Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

A oitava carta de Sêneca aborda a tensão entre a vida contemplativa e a ação social, uma questão central no estoicismo e na filosofia em geral. Sêneca defende um isolamento temporário não como um fim em si mesmo, mas como meio de melhor servir à sociedade, refletindo sobre o valor da introspecção e do estudo intenso.

Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar. “Fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade.

A carta de Sêneca encontra ressonância na modernidade, onde a busca por sucesso e bens materiais muitas vezes ofusca a busca por sabedoria e contentamento interior. A ideia de que a verdadeira liberdade vem da submissão à filosofia, ou a um sistema de valores elevados, é uma mensagem que ainda ressoa.

Uma frase forte da oitava carta de Sêneca a Lucílio, que resume muitos dos temas centrais da carta e do estoicismo em geral, é:
“Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia.”
Essa frase encapsula a ideia de que a verdadeira liberdade humana não vem da autonomia externa ou das posses materiais, mas da adesão a uma vida guiada pela razão e pela virtude, que é a essência da filosofia estoica. Ela sugere que a liberdade verdadeira é alcançada através da submissão à disciplina filosófica, que nos liberta das illusões e vicissitudes da fortuna e das paixões descontroladas.

(Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


VIII. Sobre o isolamento do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Uma objeção sua: “Você sugere que se evite a multidão, se retire do contato dos homens e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?”1 Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior.2 Nunca passo um dia em ociosidade, aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso. E quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechados, eu os mantenho em sua tarefa.

2. Tenho me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios. Estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para elas.3 Há certos conselhos sadios que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito, pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.

3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os presentes da fortuna, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação”. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados. Isso porque nós pensamos que nós as mantemos em nosso poder, mas são elas que nos prendem.

4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento, nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”. A fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.

5. Apegue-se pois, a esta regra sadia e sólida para a vida: que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande.

6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte ou carimbo meu selo sobre uma decisão ou presto ajuda ao senado ou por palavra ou ação presto meu apoio a um candidato qualquer? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas: eles estão lidando ao mesmo tempo com os planos humano e divino.

7. Mas devo parar e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade, pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”.4 O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da filosofia é a liberdade.

8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Publílio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços!5

9. Vou citar um versículo dele que diz respeito à filosofia e, particularmente, aquela frase sobre a qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:

Ainda é alheio o que você ganhou do acaso .

Alienum est omne, quicquid optando evenit.5

10. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: “O que a Fortuna fez não é seu”. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: “O bem que pode ser dado, pode ser removido.” Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo. Ao contrário dos epicuristas, que defendiam uma vida à margem das obrigações políticas e sociais, os estoicos aconselhavam a participação ativa do sábio nos assuntos do estado. Isto explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Sêneca. Ver George Stock, Estoicismo.

2 As condições sócio-políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como fez Sêneca a partir de 63 quando perdeu influência sobre Nero. Ver o tratado Sobre o Ócio em que Sêneca aprofunda o assunto.

3 Essas Cartas!

5 “excalceatis”, referência a comediantes ou mímicos.

6  Provérbios de Publílio Siro (Século 1 a.C.). Também conhecido como Publilio Sirio, ou como Publilius Syrius ou Publio Sirio. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

Extra: Carta 107: Espera por tudo / tradução de Aldo Dinucci

Temos uma excelente novidade! Um pouco de variação.
Quem acompanha o blog sabe que publicamos 99 cartas de Sêneca, traduzidas do inglês por Alexandre Vieira.

Recentemente o professor Aldo Dinucci lançou livro com tradução direto do latim de Cartas Selecionadas. Ao ler irão perceber estilo muito mais conciso e próximo do original de Sêneca. Não irei comentar a carta, mas trazer a pequena introdução que Aldo nos enviou:

Pessoal, pretendi fazer um manual de Sêneca com a minha tradução destas nove cartas do Latim. Sêneca me ajudou muito em um período muito difícil de minha vida. Esse livro é minha homenagem a quem considero um dos mais poderosos intelectuais (filósofo, dramaturgo, poeta, humorista, político) de todos os tempos. Meu objetivo é que seu pensamento continue ajudando quantas pessoas dele necessitarem. Saudações a todos.
Aldo Dinucci.

Professor Doutor em Logica & Filosofia – Universidade Federal de Sergipe

Cartas Selecionadas está disponível em papel e formato digital.

(imagem Boulanger Gustaveo mercado de escravos)


Carta CVII – Espera por tudo (Omnia Exspecta)

Sêneca saúda seu amigo Lucílio.

(1) Onde está aquela tua prudência? Onde está a sagacidade nas coisas que se devem discernir? Onde está a grandeza de alma? Já as pequenas coisas te afligem? Teus servos viram, em tuas ocupações, a oportunidade para a fuga. Se os amigos te enganaram, que tenham então este nome, o qual nosso erro lhes colocou de modo impensado. E que sejam assim chamados, para que seja mais vergonhoso não o serem. Pois bem, há algo a menos dentre as tuas coisas: aqueles amigos, que agora te faltam, são aqueles que destruíam a tua obra e te consideravam molesto aos demais.

(2) Nenhuma destas coisas é insólita, nenhuma inesperada. Ofender-te com estas coisas é tão ridículo quanto te queixares porque caíste em público ou porque te sujaste na lama. A mesma condição tem a vida, o banho público, a multidão, a viagem: algumas coisas serão atiradas em ti, algumas coisas acontecerão. Não é coisa delicada viver. A uma longa viagem vieste e é necessário que escorregues, que tropeces, que caias, que te canses e que exclames: “Ó Morte!”, isto é, é necessário que mintas. Num lugar, deixarás para trás um companheiro; noutro, sepultarás um; noutro ainda, terás medo; deste modo, por entre ferimentos, é necessário atravessar esta difícil viagem. (3) Deseja alguém morrer? Que seu espírito esteja preparado contra todas as coisas; que saiba, por si mesmo, que chegou onde estronda o trovão. Que saiba por si mesmo que chegou onde…

Perdas e Vingança estabeleceram seus quartéis de governo
E pálidas e tristes doenças e a velhice habitam[1].

Nesta morada, é necessário gastar a vida. Escapar dela não podes, desprezá-la podes. (4) Desprezarás, porém, se muitas vezes pensares e conjecturares as coisas futuras. Todos mais corajosamente atravessam aquilo para o que durante muito tempo se prepararam, e, do mesmo modo, resistem se previamente refletem sobre os obstáculos. Por outro lado, teme-se muito aquilo contra o que não se preparou, mesmo as coisas fúteis.  Isto é necessário fazer: que nada seja para nós inesperado. E, porque todas as coisas são mais graves por <serem> novidades, a reflexão constante te defenderá disso – assim, peço-te que, de modo algum, ajas como um mau recruta.

(5) “Os servos me deixaram”. A outro roubaram, a outro falsamente acusaram, a outro assassinaram, a outro traíram, a outro esmagaram, a outro envenenaram, a outro atingiram com falsa acusação: o que quer que digas, aconteceu a muitos. Em seguida, <é preciso que saibas que> muitos e variados dardos há e são dirigidos a nós. Alguns estão fixados em nós, alguns são lançados e chegam com força máxima, (6) alguns, que vão atingir outros, resvalam em nós.

(6) Em nada nos admiremos destes <dardos>, para os quais nascemos; os quais, por esta razão, de modo algum devem ser lamentados, porque são pátria para todos. Assim, digo que são iguais <para todos>, pois também se pode sofrer daquilo do que se escapa. Além disso, uma lei equitativa é o que é estabelecido para todos, não o que ocorre para todos. Que seja prescrita equidade ao espírito e que paguemos, sem queixas, os tributos de nossa condição mortal.

