Carta 26: Sobre a velhice e a morte

Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la.

Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de suicídio imposta por Nero. Ainda assim, ele é grato por sua mente ainda estar afiada, mesmo que seu corpo estivesse em decadência, como convém a um estoico que dá valor à sua faculdade mental e considera o corpo um indiferente preferido.

você diz,  é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.”(XXVI, §4)

Uma morte rápida e súbita é fácil e preferível, mas a realidade é que a maioria de nós vai decair lentamente, perdendo tanto a nossa força física quanto a mental no processo. Esse é o difícil desafio de se aproximar do fim, e é por isso que a forma como nos aproximamos da morte é o teste final de nosso caráter. Como vamos reagir à nossa crescente dependência dos outros? É melhor ficar por aqui até o último minuto, ou caminhar pela porta aberta, como Epiteto diz, enquanto ainda estamos no controle? 

É uma boa prática perguntar a nós mesmos a mesma questão, não apenas sobre a morte, mas sobre como nos comportamos todos os dias: estamos realmente tentando, ainda que imperfeitamente, viver a vida estoica, ou é apenas conversa? Sêneca atribui valor limitado ao aprendizado teórico. A prova está na prática:

Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.”(XXVI, §7)

Este é um ponto crucial, e tão comumente subestimado. Muitas vezes falamos de alguém morrendo “prematuramente”. Mas nós baseamos isso em expectativas estatísticas. Do ponto de vista do Logos, a teia cósmica de causa e efeito, não existe algo muito cedo ou muito tarde. As coisas acontecem quando acontecem. E esse conhecimento teórico tem o potencial de ser de enorme interesse prático, não perca tempo, pela simples razão de que você não saber quanto tempo tem no banco.

 


XXVI. Sobre a velhice e a morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estava ultimamente dizendo que estava à vista da velhice.111 Agora estou com medo de ter deixado a velhice atrás de mim. Pois alguma outra palavra se aplicaria agora a meus anos, ou de qualquer maneira a meu corpo, uma vez que a velhice significa um tempo da vida que se está cansado, em vez de esmagado. Você pode me colocar então na classe dos decrépitos, daqueles que estão chegando ao fim.

2. No entanto, eu agradeço a mim mesmo, com você como testemunha, porque eu sinto que a idade não causou nenhum dano a minha mente, embora eu sinta seus efeitos em minha constituição corporal. Somente meus vícios e as ajudas exteriores a esses vícios chegaram à senilidade, minha mente é forte e se regozija por ter apenas ligeira conexão com o corpo. Ela deixou de lado a maior parte de sua carga. Está alerta, ela rejeita o tema da velhice, declara que a velhice é seu tempo de florescimento.

3. Deixe-me levá-la em consideração e deixá-la aproveitar as vantagens que possui. A mente me pede que pense um pouco e considere o quanto dessa paz de espírito e moderação de caráter devo à sabedoria e quanto a meu tempo de vida, me convida a distinguir cuidadosamente o que não posso fazer e o que não quero fazer… Pois por que alguém deve queixar-se ou considerar uma desvantagem, se as forças que deveriam chegar ao fim começam a falhar?

4. “Mas,” você diz, “é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos, somos desgastados e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.” Mas há algum fim melhor para tudo isso do que planar para seu próprio refúgio quando a natureza se vai? Não que haja algo doloroso em um choque e uma partida repentina da existência, é apenas porque este outro modo de partida é fácil, uma retirada gradual. Eu, de qualquer modo, como se o teste estivesse à mão e chegasse o dia de pronunciar sua decisão sobre todos os anos da minha vida, vigio-me e comungo assim comigo:

5. “A demonstração que fizemos até o presente, em palavra ou em ação, não vale nada. Tudo isso é apenas uma promessa insignificante e enganosa de nosso espírito e está envolto em muito charlatanismo. Vou deixar a cargo da morte determinar o progresso que fiz. Portanto, sem timidez, estou preparando para o dia em que, deixando de lado todo o artifício de palco e maquiagem de ator, eu deverei presidir meu próprio julgamento; se estou meramente declamando sentimentos corajosos ou se realmente os sinto, se todas as ameaças arrojadas que eu proferi contra a Fortuna eram fingimento e farsa!

6. Deixe de lado a opinião do mundo, ela é sempre vacilante e sempre parcial. Deixe de lado os estudos que você tem perseguido durante toda a sua vida, a morte entregará o julgamento final em seu caso. Isto é o que quero dizer: seus debates e palestras, seus axiomas recolhidos a partir dos ensinamentos dos sábios, sua conversa culta, tudo isso não oferece nenhuma prova da verdadeira força da sua alma. O homem mais tímido pode fazer um discurso ousado. O que você fez no passado será evidente apenas no momento em que você expirar seu último suspiro. Eu aceito as condições. Eu não me acovardo frente a decisão”.

7. Isto é o que eu digo a mim mesmo, mas gostaria que você pensasse que eu o digo a você também. Você é mais jovem, mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera, então esteja sempre pronto para ela.

8. Eu estava apenas pretendendo parar e minha mão estava se preparando para a frase de encerramento, mas os ritos ainda devem ser realizados e as despesas de viagem para a carta desembolsadas. E apenas suponha que eu não direi de quem eu pretendo emprestar a soma necessária, você sabe de cujos cofres dependo. Espere só mais um momento e eu pagarei de minha conta, entretanto por agora, Epicuro me favorece com estas palavras: “Medita na morte”,112 ou melhor, se preferir, a frase: “atribua maior importância à aprendizagem da morte”.

9. O significado é claro: é uma coisa maravilhosa aprender minuciosamente como morrer. Você pode considerar que é supérfluo aprender um texto que pode ser usado apenas uma vez; mas essa é exatamente a razão pela qual devemos pensar em uma coisa. Quando nunca podemos provar se realmente sabemos alguma coisa, devemos sempre estar aprendendo.

10. “Medita na morte”. Ao dizer isso ele nos pede para pensar na liberdade. Aquele que aprendeu a morrer desaprendeu a escravidão, está acima de qualquer poder externo ou, pelo menos, está além disso. Que terrores causam prisões, correntes e grades para ele? A sua saída é clara, a porta está sempre aberta. Existe apenas uma corrente que nos prende à vida e essa é o amor pela vida. A corrente não pode ser desprezada, mas pode ser enganada, de modo que, quando a necessidade exigir, nada pode retardar ou impedir que estejamos prontos para fazer de uma só vez o que em algum momento seremos obrigados a fazer.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


111 Veja a carta XII. Sêneca tinha por este tempo, pelo menos, sessenta e cinco anos. Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de Nero para cometer suicídio.

112 Ver as três citações em Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 9: Sobre Filosofia e Amizade

Na nona carta Sêneca discorre sobre a complexa relação entre autossuficiência e a necessidade de amizade, refletindo sobre as ideias de Epicuro e os estoicos.

Em todo o texto o termo  “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.

A carta também explica o conceito estoico de indiferente: “Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.” (IX, §4)

  • Autossuficiência e Amizade: Sêneca começa discutindo a visão de Epicuro sobre a autossuficiência do sábio e como isso se relaciona com a necessidade de amizades. Epicuro critica a ideia de que o sábio não precisa de amigos, argumentando que mesmo o sábio deseja companhia.
  • Felicidade e Posse Interna: A felicidade genuína vem de dentro, não depende de bens externos ou mesmo de amigos. O sábio pode perder tudo e ainda assim se considerar completo.
  • Crítica ao Materialismo: Sêneca critica a visão de que a posse material ou poder pode trazer felicidade, destacando que a verdadeira felicidade reside na satisfação interna.

Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e  nos alerta sobre o risco das amizades por interesse:  “Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse.” (IX, §6 e 9 )

Assim, embora o sábio seja autossuficiente, isso não exclui a busca por amizades verdadeiras que enriquecem a vida sem depender delas para a felicidade. Sêneca nos a refletir sobre como a felicidade e a paz interior são cultivadas internamente, independentemente das perdas ou ganhos externos.


IX. Sobre filosofia e amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.33 Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.

2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.34 Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.

3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:35 nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.

4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.

5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,36 se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.

6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.

7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.

8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, autossuficiente como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.

9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”37; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.

10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.

11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?

12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da Fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.

13. “O homem sábio é autossuficiente”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio é autossuficiente para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a Fortuna.

14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.38 “Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”39 O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.

15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da Fortuna.

16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.40 Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.

17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.

18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,41 conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!

19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.

20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.

21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:

Infeliz é aquele que não se considera feliz.42

O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?

22. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


33 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

34 O termo grego ἀπάθεια (Apatheia) significa literalmente “ausência de sofrimento”, daí vem o termo apatia em português.

35 Isto é, escola cínica.

36 Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

37 Em Latin, quas temporarias, tempo bom.

38 A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.

39 Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.

40 Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.

41 Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.

42 Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro.

Carta 7: Sobre multidões

A sétima carta de Sêneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.

Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura  ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:

Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!‘ (VII, §4-5)”

Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. “(VII, §6)”

(imagem: Pollice Verso (polegar para baixo) – por Jean-Léon Gérôme )


VII. Sobre multidões

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado, alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.

2. Ligar-se à multidão é prejudicial. Não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar algum espetáculo, pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.

3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão, mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva.1 Eles estão expostos a golpes em todos os pontos e ninguém nunca desfere golpes em vão.

4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos, ao meio-dia, os jogam aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia para o intervalo.

5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo. Mas e você? Que crime você cometeu, pobre colega, que mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco de gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você2 não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender por si a ser cruel.

6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão: é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles. Tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultivemos nossas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.

7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância: o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta? Você deve imitar ou abominar o mundo.

8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau, simplesmente porque eles são muitos, nem deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo pois os homens aprendem enquanto ensinam.

9. O vão orgulho em divulgar suas habilidades não deve induzi-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adequasse a tal multidão; mas como ela é, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitem sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços. Foi por si mesmo que você aprendeu.

10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com você três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito3 diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão e uma multidão apenas tanto como um homem.

11. O seguinte também foi nobremente falado por ele ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor. Eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.4

12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens o louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro, seus autênticos bens são internos.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados eram frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceriam por toda a parte do dia.

2 A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

3 Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. – 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C. Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.

Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia:  “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


IV. Sobre os terrores da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.

2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.

3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.

4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.

5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.

6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.

7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.

8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?

9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.

10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5] Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.

11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1]  A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.

[2] Nome de Calígula.

[3] Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.

[4] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[5] O Jardim de Epicuro.

[6] Ver Epicuro, Cartas e Princípios. A mesma citação é repetida na carta 27, neste volume, e também na carta 119. Ver Cartas de um Estoico, Volume III.

Carta 71: Sobre o Bem Supremo

Depois férias de Natal e reveillon, O Estoico volta às resenhas das cartas de Sêneca, iniciando o ano com um texto excelente.

Na carta 71 Sêneca explica a Lucílio qual deve ser o objetivo do estudante de filosofia, o que ele chama de Bem Supremo.

Diz que devemos considerar a vida como um o todo, e não suas partes isoladamente. Alerta que quem não tem um objetivo não consegue encontrar um caminho:

“A razão pela qual cometemos erros é porque consideramos as partes da vida, mas nunca a vida como um todo. O arqueiro deve saber o que ele está tentando atingir; então deve apontar e controlar a arma por sua habilidade. Nossos planos malogram porque não têm objetivo. Quando um homem não sabe a qual porto ele está indo, nenhum vento é o vento certo.” (LXXI, 2-3)

Aborda em detalhe e com exemplos o conceito estoico de indiferente, ou seja, que a maioria das coisas não tem valor em si mesmo.  Ganhar ou perder uma eleição assim como participar de um banquete ou ser torturado pode ser algo honrado ou vergonhoso, dependendo das circunstâncias. Para Sêneca o Bem Supremo é a razão/virtude.

