O Ensaio abaixo borda os principais filósofos estoicos e suas lições para enfrentar a adversidade, escrito sob a ótica da crise recente.
Todos têm de jogar o jogo da vida. Você não pode simplesmente andar por aí dizendo: “Não dou a mínima para a riqueza, a saúde ou se eu for mandado para a prisão ou não”. Epicteto levou tempo para explicar melhor o que quis dizer. Ele diz que todos devem jogar o jogo da vida — que os melhores o jogam com “habilidade, estilo, presteza e graça”. Mas, como a maioria dos jogos, você o joga com uma bola. Seu time intensamente se esforça para fazê-la atravessar a linha de fundo. Mas, depois do jogo, o que se faz com a bola? Ninguém se importa. Não vale a pena se importar com ela. A competição, o jogo, foi a coisa propriamente dita. A bola foi “usada” para tornar o jogo possível, mas em si mesma não tem valor algum que justifique que se lute por ela. Uma vez terminado o jogo, a bola é uma questão indiferente.
(James B. Stockdale)
O espírito do artigo é: “O mundo pode ser cruel, mas nada nos força a ser cruéis com ele. Assim como nada nos obriga a idealizá-lo. A obra da filosofia é simples e discreta.”
Ao ter seu avião abatido e descer de paraquedas no terriotório inimigo, o piloto americano James Stockdale pensou: “Estou deixando o mundo da tecnologia e entrando no mundo de Epicteto”.
Algo parecido está acontecendo com todo o mundo, devido ao coronavírus.
Atenção: Entendo que as medidas de contenção são válidas e que o problema é real. A imagem foi escolhida para alertar contra o pânico e medo irracional. Você provavelmente já tem papel higiênico suficiente em casa.
Quando medo e pânico tomam conta do noticiário é aconselhável parar e ler o que sábios do passado nos deixaram de legado. Na 13° Carta de Sêneca ele fala sobre medos infundados. Vale a pena reler!
“Existem mais coisas, Lucílio, susceptíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade… Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. “
Caro Epicteto: Estou preocupado com o coronavírus. Dizem que é uma pandemia, e que até 70% da população mundial pode ser contaminada. Já há casos aqui em SP. Eu não quero ficar doente, ou que a minha família fique doente. Como posso ficar em segurança?
– Paulista Apreensivo
Caro escravo: Todos nós vamos morrer. Talvez de coronavírus, talvez de câncer, talvez de um ataque cardíaco. O quê? Achava que era imortal? Que importa se vai morrer na próxima semana, com febre e pulmões cheios de catarro, ou daqui a 50 anos, enrugado e fraco e incapaz de se lembrar do seu próprio nome? Deixe a sua hora da morte para o destino. Enquanto isso, lave as mãos por 30 segundos, não toque no rosto, diga à sua família que você os ama e tente ser uma boa pessoa.
Não é o coronavírus que o perturba, mas apenas o seu julgamento sobre ele.
“Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quere que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno”.Manual de Epicteto [8.1]
Digamos que aconteceu algo que não desejamos. Agora, o que é mais fácil de mudar: nossa opinião ou o próprio evento? A resposta é óbvia. O evento está no passado e não pode ser alterado. Mas nossa opinião pode. Podemos aceitar o que aconteceu e mudar o nosso desejo de não ter acontecido.
Nietzsche, muitos séculos depois, criou a expressão perfeita para capturar essa idéia: amor fati(amor ao destino):
“Minha fórmula para a grandeza em um ser humano é amor fati: aquele não quer que nada seja diferente, nem para frente, nem para trás, nem em toda a eternidade. Não apenas suportar o que é necessário, menos ainda esconder, mas amar o acontecido”. (Nietzsche – Ecce Homo -seção ‘Por que eu sou tão inteligente’)
Os estóicos usavam uma metáfora poderosa, o cão atrelado a uma carroça:
Imagine um cão preso a uma carroça em movimento. A coleira é longa o suficiente para que o cão tenha duas opções: 1)ele pode seguir suavemente a direção da carroça, sobre a qual ele não tem controle e ao mesmo tempo aproveitar o passeio; ou 2)ele pode obstinadamente resistir a carroça com toda sua força e acabar sendo arrastado pela viagem.
Nós somos esse cachorro. Ou fazemos o melhor da viagem ou lutamos contra cada pequena decisão que o condutor faz. Nos escolhemos.
A carroça sempre se move. A mudança é inevitável. Nas palavras de Ryan Holiday, “ficar chateado com as coisas é assumir erroneamente que elas vão durar … ressentir-se da mudança é assumir erroneamente que você tem uma escolha no assunto“. (The Daily Stoic – Ryan Holiday)
Marco Aurelio escreveu “um fogo ardente faz esplendor e brilho de tudo aquilo que é jogado nele“. (Meditações – Livro X)
Seja um cão sábio e aproveite o passeio. Mesmo que o condutor escolha uma estrada rica em obstáculos.