(7) O inverno faz vir o frio: é necessário gelar. O tempo traz de novo o calor: é necessário arder. A intempérie do céu provoca a saúde: é necessário adoecer. Uma fera em algum lugar se aproximará de nós, e também um homem mais pernicioso que todas as feras. Algo a água, algo o fogo retirar-nos-á. Esta condição das coisas não podemos mudar. Mas isto podemos <fazer>: adotar um espírito elevado e digno do homem nobre para (8) que corajosamente suportemos as coisas fortuitas e nos harmonizemos com a Natureza. A Natureza tempera este reino que vês com as mutações: o céu sereno sucede ao coberto de nuvens; agitam-se os mares com a condição de que se acalmem; parte do céu se ergue, parte imerge. A eternidade das coisas consiste nos contrários.

(9) É necessário que nosso espírito se adapte a esta lei; é necessário que siga esta lei, que a obedeça. E, o que quer que aconteça, é necessário que pense ter devido acontecer e que não deseje repreender a natureza, que siga a Divindade, da qual todas as coisas provêm.

Mau soldado é quem (10) segue gemendo o comandante. Portanto, cheios de ardor e diligentes, recebamos as ordens e não desertemos o curso desta belíssima obra à qual foi entrelaçada o que quer que teremos de suportar. E deste modo, exortemos a Júpiter, cujo governo é ornador dessa imensidade, da mesma maneira que nosso Cleantes o exorta através de versos mais que eloquentes, versos os quais me é permitido traduzir para o nosso idioma, a exemplo de Cícero, mais eloquente dos homens. Se te agradarem, aprová-los-á, se te desagradarem, saberás que aqui segui o exemplo de Cícero:

(11) Conduz-me, ó Pai Excelso e Senhor do Mundo,
Para onde quer que queiras, nenhum obstáculo impedir-me-á de seguir-te.
Diligente, estarei junto a ti. E, caso eu não o queira fazer
o que é possível ao intrépido, ainda assim seguir-te-ei, gemendo e infeliz.
O Destino conduz quem lhe obedece e arrasta a quem lhe opõe resistência.

(12) Que vivamos assim, que falemos assim; que o destino nos encontre prontos e diligentes. Eis o espírito elevado que confiou a si mesmo ao destino. E, em oposição a ele, o fraco e degenerado, que luta contra e julga mal a ordem do mundo e prefere corrigir os Deuses que a si mesmo.

Adeus.


[1] Virgílio, Eneida, vi, 274 ss.

Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna

Na carta 98 Sêneca mais uma vez alerta contra a busca por felicidade e sobre a excessiva confiança na Fortuna, ou seja, não prever que eventos prejudiciais acontecerão conosco.

Devemos ter em mente que tudo que acreditamos possuir, desde bens materiais aos amigos e família, são apenas empréstimos temporários, que um dia deixaremos de ter:

Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

(XCVIII, 2)

Sêneca apresenta exemplos que homens de virtude e diz que devemos segui-los sem medo: “As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio, crucificação por Régulo, veneno por Sócrates, exílio por Rutílio e espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”. (XCVIII,12)

(imagem Matthias Stomer, Múcio na presença de Lars Porsena)


XCVIII. Sobre a inconstância da fortuna

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você nunca deve acreditar que qualquer pessoa que dependa da felicidade esteja feliz! É um apoio frágil esse prazer em coisas forasteiras, a alegria que veio de fora partirá algum dia. Mas essa alegria que brota completamente de si próprio é leal e sólida, aumenta e nos atende até o fim enquanto todas as outras coisas que provocam a admiração da multidão são apenas bens temporários. Você pode responder: “O que você quer dizer? Não seria possível que essas coisas sirvam tanto para utilidade quanto para trazer satisfação?” Claro. Mas somente se elas dependerem de nós, e não nós delas.

2. Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

3. Um homem ruim torna tudo ruim, mesmo coisas que vieram com a aparência do melhor. Mas o homem reto e honesto corrige os erros da Fortuna e suaviza dificuldades e amarguras porque sabe como suportá-las, ele também aceita prosperidade com apreciação e moderação e enfrenta problemas com firmeza e coragem. Embora um homem seja prudente, embora ele conduza todos os seus interesses com um julgamento bem equilibrado, embora ele não tente nada além de suas forças, ele não alcançará o bem, que está livre e fora do alcance das ameaças, a menos que tenha certeza de lidar com habilidade com aquilo que é incerto.

4. Se você prefere observar outros homens – pois é mais fácil chegar a uma conclusão ao julgar os assuntos dos outros – ou se você se observa, com todo o preconceito deixado de lado, você perceberá e reconhecerá que não há utilidade em todas essas coisas desejáveis e amadas a menos que você se equipe em oposição à inconstância do acaso e suas consequências e a menos que você repita com frequência e com indiferença, em cada transtorno, as palavras: “Os deuses decretaram o contrário”.[1]

5. Não, em vez disso, adote uma frase que seja mais corajosa e mais próxima da verdade – uma sobre a qual você possa suportar com segurança seu espírito. Diga a si mesmo, sempre que as coisas se revelem contrárias à sua expectativa: “Os deuses decretaram o melhor!” Se você estiver com essa disposição de espírito, nada irá afetá-lo. Esta disposição você conseguirá se refletir sobre os possíveis altos e baixos nos assuntos humanos antes de testar a força da Fortuna, se vier a considerar filhos ou esposa ou propriedade com a ideia de que não os possuirá necessariamente para sempre e que não será mais miserável apenas porque os tenha deixado de possuir.

6. É trágico que a alma esteja apreensiva pelo futuro e miserável em antecipação à miséria, consumada com um ansioso desejo de que os objetos que dão prazer permaneçam em sua posse até o fim. Pois tal alma nunca estará em repouso. Na espera do futuro, perderá as bênçãos presentes que poderia já desfrutar. E não há diferença entre o sofrimento por algo perdido e o medo de perdê-lo.

7. Mas, por isso, não aconselho você a ser indiferente. Em vez disso, se afaste do que pode causar medo. Certifique-se de prever tudo o que possa ser previsto no planejamento. Observe e evite, muito antes de acontecer, qualquer coisa que seja susceptível de causar prejuízo. Para realizar isso, sua melhor assistência será um espírito confiante e uma mente fortemente decidida a suportar todas as coisas. Aquele que pode suportar a Fortuna, também pode se precaver contra a Fortuna. De qualquer forma, não há turbilhão de ondas quando o mar está calmo. E não há nada mais miserável ou tolo do que o medo prematuro. Que loucura é antecipar os problemas!

8. Muito bem, para expressar meus pensamentos em passo rápido e retratar em uma frase aqueles homens intrometidos e autotorturadores que estão tão descontrolados em meio a seus problemas como estão antes dos problemas: “Sofre mais do que é necessário, quem sofre antes que seja necessário”. Tais homens não pesam a quantidade de seus sofrimentos, por causa da mesma deficiência que os impede de estarem prontos para isso e com a mesma falta de restrição imaginam ingenuamente que sua Fortuna durará para sempre e imaginam ingenuamente que seus ganhos devem aumentar, assim como simplesmente continuar. Eles esquecem esse trampolim sobre o qual as coisas mortais são jogadas e eles acreditam garantir a si mesmos uma continuação infinita das dádivas da chance.

