Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la.
Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de suicídio imposta por Nero. Ainda assim, ele é grato por sua mente ainda estar afiada, mesmo que seu corpo estivesse em decadência, como convém a um estoico que dá valor à sua faculdade mental e considera o corpo um indiferente preferido.
“você diz, é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.”(XXVI, §4)
Uma morte rápida e súbita é fácil e preferível, mas a realidade é que a maioria de nós vai decair lentamente, perdendo tanto a nossa força física quanto a mental no processo. Esse é o difícil desafio de se aproximar do fim, e é por isso que a forma como nos aproximamos da morte é o teste final de nosso caráter. Como vamos reagir à nossa crescente dependência dos outros? É melhor ficar por aqui até o último minuto, ou caminhar pela porta aberta, como Epiteto diz, enquanto ainda estamos no controle?
É uma boa prática perguntar a nós mesmos a mesma questão, não apenas sobre a morte, mas sobre como nos comportamos todos os dias: estamos realmente tentando, ainda que imperfeitamente, viver a vida estoica, ou é apenas conversa? Sêneca atribui valor limitado ao aprendizado teórico. A prova está na prática:
“Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.”(XXVI, §7)
Este é um ponto crucial, e tão comumente subestimado. Muitas vezes falamos de alguém morrendo “prematuramente”. Mas nós baseamos isso em expectativas estatísticas. Do ponto de vista do Logos, a teia cósmica de causa e efeito, não existe algo muito cedo ou muito tarde. As coisas acontecem quando acontecem. E esse conhecimento teórico tem o potencial de ser de enorme interesse prático, não perca tempo, pela simples razão de que você não saber quanto tempo tem no banco.
1. Eu estava ultimamente dizendo que estava à vista da velhice.111 Agora estou com medo de ter deixado a velhice atrás de mim. Pois alguma outra palavra se aplicaria agora a meus anos, ou de qualquer maneira a meu corpo, uma vez que a velhice significa um tempo da vida que se está cansado, em vez de esmagado. Você pode me colocar então na classe dos decrépitos, daqueles que estão chegando ao fim.
2. No entanto, eu agradeço a mim mesmo, com você como testemunha, porque eu sinto que a idade não causou nenhum dano a minha mente, embora eu sinta seus efeitos em minha constituição corporal. Somente meus vícios e as ajudas exteriores a esses vícios chegaram à senilidade, minha mente é forte e se regozija por ter apenas ligeira conexão com o corpo. Ela deixou de lado a maior parte de sua carga. Está alerta, ela rejeita o tema da velhice, declara que a velhice é seu tempo de florescimento.
3. Deixe-me levá-la em consideração e deixá-la aproveitar as vantagens que possui. A mente me pede que pense um pouco e considere o quanto dessa paz de espírito e moderação de caráter devo à sabedoria e quanto a meu tempo de vida, me convida a distinguir cuidadosamente o que não posso fazer e o que não quero fazer… Pois por que alguém deve queixar-se ou considerar uma desvantagem, se as forças que deveriam chegar ao fim começam a falhar?
4. “Mas,” você diz, “é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos, somos desgastados e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.” Mas há algum fim melhor para tudo isso do que planar para seu próprio refúgio quando a natureza se vai? Não que haja algo doloroso em um choque e uma partida repentina da existência, é apenas porque este outro modo de partida é fácil, uma retirada gradual. Eu, de qualquer modo, como se o teste estivesse à mão e chegasse o dia de pronunciar sua decisão sobre todos os anos da minha vida, vigio-me e comungo assim comigo:
5. “A demonstração que fizemos até o presente, em palavra ou em ação, não vale nada. Tudo isso é apenas uma promessa insignificante e enganosa de nosso espírito e está envolto em muito charlatanismo. Vou deixar a cargo da morte determinar o progresso que fiz. Portanto, sem timidez, estou preparando para o dia em que, deixando de lado todo o artifício de palco e maquiagem de ator, eu deverei presidir meu próprio julgamento; se estou meramente declamando sentimentos corajosos ou se realmente os sinto, se todas as ameaças arrojadas que eu proferi contra a Fortuna eram fingimento e farsa!