Além de falar de Catão e Cineu Pompeu, cita Sócrates:

“Portanto, a honrosa morte de Catão não foi menos boa do que sua vida honrada, já que a virtude não admite nenhum estiramento. Sócrates costumava dizer que a verdade e a virtude eram idênticas. Assim como a verdade não cresce, assim também a virtude não cresce; pois têm suas corretas proporções e são completas.” (LXXI,16)

O Bem Supremo é a virtude! e a define assim: “A virtude é o único bem, ao menos não há bem sem virtude, e a própria virtude está situada em nossa parte mais nobre, isto é, a parte racional. E o que será essa virtude? Um julgamento verdadeiro e nunca divergente.” (LXXI, 32)

Imagem (A morte de Catão, por Pierre Bouillon)


LXXI. Sobre o Bem Supremo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você está continuamente remetendo perguntas especiais para mim, esquecendo que um vasto trecho de mar nos separa. Como, no entanto, o valor do conselho depende principalmente do momento em que é dado, deve necessariamente resultar que, quando a minha opinião sobre certos assuntos chegar a você, a opinião oposta seja a melhor. Pois conselhos estão em conformidade com as circunstâncias; e nossas circunstâncias são carregadas ao vento, ou turbilhonadas ao vento. Consequentemente, um parecer deve ser elaborado a curto prazo; e até mesmo assim é tarde demais; deve “crescer enquanto é trabalhado”, como diz o ditado. E eu proponho mostrar como você pode descobrir o método.
  2. Sempre que você quiser saber o que deve ser evitado ou o que deve ser buscado, considere sua relação com o Bem Supremo, com o propósito de sua vida. Pois tudo o que fazemos deve estar em harmonia com isso; nenhum homem pode pôr em marcha os detalhes a menos que já tenha colocado diante de si o objetivo principal de sua vida. O artista pode ter suas tintas todas preparadas, mas ele não pode produzir nada a menos que ele já tenha decidido o que quer pintar. A razão pela qual cometemos erros é porque consideramos as partes da vida, mas nunca a vida como um todo.
  3. O arqueiro deve saber o que ele está tentando atingir; então deve apontar e controlar a arma por sua habilidade. Nossos planos malogram porque não têm objetivo. Quando um homem não sabe a qual porto ele está indo, nenhum vento é o vento certo. A fortuna deve necessariamente ter grande influência sobre nossas vidas, porque vivemos por sorte.
  4. É o caso de certos homens, entretanto, que não sabem que sabem certas coisas. Assim como frequentemente procuramos aqueles que já estão ao nosso lado, também estamos aptos a esquecer que o objetivo do Bem Supremo está perto de nós. Para inferir a natureza desse Bem Supremo, não se precisa de muitas palavras ou discussões circulares; deve ser apontado com o dedo indicador, por assim dizer, e não estar dissipado em muitas partes. Pois que bem há em quebrá-lo em pequenos pedaços, quando você pode dizer: o Bem Supremo é aquilo que é honrado? Além disso (e você pode estar ainda mais surpreso com isso), o que é honroso é o único bem; todos os outros bens são impuros e degradados.
  5. Se uma vez você se convencer disso, e se vier a amar a virtude devotadamente (porque o mero amor não é suficiente), tudo o que foi tocado pela virtude será repleto de bênção e prosperidade para você, não importa como seja considerado pelos outros. Tortura, se apenas, ao sofre-la você estiver mais calmo em mente do que seu próprio torturador; enfermidade, se você não amaldiçoar a Fortuna e não ceder à doença – em suma, todas aquelas coisas que os outros consideram como doenças tornar-se-ão manejáveis e terminarão bem, se você tiver sucesso em subir acima delas. Que isto seja claro, que não há nada de bom senão o que é honroso, e todas as dificuldades terão um rótulo com o justo nome de “bens”, uma vez que a virtude as tenha tornado honrosas.
  6. Muitos pensam que nós estoicos estamos mantendo expectativas maiores do que a nossa sina humana admite; e eles têm o direito de pensar assim. Pois eles só têm respeito ao corpo. Mas voltemos para a alma, e logo medirão o homem pela régua de Deus. Desperte-se, ó excelente Lucílio, e abandone todo este jogo de palavras dos filósofos, que reduzem um assunto glorioso a uma questão de sílabas, e abaixam e desgastam a alma ensinando fragmentos; então você se tornará como os homens que descobriram estes preceitos, em vez daqueles que por seus ensinamentos dão o melhor para fazer a filosofia parecer difícil ao invés de grande.
  7. Sócrates, que revogou toda a filosofia às regras de conduta e afirmou que a sabedoria suprema consistia em distinguir entre o bem e o mal, disse: “Siga estas regras, se minhas palavras fizerem sentido a você, para que você possa ser feliz; e deixe que alguns homens pensem que você é um tolo. Permita que qualquer homem que assim o deseje o insultar e menosprezar, mas se apenas a virtude mora com você, você não sofrerá nada. Se você deseja ser feliz, se você gostaria de boa-fé ser um bom homem permita que uma pessoa ou outra despreze você.” Nenhum homem pode fazer isso a menos que tenha chegado a considerar todos os bens como iguais, porque nenhum bem existe sem o que é honroso, e o que é honroso é em todos os casos igual.
  8. Você pode dizer: “O que, então? Não há diferença entre o fato de Catão ser eleito pretor e seu fracasso nas eleições, ou se Catão é conquistado ou conquistador na frente de batalha de Farsália? E se Catão não pudesse ser derrotado, apesar de sua facção ter encontrado a derrota, não seria esse bem igual ao que teria sido dele se tivesse voltado vitorioso para sua terra natal e providenciado a paz?” Claro que seria; pois é pela mesma virtude que a fortuna maligna é superada e a boa fortuna é controlada. No entanto, a virtude não pode ser aumentada ou diminuída; sua estatura é uniforme.
  9. “Mas,” objetará, “Cineo Pompeu perderá o seu exército, os patrícios, os mais nobres padrões da criação do Estado, e os primeiros homens do partido de Pompeu, um senado sob as armas, serão encaminhados a uma única batalha. As ruínas daquela grande oligarquia estarão espalhadas por todo o mundo, uma divisão cairá no Egito, outra na África e outra na Espanha… E o pobre Estado não terá nem o privilégio de ser arruinado de uma vez por todas!”
  10. Sim, tudo isso pode acontecer; a familiaridade de Juba com todas as localizações de seu próprio reino pode ser inútil para ele, de nada serve a bravura resoluta de seu povo ao lutar por seu rei; mesmo os homens de Utica, esmagados por seus problemas, podem vacilar em sua lealdade; e a boa fortuna que sempre assistiu homens do nome de Cipião, pode desertar Cipião na África. Mas há muito tempo o destino fez com que Catão não encontrasse a nenhum mal.
  11. “Ele foi conquistado apesar de tudo!” Bem, você pode incluir isso entre os “fracassos” de Catão; Catão suportará com um coração igualmente forte qualquer coisa que o frustre de sua vitória, como ele suportou aquela que o frustrou de sua posição de pretor. O dia em que perdeu a eleição, ele passou em jogo; a noite em que pretendia morrer, passou lendo. Ele considerava, sob a mesma luz, a perda de pretoriado e a perda de sua vida; ele se convenceu de que deveria suportar qualquer coisa que pudesse acontecer.
  12. Por que ele não deveria sofrer, bravamente e calmamente, uma mudança no governo? Pois o que é livre do risco de mudança? Nem a terra, nem o céu, nem todo o tecido do nosso universo, embora sejam controlados pela mão de Deus. Não preservarão sempre sua ordem atual; serão desestabilizados em dias futuros.
  13. Todas as coisas se movem de acordo com os tempos designados; elas estão destinadas a nascer, a crescer e a serem destruídas. As estrelas que você vê se movendo acima de nós, e esta terra aparentemente imóvel à qual nos apegamos e sobre a qual estamos posicionados, serão consumidas e deixarão de existir. Não há nada que não tenha sua velhice; os intervalos são meramente desiguais em que a Natureza envia todas essas coisas para o mesmo fim. O que quer que seja cessará de ser, e, no entanto, não perecerá, mas será transformado em seus elementos.
  14. Para nossas mentes, este processo significa perecer, pois só vemos o que está mais próximo; nossa mente lenta, sob lealdade ao corpo, não penetra a fronteiras além. Se não fosse assim, a mente suportaria com maior coragem o seu próprio fim e o de suas posses, se ao menos pudesse esperar que a vida e a morte, como todo o universo que nos rodeia, se alterna, que tudo o que foi quebrado é reunido novamente, e que a habilidade eterna de Deus, que controla todas as coisas, está trabalhando nessa tarefa.
  15. Portanto, o sábio dirá exatamente o que um Marco Catão diria, depois de revisar sua vida passada: “Toda a raça humana, tanto os que estão como os que virão, está condenada a morrer. Todas as cidades que tem dominado o mundo, e todos os que foram os esplêndidos ornamentos de impérios, os homens um dia perguntarão onde estão, e eles serão varridos por destruições de várias espécies, alguns serão arruinados por guerras, outros serão desperdiçados pela inatividade e pelo tipo de paz que termina na preguiça, ou por esse vício que é repleto de destruição, mesmo para poderosas dinastias, – o luxo. Todas estas planícies férteis serão enterradas por um repentino transbordamento do mar, ou pelo deslizamento de terra, à medida que o solo se instala a níveis mais baixos. Por que então eu deveria estar com raiva ou sentir tristeza, se eu anteceder a destruição geral por um pequeno intervalo de tempo?”
  16. Que grandes almas cumpram os desejos de Deus e sofram sem hesitação o destino que a lei do universo ordena; pois a alma na morte ou é enviada para uma vida melhor, destinada a habitar com a divindade em meio a uma maior radiação e calma, ou então, pelo menos, sem sofrer nenhum dano a si mesma, ela será misturada com a natureza novamente e voltará o universo. Portanto, a honrosa morte de Catão não foi menos boa do que sua vida honrada, já que a virtude não admite nenhum estiramento. Sócrates costumava dizer que a verdade e a virtude eram idênticas. Assim como a verdade não cresce, assim também a virtude não cresce; pois têm suas corretas proporções e são completas.
  17. Você não precisa, portanto, se perguntar se os bens são iguais, tanto aqueles que devem ser deliberadamente escolhidos, como aqueles que as circunstâncias impuseram. Pois se uma vez adotar a visão de que são desiguais, considerando, por exemplo, a resistência corajosa da tortura como entre os bens menores, você estará a incluindo entre os males também; você definirá como infeliz Sócrates em sua prisão, Catão infeliz ao reabrir suas feridas, e Régulo o mais mal condecorado de todos quando pagou o preço por manter a sua palavra, mesmo frente a seus inimigos. E, no entanto, nenhum homem, nem mesmo a pessoa mais fraca do mundo, se atreveu a manter essa opinião. Pois, embora tais pessoas neguem que um homem como Régulo seja feliz, contudo, elas também negam que ele seja miserável.
  18. Os primeiros acadêmicos[1] admitem de fato que um homem é feliz mesmo em meio a tais torturas, mas não admitem que está completamente ou totalmente feliz. Com esta visão não podemos de modo algum concordar; pois, a menos que um homem seja feliz, não alcançou o bem supremo; e o bem que é supremo não admite um grau mais elevado, se somente a virtude existe dentro deste homem, e se a adversidade não prejudicar sua virtude, e se, embora o corpo seja ferido, a virtude permaneça ilesa. E permanece. Pois eu entendo que a virtude é corajosa e elevada, de modo que ela é despertada por qualquer coisa que a moleste.
  19. Esse espírito, que os jovens de nobre criação frequentemente assumem, quando são tão profundamente agitados pela beleza de algum objeto honrado que desprezam todos os caprichos do acaso, é seguramente infundido em nós e comunicado pela sabedoria. A sabedoria trará a convicção de que só há um bem – o que é honroso; que não pode ser encurtado nem estendido, não mais do que a régua de um carpinteiro, com que as linhas retas são testadas, pode ser dobrada. Qualquer mudança na régua significa estragar a linha reta.
  20. Aplicando, portanto, esta mesma figura à virtude, diremos: a virtude também é reta, e não admite dobra. O que pode ser feito mais tenso do que uma coisa que já é rígida? Tal é a virtude, que julga tudo, mas nada julga a virtude. E se esta régua, a virtude, não pode ser feita mais reta, tampouco as coisas criadas pela virtude podem ser em um caso mais retas e em outras menos. Pois elas devem corresponder necessariamente à virtude; portanto, elas são iguais.
  21. “O quê?”, você diz, “você considera sentar-se em um banquete e se submeter a tortura igualmente bom?” Isso lhe parece surpreendente? Você pode estar ainda mais surpreso com o seguinte, – que sentar-se em um banquete é um mal, enquanto se submetido à tortura é um bem, se o primeiro ato é feito vergonhosamente, e o último de maneira honrosa. Não é o material que torna essas ações boas ou más; É a virtude. Todos os atos em que a virtude se revela são da mesma medida e valor.
  22. Neste momento o homem que mede as almas de todos os homens pela sua própria está agitando o punho na minha cara porque eu considero que há uma paridade entre os bens envolvidos no caso de quem passa sentença honrosamente, e de quem sofre a pena honrosamente; Ou porque eu considero que há uma paridade entre os bens de quem celebra um triunfo, e de quem, não derrotado em espírito, é levado frente ao carro do vencedor. Pois tais críticos pensam que o que eles mesmos não podem fazer, não é feito; eles julgam a virtude à luz de suas próprias fraquezas.
  23. Por que você se maravilha se é de ajuda a um homem, e em ocasiões até lhe agrada, ser queimado, ferido, morto ou preso? Para um homem luxuoso, uma vida simples é uma penalidade; para um homem preguiçoso, o trabalho é castigo; o fanfarrão tem pena do homem diligente; para os preguiçosos, os estudos são tortura. Da mesma forma, consideramos essas coisas com que todos nós somos deficientes de disposição, tão duros e além da resistência, esquecendo que tormento é para muitos homens absterem-se de beber vinho ou serem arrancados de suas camas ao amanhecer. Essas ações não são essencialmente difíceis; somos nós mesmos que somos macios e flácidos.
  24. Devemos julgar grandes coisas com grandeza de alma; caso contrário, o que é realmente nossa culpa parece ser culpa dos outros. Assim é, que certos objetos que são perfeitamente retos, quando afundado em água aparecem ao espectador como dobrados ou quebrados[2]. Não importa apenas o que você vê, mas com que olhos você o vê; nossas almas são muito fracas de visão para perceber a verdade.
  25. Mas dê-me um jovem imaculado e robusto; ele pronunciará mais afortunado aquele que sustenta nos ombros inflexíveis todo o peso da adversidade, aquele que se destaca superior à Fortuna. Não é motivo de admiração que alguém não se agite quando o tempo está calmo; Reserve o seu assombro para casos onde um homem mantem-se erguido quando todos os outros afundam, e mantém-se em pé quando todos os outros estão prostrados.
  26. Que elemento do mal há na tortura e nas outras coisas que chamamos de dificuldades? Parece-me que há esse mal, que a mente afunda, se dobra e desmorona. Mas nenhuma dessas coisas pode acontecer ao sábio; Ele fica ereto sob qualquer carga. Nada pode subjugá-lo; nada que deva ser suportado o irrita. Pois ele não se queixa de ter sido atingido pelo que pode atacar qualquer homem. Ele conhece sua própria força; Ele sabe que ele nasceu para suportar cargas.
  27. Eu não retiro o homem sábio da categoria dos homens, nem lhe nego o sentido da dor como se ele fosse uma rocha que não tem nenhum sentimento. Eu me lembro que ele é composto de duas partes: a uma parte é irracional, – é isso que pode ser mordido, queimado ou ferido; A outra parte é racional, – é isso que resiste resolutamente às opiniões, é corajosa e inconquistável. Nesta última está situado o Bem Supremo do homem. Antes que isso seja completamente alcançado, a mente vacila na incerteza; somente quando é totalmente alcançado a mente torna-se fixa e estável.
  28. E assim, quando alguém acaba de começar, ou está a caminho das alturas e está cultivando a virtude, ou mesmo se alguém está se aproximando do bem perfeito, mas ainda não colocou o toque final sobre ele, este alguém ainda vai retroceder as vezes e haverá um certo afrouxamento do esforço mental. Porque tal homem ainda não atravessou o terreno duvidoso; Ele ainda está em lugares escorregadios. Mas o homem feliz, cuja virtude é completa, ama-se sobretudo quando sua bravura é submetida à mais severa prova, e quando ele não só, suporta, mas acolhe o que todos os outros homens consideram com medo, se é o preço que deve pagar pelo cumprimento de um dever que a honra impõe, e ele prefere que os homens digam dele: “quão nobre!” Em vez de “como tem fortuna!”
  29. E agora cheguei ao ponto em que sua espera paciente me convoca. Você não deve pensar que nossa virtude humana transcende a natureza; o homem sábio vai tremer, vai sentir dor, vai ficar pálido, pois tudo isso são sensações do corpo. Onde, então, é a morada da angústia total, daquilo que é verdadeiramente um mal? Na outra parte de nós, sem dúvida, se é a mente que essas provações arrastam para baixo, forçam uma confissão de sua servidão, e causam a lamentar a sua existência.
  30. O sábio, de fato, vence a Fortuna por sua virtude, mas muitos que professam a sabedoria às vezes são assustados pelas ameaças mais insubstanciais. E nesta fase é um erro de nossa parte fazer as mesmas exigências sobre o homem sábio e sobre o aprendiz. Ainda me exorto a fazer o que recomendo; mas as minhas exortações ainda não foram seguidas. E mesmo se fosse esse o caso, não deveria eu ter esses princípios tão prontos à prática, ou tão bem treinados, que eles iriam surgir em minha assistência em todas as crises.
  31. Assim como a lã absorve certas cores imediatamente, enquanto há outras que nunca absorverá, a menos que seja embebida e mergulhada nelas muitas vezes; de modo que outros sistemas de doutrina podem ser aplicados imediatamente pela mente dos homens depois de terem sido aceitos, mas este sistema do qual falo, a não ser que tenha ido fundo e se tenha afundado há muito tempo e não tenha apenas colorido mas completamente permeado a alma, não cumpre nenhuma de suas promessas.
  32. O assunto pode ser transmitido rapidamente e em poucas palavras: “A virtude é o único bem, ao menos não há bem sem virtude, e a própria virtude está situada em nossa parte mais nobre, isto é, a parte racional”. E o que será essa virtude? Um julgamento verdadeiro e nunca divergente. Pois dele brotarão todos os impulsos mentais, e por seu meio será esclarecida toda aparência externa que desperte nossos impulsos.
  33. Será de acordo com este conceito julgar todas as coisas que foram coradas pela virtude como bens e como bens iguais. Os bens corporais são, com certeza, bons para o corpo; mas eles não são absolutamente bons. Haverá certamente algum valor neles; mas eles não terão mérito genuíno, pois eles serão muito diferentes; alguns serão menores, outros maiores.
  34. E somos constrangidos a reconhecer que há grandes diferenças entre os próprios seguidores da sabedoria. Um homem já fez tantos progressos que ousou levantar os olhos e olhar a Fortuna no rosto, mas não persistentemente, pois seus olhos logo se abaixam, deslumbrados por seu esplendor irresistível; outro já progrediu tanto que é capaz de encara-la de frente, isto é, que já tenha alcançado o ápice e esteja cheio de confiança.
  35. O que ainda não é perfeito deve necessariamente ser instável, uma vez progredindo, outra vez deslizando; e certamente escorregará para trás, a menos que continue lutando a frente; pois se um homem se afrouxa em zelo e aplicação fiel, ele deve retroceder. Ninguém pode retomar seu progresso no ponto em que parou.
  36. Portanto, sigamos e perseveremos. Resta muito mais da estrada do que colocamos atrás de nós; mas a maior parte do progresso é o desejo de progredir. Compreendo perfeitamente o que é esta tarefa. É uma coisa que desejo, e a desejo de todo o meu coração. Eu vejo que você também foi despertado e está se apressando com grande zelo para a beleza infinita. Vamos, então, apressar; somente nestes termos a vida será uma bênção para nós; caso contrário, haverá atraso, e até mesmo atraso vergonhoso, enquanto nos ocupamos com coisas repugnantes. Vamos cuidar para que todo o tempo pertença a nós. Isso, no entanto, não pode acontecer, a menos que, em primeiro lugar, nossos próprios seres comecem a pertencer a nós.
  37. E quando será nosso privilégio desprezar ambos os tipos de fortuna? Quando será o nosso privilégio, depois que todas as paixões forem subjugadas e trazidas sob nosso próprio controle, pronunciar as palavras “Eu conquistei”? Você me pergunta quem eu conquistei? Nem os Persas, nem os remotos Medos,[3] nem qualquer raça guerreira que se encontre além do Dahae[4]; não estes, mas a ganância, a ambição e o medo da morte que conquistou os conquistadores do mundo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Membros da Academia de Platão

