outros, e tanto quanto queira consigo mesmo. Pois há uma espécie de encanto sobre a conversa, algo muito sutil e persuasivo que, como a embriaguez ou o amor, extrai segredos de nós. Ninguém mantém segredo do que ouve. Ninguém dirá a outro apenas o quanto ouviu. E aquele que conta histórias também contará nomes. Todo mundo tem alguém a quem confia tudo o que lhe foi confiado. Embora controle sua própria tagarelice e se contente com um ouvinte, irá trazer sobre ele uma multidão, se o que recentemente era um segredo, se tornar uma conversa comum.

7. O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. Aqueles que não têm autocontrole conduzem vidas perturbadas e tumultuadas, seus crimes são equilibrados por seus medos e eles nunca estão tranquilos. Pois eles tremem após a ação e ficam envergonhados; suas consciências não permitem que eles se ocupem de outros assuntos e continuamente requerem atenção, numa ansiedade constante. Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele.

8. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. Seu sono é perturbado quando ele fala sobre o crime de outro homem, ele reflete sobre o dele, que nunca lhe parece estar suficientemente escurecido nem suficientemente escondido da visão. Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Pensamento #78: Não seja infeliz antes da crise chegar

Na carta 13 Sêneca diz:

Existem mais coisas, Lucílio, suscetíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade.  … O que eu aconselho você a fazer é, não ser infeliz antes que a crise chegue; já que pode ser que os perigos que o empalidecem como se estivessem o ameaçando agora, nunca cheguem sobre você; eles certamente ainda não chegaram.

Pensamento #70: Controle seu medo, parte 2


Sêneca continua a carta 13 dizendo:

Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. Temos o hábito de exagerar, imaginar, antecipar, a tristeza. A primeira dessas três faltas pode ser adiada no momento, porque o assunto está em discussão e o caso ainda está no tribunal, por assim dizer. O que eu chamo de insignificante, você considerará a ser mais grave; pois é claro que eu sei que alguns homens riem enquanto são açoitados, e que outros estremecem com um tapa orelha. Consideraremos mais tarde se esses males derivam seu poder de sua própria força ou de nossa própria fraqueza.” (XIII, 5)

Carta 97: Sobre a Degeneração da Época

Na Carta 97 Sêneca aborda um tema recorrente em todas as eras: pessoas maduras tendem a acreditar que o passado era melhor e mais íntegro, e que os jovens estão degenerados e equivocados. Mas Sêneca diz que não é nada disso pois essa negligência aos bons costumes são “vícios da humanidade e não dos tempos“.

Ele narra o caso de um político corrupto, Públio Cloto, que escapou da punição subornando e chantageando juízes com dinheiro e sexo, isso na presença de Catão, símbolo moral para Sêneca. Comparando com a política recente teremos mais uma prova da degeneração ser uma característica da humanidade, não dos tempos.

A carta é interessante também pois narra os rituais da Bona Dea (“Boa Deusa”) e da Floralia, em honra à deusa Flora. Cita máximas de Epicuro, concordando em pontos e discordando de alguns detalhes: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer“.

A conclusão é que o criminoso, mesmo que escape da lei, jamais poderá escapar da própria consciência, e saber que cometeu crime será punição suficiente devido a culpa e a ansiedade de ser pego:

Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.” (XCVII, 16)

Imagem: O império da Flora por Giovanni Battista Tiepolo.


XCVII. Sobre a Degeneração da Época

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você está enganado, meu querido Lucílio, se você acha que o luxo, a negligência aos bons costumes e outros vícios são especialmente característicos de nossa época. Não, são os vícios da humanidade e não dos tempos. Nenhuma era na história esteve isenta de culpa. Além disso, se você começar a levar em conta as irregularidades típicas a qualquer época particular, você encontrará – para a vergonha do homem – que o pecado nunca foi mais explícito do que na própria presença de Catão.

2. Alguém acreditaria que dinheiro mudou de mão no julgamento quando Clódio[1] foi acusado de adultério com a esposa de César, quando ele violou o mistério ritual[2] daquele sacrifício que se é oferecido em nome do povo, quando todos os homens são tão rigorosamente removidos do recinto, tanto que até imagens de todas as criaturas masculinas estão cobertas? E, no entanto, o dinheiro foi dado ao júri e, mais vil do que essa pechincha, crimes sexuais foram exigidos de mulheres casadas e jovens rapazes como uma espécie de contribuição adicional.