9. Por esta razão, considero excelente a frase de Metrodoro,[2] em uma carta de consolo à sua irmã pela perda de seu filho, um menino de grande promessa: “Todo o bem relativo aos mortais é mortal”.[3] Ele está se referindo aos bens para os quais os homens se atiram em cardumes. Pois o bem real não perece, é certo e duradouro e consiste em sabedoria e virtude –  é a única coisa imortal que é concedida aos mortais.

10. Mas os homens são tão instáveis e tão esquecidos do seu objetivo e do ponto para onde todos os dias os empurram, que ficam surpresos com a perda de qualquer coisa, embora algum dia eles sejam obrigados a perder tudo. Qualquer coisa de que você tenha o título de proprietário está em sua posse, mas não é sua, pois não há força naquilo que é fraco, nem qualquer coisa duradoura e invencível naquilo que é frágil. Devemos perder nossas vidas tão seguramente quanto perderemos nossa propriedade e isso, se compreendemos a verdade, é em si mesmo um consolo. Perca então com serenidade, pois você deve perder sua vida também.

11. Que recurso encontramos, então, diante dessas perdas? Simplesmente isso: manter em memória as coisas que perdemos e não sofrer pela perda do gozo que derivamos delas. Pois “ter” pode ser tirado de nós, “ter tido”, nunca. Um homem é ingrato no mais alto grau se, depois de perder algo, ele não sinta nenhum agradecimento por tê-lo recebido. A Fortuna nos rouba a coisa, mas nos deixou a utilidade e prazer que tiramos dela – e perdemos isso se somos tão injustos a ponto de nos arrepender de tê-la tido ao mesmo tempo que exigimos continuar a possuí-la.

12. Apenas diga a si mesmo: “de todas essas experiências que parecem tão assustadoras, nenhuma delas é insuperável. As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio[4], crucificação por Régulo, [5] veneno por Sócrates, exílio por Rutílio[6] e uma morte infligida pela espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”.

13. Novamente, aqueles objetos que atraem a multidão sob a aparência de beleza e felicidade, foram desprezados por muitos homens e em muitas ocasiões. Fabrício, [7] quando era general, recusou riquezas e quando foi censor as marcava com desaprovação. Túbero considerou a pobreza digna de si mesmo e da divindade no Capitólio quando, ao usar pratos de barro em um festival público, mostrou que o homem deveria estar satisfeito com o que os deuses ainda podiam usar. O ancião Séxtio rejeitou as honras do cargo, ele nasceu com a obrigação de participar de assuntos públicos e, no entanto, não aceitou a faixa larga[8] mesmo quando o divino Júlio lhe ofereceu. Pois ele entendia que o que pode ser dado também pode ser retirado. Deixe-nos também, portanto, realizar algum ato corajoso por nossa própria iniciativa, deixe-nos ser incluídos entre os tipos ideais da história.

14. Por que ficamos negligentes? Por que desanimamos? O que poderia ser feito, pode ser feito se apenas purificarmos nossas almas e seguirmos a natureza; pois quando se afasta da natureza, se é obrigado a desejar e temer e ser escravo das coisas do acaso. Podemos retornar ao caminho verdadeiro, podemos ser restaurados ao nosso estado adequado. Deixe-nos então ser assim, para que possamos suportar a dor, sob qualquer forma que atacar nossos corpos, e dizer à Fortuna: “Você está lidando com um homem, procure alguém a quem você possa conquistar!”Ä [9]

15. Por essas palavras e palavras de um tipo semelhante, a malignidade da úlcera é acalmada; e espero que possa ser reduzida, e seja curada ou interrompida, e envelheça junto com o próprio paciente. No entanto, estou confortável em relação a ele. O que agora estamos discutindo é a nossa própria perda: a partida de um excelente homem velho. Pois ele viveu uma vida plena e qualquer coisa adicional pode ser desejada por ele, não por sua própria causa, mas por causa daqueles que precisam de seus serviços.

16. Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si mesmo, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. Outra pessoa poderia ter acabado com esses sofrimentos, mas o nosso amigo considera não menos vil fugir da morte do que fugir para a morte. “Mas”, vem a resposta, “se as circunstâncias justificarem, ele não tomará a partida?” Claro, se ele não pode mais ser útil a ninguém, se todo o seu negócio passar a ser lidar com a dor.

17. Isto, meu querido Lucílio, é o que queremos dizer ao estudar filosofia enquanto a aplicamos, praticando-a na verdade – anote a coragem que um homem prudente possui contra a morte e contra a dor quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra. O que devemos fazer deve ser aprendido com quem faz.

18. Até agora, lidamos com argumentos – se alguém pode resistir à dor, ou se a aproximação da morte pode abater até grandes almas. Por que discutir isso ainda mais? Aqui há um fato imediato para nós enfrentarmos – a morte não torna nosso amigo mais valioso para enfrentar a dor nem a dor para enfrentar a morte. Em vez disso, ele confia em si mesmo diante de ambas. Ele não sofre com resignação porque espera a morte, nem morre com prazer porque está cansado de sofrer. À dor ele resiste, a morte ele espera.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Ver Virgílio, Eneida, II, 428

[2] Metrodoro de Lâmpsaco foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro principais defensores do epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem.

[3] Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Ver outras referências a Múcio nas epístolas XXIV e LXVI.

[5]NT: Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos

[6]NT: Públio Rutílio Rufo foi um político da gente Rutília da República Romana eleito cônsul em 104 a.C.

[7] NT: Caio Fabrício Luscino, dito Monocular, foi eleito cônsul por duas vezes, em 283 e 278 a.C. As histórias sobre Fabrício são os padrões de austeridade e incorruptibilidade, muito parecidas com as contadas sobre Cúrio Dentato.

[8] A faixa larga (de púrpura) ornava a toga dos senadores, por oposição à faixa estreita que decorava a toga dos equestres. Séxtio, portanto, recusou a oferta de ter seu nome na lista dos membros da classe senatorial. “Divino Júlio” é referência a Júlio Cesar.

[9] NT: Os filólogos estão de acordo em haver uma lacuna. Ao final do parágrafo 14. Hense defende que a carta 98 termina no §14 e que o texto a partir do §15 seria outra, cujo inicio se perdeu. Ignora-se quem seria este “excelente homem velho” referido a seguir.

Carta 96: Sobre o enfrentamento de dificuldades

Na curta e fantástica carta 96 Sêneca volta ao tema de como lidar com dificuldades, afirmando que tudo não passa de percepção, e que sofrimento e dificuldades são partes inevitáveis da vida:

você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! (…) Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente.” (XCVI, 1-2)

Para Sêneca, uma boa vida é uma vida de lutas, de enfrentamento. Aquele que não é atingido pela Fortuna e foge dos perigos e de suas responsabilidades é um covarde.

(imagem Cave canem por Jean-Léon Gérôme)


XCVI. Sobre o enfrentamento de dificuldades

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Apesar de tudo, você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! Se você me perguntar, acho que, para um homem, não há aflição além da própria circunstância de ele julgar que a natureza contém em si motivos de aflição. Não me tolerarei mais no dia em que eu achar algo intolerável. Estou doente; mas isso é parte da minha fortuna. Meus escravos caíram doentes, minha renda desapareceu, minha casa ficou insalubre, fui atacado por perdas, acidentes, fadiga e medo; isso é algo comum. Não, isso foi uma atenuação; isso é algo inevitável.

2. Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente. Se você confia em mim, essas são minhas emoções mais íntimas que acabo de revelar: quando tudo parecia ser difícil e árduo, eu formei o meu carácter em meio de todo tipo de circunstâncias aparentemente desfavoráveis e duras, eu me treinei não apenas para obedecer a Deus, mas para concordar com Suas decisões. Eu O segui porque minha alma quer, e não porque eu deva. Nunca me acontecerá algo que eu receba com mal humor ou com um rosto retorcido. Devo pagar todos os meus impostos voluntariamente. Agora, todas as coisas que nos fazem gemer ou recuar, são parte do imposto da vida – coisas, meu querido Lucílio, que você nunca deve esperar, nem sequer pedir, isenção.

3. Era doença da bexiga que o fazia apreensivo; cartas depressivas vieram de você; você estava cada vez pior; vou tocar a verdade mais de perto e dizer que você temeu por sua vida. Mas venha, você não sabia que, quando rezava por uma longa vida, que era por isso que orava? Uma longa vida inclui todos esses problemas, assim como uma longa jornada inclui pó e lama e chuva.

4. “Mas”, você chora, “eu queria viver e, ao mesmo tempo, ser imune a todos os males”. Um grito tão efeminado não faz crédito a um homem. Considere em que atitude você receberá esta oração minha (eu a ofereço não só em um bom, mas em um nobre espírito): “Que todos os deuses proíbam que a Fortuna o mantenha em luxo!”

5. Pergunte-se voluntariamente, o que escolheria se algum deus lhe desse a escolha – uma vida em um mercado ou vida em um acampamento. E, no entanto, a vida, Lucílio, é realmente uma batalha. Por esta razão, aqueles que são jogados no mar, aqueles que seguem subindo e descendo sobre penhascos e alturas, aqueles que seguem campanhas que trazem o maior perigo, são heróis e combatentes de primeira linha; mas as pessoas que vivem em um ócio podre e fácil enquanto outras trabalham, são meras “rolinhas” covardes que se escondem dos ataques. Os homens as desprezam.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Resenha: Sobre a Tranquilidade da Alma (Parte 2)

Continuamos com a análise do diálogo Sobre a Tranquilidade da Alma. Primeira parte aqui.

Após tratar de preceitos sobre o patrimônio, “fonte mais fértil das dores humanas“, Sêneca se volta a discutir as vicissitudes da Fortuna, iniciando com a boa e tradicional sugestão estoica sobre como se adaptar a novas situações. Se você perdeu algo, até mesmo algo precioso, por causa das mudanças dos ventos da Fortuna, basta lembrar que “Em cada estação da vida você encontrará diversões, relaxamentos e prazeres; isto é, desde que esteja disposto a fazer dos males mais leves ao invés de odiosos” (X,1).

A isto, seguem citações clássicas que são joias de sabedoria que não requerem nenhuma adição:

Quando (o sábio) for convidado a desistir deles, não se queixará da Fortuna, mas dirá: “Agradeço-lhe pelo que tive em meu poder”. Tenho administrado a sua propriedade de modo a aumentá-la em grande parte, mas como você me ordenou, eu a devolvo e a devolvo de boa vontade e com gratidão” (XI, 2).

Que dificuldade pode haver em retornar ao lugar de onde se veio? Um homem não pode viver bem se não souber morrer bem” (XI, 4).

Doença, cativeiro, desastre, conflagração, nenhum deles é inesperado: Eu sempre soube com que companhia desordenada a Natureza me tinha associado” (XI, 7).

Nos capítulos XII e XIII são abordadas as fontes de inquietações oriundas de circunstâncias pessoais, tendo em vista as atribulações da Fortuna: falsos desejos relativos a bens e honrarias, atividades públicas e privadas. Sêneca adverte seu amigo sobre o perigo de se ocupar apenas para fazer algo, ao invés de fazer boas escolhas sobre como empregar seu tempo. Ele imagina um breve diálogo com quem não sabe o que está fazendo nem o porquê: Para onde você vai?” Ele responderá: “Por Hércules, eu não sei: mas verei algumas pessoas e farei alguma coisa“. Provavelmente conhecemos pessoas assim, veja que as coisas não mudaram tanto assim em dois milênios.

Segue-se que aceitamos o destino pelo que ele é, e de fato tentamos fazer o melhor com as novas circunstâncias. Sêneca lembra o exemplo de Zenão – o fundador da Escola – que perdeu tudo em um naufrágio e começou a estudar filosofia, dizendo:

A fortuna comanda que eu fique mais desimpedido para filosofar” (XIV, 3).

Já nos capítulos XV e XVI são tratadas as fontes de inquietações oriundas de circunstâncias externas. Sêneca compara duas atitudes diferentes em relação à vida: a trágica e a cômica, aconselhando que devemos seguir Demócrito e não Heráclito:

O último deles, sempre que aparecia em público, costumava chorar, o primeiro ria. Um pensava que todos os atos humanos eram tolices, o outro pensava que eram desgraças. Devemos ter uma visão mais elevada de todas as coisas e suportar com mais facilidade. É melhor ser homem a rir da vida do que a lamentar por ela” (XV, 2).

Mas é claro que Sêneca compreende que algumas vezes a vida é uma tragédia, como quando pessoas boas (ele menciona Sócrates, Rutílio, Pompeu, Cícero e Catão) são tratadas com injustiça. Mesmo assim, pode-se tirar lições valiosas:

veja como cada um deles suportou o seu destino, e se o suportaram com bravura. Deseje em seu coração uma coragem tão grande quanto a deles… Todos esses homens descobriram como, ao custo de uma pequena porção de tempo, eles poderiam obter a imortalidade e, com suas mortes, ganharam a vida eterna” (XVI, 2-4).

No último capítulo, Sêneca afirma que a alma dos homens deve ter um repouso, devemos mesclar solidão com contato social, trabalho com lazer e aproveitar jogos, diversão e bebidas, tudo porém, com moderação: “Não devemos forçar as colheitas dos campos férteis, porque um curso ininterrupto de colheitas abundantes logo esgotará sua fertilidade, e assim também a vitalidade de nossas mentes será destruída pelo trabalho incessante, mas elas recuperarão suas forças após um curto período de descanso e alívio.”

Esta última seção aniquila a injustificada acusação de que os estoicos seriam estraga-prazeres, recomendando brincar com crianças como Sócrates, dançar como Cipião, passear ao ar livre e beber como Catão e Sólon:

Por vezes, ganhamos força ao dirigir, ao viajar, ao trocar de paisagem ou de convívio social, ou ao fazer refeições com uma mesa mais generosa de vinho. Às vezes, devemos beber até a embriaguez, não para nos afogarmos, mas apenas para nos imergirmos no vinho, porque o vinho lava os problemas e nos afasta das preocupações das profundezas da mente, e age como remédio para a tristeza” (XVII, 8).

Um brinde a Sêneca!


Não se sabe quando o diálogo Sobre a tranquilidade da alma foi escrito. Pode ter sido composto e publicado no período entre o início dos anos 50 até por volta de 62 ou 63.

Aneu Sereno é destinatário não só da obra Sobre a Tranquilidade da Alma, mas também de Sobre a Constância do Sábio e ainda de Sobre o Ócio. Foi um grande amigo de Sêneca, pertencente à ordem equestre, formada pelos cidadãos mais abastados. Sereno também tinha cargo na administração pública, tendo obtido, por influência de Sêneca, a função de praefectus, responsável por combate a incêndios, atividade importante na cidade de Roma. Era bastante jovem e teve uma morte prematura, segundo Sêneca noticia na carta 63 a Lucílio.