[2] Um remo submerso, apesar de reto, apresenta aparência de estar dobrado.

[3] Os Medos foram uma das tribos de origem ariana que migraram da Ásia Central para o planalto Iraniano durante a Antiguidade. No final do século VII a.C. fundaram o Império Medo centrado na cidade de Ecbátana.

[4] Atual Turcomenistão

Carta 69: Sobre estar quieto e Inquietação

Após as resenhas das Meditações de Marco Aurélio, voltamos com a análise das cartas de Sêneca.

Na Carta 69 volta a discussão o tempo de devemos dedicar ao estudo, o problema com mudanças constantes e as distrações causadas pela busca do prazer.

Vale lembrar da Carta 28, onde Sêneca questiona:

“Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.” (XXVIII.2)

Diz que devemos aplicar o remédio da filosofia longamente, sem interrupção, mantendo a tranquilidade da alma.  Afirma que a mudança traz de volta anseios esquecidos, e que aquele que se afasta do mundo dos homens ocupados, não deve se colocar como alvo da tentação:

“Assim como aquele que tenta livrar-se de um amor antigo deve evitar todo lembrete da pessoa que antes era querida (pois nada cresce tão facilmente como o amor), da mesma forma, aquele que deixaria de lado o seu desejo por todas as coisas que costumava desejar tão apaixonadamente, deve afastar olhos e ouvidos dos objetos que abandonou.” (LXIX, 3)

Conclui a carta falando  da morte, e instiga Lucílio a não temê-la.

