Resenha: Cícero – Sobre a Amizade

A vida sem amigos não vale a pena viver

Cícero se definia como um cético acadêmico, isto é, um seguidor da Academia de Platão. Além disso particularmente se apunha à alegação epistemológica estoica de que a certeza absoluta de certas impressões era possível. Entretanto, foi solidário defensor da ética estoica. Com veremos neste livro, ele baseava seus ensinamentos éticos essencialmente nas premissas estoicas de que a virtude é a responsável pela felicidade e a tranquilidade espiritual. Hoje é uma de nossas fontes mais detalhadas sobre a doutrina do estoicismo.

Outro elemento que caracteriza Cícero como um dos campeões do estoicismo é sua forte oposição ao epicurismo. É importante notar aqui que Cícero tinha a tendência de reduzir Epicuro a uma filosofia que busca apenas prazer com o objetivo de gratificação instantânea.

No ano 44 a.C., Cícero estava em seus sessenta anos, afastado do poder político pela ditadura de Júlio César. Ele se dedicou a escrever para aliviar a dor do exílio e a recente perda de sua amada filha. Em um período de meses, ele produziu alguns dos mais lidos e influentes ensaios já escritos sobre assuntos que vão desde a natureza dos deuses e o papel adequado do governo até as alegrias de envelhecer e o segredo para encontrar a felicidade em vida. Entre estes trabalhos estava o breve ensaio Sobre a Amizade dedicado a Ático, seu melhor amigo.

Ele e Cícero tornaram-se amigos quando homens jovens e assim permaneceram durante todas suas vidas. Cícero dedicou-se à política romana e passou a maior parte de seus anos naquela cidade, uma época de tremenda agitação e guerra civil. Ático, por outro lado, observava a política romana a partir da distância segura de Atenas, enquanto permanecia em contato próximo com os principais homens de ambos os lados em Roma. Mesmo estando frequentemente separados, Cícero e Ático trocaram cartas ao longo dos anos que revelam uma amizade de rara devoção e calorosa afeição.

Sobre a Amizade é sem dúvida o melhor livro já escrito sobre o assunto. O conselho sincero que ele dá é honesto e comovente de uma forma que poucas obras dos tempos antigos são. Alguns romanos tinham visto a amizade em termos principalmente práticos como uma relação entre as pessoas para vantagem mútua. Cícero não nega que tais amizades sejam importantes, mas ele vai além do utilitarismo para enaltecer um tipo mais profundo de amizade em que duas pessoas se encontram um no outro sem buscar lucro ou vantagem do outro. Filósofos gregos como Platão e Aristóteles haviam escrito sobre a amizade centenas de anos antes. De fato, Cícero foi profundamente influenciado por seus escritos. Mas Cícero vai além de seus predecessores e cria nesta sucinta obra um guia convincente para encontrar, manter e apreciar essas pessoas em nossas vidas que valorizamos não pelo que elas podem nos dar, mas porque encontramos nelas uma alma semelhante a nossa. Sobre a Amizade está repleto de conselhos atemporais sobre amizade. Entre os melhores estão:

1. Existem diferentes tipos de amizades: Cícero reconhece que há muitas pessoas boas com quem entramos em contato em nossas vidas que chamamos de amigos, sejam eles sócios de negócios, vizinhos ou qualquer tipo de conhecidos. Mas ele faz uma distinção fundamental entre estas amizades comuns e bastante úteis e aqueles raros amigos aos quais nos ligamos em um nível muito mais profundo. Estas amizades especiais são necessariamente raras, pois exigem muito tempo e investimento de nós mesmos. Mas estes são os amigos que mudam profundamente nossas vidas, assim como nós mudamos a deles. Cícero escreve: “Com exceção da sabedoria, estou inclinado a acreditar que os deuses imortais não deram nada melhor à humanidade do que a amizade“. (§VI, 20)

2. Somente pessoas boas podem ser verdadeiras amigas: Pessoas de pobre caráter moral podem ter amigos, mas só podem ser amigos de utilidade pela simples razão de que a amizade real requer confiança, sabedoria e benevolência de base. Os tiranos e canalhas podem usar uns aos outros, assim como podem usar pessoas boas, mas as pessoas más nunca podem encontrar uma amizade verdadeira na vida.

3. Devemos escolher nossos amigos com cuidado: Temos que ser deliberados na escolha de nossas amizades pois pode ser muito confuso e doloroso descobrir que o suposto amigo não era a pessoa que pensávamos. Devemos ter calma, mover-nos lentamente e descobrir o que está no fundo do coração de uma pessoa antes de fazer o investimento pessoal que a verdadeira amizade exige.