3. O crime denunciado envolveu menos pecado do que sua absolvição, pois o réu por adultério parcelou os adultérios e não tinha certeza de sua própria absolvição até ter feito dos jurados criminosos como ele. Tudo isso foi feito no julgamento em que Catão deu testemunho, embora essa fosse sua única participação. Vou citar as reais palavras de Cicero, porque os fatos são tão ruins quanto inacreditáveis:

4. “Ele distribuiu cargos, promessas, súplicas e presentes. E mais do que isso (Céus misericordiosos, que estado de coisas abandonado!) a vários jurados, para completar sua recompensa ele concedeu o gozo de certas mulheres e encontros com jovens nobres”.[3]

5. É supérfluo ficar chocado com o suborno pois as adições ao suborno foram piores. “Você tem interesse na esposa desse indivíduo austero, A.? Muito bom. Ou de B., o milionário? Eu garantirei que você possa se deitar com ela. Se você não cometeu adultério, condene Clódio. Essa beldade que você deseja deve visitá-lo. Garanto-lhe uma noite em companhia dessa mulher sem demora, minha promessa deve ser realizada fielmente dentro do prazo legal de pagamento”. É mais grave distribuir esses crimes do que os cometer; significa chantagear matronas dignas.

6. Estes jurados no julgamento de Clódio pediram ao Senado uma guarda – um favor que só seria necessário para um júri prestes a condenar o acusado; e seu pedido foi concedido. Daí a observação espirituosa de Cátulo depois que o réu ter sido absolvido: “Por que nos pediram a guarda? Tiveram medo de ter seu dinheiro roubado?” E, no entanto, em meio a gracejos como estes, ele ficou impune, ele que antes do julgamento era um adúltero, durante o julgamento, um gigolô e que escapou da condenação mais vilmente do que merecia.

7. Você acredita que qualquer coisa poderia ser mais vergonhosa do que esses padrões morais – quando a luxúria não pode se manter afastada nem do culto religioso, nem dos tribunais? No próprio inquérito realizado em sessão especial por ordem do Senado mais crimes foram cometidos do que investigados. A questão em debate era se alguém poderia estar seguro depois de cometer adultério, foi demonstrado que não se poderia estar seguro sem cometer adultério!

8. Toda essa negociata ocorreu na presença de Pompeu e César, de Cícero e Catão, sim, esse próprio Catão cuja presença, segundo dizia, fazia com que as pessoas se abstivessem de exigir as provocações e caprichos usuais de atrizes nuas na Florália,[4] – se você puder acreditar que os homens eram mais rigorosos em sua conduta em um carnaval do que em um tribunal! Tais coisas serão feitas no futuro, como já foram feitas no passado; e a licenciosidade das cidades às vezes diminuirá através da disciplina e do medo, nunca por si mesma.

9. Portanto, você não precisa acreditar que somos nós quem mais nos entregamos para a luxúria e menos para a lei. Pois os homens jovens de hoje vivem vidas muito mais simples do que as de uma época em que um réu se declararia não culpado de uma acusação de adultério perante os juízes, e os juízes confessariam perante o arguido. Época quando foi praticada a devassidão para garantir um veredicto, e quando Clódio, favorecido pelos próprios vícios dos quais ele era culpado, fez o papel de gigolô durante a audiência do caso. Poderíamos acreditar nisso? Aquele a quem um adultério levou a um inquérito foi absolvido por causa de muitos.

10. Todas as eras produzirão homens como Clódio, mas nem todas as eras, homens como Catão. Degeneramos facilmente porque não nos falta mentores nem associados em nossa maldade, e a perversidade continua por si mesma, mesmo sem mentores ou associados. O caminho para o vício não é apenas morro abaixo, mas em declive acentuado. Muitos homens são tornados incorrigíveis pelo fato de que enquanto que em todos os erros no artesanato trazem vergonha aos bons artesãos e causam vergonha para aqueles que se desviaram, os erros da vida são uma fonte positiva de prazer.

11. O piloto não está contente quando seu navio emborca; o médico não está contente quando enterra seu paciente; o advogado não está contente quando o réu perde um caso por sua culpa; mas, por outro lado, cada homem goza de seus próprios crimes. A. se deleita em uma intriga,  pois era a dificuldade que o atraía a ela. B. Delicia-se em falsificação e roubo e só está descontente com o pecado quando seu pecado não atinge o alvo. E tudo isso é o resultado de hábitos pervertidos.