6. Deixe de lado a opinião do mundo, ela é sempre vacilante e sempre parcial. Deixe de lado os estudos que você tem perseguido durante toda a sua vida, a morte entregará o julgamento final em seu caso. Isto é o que quero dizer: seus debates e palestras, seus axiomas recolhidos a partir dos ensinamentos dos sábios, sua conversa culta, tudo isso não oferece nenhuma prova da verdadeira força da sua alma. O homem mais tímido pode fazer um discurso ousado. O que você fez no passado será evidente apenas no momento em que você expirar seu último suspiro. Eu aceito as condições. Eu não me acovardo frente a decisão”.
7. Isto é o que eu digo a mim mesmo, mas gostaria que você pensasse que eu o digo a você também. Você é mais jovem, mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera, então esteja sempre pronto para ela.
8. Eu estava apenas pretendendo parar e minha mão estava se preparando para a frase de encerramento, mas os ritos ainda devem ser realizados e as despesas de viagem para a carta desembolsadas. E apenas suponha que eu não direi de quem eu pretendo emprestar a soma necessária, você sabe de cujos cofres dependo. Espere só mais um momento e eu pagarei de minha conta, entretanto por agora, Epicuro me favorece com estas palavras: “Medita na morte”,112 ou melhor, se preferir, a frase: “atribua maior importância à aprendizagem da morte”.
9. O significado é claro: é uma coisa maravilhosa aprender minuciosamente como morrer. Você pode considerar que é supérfluo aprender um texto que pode ser usado apenas uma vez; mas essa é exatamente a razão pela qual devemos pensar em uma coisa. Quando nunca podemos provar se realmente sabemos alguma coisa, devemos sempre estar aprendendo.
10. “Medita na morte”. Ao dizer isso ele nos pede para pensar na liberdade. Aquele que aprendeu a morrer desaprendeu a escravidão, está acima de qualquer poder externo ou, pelo menos, está além disso. Que terrores causam prisões, correntes e grades para ele? A sua saída é clara, a porta está sempre aberta. Existe apenas uma corrente que nos prende à vida e essa é o amor pela vida. A corrente não pode ser desprezada, mas pode ser enganada, de modo que, quando a necessidade exigir, nada pode retardar ou impedir que estejamos prontos para fazer de uma só vez o que em algum momento seremos obrigados a fazer.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
111Veja a carta XII. Sêneca tinha por este tempo, pelo menos, sessenta e cinco anos. Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de Nero para cometer suicídio.
112 Ver as três citações em Epicuro, Cartas e Princípios.
A carta aborda o medo da morte. É um grande auxilio para as pessoas que precisam fazer o que deve ser feito, mesmo sob risco pessoal. Sêneca foi rico e poderoso, agiu como primeiro ministro de Roma nos 5 primeiros anos do reinado de Nero. Também passou por muitos riscos e sofrimento. Foi condenado a morte por Calígula, escapando por ajuda de amigos e ficou 8 anos exilado por determinação de Cláudio. No fim foi condenado a cometer suicídio por Nero.
Sêneca aponta algo paradoxal no início de sua carta: Sêneca: “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro“(XXIV, §1)
Mas o futuro nunca chega e, portanto, você nunca pode ser totalmente infeliz. Não devemos nos aborrecer com problemas futuros, tornando-os um problema do presente. Não se preocupe com as coisas antes do tempo.
“Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! ‘Eu morrerei’, você diz; você queria dizer: ‘Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte'”(XXIV, §17).
1. Você escreve-me que está ansioso pelo resultado de um processo judicial, com o qual um oponente colérico está lhe ameaçando e você espera que eu lhe aconselhe a vislumbrar um desenlace feliz e a descansar em meio aos encantos da esperança lisonjeira. Por que seria necessário conjurar problemas, que devem ser resolvidos de uma vez tão logo que cheguem, ou antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro.
2. Mas conduzi-lo-ei à paz de espírito por uma outra rota: se você quer desencorajar toda a preocupação, suponha que o que você teme que poder acontecer certamente acontecerá, qualquer que seja o problema, então meça-o em sua própria mente e estime a quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é insignificante ou de curta duração.
3. E você não precisa gastar muito tempo em coletar ilustrações que o fortalecerão, cada época as produziu com abundância. Deixe seus pensamentos viajarem em qualquer época da história romana ou estrangeira e haverá múltiplos exemplos notáveis de feitos heroicos ou de intensa serenidade filosófica. Se perder este julgamento, pode acontecer algo mais grave do que você ser enviado ao exílio ou levado à prisão? Existe um pior destino que qualquer homem possa temer do que ser torturado pelo fogo ou sofrer uma morte violenta? Nomeie essas punições uma a uma e mencione os homens que as desprezaram, não é preciso sair à caça deles, é simplesmente uma questão de listá-los.