(Imagem Diógenes em busca de um homem honesto por Jacob Jordaens)


LXIX. Sobre estar quieto e Inquietação

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu não gosto que você mude sua sede e debande de um lugar a outro. Minhas razões são, primeiro, que tal emigração frequente signifique um espírito instável. E o espírito não pode, através do retiro, crescer em harmonia, a menos que tenha cessado sua curiosidade e suas andanças. Para ser capaz de manter seu espírito sob controle, você deve primeiro parar a fuga constante do corpo.
  2. A minha segunda razão é que os remédios que são mais úteis são aqueles que não são interrompidos. Você não deve permitir que sua tranquilidade, ou o esquecimento a que você consignou sua vida anterior, serem penetrados. Dê a seus olhos tempo para desaprender o que eles viram, e seus ouvidos para se acostumar a palavras mais saudáveis. Sempre que você se move ao exterior você encontrará, mesmo quando passa de um lugar para outro, coisas que trarão de volta seus anseios antigos.
  3. Assim como aquele que tenta livrar-se de um amor antigo deve evitar todo lembrete da pessoa que antes era querida (pois nada cresce tão facilmente como o amor), da mesma forma, aquele que deixaria de lado o seu desejo por todas as coisas que costumava desejar tão apaixonadamente, deve afastar olhos e ouvidos dos objetos que abandonou. As emoções logo retornam ao ataque;
  4. Em cada turno elas vão notar diante de seus olhos um objeto digno de sua atenção. Não há mal que não ofereça incentivos. A Avareza promete dinheiro; Luxúria, variado sortimento de prazeres; a Ambição, um manto roxo[1] e aplausos, e a influência que resulta dos aplausos, e tudo que essa influência pode fazer.
  5. Vícios o tentam pelas recompensas que oferecem; mas na vida de que falo, você deve viver sem ser pago. Dificilmente bastará uma vida inteira para subjugar nossos vícios e fazê-los aceitar o julgo, inchados por longas indulgências; e ainda menos, se golpearmos nosso breve intervalo por qualquer interrupção. Mesmo cuidado e atenção constantes dificilmente podem trazer uma empreitada a conclusão completa.
  6. Se você vai dar ouvidos ao meu conselho, pondere e pratique isso, – como acolher a morte, ou mesmo, se as circunstâncias recomendarem esse curso, convidá-la. Não há diferença se a morte vem a nós, ou se nós vamos à morte. Faça-se crer que todos os homens ignorantes estão errados quando dizem: “É uma coisa linda morrer a própria morte”[2]. Mas não há homem que não morra sua própria morte. E mais, você pode refletir sobre este pensamento: Ninguém morre exceto em seu próprio dia. Você está jogando fora nada de seu próprio tempo; porque o que você deixa para trás não pertence a você.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Símbolo de poder estatal,  cargo público relavante.

[2] Talvez a ideia inversa de “viver a própria vida”. Significa “morrer quando chega o devido tempo”, e é o argumento do homem comum contra o suicídio. Entretanto, talvez sugira o assunto da próxima carta.

Carta 67: Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Na carta 67 Sêneca aborda um mal entendido comum em relação ao estoicismo.  A Filosofia não requer ou exige sofrimento ou qualquer dificuldade,  mas apenas diz que estas são situações corriqueiras que devem ser suportadas com tranquilidade,  já que não deveria ser surpresa para ninguém:

“Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.” (LXVII, 4)

Cita os exemplos de conduta estoica como Catão, Rutílio e Régulo que foram testados pela adversidade e souberam suporta-la com sabedoria. Conclui dizendo que uma vida sem sobressaltos e ataques da Fortuna é uma vida insossa:

Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa. “(LXVII,14)

Imagem:  Pintura de Salvator Rosa (1615-1673), A Morte de Régulo. A tortura infligida a Régulo, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.


LXVII. Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Se eu posso começar com uma observação comum, a primavera está se revelando gradualmente; mas embora seja preparação para o verão, quando se esperaria clima quente, está bastante frio, e ainda não se pode ter certeza disso. Pois ela desliza frequentemente para trás para o tempo do inverno. Você deseja saber o quão incerto ainda é? Eu ainda não estou seguro para um banho que pode ser absolutamente frio; mesmo neste momento eu tremo de frio. Você pode dizer que esta não é maneira de mostrar tolerância, quer ao calor ou ao frio; muito verdadeiro, querido Lucílio, mas na minha idade, raramente alguém fica satisfeito com o frio natural. Eu mal posso deixar de ter frio no meio do verão. Assim, eu passo a maior parte do tempo embrulhado;
  2. E agradeço a velhice por me manter preso à minha cama. Por que não devo agradecer à velhice por isso? Aquilo o que eu não deveria querer fazer, não tenho a capacidade de fazer. A maioria das minhas conversas é com livros. Sempre que suas cartas chegam, imagino que estou com você, e tenho a sensação de que estou prestes a falar a minha resposta, em vez de escrevê-la. Portanto, vamos juntos investigar a natureza de seu problema, como se estivéssemos conversando um com o outro.
  3. Você me pergunta se todo bem é desejável. Você diz: “Se é bom ser corajoso sob a tortura, ir à tortura com um coração forte, suportar a doença com resignação; segue-se que essas coisas são desejáveis. Mas não vejo que nenhuma delas valha a pena ser desejada. De qualquer forma, eu ainda não conheço ninguém que tenha feito uma promessa por ter sido cortado em pedaços pela vara, ou retorcido pela gota, ou feito mais alto pela roda de tortura.
  4. Meu caro Lucílio, você deve distinguir entre estes casos; então você compreenderá que há algo neles que é desejável. Eu prefiro estar livre da tortura; mas se chegar o momento em que deva ser suportada, desejo que eu possa conduzir-me com bravura, honra e coragem. É claro que eu prefiro que a guerra não ocorra; mas se a guerra ocorrer, desejo que eu possa suportar nobremente as feridas, a fome e tudo o que a exigência da guerra traz. Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.
  5. Alguns de nossa escola pensam que, de todas essas qualidades, não é desejável uma resistência intrépida, embora não seja desprezada, porque devemos procurar pela oração unicamente o bem que é puro, pacífico e fora do caminho dos problemas. Pessoalmente, eu não concordo com eles. E porque? Primeiro, porque é impossível que qualquer coisa seja boa sem ser também desejável. Porque, novamente, se a virtude é desejável, e se nada que é bom carece de virtude, então tudo o que é bom é desejável. E, finalmente, porque uma resistência corajosa mesmo sob tortura é desejável.
  6. Neste ponto, eu lhe pergunto: a bravura não é desejável? No entanto, a bravura despreza e desafia o perigo. A parte mais bela e admirável da bravura é que ela não se acovarda da tortura, avança para encontrar ferimentos, e às vezes nem evita a lança, mas recebe-a com o peito aberto. Se a bravura é desejável, também é a resistência paciente da tortura; pois isso é uma parte da bravura. Apenas filtre essas coisas, como sugeri; então não haverá nada que possa confundir você. Pois não é a mera resistência à tortura, mas a corajosa resistência, que é desejável. Eu, portanto, desejo a resistência “corajosa”; e isso é virtude.
  7. “Mas,” você diz, “quem desejou tal coisa para si mesmo?” Algumas orações são abertas e sinceras, quando os pedidos são oferecidos especificamente; outras orações são expressas indiretamente, quando incluem muitos pedidos sob um título. Por exemplo, desejo uma vida de honra. Agora, uma vida de honra inclui vários tipos de conduta; pode incluir o barril em que Régulo[1] estava confinado, ou a ferida de Catão que foi rasgada por sua própria mão, ou o exílio de Rutílio, ou a xícara de veneno que removeu Sócrates da prisão para o céu. Consequentemente, ao orar por uma vida de honra, ore também por aquelas coisas sem as quais, em algumas ocasiões, a vida não pode ser honrada.
  8. Oh três vezes e quatro vezes mais
    Quem debaixo das altas muralhas de Tróia
    Conheceu a morte feliz diante dos olhos dos pais![2]
    O que importa se você oferece esta oração para algum indivíduo, ou admite que era desejável no passado?
  9. Décio sacrificou-se pelo Estado; ele esporou seu cavalo e correu para o meio do inimigo, buscando a morte. O segundo Décio, rivalizando com o valor de seu pai, reproduzindo as palavras que se haviam tornado sagradas e familiares, se atirou ao ponto de luta mais pesada, ansioso apenas por que seu sacrifício pudesse trazer um presságio de sucesso, e considerando uma morte nobre como uma coisa a ser desejada. Você duvida, então, se é melhor morrer glorioso e realizar alguma ação de valor?
  10. Quando alguém suporta tortura bravamente, está usando todas as virtudes. A resistência talvez seja a única virtude que está a vista e mais manifesta, mas a bravura está lá também, e resistência e resignação e paciência são seus ramos. Lá, também, há planejamento; pois sem planejamento nenhum projeto pode ser empreendido; é o planejamento que aconselha alguém a suportar tão bravamente como possível as coisas que não pode evitar. Há também firmeza, que não pode ser deslocada de sua posição, que a ferramenta que nenhuma força pode fazer abandonar o seu propósito. Existe toda a inseparável companhia das virtudes; cada ato honrado é a obra de uma só virtude, mas está de acordo com o julgamento de todo o concílio. E o que é aprovado por todas as virtudes, embora pareça ser obra de um só, é desejável.
  11. O quê? Você acha que essas coisas só são desejáveis as quais vêm a nós em meio a prazer e facilidade, e que nós adornamos nossas portas em acolhimento? Há certos bens cujas características são proibitivas. Há certas orações que são oferecidas por uma multidão, não de homens que se alegram, mas de homens que se curvam reverentemente e adoram.
  12. Não foi assim que Régulo orou para que chegasse a Cartago? Vestir-se com a coragem de um herói, e afastar-se das opiniões do homem comum. Forme uma concepção apropriada da imagem da virtude, uma coisa que excede a beleza e a grandeza; esta imagem não deve ser adorada por nós com incenso ou guirlandas, mas com suor e sangue.
  13. Eis que Marcos Catão, deitado sobre o peito santificado, suas mãos sem mancha, e despedaçando as feridas que não foram suficientemente profundas para matá-lo! Que, por favor, deveria dizer a ele: “Espero que tudo seja como você quiser”, e “Estou triste”, ou “Boa fortuna em sua empreitada”?
  14. A este respeito, penso no nosso amigo Demétrio, que chama de existência fácil, não perturbada pelos ataques da Fortuna, um “Mar Morto”. Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por suas ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa.
  15. O estoico Átalo costumava dizer: “Eu prefiro que a Fortuna me mantenha em seu acampamento em vez de no luxo, se sou torturado, mas suporto corajosamente, tudo está bem, se morrer, mas morrer corajosamente, também está bem.” Ouça Epicuro; ele irá dizer-lhe que isso é realmente agradável. Jamais aplicarei uma palavra afeminada a um ato tão honroso e austero. Se eu for para a fogueira, devo ir invicto.
  16. Por que não consideraria isto desejável – não porque o fogo me queime, mas porque não me vença? Nada é mais excelente ou mais belo do que a virtude; tudo o que fazemos em obediência às suas ordens é bom e desejável.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.; em latimMarcus Atilius Regulus). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio:

O terque quaterque beati,
Quis ante ora patrura Troiae sub moenibus altis
Contigit oppetere!

