Resenha: Meditações, Livro IX

O livro IX das Meditações de Marco Aurélio começa com uma passagem interessante:

“Aquele que age injustamente age sem piedade. Porque, uma vez que a natureza universal fez animais racionais uns para os outros, para ajudar uns aos outros de acordo com seus desígnios, e de modo algum para ferir uns aos outros, aquele que transgride sua vontade é claramente culpado de impiedade para com a mais alta divindade”(IX,1).

O termo “divindade” pode ser interpretado, como Deus ou natureza, o que para os estoicos é o mesmo. Marco Aurélio está dizendo algo notavelmente moderno: a natureza nos fez seres sociais racionais, então agir de forma antissocial ou irracional é literalmente ir contra a natureza (humana).

O imperador nos diz por que é irracional – de acordo com a visão estoica das coisas  –  fazer o mal:

” Aquele que faz o mal faz o mal contra si mesmo. Aquele que age injustamente age injustamente contra si mesmo, porque se torna mau”(IX,4).

Mas e se os outros fizerem o mal? Recebemos a resposta:

” Se puder, retifique, ensinando aos que fazem o mal; mas se não puder, lembre-se de que a indulgência é dada a você para este propósito”(IX,11).

Também não há motivo para se surpreender com o mal dos outros,  no fundo a culpa é sempre sua:

” E que mal se faz ou que há de estranho, se o homem que não foi instruído faz os atos de um homem sem instrução? Reflita se não deveria antes culpar-se a si mesmo…  Mas acima de tudo, quando você culpa um homem como infiel ou ingrato, vire-se para si mesmo. Pois a culpa é manifestamente sua, se você confiava que um homem que tivesse tal disposição manteria sua promessa.” (IX,42).

Assim como nos Livros VI e VII, encontramos afirmações recorrentes de Marco Aurélio sobre o “agnosticismo“:

“Numa palavra, se há um Deus, tudo está bem; e se o acaso governa, você tampouco deve ser governado por ele”(IX,28)

Fica claro nas meditações que Marco Aurélio acreditava em Deus, contudo, esta e muitas outras citações das Meditações atestam que os estoicos não pensavam que acreditar em Deus ou providência era essencial para chegar à sua concepção de ética:

“Ou tudo procede de uma só fonte inteligente e se ajunta como num só corpo, e a parte não deve achar culpa do que se faz para o bem do todo; ou só há átomos, e nada mais do que mistura e dispersão. Por que, então, está perturbado?” (IX,39)

Neste livro Marco Aurélio cita  Epicuro, Cícero e a Odisséia de Homero.


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Livros citados: 

     

 

Resenha: Meditações, Livro VIII

A primeira seção do oitavo livro de Meditações de Marco Aurélio apresenta uma pergunta que todos devemos fazer a nós mesmos, em vários momentos de nossas vidas:

” você teve a experiência de muitas andanças sem ter encontrado a felicidade em qualquer lugar, nem em silogismos, nem em riqueza, nem em reputação, nem em gozo, nem em qualquer outro lugar. Onde está então? Em fazer o que a natureza do homem requer”. (VIII,1)

E pela “natureza do homem“, os estoicos queriam dizer a natureza de um animal social racional. Em outras palavras, para Marco Aurélio, o verdadeira significado pode ser encontrado apenas na contribuição para o funcionamento da sociedade, ajudando seres humanos. E a melhor maneira de conseguir isso é aplicando nossa faculdade de razão.

As seções 4, 5 e 16 também dão bons conselhos:

“Considere que os homens farão as mesmas coisas, mesmo que você se irrite.(VIII, 4)
Este é o ponto principal: Não se perturbe, porque todas as coisas estão de acordo com a natureza do universal; e em pouco tempo não será ninguém e em lugar nenhum, como Adriano e Augusto”. (VIII, 5)
Lembre-se de que mudar sua opinião e seguir aquele que corrige seu erro é tão consistente com a liberdade quanto persistir em seu erro.” (VIII, 16)

No parágrafo 13, Marco lembra-nos da abordagem clássica do estoicismo, que é encapsulada por três domínios: “Constantemente, e se possível, por ocasião de cada impressão na alma, aplique a ela os princípios da Física, da Ética e da Dialética.” onde aqui “dialética” significa lógica.