4. Faça novos amigos, mas mantenha os antigos: Ninguém é um amigo mais agradável do que alguém que está com você desde o início. Mas não se limite aos companheiros da juventude, cuja amizade pode ter sido baseada em interesses não mais partilhados por você. Esteja sempre aberto a novas amizades, inclusive aquelas com pessoas mais jovens. Tanto você quanto eles serão privilegiados por isso.

5. Os amigos fazem de você uma pessoa melhor: Ninguém pode prosperar isoladamente. Deixados por nossa conta, estagnaremos e nos tornaremos incapazes de nos ver como somos. Um verdadeiro amigo o desafiará a se tornar melhor porque ele aprecia o potencial dentro de você.

6. Os amigos são francos: Os amigos sempre lhe dirão o que você precisa ouvir, não o que você quer que eles digam. Há muitas pessoas no mundo que o lisonjearão para seus próprios propósitos, mas somente um verdadeiro amigo – ou um inimigo – arriscará sua raiva dizendo-lhe a verdade. E sendo você mesmo uma boa pessoa, você deve ouvir seus amigos e acolher o que eles têm a dizer.

7. A recompensa da amizade é a própria amizade: Cícero reconhece que há vantagens práticas na amizade – conselho, companheirismo, apoio em tempos difíceis – mas em seu coração a verdadeira amizade não é uma relação de negócios. Ela não busca reembolso e não mantém contabilização. Não somos tão mesquinhos a ponto de “cobrar juros sobre nossos favores”, escreve Cícero. Ele acrescenta: “A recompensa da amizade é a própria amizade“.

8. Um amigo nunca pede que se faça algo errado: Um amigo arriscará muito por outro, mas não a honra. Se um amigo lhe pede para mentir, trapacear ou fazer algo vergonhoso, considere cuidadosamente se essa pessoa é quem você realmente pensava que era. Como a amizade é baseada na virtude, ela não pode existir quando se espera o mal de uma amizade.

9. As amizades podem mudar com o tempo: As amizades da juventude não serão as mesmas na velhice – nem deveriam ser. A vida muda todos nós com o tempo, mas os valores e qualidades essenciais que nos atraíram aos amigos em anos passados podem sobreviver ao teste do tempo. E, assim como o vinho, a melhor das amizades vai melhorar com a idade.

10. Sem amigos, não vale a pena viver a vida: Ou como diz Cícero: “Suponha que um deus o leve para longe, para um lugar onde lhe foi concedida uma abundância de todo bem material da natureza, mas lhe negue a possibilidade de alguma vez ver um ser humano. Quem teria a alma suficientemente temperada para suportar esse gênero de vida, e para evitar que a solidão retirasse de seus prazeres todo o seu sabor? (§XXIII, 87-88)

O livro Sobre a Amizade teve uma tremenda influência sobre escritores nos tempos que o seguiram, desde Santo Agostinho até o poeta italiano Dante e mais além Thomas Jefferson. Não é menos valioso hoje em dia. Em uma era moderna da tecnologia e um foco implacável no eu que ameaça a própria ideia de amizades profundas e duradouras, Cícero tem mais a nos dizer do que nunca.

Disponível nas lojas: Amazon, Kobo, Apple e GooglePlay.

Carta 55: Sobre a Vila de Vácia

A carta desta semana é sobre ócio e vida luxuosa.  Sêneca defende que o filósofo deve se afastar dos negócios e dedicar-se ao estudo, porém critica aqueles que vivem em ócio e luxo sem estudo:

Nossos luxos nos condenaram à fraqueza; deixamos de ser capazes de fazer o que por muito tempo nos recusamos a fazer.” (LV, 1)

Pois a massa da humanidade considera que uma pessoa livre, que se retirou da sociedade, despreocupada, autossuficiente e vive para si mesma; mas estes privilégios podem ser a recompensa apenas do homem sábio.” (LV, 4)

Ensina que o lugar onde vivemos não é relevante para nossa felicidade / sabedoria e que usando nossa mente podemos estar no lugar e na presença de quem desejamos:

O lugar onde se vive, no entanto, pode contribuir pouco para a tranquilidade; é a mente que deve tornar tudo agradável a si mesma. ” (LV,8)

Conclui a carta dizendo a Lucílio que um amigo nunca está ausente.