Carta 66: Sobre vários aspectos da virtude

Na carta 66, primeira do Volume II,  Sêneca discorre longamente sobre a virtude e suas características. Defende que a virtude é única e representa o ápice. Todas as chamadas virtudes são na realidade o mesmo conceito em sua capacidade máxima:

“A virtude é ilimitada; pois limites dependem de medições definidas. A constância não pode avançar mais do que a fidelidade, a veracidade ou a lealdade. O que pode ser acrescentado ao que é perfeito? Nem se pode acrescentar nada à virtude, pois, se alguma coisa puder ser acrescentada a ela, seria necessária alguma imperfeição.” (LXVI, 9)

Para Sêneca a virtude é sempre um ato voluntário, originado da razão:

“nenhum ato é honrado quando é feito por um agente involuntário, quando é obrigatório. Todo ato honrado é voluntário. Misture-o com relutância, queixas, covardia ou medo, e perde sua melhor característica – auto aprovação. O que não é livre não pode ser honrado; pois medo significa escravidão.” (LXVI, 16)

Novamente retorna ao conceito estoico de coisas indiferentes, e coloca o bem estar, saúde e riqueza na categoria dos indiferentes preferidos:

“todas aquelas coisas sobre as quais a fortuna tem influência, bens materiais, dinheiro, posses, posição; elas são fracas, inconstantes, propensas a perecer, e de posse incerta. Por outro lado, as obras da virtude são livres e insubmissas, nem mais dignas de ser procuradas quando a fortuna as trata com bondade, nem menos digna quando alguma adversidade pesa sobre elas”. (LXVI, 23)

Conclui a carta relembrando a história de Caio Múcio Cévola herói da fundação da República Romana e tema usado para ilustrar essa carta.  (pintura de Matthias StomerMucius Scaevola na presença de Lars Porsenna )