No parágrafo 33 encontramos uma jóia que encapsula a doutrina estoica dos indiferentes preferidos:

” Receba [riqueza ou prosperidade] sem arrogância; e esteja pronto para deixá-la ir.” (VIII,33)

Portanto, a ideia não é buscar um estilo de vida ascético a todo custo (como recomendavam os cínicos), mas sim tratar a presença ou ausência de riqueza como indiferente à qualidade moral e à busca de sabedoria. Se você tem riqueza, use-a para o melhor; se você a perder, não se arrependa; se você não a tem, não a inveje.

No parágrafo 44, Marco escreve sobre outra ideia central do estoicismo:

“aqueles que preferem perseguir a fama póstuma não consideram que os homens de outros tempos serão exatamente como estes que não pode suportar agora”(VIII,44).

No parágrafo 48 temos a citação que deu título a um famoso livro sobre estoicismo de Pierre Hadot:

“a mente livre de paixões é uma cidadela, pois o ser humano não tem nada mais seguro para o qual possa se refugiar e para o qual o futuro seja inexpugnável”(VIII,48).


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Livros recomendados:  Pierre Hadot

   

Resenha: Meditações, Livro VII

O uso da razão é o foco do Livro VII:

“As coisas que são externas à minha mente não têm nenhuma relação com a minha mente.” (VII,2)

Marco Aurélio aborda o conceito de eudaemonia e como se manter são:

“Que fique no exterior o que cair sobre as partes que podem sentir os efeitos desta queda. Porque aquelas partes que sentirem se queixarão, se quiserem. Mas eu, a menos que pense que o que aconteceu é um mal, não sou ferido. E está em meu poder pensar assim.” (VII,14)

Um pouco mais tarde (#27) Marco Aurélio escreve sobre como se deve apreciar o que se tem, enquanto ao mesmo tempo não se apegar muito a isso, um lembrete da famosa máxima de Epicteto de que não possuímos nada (nem ninguém), nós apenas os “emprestamos”:

Não pense tanto no que você não tem quanto no que você tem: mas nas coisas que você escolheu o melhor, e então reflita quão ansiosamente elas teriam sido procuradas, se você não as tivesse. Ao mesmo tempo, no entanto, tome cuidado para que você não se acostume a supervalorizá-las, de modo a ser incomodado se você não as tiver no futuro.  (VII,27)

No final, temos uma frase fantástica, quando Marco diz que não adianta tentar fugir do mal dos outros, mas que devemos evitar o mal em nós mesmos:

“É uma coisa ridícula para um homem não fugir da sua própria maldade, que é realmente possível, mas tentar fugir da maldade de outros homens, que é impossível.” (VII, 71)


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Resenha: Meditações, Livro VI

O livro VI começa com um exemplo da atitude estoica de perseverança:

“Que não faça diferença para você se está frio ou quente, se está cumprindo seu dever; e se está sonolento ou saciado de sono; e se foi mal falado ou louvado; e se está morrendo ou fazendo outra coisa. Pois é um dos atos da vida, este ato pelo qual morremos; é suficiente então neste ato também fazer bem o que temos em mãos.”(VI,2)

No parágrafo 18 ele novamente alerta contra perseguir a fama, um de seus temas recorrentes:

“Como estranhamente os homens agem. Eles não louvarão aqueles que vivem ao mesmo tempo e vivem consigo mesmos, mas para serem elogiados pela posteridade, por aqueles que nunca viram ou jamais verão, isso eles valorizam muito”. (VI,18)

No 21  há outra frase esplêndida, esta sobre a racionalidade de mudar de ideia quando necessário:

Se alguém for capaz de me convencer e me mostrar que não penso nem ajo corretamente, de bom grado mudarei, pois busco a verdade, pela qual nenhum homem jamais foi ferido. Mas aquele que permanece no seu erro e na sua ignorância é ferido.” (VI,21)