(imagem: Thomas Couture, Romanos em sua decadência)


LV. Sobre a Vila de Vácia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Acabo de regressar de um passeio na minha liteira; e estou tão cansado como se eu tivesse andado a pé, em vez de estar sentado. Até mesmo ser carregado por qualquer período de tempo é trabalho duro, talvez tão mais porque é um exercício antinatural; pois a Natureza nos deu pernas para fazer a nossa própria caminhada, e olhos para fazer a nossa própria visão. Nossos luxos nos condenaram à fraqueza; deixamos de ser capazes de fazer o que por muito tempo nos recusamos a fazer.
  2. No entanto, achei necessário dar uma chacoalhada no meu corpo, a fim de que a bile que se acumulou em minha garganta, se isso fosse o problema, pudesse ser sacodida, ou, se o próprio hálito dentro de mim tivesse se tornado, por alguma razão, muito grosso, que o sacudir, algo que senti ser vantajoso, pudesse torná-lo mais leve. Por isso insisti em ser levado mais tempo do que de costume, ao longo de uma praia encantadora, que se curva entre Cumas e Servilius próximo a casa de campo do Vácia[1], encerrada pelo mar de um lado e pelo lago do outro, como um caminho estreito. A areia estava firme, por causa de uma recente tempestade; desde que, como você sabe, as ondas, quando batem na praia continuamente, nivela-a; mas um período contínuo de tempo bom afrouxa-a, quando a areia, que é mantida firme pela água, perde sua umidade.
  3. Como é o meu hábito, eu comecei a procurar por algo lá que poderia ser útil a mim, quando meus olhos caíram sobre a vila que uma vez pertencera a Vácia. Então este foi o lugar onde o famoso pretoriano milionário passou sua velhice! Ele era famoso por nada mais do que sua vida de lazer, e ele foi considerado como afortunado apenas por esse motivo. Pois sempre que os homens são arruinados pela sua amizade com Caio Asínio Galo[2] sempre que outros são arruinados pelo seu ódio a Sejano, e mais tarde por sua intimidade com ele, – porque não era mais perigoso ofendê-lo do que amá-lo, – as pessoas costumavam gritar: “Ó Vácia, só você sabe viver!”
  4. Mas o que ele sabia era como se esconder, não como viver; e faz uma grande diferença se sua vida é de lazer ou de ociosidade. Então eu nunca passei por sua casa de campo durante a vida de Vácia sem me dizer: “Aqui está Vácia!” Mas, meu caro Lucílio, a filosofia é uma coisa de santidade, algo a ser adorado, tanto que até a própria falsificação agrada. Pois a massa da humanidade considera que uma pessoa livre, que se retirou da sociedade, despreocupada, autossuficiente e vive para si mesma; mas estes privilégios podem ser a recompensa apenas do homem sábio. Será que aquele que é vítima da ansiedade sabe viver por si mesmo? O que? Será que ele mesmo sabe (e isso é de primeira importância) como viver realmente?
  5. Pois o homem que fugiu dos negócios e dos homens, que foi banido para a reclusão pela infelicidade que seus próprios desejos trouxeram, que não pode ver seu vizinho mais feliz do que ele mesmo, que por medo tem se escondido, como um animal assustado e preguiçoso – esta pessoa não está vivendo para si, está vivendo para o seu ventre, seu sono e sua luxúria, – e essa é a coisa mais vergonhosa do mundo. Aquele que vive para ninguém, não necessariamente vive para si mesmo. No entanto, há tanto em perseverança e adesão ao propósito de alguém que mesmo a letargia, se teimosamente mantida, assume um ar de autoridade.
  6. Eu não poderia descrever a casa de campo com precisão; pois estou familiarizado apenas com a frente da casa e com as partes que estão à vista do público e podem ser vistas pelo mero passageiro. Há duas grutas artificiais, que custaram muito trabalho, tão grandes quanto o salão mais espaçoso, feitas à mão. Uma delas não admite os raios do sol, enquanto a outra os mantém até o sol se pôr. Há também um córrego que corre através de um bosque de plátanos, que recebe suas águas tanto do mar e quanto do lago Aqueronte; ele cruza o bosque exatamente como uma pista de corrida e é grande o suficiente para sustentar peixes, embora suas águas sejam continuas. Quando o mar está calmo, no entanto, eles não usam o córrego, apenas tocando as águas bem abastecidas quando as tempestades dão aos pescadores um feriado forçado.
  7. Mas a coisa mais conveniente sobre a casa é o fato de que Baiae está ao lado, é livre de todos os inconvenientes daquela estância, e ainda goza de seus prazeres. Eu mesmo compreendo essas atrações, e acredito que seja uma casa adequada a todas as temporadas do ano. Enfrenta o vento ocidental, que intercepta de tal forma que a Baiae é negado. Assim parece que Vácia não foi tolo quando selecionou este lugar como o melhor em que gastar seu tempo livre quando ele já era infrutífero e decrépito.
  8. O lugar onde se vive, no entanto, pode contribuir pouco para a tranquilidade; é a mente que deve tornar tudo agradável a si mesma. Vi homens desanimados numa vila alegre e encantadora, e os vi com toda a aparência cheia de negócios no meio de uma solidão. Por esta razão, não se deve recusar a acreditar que a sua vida está bem colocada simplesmente porque não está agora em Campânia. Mas por que você não está lá? Basta deixar seus pensamentos viajar, mesmo para este lugar.
  9. Você pode manter conversas com seus amigos quando eles estão ausentes, e, na verdade, quantas vezes quiser e pelo tempo que desejar. Pois desfrutamos disso, o maior dos prazeres, mais ainda quando estamos ausentes uns dos outros. Pois a presença de amigos nos torna enfadonhos; e porque podemos a qualquer momento falar ou sentarmo-nos juntos, quando uma vez que nos separamos não refletimos sobre aqueles a quem há pouco vimos.
  10. E devemos suportar a ausência de amigos alegremente, porque todos são obrigados a estar muitas vezes ausentes de seus amigos, mesmo quando eles estão presentes. Inclua nesses casos, em primeiro lugar, as noites separadas, depois os compromissos diferentes que cada um de dois amigos tem, então os estudos particulares de cada um e suas excursões ao campo, e você verá que as viagens ao estrangeiro não nos roubam de muito.
  11. Um amigo deve ser mantido no espírito; tal amigo nunca pode estar ausente. Você pode ver todos os dias quem deseja ver. Gostaria, portanto, que você compartilhasse seus estudos comigo, suas refeições, e seus passeios. Deveríamos estar vivendo dentro de limites muito estreitos se alguma coisa fosse barrada a nossos pensamentos. Eu o vejo, meu caro Lucílio, e neste exato momento eu o ouço; eu estou com você a tal ponto que me mostro indeciso se não deveria começar a escrever bilhetes em vez de cartas.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Cumas estava na costa a cerca de seis milhas a norte de Cape Misenum. O lago Acheron era uma piscina de água salgada entre esses dois pontos, separados do mar por uma barra de areia; O Vácia mencionado aqui é desconhecido;