(imagem, Diogenes por John William Waterhouse)

Resenha: Meditações, Livro V

O Livro V das Meditações de Marco Aurélio começa com esta famosa passagem: “Na manhã em que você se levantar sem vontade, que este pensamento esteja presente, Eu estou me levantando para o trabalho de um homen. Por que, então, estou insatisfeito se vou fazer as coisas para as quais existo e para as quais fui trazido ao mundo? “, seguido de um comentário bem humorado que diz que sim, preferíamos ficar quentes debaixo dos cobertores, porque é mais agradável, e ainda assim não fomos feitos para nos deleitar (visão epicurista), mas para fazer o trabalho de um ser humano, o que significa – para os estoicos – ser útil à sociedade.

No parágrafo 3, Marco se lembra de ignorar a desaprovação ou crítica dos outros se sabe que o que está dizendo ou fazendo é a coisa certa a fazer ou a dizer. Este tipo de passagens são muitas vezes mal interpretadas pelos críticos do estoicismo como indicando uma atitude que pode levar a ignorar a crítica e abraçar os próprios preconceitos. Contudo Marco afirma muito claramente em outros trechos que o sábio aprende com a boa crítica, então não é essa a intenção: a idéia, ao contrário, é seguir em frente apesar das críticas mesquinhas e injustificadas.

No parágrafo 8 explicita sua visão panteísta, ou seja, o universo e Deus é a mesma ocorrência.

“aceite tudo o que acontece, mesmo que pareça desagradável, porque leva a isso, à saúde do universo e à prosperidade e felicidade de Zeus (Universo). Pois ele não teria trazido a nenhum homem o que trouxe, se não fosse útil para o todo… Por duas razões então é certo estar contente com o que lhe acontece; uma, porque foi feito para você e prescrito para você; e a outra, porque mesmo o que vem cruelmente para cada um de nós é para o poder que administra o universo uma causa de felicidade e perfeição… Para a integridade do todo você é mutilado, se cortar qualquer coisa da combinação e da continuidade, quer das partes ou das causas e você se corta.” (V,8)

O estoicismo é uma filosofia, não uma religião, então seus praticantes têm permissão para atualizá-lo de acordo com a melhor compreensão pessoal.

No parágrafo 20 temos uma passagem importante, que foi usada como título da obra contemporânea sobre estoicismo de Ryan Holiday, O Obstáculo é o Caminho:

“a mente converte e transforma cada obstáculo à sua atividade em um instrumento; O que impede a ação estimula a ação. O que fica no caminho torna-se o caminho.” (V,20)

Em torno dos parágrafos 23-24 ele retorna a um de seus temas recorrentes, a impermanência das coisas, tendo a perspectiva cósmica sobre os assuntos humanos: “Pense na substância universal, da qual você tem uma porção muito pequena, e no tempo universal, do qual um curto e indivisível intervalo foi atribuído a você, e no que é fixado pela Fortuna, e quão pequena parte dele é você.(V,24)

O parágrafo 28 merece ser destacado na íntegra porque que é bem colocado e bem-humorado:

“Você está indignado contra aquele cujas axilas fedem, ou com aquele cuja boca cheira mal? Que bem fará esta ira? Ele tem tal boca, tem tais axilas; é necessário que tal emanação venha de tais coisas; mas o homem tem razão, isso será dito, e ele é capaz, se tomar dores, de descobrir em que ele ofende; eu desejo-lhe o sucesso em sua descoberta. Bem, então, e você tem razão: por sua faculdade racional, estimule a faculdade racional dele; mostre-lhe seu erro, admoeste-o. Pois se ele escutar, você o curará, e não há necessidade de ira.” (V,28)

Outra passagem muito importante, esta sobre o suicídio, vem logo em seguida:

“se os homens não permitirem, então se afaste da vida, ainda assim como se você não sofresse nenhum dano. A casa está cheia de fumaça, e eu saio dela . Por que você acha que isso é algum problema? Mas enquanto nada desse tipo me expulsar, eu permaneço, sou livre, e nenhum homem me impedirá de fazer o que eu escolher; e eu escolho fazer o que está de acordo com a natureza do animal racional e social”

É uma simplificação do ensinamento de Epiteto: “Se a sala estiver cheia de fumo, se apenas moderadamente, vou ficar; se houver demasiada fumaça, vou. Lembre-se disso, mantenha-se firme, a porta está sempre aberta

O tema do suicídio é recorrente no estoicismo, e a abordagem estoica é, penso eu, ainda hoje muito válida.

 


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Veja também:

Carta 67: Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Na carta 67 Sêneca aborda um mal entendido comum em relação ao estoicismo.  A Filosofia não requer ou exige sofrimento ou qualquer dificuldade,  mas apenas diz que estas são situações corriqueiras que devem ser suportadas com tranquilidade,  já que não deveria ser surpresa para ninguém:

“Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.” (LXVII, 4)

Cita os exemplos de conduta estoica como Catão, Rutílio e Régulo que foram testados pela adversidade e souberam suporta-la com sabedoria. Conclui dizendo que uma vida sem sobressaltos e ataques da Fortuna é uma vida insossa:

Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa. “(LXVII,14)

Imagem:  Pintura de Salvator Rosa (1615-1673), A Morte de Régulo. A tortura infligida a Régulo, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.