4. A sentença de condenação foi suportada por Rutílio102 como se a injustiça da decisão fosse a única coisa que o aborrecesse. O exílio foi suportado por Metelo103 com coragem, por Rutílio até mesmo com alegria, pois o primeiro só consentiu em voltar a Roma porque seu país o chamava, este se recusou a voltar quando Sula o convocou e ninguém naqueles dias ousava dizer não a Sula! Sócrates na prisão discursou e recusou-se a fugir quando certas pessoas lhe deram a oportunidade. Ele permaneceu lá, a fim de libertar a humanidade do medo das duas coisas mais graves: a morte e prisão.
5. Múcio104 colocou a mão no fogo. É doloroso ser queimado, mas quão mais doloroso é infligir tal sofrimento a si mesmo! Aqui estava um homem sem instrução filosófica, não preparado para enfrentar a morte e a dor por qualquer palavra de sabedoria e, equipado apenas com a coragem de um soldado, se puniu por sua ousadia infrutífera. Ele ficou de pé e observou sua própria mão direita caindo aos poucos sobre o braseiro do inimigo, nem retirou o membro dissolvente, com os seus ossos descobertos, até que seu inimigo removeu o fogo. Ele poderia ter conseguido algo mais bem-sucedido naquela batalha, mas nunca algo mais corajoso. Veja quão mais corajoso é um homem valente ao se assenhorar do perigo do que um homem cruel é para infringi-lo: Porsena estava mais pronto para perdoar Múcio por querer matá-lo do que Múcio para se perdoar por não ter matado Porsena!
6. “Oh”, diz você, “essas histórias foram repetidas à exaustão em todas as escolas, muito em breve, quando você chegar ao tema ‘Desprezo pela Morte’, você vai me falar sobre Catão”. Mas por que não lhe contar sobre Catão, como ele leu o livro de Platão naquela última noite gloriosa, com uma espada pousada sob o travesseiro? Ele tinha provido essas duas condições para seus últimos momentos, primeiro, que ele poderia ter a vontade de morrer, e segundo, que ele poderia ter os meios. Então ele regularizou seus negócios, assim como se pode ordenar o que está arruinado e perto de seu fim. Pensou que deveria fazer para que ninguém tivesse o poder de matá-lo ou a possibilidade de salvá-lo.
7. Desembainhando a espada, que tinha mantido sem mancha mesmo após todo derramamento de sangue, ele gritou: “Fortuna, você não conseguiu nada, resistindo a todos meus esforços. Eu tenho lutado até agora pela liberdade do meu país e não por mim mesmo, não me esforcei tão obstinadamente para ser livre, mas apenas para viver entre os livres. Agora, já que os assuntos da humanidade estão além da esperança, que Catão seja retirado para a segurança.”
8. Assim dizendo, ele infligiu uma ferida mortal sobre seu corpo. Depois que os médicos o cauterizaram, Catão tinha menos sangue e menos forças, mas não menos coragem, enfurecido agora não só contra César, mas também consigo mesmo, reuniu suas mãos desarmadas contra sua ferida e expulsou, em vez de liberar, aquela nobre alma que tinha sido tão desafiadora de todo poder mundano.
9. Eu não estou agora a amontoar estas ilustrações com o propósito de exercitar seu espírito, mas com o propósito de encorajá-lo a enfrentar o que é considerado ser o mais terrível. E vou encorajá-lo com mais facilidade, mostrando que não só homens resolutos desprezaram aquele momento em que a alma expira por último, mas que certas pessoas, que eram covardes em outros aspectos, se igualaram à coragem dos mais corajosos. Tomemos, por exemplo, Cipião105, o sogro de Cneu Pompeu:106 ele foi atirado sobre a costa africana por um vento de proa e viu seu navio no poder do inimigo. Ele, portanto, perfurou seu corpo com uma espada e quando perguntaram onde estava o comandante, ele respondeu: “Tudo está bem com o comandante”(Imperator se bene habet).