[2] Filho de Asínio Galo, sua franqueza o colocou em apuros e ele morreu de fome em um calabouço em 33.  Sejano foi derrubado e executado em 31.

Carta 48: Sobre trocadilhos como Indigno ao Filósofo

Na carta 48 Sêneca pela primeira vez critica contundentemente o epicurismo, filosofia antagonista do estoicismo. O ponte central da crítica é a relação com amigos:  Sêneca diz que para o estoico, os termos “amigo” e “homem” são coextensivos, pois ele é o amigo de todos, e seu motivo de amizade é ser útil; Já o epicurista restringe a definição de “amigo” e considera-o meramente como um instrumento para sua própria felicidade:

ninguém pode viver feliz se só pensa em si próprio e transforma tudo em questão de sua própria utilidade; você deve viver para o seu vizinho, se você quiser viver para si mesmo.“(XLVIII, 2)

Por esse lado, “homem” é o equivalente de “amigo”; no outro lado, “amigo” não é o equivalente de “homem”. Um quer um amigo para sua própria vantagem; o outro quer fazer-se uma vantagem para seu amigo.
(XLVIII, 4)

Na sequencia explica qual a função da filosofia, e ataca o exercício de sofismo praticado pelos epicuristas da época:

Você realmente saberia o que a filosofia oferece à humanidade? A filosofia oferece conselhos. “(XLVIII, 7)
Devo julgar seus jogos de lógica como sendo de algum proveito para aliviar os fardos dos homens, se você puder me mostrar primeiro que parte desses fardos aliviarão. O que entre esses jogos afasta a luxúria? Ou a controla? Gostaria que eu pudesse dizer que eles são meramente ineficazes! Eles são positivamente prejudiciais. “(XLVIII, 9)

Sêneca conclui a carta exortando Lucílio a focar no principal e abandonar os trocadilhos e coisas supérfluas:

“Sinceridade, e simplicidade mostram verdadeira bondade. Mesmo se houvesse muitos anos para você, você teria que gastá-los frugalmente para ter o suficiente para as coisas necessárias; mas como é, quando seu tempo é tão escasso, que estupidez é aprender coisas supérfluas!” (XLVIII, 12)

 imagem: datalhe de Fuga da Decepção por Francesco Queirolo (1704–1762) Cappella Sansevero em Nápoles

 