LXVII. Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Se eu posso começar com uma observação comum, a primavera está se revelando gradualmente; mas embora seja preparação para o verão, quando se esperaria clima quente, está bastante frio, e ainda não se pode ter certeza disso. Pois ela desliza frequentemente para trás para o tempo do inverno. Você deseja saber o quão incerto ainda é? Eu ainda não estou seguro para um banho que pode ser absolutamente frio; mesmo neste momento eu tremo de frio. Você pode dizer que esta não é maneira de mostrar tolerância, quer ao calor ou ao frio; muito verdadeiro, querido Lucílio, mas na minha idade, raramente alguém fica satisfeito com o frio natural. Eu mal posso deixar de ter frio no meio do verão. Assim, eu passo a maior parte do tempo embrulhado;
  2. E agradeço a velhice por me manter preso à minha cama. Por que não devo agradecer à velhice por isso? Aquilo o que eu não deveria querer fazer, não tenho a capacidade de fazer. A maioria das minhas conversas é com livros. Sempre que suas cartas chegam, imagino que estou com você, e tenho a sensação de que estou prestes a falar a minha resposta, em vez de escrevê-la. Portanto, vamos juntos investigar a natureza de seu problema, como se estivéssemos conversando um com o outro.
  3. Você me pergunta se todo bem é desejável. Você diz: “Se é bom ser corajoso sob a tortura, ir à tortura com um coração forte, suportar a doença com resignação; segue-se que essas coisas são desejáveis. Mas não vejo que nenhuma delas valha a pena ser desejada. De qualquer forma, eu ainda não conheço ninguém que tenha feito uma promessa por ter sido cortado em pedaços pela vara, ou retorcido pela gota, ou feito mais alto pela roda de tortura.
  4. Meu caro Lucílio, você deve distinguir entre estes casos; então você compreenderá que há algo neles que é desejável. Eu prefiro estar livre da tortura; mas se chegar o momento em que deva ser suportada, desejo que eu possa conduzir-me com bravura, honra e coragem. É claro que eu prefiro que a guerra não ocorra; mas se a guerra ocorrer, desejo que eu possa suportar nobremente as feridas, a fome e tudo o que a exigência da guerra traz. Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.
  5. Alguns de nossa escola pensam que, de todas essas qualidades, não é desejável uma resistência intrépida, embora não seja desprezada, porque devemos procurar pela oração unicamente o bem que é puro, pacífico e fora do caminho dos problemas. Pessoalmente, eu não concordo com eles. E porque? Primeiro, porque é impossível que qualquer coisa seja boa sem ser também desejável. Porque, novamente, se a virtude é desejável, e se nada que é bom carece de virtude, então tudo o que é bom é desejável. E, finalmente, porque uma resistência corajosa mesmo sob tortura é desejável.
  6. Neste ponto, eu lhe pergunto: a bravura não é desejável? No entanto, a bravura despreza e desafia o perigo. A parte mais bela e admirável da bravura é que ela não se acovarda da tortura, avança para encontrar ferimentos, e às vezes nem evita a lança, mas recebe-a com o peito aberto. Se a bravura é desejável, também é a resistência paciente da tortura; pois isso é uma parte da bravura. Apenas filtre essas coisas, como sugeri; então não haverá nada que possa confundir você. Pois não é a mera resistência à tortura, mas a corajosa resistência, que é desejável. Eu, portanto, desejo a resistência “corajosa”; e isso é virtude.
  7. “Mas,” você diz, “quem desejou tal coisa para si mesmo?” Algumas orações são abertas e sinceras, quando os pedidos são oferecidos especificamente; outras orações são expressas indiretamente, quando incluem muitos pedidos sob um título. Por exemplo, desejo uma vida de honra. Agora, uma vida de honra inclui vários tipos de conduta; pode incluir o barril em que Régulo[1] estava confinado, ou a ferida de Catão que foi rasgada por sua própria mão, ou o exílio de Rutílio, ou a xícara de veneno que removeu Sócrates da prisão para o céu. Consequentemente, ao orar por uma vida de honra, ore também por aquelas coisas sem as quais, em algumas ocasiões, a vida não pode ser honrada.
  8. Oh três vezes e quatro vezes mais
    Quem debaixo das altas muralhas de Tróia
    Conheceu a morte feliz diante dos olhos dos pais![2]
    O que importa se você oferece esta oração para algum indivíduo, ou admite que era desejável no passado?
  9. Décio sacrificou-se pelo Estado; ele esporou seu cavalo e correu para o meio do inimigo, buscando a morte. O segundo Décio, rivalizando com o valor de seu pai, reproduzindo as palavras que se haviam tornado sagradas e familiares, se atirou ao ponto de luta mais pesada, ansioso apenas por que seu sacrifício pudesse trazer um presságio de sucesso, e considerando uma morte nobre como uma coisa a ser desejada. Você duvida, então, se é melhor morrer glorioso e realizar alguma ação de valor?
  10. Quando alguém suporta tortura bravamente, está usando todas as virtudes. A resistência talvez seja a única virtude que está a vista e mais manifesta, mas a bravura está lá também, e resistência e resignação e paciência são seus ramos. Lá, também, há planejamento; pois sem planejamento nenhum projeto pode ser empreendido; é o planejamento que aconselha alguém a suportar tão bravamente como possível as coisas que não pode evitar. Há também firmeza, que não pode ser deslocada de sua posição, que a ferramenta que nenhuma força pode fazer abandonar o seu propósito. Existe toda a inseparável companhia das virtudes; cada ato honrado é a obra de uma só virtude, mas está de acordo com o julgamento de todo o concílio. E o que é aprovado por todas as virtudes, embora pareça ser obra de um só, é desejável.
  11. O quê? Você acha que essas coisas só são desejáveis as quais vêm a nós em meio a prazer e facilidade, e que nós adornamos nossas portas em acolhimento? Há certos bens cujas características são proibitivas. Há certas orações que são oferecidas por uma multidão, não de homens que se alegram, mas de homens que se curvam reverentemente e adoram.
  12. Não foi assim que Régulo orou para que chegasse a Cartago? Vestir-se com a coragem de um herói, e afastar-se das opiniões do homem comum. Forme uma concepção apropriada da imagem da virtude, uma coisa que excede a beleza e a grandeza; esta imagem não deve ser adorada por nós com incenso ou guirlandas, mas com suor e sangue.
  13. Eis que Marcos Catão, deitado sobre o peito santificado, suas mãos sem mancha, e despedaçando as feridas que não foram suficientemente profundas para matá-lo! Que, por favor, deveria dizer a ele: “Espero que tudo seja como você quiser”, e “Estou triste”, ou “Boa fortuna em sua empreitada”?
  14. A este respeito, penso no nosso amigo Demétrio, que chama de existência fácil, não perturbada pelos ataques da Fortuna, um “Mar Morto”. Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por suas ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa.
  15. O estoico Átalo costumava dizer: “Eu prefiro que a Fortuna me mantenha em seu acampamento em vez de no luxo, se sou torturado, mas suporto corajosamente, tudo está bem, se morrer, mas morrer corajosamente, também está bem.” Ouça Epicuro; ele irá dizer-lhe que isso é realmente agradável. Jamais aplicarei uma palavra afeminada a um ato tão honroso e austero. Se eu for para a fogueira, devo ir invicto.
  16. Por que não consideraria isto desejável – não porque o fogo me queime, mas porque não me vença? Nada é mais excelente ou mais belo do que a virtude; tudo o que fazemos em obediência às suas ordens é bom e desejável.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.; em latimMarcus Atilius Regulus). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio:

O terque quaterque beati,
Quis ante ora patrura Troiae sub moenibus altis
Contigit oppetere!

Carta 59: Sobre prazer e alegria

Na carta 59 Sêneca aborda a diferença entre prazer e alegria, reafirmando que o prazer é um vício, e alegria virtude.  Para ele  o prazer é sempre derivado de algo fora de você, enquanto que a alegria parte de seu interior.

Diz que devemos dedicar mais tempo à filosofia e no nos afastar dos bajuladores:

“Mas como um homem pode aprender, na luta contra seus vícios, uma quantia suficiente, se o tempo que ele dedica a aprender é apenas a sobra deixada por seus vícios?” (LIX, 10)

“O que mais nos impede é que estamos prontamente satisfeitos com nós mesmos; se nos encontrarmos com alguém que nos chama de homens bons, ou homens sensatos, ou homens santos, nos vemos em sua descrição, não nos contentamos com louvor em moderação, aceitamos tudo o que a vergonhosa lisonja nos atira, como se fosse nossa. Concordamos com aqueles que nos declaram ser o melhor e o mais sábio dos homens, embora saibamos que eles são dados a muita mentira. … Assim, segue-se que não estamos dispostos a ser reformados, apenas porque acreditamos ser o melhor dos homens.” (LIX, 11)

Conclui a carta dizendo que o prazer é uma alegria falsa, que depende de fontes externas:  O que a Fortuna não deu, ela não pode tirar. (LIX, 18)

(imagem Bacanal por Jan Brueghel o velho e Hendrik van Balen)