LXVI. Sobre vários aspectos da virtude

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Acabei de ver meu ex-colega de escola, Clarano, pela primeira vez em muitos anos. Você não precisa esperar que acrescente que ele é um homem velho; Mas asseguro-lhe que o encontrei são em espírito e robusto, embora ele esteja lutando com um corpo frágil e fraco. Pois a Natureza agiu de forma injusta quando lhe deu um pobre domicílio para uma alma tão rara; ou talvez fosse porque ela queria nos provar que uma mente absolutamente forte e feliz pode estar escondida sob qualquer exterior. Seja como for, Clarano supera todos esses obstáculos, e por desprezar seu próprio corpo chegou a um estágio onde ele pode desprezar outras coisas também.
  2. O poeta que cantou: Valor mostra mais agradável em uma forma que é justa. [1] está, na minha opinião, enganado. Pois a virtude não precisa de nada para compensá-la; é sua própria glória, e santifica o corpo em que habita. De qualquer modo, comecei a considerar Clarano sob uma luz diferente; ele parece-me simpático, e bem construído tanto em corpo como na mente.
    Valor mostra mais agradável em uma forma que é justa
  3. Um grande homem pode nascer em um casebre; assim pode uma linda e grande alma em um corpo feio e insignificante. Por esta razão a natureza parece criar alguns homens deste selo com a ideia de provar que a virtude nasce em qualquer lugar. Se tivesse sido possível produzir almas sozinhas e nuas, ela o teria feito; como é fato, a natureza faz uma coisa ainda maior, pois ela produz certos homens que, embora impedidos em seus corpos, ainda assim rompem a obstrução.
  4. Creio que Clarano foi produzido como um padrão, para que possamos entender que a alma não é desfigurada pela feiura do corpo, mas pelo contrário, que o corpo é embelezado pela beleza da alma. Agora, apesar de Clarano e eu temos passados muitos poucos dias juntos, tivemos, no entanto, muitas conversas, que vou em seguida verter e transmitir para você.
  5. O primeiro dia investigamos esse problema: como os bens podem ser iguais se forem de três tipos[2]? Pois alguns deles, de acordo com os nossos princípios filosóficos, são primários, como a alegria, a paz e o bem-estar de um país. Outros são de segunda ordem, moldados de um material infeliz, como a resistência ao sofrimento e o autocontrole durante uma doença grave. Rezaremos abertamente pelos bens da primeira classe; para a segunda classe, oraremos somente se a necessidade surgir. Há ainda uma terceira variedade, como, por exemplo, um andar modesto, um semblante calmo e honesto, e um comportamento que se adapte ao homem de sabedoria.
  6. Agora, como podem estas coisas ser iguais quando as comparamos, se você conceder que devemos orar por um e evitar o outro? Se fizermos distinções entre eles, devemos retornar ao Primeiro Bem, e considerar qual é a sua natureza: a alma que olha para a verdade, que é hábil no que deve ser buscado e no que deve ser evitado, estabelecendo padrões de valor não de acordo com a opinião, mas de acordo com a natureza, – a alma que penetra o mundo inteiro e dirige seu olhar contemplativo sobre todos os seus fenômenos, prestando atenção estrita aos pensamentos e ações, igualmente grande e vigorosa, superior às dificuldades e as lisonjas, cedendo a nem dos extremos da fortuna, acima de todas as bênçãos e aflições, absolutamente linda, perfeitamente equipada com graça, bem como com força, saudável e vigorosa, imperturbável, nunca consternada , que nenhuma violência possa destruir, uma que os acaso não podem exaltar nem deprimir – uma alma como esta é a própria virtude.
  7. Lá você tem a sua aparência externa, se nunca deve vir sob um único aspecto e mostrar-se uma vez em toda a sua integridade. Mas há muitos aspectos disso. Desdobram-se de acordo com a vida e ações; mas a própria virtude não se torna menor ou maior. Pois o Bem Supremo não pode diminuir, nem a virtude retroceder; em vez disso, é transformada, agora em uma qualidade e agora em outra, moldando-se de acordo com a função que está a desempenhar.
  8. Tudo o que toca leva à semelhança consigo mesmo, e tinge com sua própria cor. Adorna nossas ações, nossas amizades e, às vezes, casas inteiras que entrou e pôs em ordem. O que seja o que for que tenha tocado imediatamente torna-o amável, notável, admirável. Portanto, o poder e a grandeza da virtude não podem elevar-se a alturas maiores, porque o incremento é negado àquilo que é superlativamente grande. Você não encontrará nada mais reto do que o reto, nada mais verdadeiro do que a verdade, e nada mais temperado do que o que é temperado.
  9. Toda virtude é ilimitada; pois limites dependem de medições definidas. A constância não pode avançar mais do que a fidelidade, a veracidade ou a lealdade. O que pode ser acrescentado ao que é perfeito? Nem se pode acrescentar nada à virtude, pois, se alguma coisa puder ser acrescentada a ela, seria necessária alguma imperfeição. Honra, também, não permite adição; pois é honrado por causa das mesmas qualidades que mencionei. E então? Você acha que a correção, a justiça, a legalidade, também não pertencem ao mesmo tipo, e que elas são mantidas dentro de limites fixos? A capacidade de melhorar é a prova de que uma coisa ainda é imperfeita.
  10. O bem, em todos os casos, está sujeito a essas mesmas leis. A vantagem da situação e do indivíduo estão juntas; na verdade, é tão impossível separá-los quanto separar o louvável do desejável. Portanto, as virtudes são mutuamente iguais; e assim são as obras da virtude, e todos os homens que são tão afortunados de possuir essas virtudes.
  11. Mas, como as virtudes das plantas e dos animais são perecíveis, são também frágeis, passageiras e incertas. Elas brotam, e elas afundam novamente, e por isso não são avaliadas ao mesmo valor; mas às virtudes humanas apenas uma regra se aplica. Pois a razão correta é única e de um só tipo. Nada é mais divino do que o divino, ou mais celestial do que o celestial.
  12. As coisas mortais decaem, caem, são desgastadas, crescem, são esgotadas, e reabastecidas. Assim, no caso delas, em vista da incerteza de sua fortuna, há desigualdade; mas das coisas divinas a natureza é única. A razão, entretanto, não é nada mais do que uma porção do espírito divino colocado em um corpo humano. Se a razão é divina, e o bem nunca carece de razão, então o bem é sempre divino. E além disso, não há distinção entre as coisas divinas; consequentemente também não existe nenhuma entre bens. Daí resulta que a alegria e uma corajosa e obstinada resistência à tortura são bens equivalentes; pois em ambos há a mesma grandeza de alma descontraída e alegre em um caso, no outro um combativo e pronto para a ação.
  13. O quê? Você não acha que a virtude daquele que bravamente ataca a fortaleza do inimigo é igual à daquele que sofre um cerco com a maior paciência? Grande é Cipião quando ele cerca Numância, e constrange e compele as mãos de um inimigo, que ele não poderia conquistar, para lançar mão à sua própria destruição[3]. Grande também são as almas dos defensores – homens que sabem que, enquanto o caminho para a morte está aberto, o cerco não é completo, os homens que respiram até o fim nos braços da liberdade. Do mesmo modo, as outras virtudes também são iguais entre si: tranquilidade, simplicidade, generosidade, constância, equanimidade, resistência. Porque subjacente a todas elas há uma única virtude – o que torna a alma reta e inabalável.
  14. “O que então”, você diz; “Não há diferença entre a alegria e a obstinada resistência à dor?” De forma alguma, não em relação às próprias virtudes; muito grande, no entanto, nas circunstâncias em que uma dessas duas virtudes é exibida. Em um caso, há um relaxamento natural e afrouxamento da alma; no outro há uma dor não natural. Daí que estas circunstâncias, entre as quais uma grande distinção pode ser estabelecida, pertencem à categoria de coisas indiferentes, mas a virtude mostrada em cada caso é igual.
  15. A virtude não é alterada pela questão com a qual trata; se a matéria é dura e teimosa, não piora a virtude; se agradável e alegre, não a torna melhor. Portanto, a virtude permanece necessariamente igual. Pois, em cada caso, o que se faz é feito com igual retidão, com igual sabedoria e com igual honra. Assim, os estados de bondade envolvidos são iguais, e é impossível para um homem ultrapassar esses estados de bondade, por conduzir-se melhor, seja o um homem em sua alegria, ou o outro em meio a seu sofrimento. E dois bens, que nenhum dos quais possa ser melhor que o outro, são iguais.
  16. Pois se as coisas que são extrínsecas à virtude podem diminuir ou aumentar a virtude, então o que é honroso deixa de ser o único bem. Se você aceitar isso, a honra perece completamente. E porque? Deixe-me dizer-lhe: é porque nenhum ato é honrado quando é feito por um agente involuntário, quando é obrigatório. Cada ato honorável é voluntário. Misture-o com relutância, queixas, covardia ou medo, e perde sua melhor característica – auto aprovação. O que não é livre não pode ser honrado; pois medo significa escravidão.
  17. O honorável está totalmente livre da ansiedade e é calmo; se alguma vez objeta, lamenta ou considera qualquer coisa como um mal, torna-se sujeito a perturbação e começa a chafurdar em meio a grande confusão. Pois, de um lado, a aparência de correção o atrai, por outro, a suspeita do mal o arrasta para trás, portanto, quando um homem está prestes a fazer algo honorável, ele não deve considerar quaisquer obstáculos como infortúnios, embora os considere como inconvenientes, mas ele deve querer fazer a ação, e fazê-la de boa vontade. Pois todo ato honorável é feito sem ordens ou coação; é puro e não contém mistura de mal.
  18. Eu sei o que você pode me responder neste momento: “Você está tentando fazer-me acreditar que não importa se um homem sente a alegria, ou se encontra-se sob tortura e esgota seu torturador?” Poderia dizer em resposta: “Epicuro também sustenta que o sábio, embora esteja sendo queimado no touro de Fálaris[4], clamará:” É agradável, e não me preocupa em absoluto. “Por que você precisa se admirar, se eu afirmo que aquele que repousa num banquete e a vítima que resiste firmemente à tortura possuem bens iguais, quando Epicuro mantém uma coisa que é mais difícil de acreditar, ou seja, que é agradável ser assado desta maneira?
  19. Mas a resposta que eu dou, é que há grande diferença entre alegria e dor; se me pedem para escolher, vou procurar a primeira e evitar a última. A primeira está de acordo com a natureza, a segunda é contrária a ela. Enquanto são classificados por este padrão, há um grande abismo entre elas; mas quando se trata de uma questão da virtude envolvida, a virtude em cada caso é a mesma, quer venha através da alegria ou através da tristeza.
  20. A vexação, a dor e outros inconvenientes não têm consequências, pois são vencidos pela virtude. Assim como o brilho do sol escurece todas as luzes menores, assim a virtude, por sua própria grandeza, quebra e abranda todas as dores, aborrecimentos e erros; e onde quer que seu brilho chegue, todas as luzes que brilham sem a ajuda da virtude são extintas; e os inconvenientes, quando entram em contato com a virtude, não desempenham um papel mais importante do que uma nuvem de tempestade no mar.
  21. Isto pode ser provado para você pelo fato que o bom homem apressar-se-á sem hesitação a qualquer ação nobre; mesmo que seja confrontado com o carrasco, o torturador e o pelourinho, ele persistirá, não quanto ao que ele deve sofrer, mas quanto ao que deve fazer; e desempenhará tão prontamente a uma ação honrosa quanto a um homem bom; ele o considerará vantajoso para si mesmo, seguro e propício. E ele manterá o mesmo ponto de vista sobre uma ação honrosa, ainda que seja carregada de tristeza e dificuldades, como sobre um homem bom que é pobre ou desperdiçado no exílio.
  22. Agora, compare um bom homem extremamente rico com um homem que não tem nada, exceto que em si mesmo tem todas as coisas; eles serão igualmente bons, embora experimentem fortuna desigual. Este mesmo padrão, como tenho observado, deve ser aplicado tanto às coisas quanto aos homens; a virtude é tão louvável se ela habita num corpo sadio e livre, como em alguém que está doente ou em escravidão.
  23. Portanto, quanto à sua própria virtude, não a louvará mais, se a fortuna a favorecer, concedendo-lhe um corpo sadio, do que se a fortuna lhe der um corpo que é mutilado em algum membro, pois isso significaria classificar inferiormente um mestre porque ele está vestido como um escravo. Pois todas aquelas coisas sobre as quais a fortuna tem influência, bens materiais, dinheiro, posses, posição; elas são fracas, inconstantes, propensas a perecer, e de posse incerta. Por outro lado, as obras da virtude são livres e insubmissas, nem mais dignas de ser procuradas quando a fortuna as trata com bondade, nem menos digna quando alguma adversidade pesa sobre elas.
  24. A amizade no caso dos homens corresponde à desejabilidade no caso das coisas. Você não gostaria, eu imagino, de amar um bom homem, se ele fosse rico, mais do que se fosse pobre, e não amaria uma pessoa forte e musculosa mais do que uma pessoa delgada e de constituição delicada. Assim, nem procurará nem amará uma coisa boa que seja divertida e tranquila mais do que uma que é cheia de perplexidade e labuta.
  25. Ou, se você fizer isso, você vai, no caso de dois homens igualmente bons, gostar mais de quem é limpo e bem-asseado do que daquele que é sujo e despenteado. Você chegaria ao ponto de se importar mais com um homem bom que é são em todos os seus membros e sem defeito, do que com alguém que é fraco ou cego; e gradualmente sua exigência alcançaria tal ponto que, de dois homens igualmente justos e prudentes, você escolheria aquele que tem cabelos longos e ondulados! Sempre que a virtude em cada um é igual, a desigualdade em seus outros atributos não é aparente. Pois todas as outras coisas não são partes, mas apenas acessórios.
  26. Qualquer homem julgaria seus filhos de modo tão injusto a fim de se preferir mais um filho saudável do que um doente, ou a um filho alto, de estatura incomum, mais do que a outro de pouca ou de baixa estatura? Os animais selvagens não mostram nenhum favoritismo entre sua prole; eles se deitam para amamentar todos igualmente; aves fazem a distribuição justa de seus alimentos. Ulisses apressa-se de volta às rochas de sua Ítaca tão ansiosamente quanto Agamenon acelera até as majestosas muralhas de Micenas. Porque nenhum homem ama a sua terra natal porque é grande; ele a ama porque é sua.
  27. E qual é o propósito de tudo isso? Que você saiba que a virtude considera todas as suas obras sob a mesma luz, como se fossem seus filhos, mostrando a mesma bondade a todos e ainda mais profunda bondade para aqueles que encontram dificuldades; pois mesmo os pais inclinam-se com mais afeição para filhos de quem sentem piedade. A virtude, também, não necessariamente ama mais profundamente aquelas de suas obras que vê em problemas e sob pesados fardos, mas, como bons pais, ela lhes dá mais de seus cuidados de acolhimento.
  28. Por que nenhum bem é maior do que qualquer outro bem? É porque nada pode ser mais apropriado do que aquele que é apropriado, e nada mais nivelado do que aquilo que está nivelado. Você não pode dizer que uma coisa é mais igual a um objeto determinado do que outra coisa; daí também nada é mais honrado do que aquilo que é honroso.
  29. Assim, se todas as virtudes são iguais por natureza, as três variedades de bens são iguais. Isto é o que quero dizer: há uma igualdade entre sentir alegria com autocontrole e sofrer dor com autocontrole. A alegria em um caso não ultrapassa no outro a firmeza da alma que afoga o gemido quando está nas garras do torturador; são desejáveis os bens do primeiro tipo, enquanto os do segundo são dignos de admiração; e, em cada caso, não são menos iguais, porque qualquer inconveniente atribuído a este último é compensado pelas qualidades do bem, que é muito maior.
  30. Qualquer homem que os julgue desiguais está se afastando das próprias virtudes e está examinando meras exterioridades; os bens verdadeiros têm o mesmo peso e a mesma largura. O tipo espúrio contém muito vazio; portanto, quando são pesados, percebemos sua deficiência, embora pareçam imponentes e grandiosos ao olhar.
  31. Sim, meu caro Lucílio, o bem que a verdadeira razão aprova é sólido e eterno; fortalece o espírito e exalta-o, para que ele esteja sempre nas alturas; Mas as coisas que são irrefletidamente elogiadas, e são bens na opinião da multidão meramente nos enchem de alegria vazia. e, novamente, aquelas coisas que são temidas como se fossem males apenas inspiram ansiedade na mente dos homens, pois a mente é perturbada pela aparência do perigo, assim como os animais também o são perturbados.
  32. Portanto, é sem razão que ambas as coisas distraem e picam o espírito; um não é digno de alegria, nem o outro de medo. Somente a razão é imutável e se apega a suas decisões. Pois a razão não é um escrava dos sentidos, mas uma governante sobre eles. A razão é igual à razão, como uma linha reta para outra; portanto, a virtude também é igual à virtude. A virtude não é nada mais do que razão correta. Todas as virtudes são razões. As razões são razões, se são razões certas. Se elas estão certas, elas também são iguais.
  33. Como a razão é, assim também são as ações; portanto, todas as ações são iguais. Pois, uma vez que se assemelham à razão, também se assemelham umas as outras. Além disso, considero que as ações são iguais entre si, na medida em que são ações honradas e corretas. Haverá, naturalmente, grandes diferenças de acordo com a variação do material, como se torna agora mais amplo e agora mais estreito, agora glorioso e agora inferior, agora múltiplo no alcance e agora limitado. No entanto, o que é melhor em todos estes casos é igual; eles são todos honrados.
  34. Da mesma forma, todos os homens bons, na medida em que são bons, são iguais. Há, de fato, diferenças de idade, um é mais velho, outro mais jovem; do corpo, – um é agradável, outro é feio; da fortuna, – este homem é rico, esse homem pobre, este é influente, poderoso e conhecido pelas cidades e povos, aquele homem é desconhecido para a maioria, e é obscuro. Mas todos, em relação àquilo em que são bons, são iguais.
  35. Os sentidos não decidem sobre coisas boas e más; eles não sabem o que é útil e o que não é útil[5]. Eles não podem registrar sua opinião a menos que sejam confrontados com um fato; eles não podem ver o futuro nem se lembrar do passado; e eles não sabem o que resulta do quê. Mas é a partir desse conhecimento que uma sequência e sucessão de ações é tecida, e uma unidade de vida é criada, – uma unidade que prosseguirá em um curso reto. A razão, portanto, é o juiz do bem e do mal; o que é estrangeiro e externo ela considera como escória, e o que não é nem bom nem mau ela julga como apenas acessório, insignificante e trivial. Pois todo o seu bem reside na alma.
  36. Mas há certos bens que a razão considera primordiais, aos quais ela se dirige deliberadamente; estes são, por exemplo, a vitória, os bons filhos e o bem-estar de um país. Alguns outros considera secundários; estes se tornam manifestos apenas na adversidade, – por exemplo, a equanimidade em suportar uma doença grave ou exílio. Certos bens são indiferentes; estes não são mais de acordo com a natureza do que contrárias à natureza, como, por exemplo, um andar discreto e uma postura tranquila em uma cadeira. Pois sentar é um ato que não é menos de acordo com a natureza do que ficar em pé ou andar.
  37. Os dois tipos de bens que são de ordem superior são diferentes; os primários são de acordo com a natureza, – como a alegria derivada do comportamento obediente de seus filhos e do bem-estar de seu país. Os secundários são contrários à natureza, como a força moral em resistir à tortura ou na aceitação da sede quando a doença torna os órgãos vitais febris.
  38. “O que então”, você diz; “alguma coisa que é contrária à natureza pode ser um bem?” Claro que não; mas aquela em que esse bem eleva-se a sua origem é por vezes contrária à natureza. Por estarem feridos, esvaindo-se sobre um fogo, aflitos com má saúde, – tais coisas são contrárias à natureza; mas é de acordo com a natureza que um homem preserve uma alma indomável em meio a tais aflições.
  39. Para explicar brevemente o meu pensamento, o material com o qual o bem se relaciona às vezes é contrário à natureza, mas um bem em si mesmo nunca é contrário, pois nenhum bem existe sem razão e a razão está de acordo com a natureza. “O que, então,” você pergunta, “é a razão?” É copiar a natureza. “E o que,” você diz, “é o maior bem que o homem pode possuir?” É conduzir-se de acordo com o que a natureza deseja.
  40. “Não há dúvida”, diz o opositor, “que a paz proporciona mais felicidade quando não é atacada do que quando é recuperada a custo de grande matança”. “Também não há dúvida de que a saúde, que não foi comprometida, oferece mais felicidade do que a saúde que foi restituída à solidez por meio da força, por assim dizer, e pela resistência ao sofrimento, depois de doenças graves que ameaçaram a vida em si e, da mesma forma, não há dúvida de que a alegria é um bem maior do que a luta de uma alma para suportar até o fim os tormentos das feridas ou da tortura”.
  41. De modo algum. Pois coisas que resultam do risco admitem ampla distinção, uma vez que são avaliadas de acordo com sua utilidade aos olhos daqueles que as experimentam, mas em relação aos bens, o único ponto a ser considerado é que eles estão de acordo com a natureza; e isso é igual no caso de todos os bens. Quando em uma reunião do senado nós votamos em favor da proposta de alguém, não pode ser dito, “A. está mais de acordo com a proposta do que B.” Todos votam pela mesma proposta. Eu faço a mesma declaração com respeito às virtudes, – todos elas estão de acordo com a natureza; e eu o faço em relação aos bens igualmente, – estão todos de acordo com a natureza.
  42. Um homem morre jovem, outro na velhice, e ainda outro na infância, tendo desfrutado nada mais do que um simples vislumbre na vida. Todos eles foram igualmente sujeitos à morte, embora a morte tenha permitido a um avançar mais ao longo do caminho da vida, cortou a vida do segundo em sua flor, e quebrou a vida do terceiro em seu início.
  43. Alguns recebem sua quitação na mesa do jantar. Outros prolongam seu sono na morte. Alguns são eliminados durante a devassidão. Agora, compare essas pessoas com aquelas que foram perfuradas pela espada, ou levadas à morte por cobras, ou esmagadas em um desabamento, ou torturadas até a morte pela torção prolongada de seus tendões. Algumas dessas partidas podem ser consideradas melhores, outras piores; mas o ato de morrer é igual em tudo. Os métodos de acabar com a vida são diferentes; mas o fim é um e o mesmo. A morte não tem graus maiores ou menores; pois tem o mesmo limite em todos os casos, – o fim da vida.
  44. A mesma coisa é verdade, asseguro-lhe, em relação aos bens; você encontrará um em circunstâncias de puro prazer, outro em meio a tristeza e amargura. Uma pessoa controla os favores da fortuna; a outra supera seus ataques. Cada um é igualmente um bem, embora um viaja em uma estrada plana e fácil, e o outro em uma estrada áspera. E o fim de todos eles é o mesmo – eles são bens, eles são dignos de louvor, eles acompanham a virtude e a razão. A virtude faz todas as coisas que toca iguais entre si.
  45. Você não precisa duvidar que este é um dos nossos princípios; encontramos nos trabalhos de Epicuro dois bens, dos quais é composto o seu Bem Supremo, ou bem-aventurança, isto é, um corpo livre de dor e uma alma livre de perturbação. Estes bens, se estiverem completos, não aumentam; pois como pode o que é completo aumentar? O corpo é, suponhamos, livre da dor; que aumento pode haver a essa ausência de dor? A alma é serena e calma; que aumento pode haver para esta tranquilidade?
  46. Assim como o tempo bom, purificado no mais puro brilho, não admite um grau ainda maior de clareza; assim, quando um homem cuida de seu corpo e de sua alma, tecendo a textura de seu bem de ambos, sua condição é perfeita, e ele atingiu a meta de suas orações, se não há comoção em sua alma ou dor em seu corpo. Quaisquer que sejam os encantos que receba em relação a estas duas coisas não aumentam o seu Supremo Bem; eles simplesmente condimentam-no, por assim dizer, e acrescentam tempero a ele. Pois o bem absoluto da natureza do homem é satisfeito com a paz no corpo e a paz na alma.
  47. Posso mostrar-lhe neste momento nos escritos de Epicuro uma lista graduada dos bens, assim como a da nossa própria escola. Pois há algumas coisas, ele declara, que prefere receber, tais como descanso corporal livre de qualquer inconveniente e relaxamento da alma enquanto se deleita na contemplação de seus próprios bens. E há outras coisas que, embora preferisse que não acontecessem, mesmo assim elogia e aprova, por exemplo, o tipo de resignação, em momentos de má saúde e sofrimento grave, a que aludi há pouco, os quais Epicuro exibiu naquele último e mais abençoado dia de sua vida. Pois ele nos diz que teve que suportar a excruciante agonia de uma bexiga doente e de um estômago ulcerado, sofrimento tão aguçado que não permitiria aumento da dor; “E ainda,” ele diz, “aquele dia não foi menos feliz.” E nenhum homem pode passar tal dia em felicidade a menos que possua o Bem Supremo.
  48. Portanto, encontramos, até mesmo em Epicuro, bens que seriam melhor não experimentar; que, no entanto, porque circunstâncias assim o decidem, devem ser acolhidos e aprovados e colocados ao nível dos bens mais elevados. Não podemos dizer que o bem que preencheu uma vida feliz, o bem pelo qual Epicuro deu graças nas últimas palavras que pronunciou, não é igual ao maior.
  49. Permita-me, excelente Lucílio, pronunciar uma palavra ainda mais ousada: se qualquer mercadoria pudesse ser maior do que outras, eu preferiria aquelas que parecem acres as que são brandas e sedutoras, e as declararia maior. Pois é uma conquista maior superar as barreiras do caminho do que manter a alegria dentro dos limites estreitos.
  50. Exige o mesmo uso da razão, estou plenamente consciente, um homem suportar a prosperidade bem e também suportar a desgraça corajosamente. Que homem pode ser tão corajoso que durma em frente às muralhas sem medo de perigo quando nenhum inimigo ataca o acampamento, como o homem que, quando os tendões de suas pernas são cortados, se levanta de joelhos e não solta suas armas; mas é para o soldado manchado de sangue que retorna da frente que os homens clamam: “Bem feito, herói!” E por isso, eu devo conceder maior louvor aos bens que foram julgados e mostraram coragem, e lutaram contra a fortuna.
  51. Devo hesitar em dar maior elogio à mão mutilada e seca de Mucio do que à mão inofensiva do homem mais corajoso do mundo? Lá estava Múcio[6], desprezando o inimigo e desprezando o fogo, e observando sua mão enquanto pingava sangue sobre o fogo no altar de seu inimigo, até que Porsena, invejando a fama do herói a quem ele impingiu o castigo, ordenou que o fogo fosse removido contra a vontade de sua vítima.
  52. Por que não devo considerar este bem entre os bens primários, e julgá-lo como muito maior do que aqueles outros bens que são desacompanhados de perigo e não foram testados pela fortuna, pois é uma coisa mais rara superar um inimigo com uma mão perdida do que com uma mão armada. – E então? Você diz; “Você deseja esse bem para si mesmo?” Claro que sim. Pois esta é uma coisa que um homem não pode alcançar a menos que também a possa desejar.
  53. Devo desejar, em vez disso, que me permitam esticar os meus membros para que os meus escravos façam massagens, ou que uma mulher, ou um travesti, puxe as articulações dos meus dedos? Não posso deixar de acreditar que Múcio teve mais sorte porque manipulou as chamas tão calmamente como se estivesse estendendo a mão para o massagista. Ele havia aniquilado todos os seus erros anteriores; terminou a guerra desarmado e mutilado; e com aquele toco de uma mão ele conquistou dois reis.