XLVIII. Sobre trocadilhos como Indigno ao Filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Em resposta à carta que me escreveu durante a viagem, – uma carta tão longa quanto a viagem em si, – vou responder mais tarde. Eu devo me retirar, e considerar que tipo de conselho que eu posso lhe dar. Porque você mesmo, que me consulta, também refletiu por um longo tempo; quanto mais, então, devo eu mesmo refletir, já que mais deliberação é necessária para responder do que para propor um problema! E isso é particularmente verdadeiro quando uma coisa é vantajosa para você e outra para mim. Estou falando de novo sob a máscara de um epicurista[1]?
  2. Mas o fato é que a mesma coisa é vantajosa para mim e é vantajosa para você; porque não sou seu amigo, a menos que o que seja importante para você também seja minha preocupação. A amizade produz entre nós uma parceria em todos os nossos interesses. Não há tal coisa como boa ou má fortuna para um de nós; nós vivemos em comum. E ninguém pode viver feliz se só pensa em si próprio e transforma tudo em questão de sua própria utilidade; você deve viver para o seu vizinho, se você quiser viver para si mesmo.
  3. Esta comunhão, mantida com escrupuloso cuidado, que nos faz misturarmo-nos como homens com nossos semelhantes e sustenta que a raça humana tem certos direitos em comum, é também de grande ajuda em nutrir a comunhão mais íntima que se baseia na amizade, sobre a qual eu comecei a falar acima. Pois quem tem muito em comum com um semelhante terá todas as coisas em comum com um amigo.
  4. E sobre este ponto, meu excelente Lucílio, gostaria que esses sutis dialéticos me aconselhem como devo ajudar um amigo, ou como um homem, ao invés de me dizer de quantas maneiras a palavra “amigo” é usada, e quantos significados a palavra “homem” possui. Sabedoria e Estupidez tomam lados opostos[2]. A qual devo me juntar? Qual partido você gostaria que eu seguisse? Por esse lado, “homem” é o equivalente de “amigo”; no outro lado, “amigo” não é o equivalente de “homem”. Um quer um amigo para sua própria vantagem; o outro quer fazer-se uma vantagem para seu amigo. O que você tem a me oferecer não é nada além de distorção de palavras e divisão de sílabas.
  5. É claro que, a menos que eu possa imaginar algumas premissas muito difíceis e por falsas deduções aderir a elas uma falácia que nasce da verdade, não serei capaz de distinguir entre o que é desejável e o que deve ser evitado! Estou envergonhado! Homens velhos como nós somos, lidando com um problema tão sério, e fazemos dele um jogo!
  6. “Rato é uma palavra, agora um rato come queijo, portanto, uma palavra come queijo.” Suponha agora que não consiga resolver este problema; Veja que perigo pende sobre minha cabeça como resultado de tal ignorância! Que situação crítica vou estar! Sem dúvida, devo ter cuidado, ou algum dia eu vou pegar palavras em uma ratoeira, ou, se eu ficar descuidado, um livro pode devorar meu queijo! A menos que, talvez, o seguinte silogismo seja ainda mais perspicaz: “Rato é uma palavra, agora uma palavra não come queijo, por isso um rato não come queijo”[3].
  7. Que disparate infantil! Será que nós devemos debater sobre este tipo de problema? Deixamos nossas barbas crescerem por muito tempo por essa razão? É este o assunto que ensinamos com rostos amargos e pálidos? Você realmente saberia o que a filosofia oferece à humanidade? A filosofia oferece conselhos. A morte chama um homem, e a pobreza desgasta outro; um terceiro está preocupado com a riqueza do seu vizinho ou com a sua. Fulano tem medo da má fortuna; outro deseja ficar longe de sua própria fortuna. Alguns são maltratados pelos homens, outros pelos deuses.
  8. Por que, então, você molda para mim jogos como esses? Não é ocasião de brincadeira; você é considerado como conselheiro para a humanidade infeliz. Você prometeu ajudar aqueles em perigo no mar, aqueles em cativeiro, doentes e necessitados, e aqueles cujas cabeças estão sob o machado levantado. Até que ponto onde você está se perdendo? O que você está fazendo? Este amigo, em cuja companhia você está brincando, está com medo. Ajude-o, e retire o laço de seu pescoço. Homens estão estendendo as mãos implorando para você em todos os lados; Vidas arruinadas e em perigo de ruína estão implorando por alguma ajuda; as esperanças dos homens, os recursos dos homens, dependem de você. Eles pedem que você os livre de toda a sua inquietação, que você revele a eles, dispersos e vagando como eles estão, a clara luz da verdade.
  9. Diga-lhes o que a natureza fez necessário, e o que supérfluo; diga-lhes como são simples as leis que ela estabeleceu, quão agradável e desimpedida a vida é para aqueles que seguem essas leis, mas quão amarga e perplexa é para aqueles que têm a sua confiança na opinião e não na natureza. Devo julgar seus jogos de lógica como sendo de algum proveito para aliviar os fardos dos homens, se você puder me mostrar primeiro que parte desses fardos aliviarão. O que entre esses jogos afasta a luxúria? Ou a controla? Gostaria que eu pudesse dizer que eles são meramente ineficazes! Eles são positivamente prejudiciais. Posso deixar bem claro para você quando quiser, que um espírito nobre quando envolvido em tais sutilezas é prejudicado e enfraquecido.
  10. Tenho vergonha de dizer quais armas fornecem aos homens que estão destinados a guerrear com a fortuna, e quão mal os equipam! É este o caminho para o maior bem? A filosofia deve prosseguir por tal artifício e trocadilho[4] que seria uma desonra e um opróbrio mesmo para os deturpadores da lei? Pois o que mais vocês estão fazendo, quando deliberadamente aprisionam a pessoa a quem estão fazendo perguntas, do que fazer parecer que o homem perdeu sua causa por um erro técnico? Mas assim como o juiz pode restabelecer aqueles que perderam um processo dessa maneira, a filosofia pode restabelecer estas vítimas de trocadilhos a sua condição anterior.
  11. Por que vocês, homens, abandonam suas promessas extremas e, depois de terem me assegurado em linguagem erudita que vocês não permitirão que o brilho do ouro ofusque minha visão não mais que o brilho da espada e que eu, com poderosa perseverança despreze tanto aquilo que todos os homens anseiam quanto aquilo que todos os homens temem, por que vocês descenderam ao ABC dos acadêmicos pedantes? Qual é sua resposta? É este o caminho para o céu? Pois é exatamente isso que a filosofia promete a mim, que eu serei feito igual a Deus. Para isso fui convocado, para este propósito eu vim. Filosofia, mantenha sua promessa!
  12. Portanto, meu caro Lucílio, retire-se o mais possível dessas exceções e objeções desses chamados filósofos. Sinceridade, e simplicidade mostram verdadeira bondade. Mesmo se houvesse muitos anos para você, você teria que gastá-los frugalmente para ter o suficiente para as coisas necessárias; mas como é, quando seu tempo é tão escasso, que estupidez é aprender coisas supérfluas!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Os epicuristas, que reduziam todos os bens a “utilidades”, não podiam considerar a vantagem de um amigo como idêntica à própria vantagem. E, no entanto, colocavam grande peso na amizade como uma das principais fontes de prazer. Para uma tentativa de conciliar essas duas posições, veja Cicero, De Finibus. Sêneca usou uma frase que implica uma diferença entre os interesses de um amigo e o próprio. Isso o leva a reafirmar a visão estoica da amizade, que adotou como lema.