LIX. Sobre prazer e alegria

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Recebi grande prazer de sua carta; gentilmente permita-me usar essas palavras em seu significado cotidiano, sem insistir em seu significado estoico. Pois nós estoicos sustentamos que o prazer é um vício. Muito provavelmente é um vício; mas estamos acostumados a usar a palavra quando queremos indicar um estado de espírito feliz.
  2. Estou ciente de que, se testarmos as palavras pela nossa fórmula, até mesmo o prazer é uma coisa de má reputação, e a alegria só pode ser alcançada pelos sábios. Pois a “alegria” é um júbilo do espírito, de um espírito que confia na bondade e na verdade de suas posses. O uso comum, entretanto, é que derivamos grande “alegria” da posição de um amigo como cônsul, ou de seu casamento, ou do nascimento de seu filho; mas esses eventos, longe de ser motivo de alegria, são mais frequentemente o começo da tristeza por vir. Não! É uma característica da alegria real que ela nunca cessa, e nunca se transforma em seu oposto.
  3. Assim, quando nosso Virgílio fala deAs alegrias malignas da mente, [1]Suas palavras são eloquentes, mas não estritamente apropriadas. Pois nenhuma “alegria” pode ser má. Ele deu o nome de “alegria” aos prazeres, e assim expressou seu significado. Pois ele transmitiu a ideia de que os homens se deleitam em seu próprio mal.
  4. No entanto, eu não estava errado ao dizer que eu recebi grande “prazer” de sua carta; pois embora um homem ignorante possa derivar “alegria” se a causa for honrosa, contudo, uma vez que sua emoção é inconstante, e é provável que em breve tome outra direção, chamo-a de “prazer”; pois é inspirado por uma opinião sobre um bem espúrio; excede o controle e é levado ao excesso. Mas, para voltar ao assunto, deixe-me dizer-lhe o que me encantou em sua carta. Você tem suas palavras sob controle. Você não é levado pela sua linguagem, ou carregado além dos limites que você determinou.
  5. Muitos escritores são tentados pelo encanto de alguma frase sedutora para um tópico diferente do que eles tinham se proposto a discutir. Mas não foi assim no seu caso; Todas as suas palavras são compactas e adequadas ao assunto, você diz tudo o que deseja, e quer dizer ainda mais do que você diz. Esta é uma prova da importância de seu assunto, mostrando que sua mente, assim como suas palavras, não contém nada supérfluo ou empolado.
  6. No entanto, encontro algumas metáforas, de fato, ousadas, mas do tipo que já foi posto à prova. Também encontro analogias; é claro, se alguém nos proíbe de usá-las, sustentando que apenas os poetas têm esse privilégio, não tem, aparentemente, lido nenhum de nossos escritores de prosa antiga, que ainda não tinham aprendido a simular um estilo que pudesse ganhar aplausos. Pois aqueles escritores, cuja eloquência era simples e dirigida apenas para provar seu caso, estão cheios de comparações; e penso que estas são necessárias, não pela mesma razão que as torna necessárias para os poetas, mas para que possam servir de sustentação à nossa fraqueza, para levar o orador e o ouvinte face a face com o assunto em discussão.
  7. Por exemplo, estou neste momento lendo Séxtio; Ele é um homem afiado, e um filósofo que, embora escreva em grego, tem o padrão romano de ética. Uma de suas analogias agrada-me em especial, a de um exército marchando em um largo vazio, num lugar onde o inimigo poderia aparecer de qualquer lugar, pronto para a batalha. “Isto”, disse ele, “é exatamente o que o homem sábio deve fazer, ele deve ter todas as suas qualidades de combate dispostas por todos os lados, de modo que de onde quer que o ataque ameace, lá seus suportes estarão prontos e poderão obedecer ao comando do capitão sem confusão”. Isto é o que observamos em exércitos que servem sob grandes líderes; vemos como todas as tropas entendem simultaneamente as ordens de seu general, já que estão dispostas de modo que um sinal dado por um homem passe pelas fileiras da cavalaria e da infantaria no mesmo momento.
  8. Isto, declara ele, é ainda mais necessário para homens como nós; pois os soldados temiam com frequência um inimigo sem motivo, e a marcha que julgavam mais perigosa era de fato a mais segura; mas a insensatez não repousa, o medo assombra tanto na vanguarda como na parte de trás da coluna, e ambos os flancos estão em pânico. A insensatez é perseguida, e confrontada, pelo perigo. Isso esquiva-se por tudo; não se pode estar preparado; assusta-se mesmo por tropas menores. Mas o sábio é fortificado contra todas as incursões; ele está alerta; ele não recuará frente o ataque da pobreza, ou da tristeza, ou da desgraça, ou da dor. Ele andará impávido tanto contra eles como entre eles.
  9. Nós, seres humanos, somos agrilhoados e enfraquecidos por muitos vícios; nós temos chafurdado neles há muito tempo e é difícil para nós sermos purificados. Não estamos apenas contaminados; nós somos tingidos por eles. Mas, para abster-me de passar de uma figura para outra, vou levantar esta questão, que muitas vezes considero em meu próprio coração: por que é que a insensatez nos segura com um aperto tão insistente? É, principalmente, porque não a combatemos com força suficiente, porque não lutamos para a salvação com todas as nossas forças; segundo, porque não depositamos confiança suficiente nas descobertas dos sábios, e não bebemos de suas palavras com corações abertos; nós abordamos este grande problema em espírito muito frívolo.
  10. Mas como um homem pode aprender, na luta contra seus vícios, uma quantia suficiente, se o tempo que ele dedica a aprender é apenas a sobra deixada por seus vícios? Nenhum de nós vai fundo abaixo da superfície. Nós roçamos apenas o topo, e consideramos o breve tempo gasto na busca de sabedoria como suficiente e de sobra para um homem ocupado.
  11. O que mais nos impede é que estamos prontamente satisfeitos com nós mesmos; se nos encontrarmos com alguém que nos chama de homens bons, ou homens sensatos, ou homens santos, nos vemos em sua descrição, não nos contentamos com louvor em moderação, aceitamos tudo o que a vergonhosa lisonja nos atira, como se fosse nossa. Concordamos com aqueles que nos declaram ser o melhor e o mais sábio dos homens, embora saibamos que eles são dados a muita mentira. E somos tão autocomplacentes que desejamos elogios por certas ações quando somos especialmente viciados em exatamente o oposto. Aquele que se ouve chamar de “delicado” enquanto inflige torturas, ou “generoso” quando está empenhado em pilhagem, ou “moderado” quando está no meio da embriaguez e da luxúria. Assim, segue-se que não estamos dispostos a ser reformados, apenas porque acreditamos ser o melhor dos homens.
  12. Alexandre estava vagando até a índia, devastando tribos que eram pouco conhecidas, até mesmo para seus vizinhos. Durante o bloqueio de uma certa cidade, enquanto reconhecia as muralhas e procurava o ponto mais fraco das fortificações, foi ferido por uma flecha. No entanto, ele continuou durante muito tempo o cerco, com a intenção de terminar o que tinha começado. A dor de sua ferida, no entanto, quando a superfície ficou seca e o fluxo de sangue foi limitado, aumentou; sua perna gradualmente ficou entorpecida enquanto sentava seu cavalo; E finalmente, quando foi forçado a retirar-se, exclamou: “Todos os homens juram que eu sou o filho de Júpiter, mas esta ferida grita que eu sou mortal”[2].
  13. Vamos agir da mesma maneira. Todo homem, de acordo com sua sorte na vida, é abobalhado pela lisonja. Deveríamos dizer àquele que nos lisonjeia: “Você me chama de um homem sensato, mas eu entendo quantas das coisas que eu desejo são inúteis, e quantas das coisas que eu desejo me fariam mal. Não tenho sequer o conhecimento, que a saciedade ensina aos animais, do que deveria ser a medida do meu alimento ou da minha bebida. Eu ainda não sei o quanto eu posso ingerir. “
  14. Vou agora mostrar-lhe como você pode saber que não é sábio. O homem sábio é alegre, feliz e calmo, inabalável, vive num mesmo plano que os deuses. Agora vá, pergunte a si mesmo; se você nunca fica abatido, se sua mente não é assediada por minha apreensão, pela antecipação do que está por vir, se dia e noite sua alma continua em seu curso impar e inabalável, reta e contente consigo mesma, então você alcançou o maior bem que os mortais podem possuir. Se, no entanto, você procura prazeres de todos os tipos em todas as direções, você deve saber que está tão longe da sabedoria quanto está aquém de alegria. A alegria é o objetivo que você deseja alcançar, mas você está errando o caminho, se você espera alcançar seu objetivo enquanto está no meio de riquezas e títulos oficiais, – em outras palavras, se você busca a alegria no meio de preocupações, esses objetos pelos quais você se esforça tão ansiosamente, como se pudessem dar felicidade e prazer, são meras causas de dor.
  15. Todos os homens desta estampa, eu sustento, estão focados na busca da alegria, mas eles não sabem onde podem obter uma alegria que é grande e duradoura. Uma pessoa procura-a no banquete e na autoindulgência; outra, em busca de honras e em ser cercado por uma multidão de clientes; outra, em sua amante; outra, em exibição ociosa da cultura e da literatura que não tem poder para curar; todos esses homens são desviados por delícias que são enganosas e de vida curta – como a embriaguez, por exemplo, que paga por uma única hora de loucura hilariante via doença de muitos dias, ou como aplausos e a popularidade da aprovação entusiástica que são obtidos, e expiados, à custa de grande inquietação mental.
  16. Reflita, portanto, sobre isso, que o efeito da sabedoria é uma alegria ininterrupta e contínua. A mente do sábio é como o firmamento ultra lunar; a eterna calma permeia essa região. Você tem, então, uma razão para desejar ser sábio, se o sábio nunca é privado de alegria. Essa alegria brota apenas do conhecimento de que você possui as virtudes. Ninguém exceto o corajoso, o justo, o autocontido, pode se alegrar.
  17. E quando você pergunta: “O que você quer dizer? Não se alegram, os tolos e os ímpios?” Eu respondo, não mais do que leões que pegaram sua presa. Quando os homens se fatigarem com o vinho e a luxúria, quando a noite lhes falhar antes que a sua devassidão seja concluída, quando os prazeres que têm amontoado sobre um corpo que é pequeno demais para segurá-los começam a apodrecer, nesses momentos eles proferem em sua miséria aquelas linhas de Virgílio:
    Tu sabes como, em meio a falsas alegrias brilhantes,
    nós passamos aquelas últimas noites. [3]
  18. Os amantes do prazer passam todas as noites entre alegrias falsas e como se fossem as suas últimas. Mas a alegria que vem aos deuses, e àqueles que imitam aos deuses, não é interrompida, nem cessa; mas certamente cessaria se fosse emprestada do exterior. Exatamente porque não está no poder de outro para doar, também não está sujeita aos caprichos do outro. O que a Fortuna não deu, ela não pode tirar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Trecho de Eneida de Virgílio.
Et mala mentis gaudia,