Uma das discussões em curso entre os estoicos modernos é até que ponto se deve aceitar a providência divina e uma visão teleológica do universo, que era certamente popular entre os estoicos antigos. Marco Aurélio frequentemente expressa uma atitude que hoje poderíamos chamar de agnóstica, implicando ou mesmo afirmando diretamente que não importa se alguém acredita na providência divina (para os estoicos Deus era a própria natureza) ou em apenas átomos e caos (a visão epicureana). Aqui está uma dessas passagens:

“Alexandre o macedônio e seu noivo por morte foram levados ao mesmo estado; pois ou foram recebidos nos mesmos princípios seminais do universo, ou foram igualmente dispersos entre os átomos”. (VI, 24)

Dois conceitos estoicos importantes são abordados: a perspectiva das coisas e o cosmopolitismo estoico:

“Ásia, Europa, são cantos do universo; todo o mar uma gota no universo; Athos um pequeno torrão do universo: todo o tempo presente é um ponto na eternidade.” (VI,36)

“meu país, enquanto Antonino, é Roma; mas enquanto homem, é o mundo”.(VI,44)

No livro Marco faz referências a textos de Cícero e Plutarco


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Veja também:

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Resenha: Meditações, Livro V

O Livro V das Meditações de Marco Aurélio começa com esta famosa passagem: “Na manhã em que você se levantar sem vontade, que este pensamento esteja presente, Eu estou me levantando para o trabalho de um homen. Por que, então, estou insatisfeito se vou fazer as coisas para as quais existo e para as quais fui trazido ao mundo? “, seguido de um comentário bem humorado que diz que sim, preferíamos ficar quentes debaixo dos cobertores, porque é mais agradável, e ainda assim não fomos feitos para nos deleitar (visão epicurista), mas para fazer o trabalho de um ser humano, o que significa – para os estoicos – ser útil à sociedade.

No parágrafo 3, Marco se lembra de ignorar a desaprovação ou crítica dos outros se sabe que o que está dizendo ou fazendo é a coisa certa a fazer ou a dizer. Este tipo de passagens são muitas vezes mal interpretadas pelos críticos do estoicismo como indicando uma atitude que pode levar a ignorar a crítica e abraçar os próprios preconceitos. Contudo Marco afirma muito claramente em outros trechos que o sábio aprende com a boa crítica, então não é essa a intenção: a idéia, ao contrário, é seguir em frente apesar das críticas mesquinhas e injustificadas.

No parágrafo 8 explicita sua visão panteísta, ou seja, o universo e Deus é a mesma ocorrência.

“aceite tudo o que acontece, mesmo que pareça desagradável, porque leva a isso, à saúde do universo e à prosperidade e felicidade de Zeus (Universo). Pois ele não teria trazido a nenhum homem o que trouxe, se não fosse útil para o todo… Por duas razões então é certo estar contente com o que lhe acontece; uma, porque foi feito para você e prescrito para você; e a outra, porque mesmo o que vem cruelmente para cada um de nós é para o poder que administra o universo uma causa de felicidade e perfeição… Para a integridade do todo você é mutilado, se cortar qualquer coisa da combinação e da continuidade, quer das partes ou das causas e você se corta.” (V,8)

O estoicismo é uma filosofia, não uma religião, então seus praticantes têm permissão para atualizá-lo de acordo com a melhor compreensão pessoal.

No parágrafo 20 temos uma passagem importante, que foi usada como título da obra contemporânea sobre estoicismo de Ryan Holiday, O Obstáculo é o Caminho:

“a mente converte e transforma cada obstáculo à sua atividade em um instrumento; O que impede a ação estimula a ação. O que fica no caminho torna-se o caminho.” (V,20)

Em torno dos parágrafos 23-24 ele retorna a um de seus temas recorrentes, a impermanência das coisas, tendo a perspectiva cósmica sobre os assuntos humanos: “Pense na substância universal, da qual você tem uma porção muito pequena, e no tempo universal, do qual um curto e indivisível intervalo foi atribuído a você, e no que é fixado pela Fortuna, e quão pequena parte dele é você.(V,24)

O parágrafo 28 merece ser destacado na íntegra porque que é bem colocado e bem-humorado:

“Você está indignado contra aquele cujas axilas fedem, ou com aquele cuja boca cheira mal? Que bem fará esta ira? Ele tem tal boca, tem tais axilas; é necessário que tal emanação venha de tais coisas; mas o homem tem razão, isso será dito, e ele é capaz, se tomar dores, de descobrir em que ele ofende; eu desejo-lhe o sucesso em sua descoberta. Bem, então, e você tem razão: por sua faculdade racional, estimule a faculdade racional dele; mostre-lhe seu erro, admoeste-o. Pois se ele escutar, você o curará, e não há necessidade de ira.” (V,28)

Outra passagem muito importante, esta sobre o suicídio, vem logo em seguida:

“se os homens não permitirem, então se afaste da vida, ainda assim como se você não sofresse nenhum dano. A casa está cheia de fumaça, e eu saio dela . Por que você acha que isso é algum problema? Mas enquanto nada desse tipo me expulsar, eu permaneço, sou livre, e nenhum homem me impedirá de fazer o que eu escolher; e eu escolho fazer o que está de acordo com a natureza do animal racional e social”

É uma simplificação do ensinamento de Epiteto: “Se a sala estiver cheia de fumo, se apenas moderadamente, vou ficar; se houver demasiada fumaça, vou. Lembre-se disso, mantenha-se firme, a porta está sempre aberta

O tema do suicídio é recorrente no estoicismo, e a abordagem estoica é, penso eu, ainda hoje muito válida.

 


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Livro: Sobre os Benefícios (De Beneficiis)

Sobre os Benefícios (De Beneficiis), uma das obras do período final da vida de Sêneca, diz respeito à concessão e recepção de presentes e favores dentro da sociedade, e examina a natureza complexa e o papel da gratidão no contexto da ética estoica. A obra é dividida em sete livros subdivididos em várias seções, contendo exortações que o filósofo faz ao seu amigo Aebutius Liberalis. (também citado na carta a Lucílio, XCI)

Trata-se de um ensaio sobre a gratidão. Sêneca explica porque considera a troca de benefícios como o principal vínculo da sociedade humana e receita preceitos e responde perguntas como: O que devemos em troca de um benefício recebido – Que tipos de benefícios devem ser concedidos, e de que maneira  – A ingratidão deveria ser punida por lei? – Um escravo pode conceder um benefício? – Como escolher o homem a ser beneficiado – Como se deve tolerar os ingratos.

Sêneca usa das situações cotidianas e hábitos comuns dos romanos para facilitar a compreensão do estoicismo o que torna a leitura duplamente interessante: não só pela filosofia mas também porque permite que conheçamos a cultura e sociedade do império Romano.

A ética de Sêneca é sempre pura, e dele obtemos a visão das doutrinas dos filósofos gregos, Zenão, Epicuro, Crisipo e Cleantes, cujas obras se perderam, mas as quais temos acesso, em segunda mão, por este livro:

Cleantes fala: “aquele que carrega armas mortais e tem intenções de roubar e matar, é um bandido antes mesmo de ter mergulhado as mãos no sangue; Sua maldade consiste e é mostrada em ação, mas não começa assim. Homens são punidos por sacrilégio, embora ninguém possa causar dano aos deuses.” (V, 14)

Embora De Beneficiis seja tipicamente traduzido como Sobre os Benefícios, a palavra Beneficiis é derivada da palavra latina beneficium, que significa um favor, benefício, serviço ou bondade.  Outras traduções do título para a língua inglesa incluem: Sobre presentes e serviços; Sobre a concessão e recepção de favores; Sobre favores; e Sobre obras de caridade.

A primeira frase da obra diz:

Entre as numerosas falhas daqueles que passam suas vidas imprudentemente e sem a devida reflexão, meu bom amigo Liberalis, devo dizer que dificilmente alguém é tão prejudicial à sociedade, quanto aquele que não sabe como dar ou como receber um benefício. (I,1)

Trechos:

Há uma grande diferença entre o assunto de um benefício e o benefício em si. Portanto, nem o ouro nem a prata, nem qualquer das coisas mais altamente estimadas, são benefícios, mas o benefício está na boa vontade daquele que os dá. (I,5)

Não é, portanto, a coisa que é feita ou dada, mas o espírito em que é feito ou dado, que deve ser considerado, porque existe um benefício, não naquilo que é feito ou dado, mas na mente da pessoa fazedora ou doadora. (I,6)