[2] Os lados são dados em ordem inversa nas duas cláusulas: para o estoico, os termos “amigo” e “homem” são coextensivos, pois ele é o amigo de todos, e seu motivo de amizade é ser útil; Já o Epicurista, no entanto, restringe a definição de “amigo” e considera-o meramente como um instrumento para sua própria felicidade.

[3] Neste parágrafo, Sêneca expõe a loucura de tentar provar uma verdade por meio de truques lógicos e oferece uma caricatura daqueles que estavam atuais entre os filósofos a quem ele ridiculariza.

[4] Sêneca usa a termo “sive nive”, literalmente, “ou se ou se não,” palavras constantemente empregadas pelos lógicos e nos instrumentos legais.

Carta 19. Sobre Materialismo e Retiro

Nesta carta Sêneca nos alerta sobre a verdadeira amizade e mais uma vez mostra os riscos da ganância.

Sêneca diz que devemos escolher nossos amigos sem pensar nos benefícios que iremos receber destes, ou que a eles daremos: “é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos, certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor; uma grande faz dele um inimigo.” (XIX.11)

Termina a carta com mais uma citação de Epicuro: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.” (XIX. 10)

(Imagem Daniel na cova dos Leões  por Rubens. )


 

Sobre Materialismo e Retiro

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Pulo de alegria sempre que recebo cartas de você. Pois me enchem de esperança; não são meras presunções sobre você, mas garantias reais. E rogo que continue neste caminho; pois que melhor pedido eu poderia fazer a um amigo do que um que possa ser feito para seu próprio bem? Se possível, retire-se de todos os negócios de que fala; e se você não pode fazer isto, afaste-se mesmo com prejuízo. Já gastamos bastante do nosso tempo – vamos na velhice começar a arrumar nossa bagagem.
  2. Certamente não há nada nisso que os homens possam cobiçar. Passamos nossas vidas em alto mar; que morramos no porto. Não que eu aconselhe você a tentar ganhar renome por seu retiro; O retiro não deve ser alardeado nem ocultado. Não ocultado, eu digo, porque não vou exortá-lo a rejeitar todos os homens como loucos e depois procurar a si mesmo um refugio; ao invés de fazer isso sua prática, que seu retiro não seja notável, embora deva ser evidente.
  3. Em segundo lugar, enquanto aqueles cuja escolha é livre desde o início irão deliberar sobre essa questão, caso eles queiram passar a vida em obscuridade. No seu caso, não há uma livre escolha. Sua habilidade e energia o empurraram para os negócios do mundo; assim tem o encanto de seus escritos e as amizades que você fez com homens famosos e notáveis. A fama já o conquistou. Você pode se afundar nas profundezas da obscuridade e se esconder completamente; contudo seus atos anteriores o revelarão.
  4. Você não pode manter-se à espreita no escuro; muito do brilho anterior lhe seguirá onde quer que vá. Paz que você pode reivindicar para si mesmo sem ser detestado por ninguém, sem qualquer sensação de perda, e sem dores de espírito. Por que você deixaria para trás algo que você pode imaginar-se relutante em abandonar? Seus clientes? Mas nenhum desses homens lhe corteja por você mesmo; eles meramente cortejam algo de você. As pessoas costumavam caçar amigos, mas agora elas caçam o dinheiro; se um velho solitário muda seu testamento, o visitante assíduo se transfere para outra porta. Grandes coisas não podem ser compradas por pequenas somas; por isso considere se é preferível deixar seu próprio eu verdadeiro, ou apenas alguns de seus pertences.
  5. Que você tivesse o privilégio de envelhecer em meio às circunstâncias limitadas de sua origem, e que sua fortuna não o tivesse elevado a tais alturas! Você foi afastado da oportunidade da vida saudável por sua rápida ascensão à prosperidade, pela sua província, pelo seu cargo de procurador[1] e por tudo o que tais coisas prometem; Em seguida, você vai adquirir responsabilidades mais importantes e depois delas ainda mais. E qual será o resultado?