[2] Várias histórias semelhantes são contadas sobre Alexandre, Plutarco, onde ele diz aos seus aduladores, apontando para uma ferida que acabou de receber: “Veja, isso é sangue, não ichor” (ichor sangue dos deuses na mitologia grega)

[3] Trecho de Eneida de Virgílio. Sobre a noite que precedeu o saque de Troia.
Namque ut supremam falsa inter gaudia
noctem Egerimus, nosti.

 

Princípio Estoico #6: Pratique o Infortúnio – Pergunte-se “O que poderia dar errado?”

Existe o conhecido problema da Adaptação Hedônica,  a tendência observada nas pessoas para regressar rapidamente a um nível relativamente estável de felicidade apesar da ocorrência de importantes acontecimentos positivos ou negativos.

Os estoicos usavam uma ferramenta mental para evitar tal situação, “vacinando” suas mentes contra infortúnios. Eles se prepararam para coisas ruins que pudessem acontecer. Os romanos chamavam de “premeditatio malorum“. Premeditação da adversidade.

William Irvine descreve a solução como “a técnica mais valiosa no conjunto de ferramentas dos estoicos” e a chamou de “visualização negativa“:

“Os estoicos pensaram que tinham uma resposta a esta pergunta. Eles recomendaram  imaginar que perdemos as coisas que valorizamos – que nossa esposa nos deixou, nosso carro foi roubado ou perdemos nosso trabalho. Fazendo isso, os estoicos pensavam, nos fariam valorizar nossa esposa, nosso carro e nosso trabalho. Esta técnica – referimos a ela como visualização negativa – foi empregada pelos estoicos desde Crísipo. É, penso eu, a técnica mais valiosa no kit de ferramentas psicológicas dos estóicos. (A Guide to the Good Life)

Tal prática traz dois benefícios:

  1. Satisfação com o que já temos;
  2. Preparação para adversidades futuras;

Esteja pronto para que as coisas aconteçam de forma diferente do planejado. Tenha um plano alternativo.

Nada acontece com o homem sábio contra suas expectativas.” – Sêneca

Eu deveria me surpreender“, pergunta Sêneca, “se os perigos que sempre vagaram sobre mim possam chegar a mim em algum momento?” (Sobre a Brevidade da Vida)

Assolação – esse sentimento de estarmos absolutamente esmagados e arruinados por um evento – é um fator de quão pouco nós consideramos esse evento em primeiro lugar” – (  The Daily Stoic – Ryan Holiday)

O homem sábio prepara-se mentalmente. Nada pode acontecer que ele não tenha visto chegar. A premeditação da adversidade não faz com que tudo seja indolor e fácil de suportar. Mas isso nos ajuda a não entrar em pânico quando o problema acontece. Podemos enfrentar a adversidade com calma, analisá-la de forma racional e decidir tomar uma ação inteligente.

Experimente agora. O que você está planejando fazer nos próximos dias? O que poderia dar errado?

(Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


Princípios Estoicos:


 

Livros Citados:

         

Pensamento do Dia #25: Sobre a Brevidade da Vida

Veja todas as coisas que acontecem ao seu redor. O vizinho cuja casa é roubada. O amigo que adoece. O casamento sólido que termina em divórcio. O país anteriormente pacífico que entra em guerra civil, seus cidadãos desesperados fugindo por suas fronteiras como refugiados.

No ensaio “Sobre a Brevidade da Vida“, Sêneca enumera os muitos infortúnios que observou ao longo do tempo: os lamentos de seus vizinhos em luto, amigos mortos em batalha, carreiras políticas ascendentes que acabaram em ignomínia ou exílio. Todos esses destinos que ele descreve, passaram diante dele no decorrer da vida. “Eu deveria me surpreender“, pergunta ele, “se os perigos que sempre vagaram sobre mim possam chegar a mim em algum momento?

A resposta é não. O que pode acontecer com outra pessoa pode acontecer com você. Hoje. Amanhã. No futuro. Você está pronto para isso? Você enfrentou essa possibilidade? Ou você ainda está fingindo que você é especial e livre da sorte?

De fato, muitas dessas mesmas tragédias aconteceram com Sêneca. Ele foi exilado. Ele perdeu um filho. Ele foi acusado de conspirar contra o Imperador. E, em sua maior parte, ele respondeu a esses infortúnios com bravura e coragem. Porque ele se preparou para eles. Porque ele assistiu ao desfile e sabia que seria exigido que se juntasse eventualmente.

O mesmo é verdade para você. Esteja pronto.

( Sêneca, “Sobre a Brevidade da Vida“,  Imagem – Vanitas por Philippe de Champaigne)