No entanto, os homens concedem benefícios a seus reis e generais; portanto, os escravos podem conceder benefícios aos seus mestres. Um escravo pode ser justo, corajoso e magnânimo; ele pode, portanto, conceder um benefício, pois esta é também o papel de um homem virtuoso. (III, 18)

Então, se você fala de natureza, destino ou fortuna, estes são todos os nomes do mesmo Deus, usando seu poder de maneiras diferentes. Assim também a justiça, a honestidade, a discrição, a coragem, a frugalidade, são todas as boas qualidades de uma e da mesma mente; (IV,8)

Se você se examinar cuidadosamente, talvez encontre o vício de que se queixa no seu próprio peito; você está errado ao se irritar com uma falha generalizada, e tolo ao mesmo tempo, pois ela também é sua; você deve perdoar os outros, para que você mesmo possa ser absolvido. (VII, 28)

Sêneca, assim como Cícero, segue uma linhagem terapêutica, pois enxerga a filosofia como um remédio para a alma.

Imagem: Afresco de Pompeia,  Museo Archeologico Nazionale di Napoli

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Livro: Da Clemência ( Tratado sobre a Clemência)

De Clementia, Da Clemência, também traduzido como Tratado sobre a Clemência, é um ensaio de originalmente três volumes dos quais apenas o primeiro e parte do segundo sobreviveram. Foi escrito em 55-56 d.C. por Sêneca, dedicado ao imperador Nero no seu primeiro (ou segundo) ano de reinado.

No De Clementia Sêneca desenvolve suas reflexões sobre o poder do estado e sobre a diferença entre o tirano e o bom rei. Traça a imagem de um governante que reina, como representante dos deuses. Explica que o poder absoluto pode ser legitimado e justificado pela prática da clemência, mantendo assim a ordem e organizando um consenso entre os homens. Ao ser clemente, ao ser virtuoso, o imperador se torna útil ao bem público, se porta segundo à Natureza, se conforma ao Logos, à Fortuna.

Na obra vemos como a clemência deve ser exercitada principalmente por aqueles que podem socialmente exercer poder sobre outros: príncipes, professores, militares, pais, considerando que o dano causado por um erro de julgamento por estes, quando afetados por alguma paixão, será profundamente danoso para quem recebe a punição e para quem a ordena. Para o príncipe, a prática da clemência, além de evitar a formação de oposições, de legitimar seu poder e de lhe garantir direito de sucessão, fornece estabilidade e segurança no poder. Enquanto o tirano, o mau imperador é perseguido e vive sem tranquilidade, o rei-filosofo, o bom e clemente imperador vive em paz, pois conta com o amor e não com o temor dos súditos:

“… ser poderoso apenas para o mal é o poder de uma pestilência. A grandeza do homem repousa sobre um alicerce seguro, a quem todos os homens sabem estar tanto do lado deles quanto acima deles, de cujo cuidado vigilante pela segurança de cada um e de todos eles recebem provas diárias, aquele cuja presença não os faz fugirem aterrorizados, como se algum animal perigoso e malévolo tivesse surgido de seu covil, mas os reunissem para ele como fariam com o brilho do sol. Eles estão perfeitamente prontos para atirar-se nas espadas dos conspiradores em sua defesa, para oferecer seus corpos se seu único caminho para a segurança deva ser formado por cadáveres: eles protegem seu sono em vigílias noturnas, eles o cercam e o defendem de todos os lados, e expõem-se aos perigos que o ameaçam.”(I,III,3)

“Clemência, portanto, como eu disse antes, naturalmente se adapta a toda a humanidade, mas mais especialmente aos governantes, porque no caso deles há mais para se salvar, e isso é exibido em uma escala maior. Crueldade em um homem privado pode causar muito pouco dano; mas a ferocidade dos príncipes é guerra.” (I,V,2)

O contraste instrucional entre o bom governante e o tirano é feito inicialmente de forma teórica, passando então para exemplos de governantes tiranos, como Sulla e Calígula servindo de advertência e Augusto como exemplo a ser seguido. Uma ilustração extensa da clemência de Augusto com o rebelde Cinna ao lado de um exemplo da própria vida de Nero pretende encorajar o jovem imperador a também mostrar clemência. (Livro I, capítulos IX-XVI). Sêneca afirma que excesso de punição é ruim para a moral da nação:

“Uma proposta foi feita uma vez no Senado para distinguir escravos de homens livres por suas roupas: foi então descoberto quão perigoso seria se nossos escravos pudessem contar seus números. Esteja certo de que a mesma coisa seria o caso se nenhuma ofensa fosse perdoada: descobrir-se-á rapidamente até que ponto o número de homens maus excede o dos bons”. (I, XXIV, 1)

No Livro II Sêneca relembra a Nero um episódio em que este havia demostrado clemência e o com isso atingido seus objetivos e demonstrado clareza de raciocínio e bondade. Na sequência explana que a Clemência se trata de uma virtude que requer equilíbrio na sua aplicação: não é oportuno ter uma clemência promíscua e banal, nem uma clemência inacessível, pois tanto é cruel perdoar a todos quanto a ninguém.

São quatro as definições da clementia senequiana: (II,III,2-3)

  • “Clemência é a moderação de espírito humano no desempenho do poder de castigar”;
  • “A brandura do superior em face do inferior, quando da aplicação da pena”;
  • “Inclinação da mente para o abrandamento no ato de impor um castigo”;
  • ” … a clemência é a moderação que retira alguma coisa de uma punição merecida e devida”.

Sêneca considera a misericórdia um vício, e a define como sendo a corrupção da virtude da clemência:

“Agora, cabe investigar o que é misericórdia. Muitos que a exaltam como virtude e denominam a pessoa boa de misericordiosa. Ora, esta é um vício de alma. Ficou estabelecido, acima, o que deve ser conceituado acerca da severidade e da clemência. Sob a máscara de severidade podemos decair na crueldade enquanto sob a aparência de clemência cair para a misericórdia”. (II,IV,4)

“O perdão é a remissão de uma punição merecida; Um homem concede perdão a aquele a quem ele deveria punir: agora o homem sábio não faz nada que não deva fazer, e não omite nada que deva fazer: ele não remete, portanto, nenhuma punição que deva proferir. “(II,VII,1-2)

Portanto, a clemência estaria mais próxima de uma correção da lei cuja universalidade a faz falha. Seria uma espécie de justiça exercida por uma instância superior, de caráter humanitário, que ao soberano permite sobrepor-se às leis escritas pelos homens.

Esta obra influenciou pensadores importantes da Idade Média e do Renascimento. Um exemplo é o Reformador Francês João Calvino. Pouco depois de terminar seus estudos de direito, o jovem João Calvino escreveu seu primeiro livro, um comentário sobre De Clementia que consiste principalmente de notas filológicas intercaladas com impressões sobre o estilo e as ideias de Sêneca. Em sua obra Institutas da Religião Cristã, Calvino aborda o papel das autoridades civis na punição e a importância retomando conceitos da obra.

Infelizmente o ensaio nos chegou incompleto, de acordo com o texto tradicional, o texto deve ter sido escrito em três livros. Das três partes, os manuscritos oferecem somente o livro I e os sete primeiros capítulos do livro II. O livro III está totalmente perdido. Aliás, não se sabe, com toda a certeza, se parte da obra se perdeu ou se Sêneca jamais a concluiu. Do livro I, temos o texto completo e, o tema. Do livro II, o sumário anuncia que tratará da natureza da clemência e dos sinais que a diferenciam dos vícios. Mesmo inacabado, o assunto e o sumário conferem. O livro III, ainda segundo o sumário, tratará de ensinar, através de conselhos práticos, como se pode levar o espírito humano para o exercício da clemência. Deste livro nada restou.

A obra resume o conceito de poder segundo a filosofia estoica: a autoridade aristocrática que domina o povo, retendo suas tendências anárquicas, contribuindo para a ordem e desenvolvimento, provém de sua própria grandeza e poder, que, por sua vez, pertencem aos deuses os quais o soberano representa.