12. Por outro lado, no entanto, para que você possa saber que há uma ideia de boa conduta presente subconscientemente em almas que foram conduzidas até mesmo nas formas mais depravadas e que os homens não são ignorantes do que o mal é, mas indiferentes, eu digo que todos os homens escondem seus pecados e mesmo que o caso seja bem-sucedido aproveita os resultados enquanto esconde os próprios pecados. Uma boa consciência, no entanto, deseja sair e ser vista pelos homens, já a maldade teme a própria sombra.

13. Por isso, considero Epicuro o mais adequado: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer”,[5] ou, se você acha que o significado pode ser mais claro desta forma: “A razão pela qual não é nenhuma vantagem para os transgressores permanecerem ocultos é que, embora tenham a fortuna, eles não têm a certeza de permanecer em segurança”. É o que quero dizer: os crimes podem ser bem guardados, estar livre da ansiedade, não é possível.

14. Esta visão, eu mantenho, não está em desacordo com os princípios da nossa escola, se assim for explicado. E porque? Porque a primeira e a pior penalidade do pecador é ter cometido o pecado. E o crime, embora a Fortuna se divirta com seus favores, embora ela o proteja e o tome sob sua guarda, nunca pode ficar impune, uma vez que a punição do crime reside no próprio crime. Mas, no entanto, essas segundas penalidades seguem de perto as primeiras: medo constante, terror constante e desconfiança na própria segurança. Por que, então, eu deveria colocar a perversidade livre de tal punição? Porque não hei-de deixá-la sempre em suspenso?

15. Deixe-nos discordar de Epicuro em um único ponto, quando ele declara que não existe uma justiça natural e que o crime deve ser evitado porque não se pode escapar do medo que resulta dele; deixe-nos concordar com ele do outro ponto, que as más ações são açoitadas pelo chicote da consciência e essa consciência é torturada em maior grau porque a ansiedade interminável a impulsiona e chicoteia, e não pode confiar nos fiadores de sua própria paz mental. Por isso, Epicuro é a própria prova de que somos, por natureza, relutantes em cometer crimes, porque mesmo em circunstâncias de segurança, não há quem não sinta medo.

16. Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Públio Clódio Pulcro (Publius Clodius Pulcher), mais conhecido apenas como Clódio, foi um político da República Romana conhecido por suas táticas populistas.

[2] NT: Os ritos de Bona Dea (“Boa Deusa”) eram realizados em dezembro na casa de um importante magistrados de Roma. Em 62 a.C., a cerimônia seria realizada na residência oficial de Júlio César, o pontífice máximo, em Régia. As anfitriãs foram sua esposa, Pompeia, e sua mãe, Aurélia, com a supervisão das virgens vestais. Este era um culto do qual os homens não tinham permissão para falar ou mesmo de saber o nome da deusa, que era chamada de “Boa Deusa”. Clódio se intrometeu nos ritos disfarçado de mulher, supostamente com o objetivo de seduzir Pompeia, mas foi descoberto. O crime de Clódio era, portanto, duplamente grave: adultério e violação religiosa

[3] Ver Cícero, Cartas a Ático.

[4] A Floralia era um festival romano, em honra à deusa Flora, ocorrido no mês de maio e ligado ao ciclo agrário com objetivo de consagrar as florações da primavera. Haviam representações teatrais, solturas de animais associados à fertilidade e divertimentos realizados no Circo Máximo.

[5] Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Pensamento #69: Controle seu medo

Na carta 13 Sêneca diz:

Existem mais coisas, Lucílio, susceptíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade.  … O que eu aconselho você a fazer é, não ser infeliz antes que a crise chegue; já que pode ser que os perigos que o empalidecem como se estivessem o ameaçando agora, nunca cheguem sobre você; eles certamente ainda não chegaram.”

Pensamento #55: Sofremos mais na imaginação do que na realidade.

Seneca carta 13.

Atenção: Entendo que as medidas de contenção são válidas e que o problema é real. A imagem foi escolhida para alertar contra o pânico e medo irracional. Você provavelmente já tem papel higiênico suficiente em casa.

Quando medo e pânico tomam conta do noticiário é aconselhável parar e ler o que sábios do passado nos deixaram de legado. Na 13° Carta de Sêneca ele fala sobre medos infundados. Vale a pena reler!

“Existem mais coisas, Lucílio, susceptíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade… Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. “

Carta XIII, 4