“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São encargos nossos o juízo, o desejo, a repulsa–em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos –em suma: tudo quanto não seja ação nossa. ” Manual de Epicteto [1.2]
Esta passagem é encontrada logo no início do Enchirídion de Epicteto, porque é fundamental para os ensinamentos da Filosofia Estoica. É denominada “dicotomia estoica do controle“, o princípio mais característico do estoicismo. Devemos distinguir cuidadosamente o que é “nosso encargo“, ou seja, algo sob nosso próprio poder, e o que não é. São nosso encargo nossas escolhas voluntárias, a saber, nossas ações e julgamentos, enquanto todo o resto não está sob nosso controle. O artigo “O que são coisas indiferentes no estoicismo de Epicteto e qual a atitude correta diante delas“ por Aldo Dinucci, tradutor do manual, é muito clarificador.
Até nosso corpo não depende de nós, ou pelo menos não inteiramente. Sim, há muitas coisas que podemos fazer para obter um corpo saudável e atraente. Mas isso só é possível até certo ponto. Podemos controlar nossas ações e manter uma dieta saudável, exercitar sistematicamente e sermos ativos, mas não temos controle sobre outras coisas, como genes e fatores externos, como doenças e lesões .
Só controlamos nossas próprias ações e temos que aceitar o resultado com equanimidade. Teremos satisfação e confiança de saber que estamos fazendo o melhor e tentando tudo o que estiver ao nosso alcance para atingir nosso objetivo. Então, podemos aceitar o resultado porque fizemos nosso melhor. Se o resultado não é satisfatório, devemos aceitá-lo facilmente e dizer: “Bem, eu fiz o meu melhor”.
Os estoicos usam a Analogia do Arqueiro para explicar isso:
Um arqueiro está tentando atingir um alvo. Ele tem uma série de coisas sob seu controle, como o treinamento, qual arco e flecha usar, quão bem apontar e quando soltar a flecha. Então ele pode fazer o seu melhor até o momento em que a flecha deixa seu arco.
Agora, ele atingirá o alvo?
Isso não depende dele. Afinal, uma rajada de vento, um movimento súbito do alvo, ou algo pode entrar entre a flecha e o alvo. E o arqueiro estoico está pronto para aceitar todos os resultados possíveis com tranquilidade, porque ele fez o seu melhor e deixou o resto (o que ele não podia controlar) para a natureza.
“Este é precisamente o poder do estoicismo: a internalização da verdade básica que podemos controlar nosso comportamento, mas não os seus resultados – e muito menos os resultados dos comportamentos de outras pessoas – o que leva à aceitação tranquila do que acontece, assegurando o conhecimento de que nós fizemos o nosso melhor, tendo em conta as circunstâncias”.
E o que sempre podemos tentar o nosso melhor? viver de acordo com a virtude. Sim, podemos sempre tentar aplicar a razão, atuar com coragem, tratar com justiça e exercitar a moderação.
Vejamos um dos exercícios práticos recomendado por Epicteto:
“Faça uma prática dizer a todas as impressões fortes: ‘Uma impressão é tudo o que você é’. Em seguida, teste e avalie com seus critérios, mas um principalmente: pergunte: ‘Isso é algo que está ou não está sob meu controle?’ E se não é uma das coisas que você controla, diga: ‘Então não é minha preocupação’. Epicteto – Discursos (II.18)
Se é seu encargo, então faça algo sobre isso, se não, aceite como está.
As coisas que dependem de você, ou seja seus pensamentos e ações, são as coisas mais importantes. Donald Robertson disse isso bem em seu livro Estoicismo e Arte da Felicidade:
“A conclusão filosófica de que o principal bem, o mais importante na vida, deve necessariamente ser aquilo que está a “nosso encargo” é ao mesmo tempo o aspecto mais difícil e mais atraente do estoicismo. Isso nos torna completamente e totalmente responsáveis pela nossa vida, privando-nos de desculpas para não florescer e alcançar a melhor vida possível, porque isso está sempre ao nosso alcance “.
Então, a lição chave para tirar aqui é concentrar nossa atenção e esforços onde temos mais poder e deixar o universo cuidar do resto.
Um estoico sabe que será destinatário de críticas injustas. Não se queixe e resmungue por isso, faça como Epicteto:
Se alguém lhe disser que uma certa pessoa fala mal de você, não se justifique sobre o que é dito, mas responda: “Ele ignora minhas outras falhas, senão não teria mencionado só essas“. ( O Manual de Epicteto)
Sabia que tentar controlar as opiniões de outras pessoas é como tentar controlar o clima – e que uma vida pública garante o escrutínio público. Se estiver preso aos seus ideais e ética e fizer seu trabalho bem, no final, o julgamento adequado será prestado.