(imagem Relevo do monumento a Marco Aurélio, Clemência aos suplicantes bárbaros , Museu Capitolino, Roma, Itália)

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Livro: A Vida Feliz (De Vita Beata)

O diálogo A Vida Feliz foi escrito por volta do ano 58 dC., destinado ao seu irmão mais velho, Gálio.

A principal coisa a entender sobre o texto é o próprio título: ‘Feliz‘ aqui não tem a conotação moderna de se sentir bem, mas é o equivalente da palavra grega eudaimonia, que é melhor compreendida como uma vida digna de ser vivida, um estado de plenitude do ser. Para Sêneca e para os estoicos, a única vida que vale a pena ser vivida é aquela de retidão moral, o tipo de existência à qual olhamos no final e podemos dizer honestamente que não nos envergonhamos.

Logo no primeiro parágrafo Sêneca dá a linha da argumentação estoica: Não devemos ter a felicidade como objetivo: “não é fácil alcançar a felicidade já que quanto mais avidamente um homem se esforça para alcançá-la mais ele se afasta”.(I,1) A solução é ter como objetivo a virtude. A felicidade será consequência.

Sêneca faz grande oposição ao epicurismo, corrente filosófica que valoriza o prazer como fonte de felicidade, como vemos: “Você se dedica aos prazeres, eu os controlo; você se entrega ao prazer, eu o uso; você pensa que é o bem maior, eu nem penso que seja bom: por prazer não faço nada, você faz tudo.”  (X, 3 ).

No capítulo XV, Sêneca explica por que não se pode simplesmente associar a virtude ao prazer. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, o prazer o levará a territórios não virtuosos: “Quem, por outro lado, forma uma aliança, entre a virtude e o prazer, obstrui qualquer força que uma possa possuir pela fraqueza da outra, e envia liberdade sob o jugo, pois a liberdade só pode permanece inconquistável enquanto não sabe nada mais valioso do que ela mesma: pois começa a precisar da ajuda da Fortuna, o que é a mais completa escravidão: sua vida torna-se ansiosa, cheia de suspeitas, tímida, temerosa de acidentes, esperando em agonia por momentos críticos. Você não oferece à virtude uma base sólida e imóvel se você a colocar sobre o que é instável: e o que pode ser tão instável quanto a dependência do mero acaso e as vicissitudes do corpo e daquelas coisas que agem sobre o corpo?”. (XV, 3 )

O livro fornece uma lista de regras pelas quais Sêneca está tentando viver. Vale a pena considerá-las na íntegra:

• Eu vou encarar a morte ou a vida a mesma expressão de semblante;
• Eu desprezarei as riquezas quando as tiver tanto quanto quando não as tiver;
• Verei todas as terras como se pertencessem a mim, e as minhas terras como se pertencessem a toda a humanidade;
• Seja o que for que eu possua, eu não vou acumulá-lo avidamente nem o desperdiçar de forma imprudente;
• Não farei nada por causa da opinião pública, mas tudo por causa da consciência;
• Ao comer e beber, meu objetivo é extinguir os desejos da natureza, não encher e esvaziar minha barriga;
• Eu serei agradável com meus amigos, gentil e suave com meus inimigos;
• Sempre que a Natureza exigir minha vida, ou a razão me pedir que a rejeite, vou desistir desta vida, chamando a todos para testemunhar que amei uma boa consciência e boas atividades;

Neste ensaio Sêneca aprofunda a explicação sobre os indiferentes preferidos e despreferidos. E faz uma longa exposição ( capítulos 21 a 26) da relação entre riqueza, virtude e felicidade:

“Portanto, não cometa nenhum erro: as riquezas pertencem à classe das coisas desejáveis. “Por que então”, você diz, “você ri de mim, já que você as coloca na mesma posição que eu?” 5. Você deseja saber quão diferente é a posição em que as colocamos? Se as minhas riquezas me deixarem, não levarão consigo nada além de si mesmas: já vocês ficarão desnorteadas e parecerão ficar fora de si se as perderem: comigo as riquezas ocupam um certo lugar, mas com você elas ocupam lugar mais alto de todos. Em suma, minhas riquezas pertencem a mim, você pertence às suas riquezas.”  (XXII, 4.5)

(imagem  Herbert James DraperUlises e as Sereias)

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