 

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Eneida de Virgílio. “gratior et pulchro veniens e corpore virtus. “

[2] Sêneca não está falando aqui das três virtudes genéricas (físicas, éticas, lógicas), nem dos três tipos de bens (baseados na vantagem corporal) que foram classificados pela escola peripatética; Ele só está falando de três tipos de circunstâncias sob as quais o bem pode se manifestar. E no § 36 e seguintes ele mostra que considera apenas as duas primeiras classes como bens reais.

[3] O exército de Cipião montou dois acampamentos e construiu uma muralha de circunvalação à volta da cidade espanhola com sete torres a partir das quais seus arqueiros podiam atirar por cima da muralha numantina. Ele também represou o pântano vizinho e criou um lago entre a muralha da cidade e sua própria muralha. Para proteger seus acampamentos, Cipião construiu também muralhas exteriores (cinco no total). Para completar o cerco, Cipião isolou a cidade do rio Douro: nos pontos onde o rio entrava e saía da cidade, pares de torres foram construídas e, entre os pares, cabos com lâminas foram estendidos através do rio para evitar a passagem de barcos e nadadores.

[4]Touro de Fálaris, foi uma das mais cruéis máquinas de tortura e execução, cujo invento é atribuído a Fálaris, tirano de Agrigento. O aparelho era uma esfinge de bronze oca na forma de um touro mugindo, com duas aberturas, no dorso e na parte frontal localizada na boca. Após colocada a vítima, a entrada da esfinge era fechada e posta sobre uma fogueira. À medida que a temperatura aumentava no interior do Touro, o ar ficava escasso, e o executado procuraria meios para respirar, recorrendo ao orifício na extremidade do canal. Os gritos exaustivos do executado saíam pela boca do Touro, fazendo parecer que a esfinge estava viva.

[5] Aqui, Sêneca está lembrando Lucílio, como muitas vezes faz nas letras anteriores, que a evidência dos sentidos é apenas um degrau para ideias superiores – um princípio do epicurismo.

[6] Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola). Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a ameaça etrusca representada por Lar Porsena. Depois de rechaçar um primeiro ataque, os romanos se refugiaram atrás das muralhas da cidade e Porsena iniciou um cerco. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso e disse: “Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!”. Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse libertado. Como reconhecimento, Múcio confessa que trezentos jovens romanos haviam jurado, assim como ele, estar prontos a sacrificar-se para matá-lo. Aterrorizado por esta revelação, Porsena teria baixado suas armas e enviado embaixadores a Roma.

Carta #65: Sobre a Primeira Causa – Deus

Para o estoicismo o lugar de Deus no universo corresponde a relação da alma com o homem. O mundo material corresponde ao nosso corpo mortal.

Na carta 65 Sêneca pede que Lucílio atue como árbitro de um debate  filosófico-religioso a respeito de Deus, referido no texto como “primeira causa” (prima causa) e logo avisa que a tarefa será difícil e solicita que “declare quem lhe parece dizer o que é mais verdadeiro, e não quem diz o que é absolutamente verdadeiro. Pois fazer isso está tão além da nossa compreensão quanto a própria verdade. (LXV, 10)

Para Sêneca não somos só matéria, mas principalmente espírito e que a filosofia é o caminho para a liberdade:

Pois este nosso corpo é um peso sobre a alma e seu castigo; sob o peso desta carga a alma é esmagada e está em cativeiro, a menos que a filosofia venha em sua assistência e ofereça-lhe tomar coragem nova, contemplando o universo, e transformando coisas terrenas em coisas divinas.(LXV, 16)

Diz que debater de onde viemos e para onde vamos, pensar sobre religião,  é papel fundamental da filosofia.  Excluir esse debate é condenar o homem a olhar para o chão, a se manter cabisbaixo:

Não posso perguntar quem é o Mestre Construtor deste universo,  quem reuniu os átomos dispersos, quem separou os elementos desordenados e atribuiu uma forma exterior aos elementos que estavam num vasto amálgama disforme? De onde veio toda a expansão de luz?
Não devo fazer essas perguntas? Devo ignorar as alturas de onde eu desci? Se vou ver este mundo só uma vez, ou nascer muitas vezes? Qual é o meu destino depois? Que morada aguarda minha alma em sua libertação das leis da escravidão entre os homens? Você me proíbe de ter um quinhão do céu? Em outras palavras, você me manda viver cabisbaixo?(LXV, 19-20)

Conclui a carta afirmando que nosso corpo é secundário e que a alma é o principal,  segue então que Deus seria a alma do universo e que a morte é apenas uma mudança de estágio:

Pois meu corpo é a única parte de mim que pode sofrer lesões. Nesta morada, que está exposta <ao risco, minha alma vive livre.
Nunca esta carne me levará a sentir medo ou a assumir qualquer falsa aparência que seja indigna de um homem bom. Nunca vou mentir para honrar este pequeno corpo. Quando me parece apropriado, romperei minha ligação com ele. E, no momento, enquanto estivermos unidos, nossa aliança não será, no entanto, uma de igualdade; A alma trará todas as querelas diante de seu próprio tribunal. Desprezar nossos corpos é liberdade certa. O lugar de Deus no universo corresponde à relação da alma com o homem. O mundo material corresponde ao nosso corpo mortal; portanto, o inferior serve o mais elevado. Sejamos corajosos diante dos perigos. Não temamos injustiças, nem feridas, nem amarras, nem pobreza. E o que é a morte? É o fim, ou um processo de mudança! Não tenho medo de deixar de existir; é o mesmo que não ter começado. Nem me acovardo de mudar para outro estado, porque eu, sob nenhuma circunstância, estarei tão constrangido como estou agora.
(LXV, 21-24)

Imagem, detalhe de A criação de Adão por Michelangelo.