  6. Por que esperar até que não haja nada para você desejar? Esse tempo nunca chegará. Nós sustentamos que há uma sucessão de causas, das quais o destino é tecido; Da mesma forma, você pode ter certeza, há uma sucessão em nossos desejos; pois um começa onde seu antecessor termina. Você foi empurrado para uma existência que nunca por si só porá fim na sua miséria e sua escravidão. Retire seu pescoço cansado da canga; é melhor tê-lo cortado uma vez por todas, do que escoriado eternamente.
  7. Se você se manter em privacidade, tudo estará em menor escala, mas você ficará abundantemente satisfeito; na sua condição atual, no entanto, não há satisfação na abundância que é jogada em cima de você por todos os lados. Você prefere ser pobre e saciado, ou rico e faminto? A prosperidade não é apenas gananciosa, mas também é exposta à ganância dos outros. E desde que nada o satisfaça, você mesmo não pode satisfazer os outros.
  8. “Mas”, você diz, “como posso me retirar?” De qualquer maneira que lhe agrade. Reflita quantos riscos você correu por causa do dinheiro, e quanto trabalho você empreendeu para um título! Você deve ousar algo para ganhar tempo livre também – ou então envelhecerá em meio às preocupações de atribuições no exterior e, posteriormente, a deveres cívicos em seu país, vivendo em agitação e em inundações de novas responsabilidades, que ninguém jamais conseguiu evitar por discrição ou por reclusão. Qual a influência no caso tem seu desejo pessoal de uma vida isolada? Sua posição no mundo deseja o oposto! E se, ainda agora, você permitir que essa posição cresça mais? Tudo o que for adicionado aos seus sucessos será adicionado aos seus medos.
  9. Neste ponto, gostaria de citar uma frase de Mecenas, que falou a verdade quando em seu auge: “Há trovões mesmo nos picos mais altos”. Se você me perguntar em que livro essas palavras são encontradas, elas ocorrem no volume intitulado Prometeu. Ele simplesmente queria dizer que esses altos picos têm seus cumes rodeados de trovoadas. Mas será que qualquer poder vale tão alto preço que um homem como você jamais conseguiria, para obtê-lo, adotar um estilo tão pervertido? Mecenas era de fato um homem de recursos, que teria deixado um grande exemplo para o oratório romano seguir, se sua boa fortuna não o tivesse tornado afeminado, – não, se não o tivesse emasculado! Um fim como o dele também o espera, a não ser que você baixe imediatamente as velas e – deferentemente de Mecenas, esteja disposto a abraçar a praia!
  10. Este texto de Mecenas pôde ter quitado minha divida com você; mas tenho certeza, conhecendo-lhe, de que obterá uma penhora contra mim, e que não estará disposto a aceitar o pagamento da minha dívida em moeda tão grosseira e vil. Seja como for, devo recorrer ao relato de Epicuro. Ele diz: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.
  11. Este privilégio não será seu a menos que você se afaste do mundo; caso contrário, você terá como convidados apenas aqueles que seu secretário selecionar na multidão de peticionários. No entanto, é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos, certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor; uma grande faz dele um inimigo.
  12. “O quê”, você diz, “Bondades não estabelecem amizades?” Elas as estabelecem, se tiverem o privilégio de escolher aqueles que devam recebê-las, e se forem colocadas judiciosamente, em vez de serem espalhadas ao acaso. Portanto, enquanto você está começando a criar uma mente própria, aplique esta máxima do sábio: considere que é mais importante quem recebe uma coisa, do que aquilo que ele recebe.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] O procurador fazia o trabalho de um questor em uma província imperial. Posições em Roma a que Lucílio poderia ter sucesso seriam as de praefectus annonae, encarregado do fornecimento de grãos, ou praefectus urbi, Diretor de Segurança Pública e outros.

Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Na nona carta Sêneca discorre sobre a Amizade e sua relação com a filosofia.

Em toda a carta o termo  “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.

Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e  nos alerta sobre o risco das amizades por interesse:  Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.

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Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.[1] Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.
  2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.[2] Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.
  3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:[3] nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.
  4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.
  5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,[4] se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.
  6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.
  7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.
  8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, se basta como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.
  9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”[5]; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.
  10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.
  11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?
  12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.
  13. O homem sábio se basta”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio se basta para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a fortuna.
  14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.[6]Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”[7] O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.
  15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da fortuna.
  16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.[8] Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.
  17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.
  18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,[9] conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!
  19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.
  20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.
  21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:

Infeliz é aquele que  não se considera feliz.

Non est beatus, esse se qui non putat.[10]

O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?

  1. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

[2] O termo grego ἀπάθεια (Apatheia) significa literalmente “ausência de sofrimento”, daí vem o termo apatia em português.

[3] NT: Isto é, escola cínica.

[4] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

[5] NT: em Latin, quas temporarias, tempo bom.

[6] A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.

[7] NT: Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.

[8] NT: Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.

[9] NT: Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.

[10] Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro

Pensamento do Dia #19: Amizade

devo recorrer ao relato de Epicuro.  Ele diz: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.

Nenhuma vida pode ser feliz sem amigos, e nenhuma vida será infeliz com eles.

(Sêneca, Carta19. Sobre Materialismo e Retiro– Imagem Daniel na cova dos Leões  por Rubens. ) Carta completa no Volume I.

 

 

Pensamento do dia #9 (Sobre a Ira, III.24)

Pensamento do Dia para a véspera de Natal é sobre o perdão.

Essa é a primeira ofensa dele? pense quanto tempo ele tem sido correto. Ele já errou muitas vezes e em muitos outros casos? Então, continuemos a suportar o que temos suportado por tanto tempo. Ele é amigo? Então ele não pretendia ofendê-lo. Ele é um inimigo? Então, ao fazê-lo, ele cumpriu seu dever.

(…)

Seja quem for [que o ofendeste], digamos a nós mesmos em seu favor, que mesmo os mais sábios dos homens frequentemente erram, que ninguém está tão alerta que sua atenção nunca se trai, que ninguém é tão maduro que sua mente não possa ser estimulada pelas circunstâncias a uma ação calorosa, que, na verdade, ninguém, por muito cuidadoso que seja, pode evitar eventualmente ofender, mesmo enquanto tenta evitar isso. (Sêneca, Sobre a Ira, III.24), On Anger, III.24)

Seja indulgente ou, pelo menos, compreenda as ações de outras pessoas. (Imagem: moeda Antoninus Pius, um dos cinco bons imperadores,  mostrando as mãos dadas, o símbolo da amizade)

Carta 3: Sobre a verdadeira e falsa amizade

Sobre a amizade real.

Seneca adverte Lucílio contra fazer um homem em um amigo antes de conhecer o caráter deste homem. Contudo, uma vez que alguém se tornou um amigo, devemos confiar e compartilhar as ansiedades deste. (Veja também a carta 9 sobre as amizades do homem sábio.)

Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos e se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda, a mais segura.” (Carta II, §5)

(imagem: A Ceia em Emaús  por Caravaggio)

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