LXV. Sobre a Primeira Causa – Deus

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu dividi meu dia ontem com a doença; ela reivindicou para si todo o período antes do meio-dia; à tarde, porém, cedeu. E então eu primeiro testei meu espírito lendo; então, quando a leitura foi possível, ousei fazer mais exigências ao espírito, ou talvez eu diria, fazer mais concessões a ele. Escrevi um pouco, e com mais concentração do que o habitual, porque estou lutando com um assunto difícil e não quero ser derrubado. No meio disto, alguns amigos me visitaram, com o propósito de empregar força e de me conter, como se eu fosse um doente que se entregasse a algum excesso.
  2. Assim, a conversa substituiu a escrita; e desta conversa vou comunicar-lhe o tema que ainda é objeto de debate; pois nós o designamos árbitro. Você tem uma tarefa mais árdua em suas mãos do que imagina, pois o argumento é triplo. Nossos filósofos estoicos, como você sabe, declaram que há duas coisas no universo que são a fonte de tudo: a causa e a matéria. Matéria jaz lenta, uma substância pronta para qualquer uso, mas certa de permanecer desempregada, se ninguém a coloca em movimento. A causa, no entanto, pela qual queremos dizer a razão, molda a matéria e a transforma em qualquer direção que deseja, produzindo assim vários resultados concretos. Consequentemente, deve haver, no caso de cada coisa, aquilo de que é feita, e, em seguida, um agente pelo qual ela é feita. O primeiro é o seu material, este último a sua causa.
  3. Toda arte não é senão imitação da natureza; portanto, deixe-me aplicar essas declarações de princípios gerais às coisas que devem ser feitas pelo homem. Uma estátua, por exemplo, necessitou de matéria a ser tratada pelas mãos do artista, e teve um artista que deu forma a matéria. Assim, no caso da estátua, o material era de bronze, a causa era o trabalhador. E assim acontece com todas as coisas, – elas consistem no que é feito e no criador.
  4. Os estoicos acreditam em uma única causa – o criador; mas Aristóteles pensa que a palavra “causa” pode ser usada de três maneiras: “A primeira causa”, diz ele, “é a matéria real, sem a qual nada pode ser criado. A segunda é o operário. A terceira é a forma, que está gravada em cada obra, – uma estátua, por exemplo.” Esta última é o que Aristóteles chama de idos[1]. “Há, também,” diz ele, “uma quarta, – o propósito do trabalho como um todo.”
  5. Agora vou mostrar-lhe o que esta última significa. Bronze é a “primeira causa” da estátua, pois nunca poderia ter sido feita a menos que houvesse algo que pudesse ser moldada. A “segunda causa” é o artista; pois sem as mãos hábeis de um trabalhador o bronze não poderia ter sido moldado para os contornos da estátua. A “terceira causa” é a forma, na medida em que a nossa estátua nunca poderia ser chamada de O Portador da Lança ou O Garoto Prendendo seu Cabelo caso não tivesse esta forma especial estampada sobre ela. A “quarta causa” é o propósito do trabalho. Pois, se este propósito não existisse, a estátua não teria sido feita.
  6. Agora, qual é esse propósito? É o que atraiu o artista? O que ele seguiu quando ele fez a estátua? Pode ter sido dinheiro, se a fez para venda; ou renome, se tem trabalhado para a reputação; ou a religião, se a forjou como um presente para um templo. Portanto, esta também é uma causa contribuindo para a realização da estátua; ou você acha que devemos evitar incluir, entre as causas de uma coisa que foi feita, esse elemento sem o qual a coisa em questão não teria sido feita?
  7. A estes quatro Platão acrescenta uma quinta causa, – a matriz que ele mesmo chama de “ideia”; pois é isso que o artista olhou quando criou a obra que decidira realizar. Agora, não faz diferença se ele tem esse padrão fora de si mesmo, que ele pudesse dirigir seu olhar, ou dentro de si mesmo, concebido e colocado lá por si mesmo. Deus tem dentro de si estes padrões de todas as coisas, e sua mente compreende as harmonias e as medidas da totalidade das coisas que devem ser realizadas; Ele está cheio dessas formas que Platão chama de “ideias” – imperecíveis, imutáveis, não sujeitas à decadência. E, portanto, embora os homens morram, a própria humanidade, ou a ideia de homem, segundo a qual o homem é moldado, permanece e, embora os homens labutem e pereçam, não sofre mudança.
  8. Consequentemente, há cinco causas, como diz Platão: o material, o agente, a maquiagem, o modelo e o fim em vista. Por último vem o resultado de todos estes. Assim como no caso da estátua, para voltar à figura com a qual começamos, o material é o bronze, o agente é o artista, a maquiagem é a forma que se adapta ao material, o modelo é o padrão copiado pelo agente, o fim em vista é o propósito na mente do criador, e, finalmente, o resultado de tudo isso é a própria estátua.
  9. O universo também, na opinião de Platão, possui todos esses elementos. O agente é Deus; a fonte, a matéria; a forma, o contorno e a disposição do mundo visível. O modelo é sem dúvida o modelo segundo o qual Deus fez esta grande e mais bela criação.
  10. O propósito é seu objetivo ao fazê-lo. Você pergunta qual é o propósito de Deus? É bondade. Platão, pelo menos, diz: “Qual foi a razão de Deus para criar o mundo? Deus é bom, e nenhuma pessoa boa é invejosa de algo que é bom. Por isso, Deus fez dele o melhor mundo possível”. Transmita sua opinião, então, ó juiz; declare quem lhe parece dizer o que é mais verdadeiro, e não quem diz o que é absolutamente verdadeiro. Pois fazer isso está tão além da nossa compreensão quanto a própria verdade.
  11. Essa multidão de causas, definida por Aristóteles e Platão, abraça muito ou muito pouco. Pois se eles consideram como “causas” de um objeto que deve ser feito tudo sem o qual o objeto não pode ser feito, eles nomearam muito poucos. O tempo deve ser incluído entre as causas; pois nada pode ser feito sem tempo. Eles também devem incluir lugar; pois se não houver lugar onde uma coisa possa ser feita, ela não será feita. E movimento também; nada é feito ou destruído sem movimento. Não há arte sem movimento, nenhuma mudança de qualquer tipo.
  12. Agora, no entanto, estou procurando a primeira, a causa geral; isso deve ser simples, na medida em que a matéria, também, é simples. Perguntamos qual é a causa? É certamente a Razão Criativa, – em outras palavras, Deus. Pois aqueles elementos a que você se refere não são uma grande série de causas independentes; todos dependem de um só, e essa será a causa criadora.
  13. Você sustenta que a forma é uma causa? Isto é somente o que o artista carimba em seu trabalho; é parte de uma causa, mas não a causa. Nem o modelo é uma causa, mas um instrumento indispensável da causa. Seu modelo é tão indispensável ao artista como o cinzel ou a lixa; sem estes, a arte não pode fazer nenhum progresso. Mas, por tudo isso, essas coisas não são partes da arte, nem causas dela.
  14. “Então”, talvez você diga, “o propósito do artista, o que o leva a se comprometer a criar algo, é a causa”. Pode ser uma causa; não é, no entanto, a causa eficiente, mas apenas uma causa acessória. Mas há inúmeras causas acessórias; O que estamos discutindo é a causa geral. Ora, a declaração de Platão e de Aristóteles não está de acordo com suas acuidades mentais usuais, quando sustentam que todo o universo, a obra perfeitamente trabalhada, é uma causa. Pois há uma grande diferença entre um trabalho e a causa de um trabalho.
  15. Dê a sua opinião, ou, como é mais fácil em casos deste tipo, declare que o assunto não está claro e exija outra audiência. Mas você vai responder: “Que prazer você tem de desperdiçar seu tempo nesses problemas, que não o aliviam de nenhuma de suas emoções, não derrotando nenhum de seus desejos?” No que me diz respeito, trato-os e discuto-os como assuntos que contribuem grandemente para acalmar o espírito, e eu me estudo primeiro, e depois o mundo em torno de mim.
  16. E nem mesmo agora, como você pensa, estou desperdiçando meu tempo. Pois todas estas questões, desde que não sejam cortadas e despedaçadas em tais refinamentos não rentáveis, elevam e iluminam a alma, que é presa por um fardo pesado e deseja ser libertada e voltar aos elementos de que foi uma vez parte. Pois este nosso corpo é um peso sobre a alma e seu castigo; sob o peso desta carga a alma é esmagada e está em cativeiro, a menos que a filosofia venha em sua assistência e ofereça-lhe tomar coragem nova, contemplando o universo, e transformando coisas terrenas em coisas divinas. Lá tem sua liberdade, lá pode vagar amplamente; entretanto, escapa da prisão em que está presa e renova a sua vida no céu.
  17. Assim como os trabalhadores qualificados, que se empenham em alguma obra delicada que cansa seus olhos pelo esforço, se a luz que eles têm é sovina ou incerta, sair para o ar livre e em algum parque dedicado à recreação do povo deleita seus olhos na generosa luz do dia[2]; assim a alma, aprisionada como foi nesta casa sombria e escurecida, procura o céu aberto sempre que pode, e na contemplação do universo encontra o descanso.
  18. O sábio, que procura sabedoria, está intimamente ligado ao seu corpo, mas é um ausente no que se refere ao seu melhor eu, e concentra seus pensamentos em coisas elevadas. Ligado, por assim dizer, ao seu juramento de lealdade, ele considera o período da vida como seu termo de serviço. Ele é tão treinado que não ama nem odeia a vida; ele suporta uma sina mortal, embora saiba que uma sina maior está guardada para ele.
  19. Você me proíbe de contemplar o universo? Você me obriga a me afastar do todo e me restringir a uma parte? Não devo perguntar quais são os primórdios de todas as coisas, quem moldou o universo, quem tomou o conjunto confuso e conglomerado de matéria e a separou em suas partes? Não posso perguntar quem é o Mestre Construtor deste universo, como o poderoso volume foi trazido sob o controle da lei e da ordem, quem reuniu os átomos dispersos, quem separou os elementos desordenados e atribuiu uma forma exterior aos elementos que estavam num vasto amálgama disforme? De onde veio toda a expansão de luz? E se é fogo, ou mesmo mais brilhante do que o fogo?
  20. Não devo fazer essas perguntas? Devo ignorar as alturas de onde eu desci? Se vou ver este mundo só uma vez, ou nascer muitas vezes? Qual é o meu destino depois? Que morada aguarda minha alma em sua libertação das leis da escravidão entre os homens? Você me proíbe de ter um quinhão do céu? Em outras palavras, você me manda viver cabisbaixo?
  21. Não, eu estou acima de tal existência; eu nasci para um destino maior do que para ser um mero objeto do meu corpo, e eu considero este corpo como nada, mas uma corrente que restringe minha liberdade. Portanto, eu o ofereço como uma espécie de para-choques à fortuna, e não permitirei que nenhum ferimento penetre minha alma. Pois meu corpo é a única parte de mim que pode sofrer lesões. Nesta morada, que está exposta ao risco, minha alma vive livre.
  22. Nunca esta carne me levará a sentir medo ou a assumir qualquer falsa aparência que seja indigna de um homem bom. Nunca vou mentir para honrar este pequeno corpo. Quando me parece apropriado, romperei minha ligação com ele. E, no momento, enquanto estivermos unidos, nossa aliança não será, no entanto, uma de igualdade; A alma trará todas as querelas diante de seu próprio tribunal. Desprezar nossos corpos é liberdade certa.
  23. Retornando ao nosso assunto; esta liberdade será grandemente ajudada pela contemplação do que estávamos falando a pouco. Todas as coisas são feitas de matéria e de Deus; Deus controla a matéria, que o engloba e o segue como seu guia e líder. E aquele que cria, em outras palavras, Deus, é mais poderoso e precioso do que a matéria, que é submetida a Deus.
  24. O lugar de Deus no universo corresponde à relação da alma com o homem. O mundo material corresponde ao nosso corpo mortal; portanto, o inferior serve o mais elevado. Sejamos corajosos diante dos perigos. Não temamos injustiças, nem feridas, nem amarras, nem pobreza. E o que é a morte? É o fim, ou um processo de mudança! Não tenho medo de deixar de existir; é o mesmo que não ter começado. Nem me acovardo de mudar para outro estado, porque eu, sob nenhuma circunstância, estarei tão constrangido como estou agora.

 

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Derivação da palavra grega, – ιδεῖν, ” contemplar”. Para uma discussão das idéias de Platão, aquelas “essências independentes, separadas, auto-existentes, perfeitas e eternas” veja Republica vi. e vii.

[2] De acordo com os estoicos, a alma, que consistia em fogo ou sopro e era parte da essência divina, subia após a morte ao éter e tornava-se uma com as estrelas. Sêneca em outro texto (Consolatio ad Marciam) afirma que a alma passa por uma espécie de processo de purificação – uma visão que pode ter influenciado o pensamento cristão. As almas do bem, os estoicos mantinham, estavam destinadas a durar até o fim do mundo, as almas más a serem extinguidas antes desse tempo.