10. Estas palavras o elevaram ao nível de seus antepassados e não macularam a glória que o destino deu aos Cipiões na África. Foi uma grande ação conquistar Cartago, mas uma ação maior vencer a morte. “Tudo está bem com o comandante!” que forma de morrer haveria mais digna de um general e, especialmente, de um general das tropas de Catão?
11. Não remetê-lo-ei à história, nem colecionarei exemplos daqueles homens que ao longo dos séculos desprezaram a morte, pois são muitos. Considere essa nossa época, onde a prostração e o excesso de refinamento provocam queixas. Os exemplos incluirão homens de toda categoria, de toda Fortuna na vida, e de todas as épocas, que interromperam suas desgraças com a morte. Acredite em mim, Lucílio, a morte é tão pouco a temer que através de seus bons ofícios nada é temível.
12. Portanto, quando seu inimigo ameaçar, ouça despreocupadamente. Embora sua consciência o faça confiante, já que muitas coisas estão fora de seu controle, ambos esperam o que é absolutamente justo e se preparam contra o que é totalmente injusto. Lembre-se, no entanto, antes de tudo, de despir as coisas de tudo o que perturba e confunde e ver o que cada uma é no fundo, então você compreenderá que elas não contêm nada temível, com exceção do medo em si.
13. O que você vê acontecendo com meninos acontece também a nós mesmos que somos apenas meninos ligeiramente maiores: quando aqueles que eles amam, com quem eles se associam diariamente, com quem eles brincam, aparecem com máscaras, os meninos ficam assustados sem necessidade. Devemos tirar a máscara, não só dos homens, mas das coisas e restaurar a cada objeto seu próprio aspecto.
14. Por que são levantadas diante dos meus olhos espadas, fogueiras e uma multidão de verdugos que andam furiosos em torno de mim? Remova toda essa vã demonstração por trás da qual você se esconde e se engana! Não é senão a morte, a qual ontem mesmo um servo meu desprezou e afrontou sem temor! Para que toda essa grande ostentação, o chicote e o pelourinho? Por que preparam esses instrumentos de tortura, um para cada parte do corpo e todas essas outras máquinas inumeráveis para rasgar um homem um bocado de cada vez? Fora com todas essas coisas, que nos deixa entorpecidos de terror! E você, silencie os gemidos e ignore os gritos amargos da vítima que está na roda de tortura, pois não é outra coisa senão a dor, desprezada por aquele desgraçado atormentado pela gota, tolerada por um dispéptico, suportada corajosamente pela mulher em trabalho de parto. Menospreze você tal ofício! Se for possível suportar, é uma dor leve, se não, será uma dor breve!
15. Reflita sobre estas palavras que muitas vezes você ouviu e frequentemente proferiu. Além disso, prove pelo resultado se o que você ouviu e proferiu é verdade. Pois há uma acusação muito vergonhosa muitas vezes trazida contra a nossa escola: que lidamos com as palavras e não com as ações da filosofia. O que, você só neste momento aprende que a morte está pendente sobre sua cabeça, só neste momento de dor? Você nasceu para esses riscos. Pensemos em tudo o que pode acontecer como algo que acontecerá.
16. Eu sei que você realmente fez o que eu aconselho a fazer, eu agora lhe advirto que não afogue a sua alma nestas suas pequenas angústias. Se você fizer isso, a alma será entorpecida e terá muito pouco vigor disponível quando chegar a hora de levantar-se. Afaste seu pensamento de seu caso para o caso dos homens em geral. Diga a si mesmo que nossos pequenos corpos são mortais e frágeis. A dor pode alcançá-los de outras formas do que pelo poder do mais forte. Nossos próprios prazeres tornam-se tormentos. Banquetes trazem indigestão, bacanais trazem paralisia dos músculos e marasmo, hábitos libidinosos afetam os pés, as mãos e cada articulação do corpo.
17. Eu posso me tornar um homem pobre, eu serei então um entre muitos. Posso ser exilado, considerar-me-ei então nascido no lugar para o qual fui enviado. Eles podem me colocar em correntes. E então? Estou livre de obrigações agora? Contemple este fardo obstrutivo que é um corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! “Eu morrerei”, você diz. Você quer dizer: “Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte”.
18. Não sou tão tolo para repetir neste momento os argumentos que Epicuro lançava e dizer que os terrores deste mundo são inúteis, que Íxion107 não gira em torno de sua roda, que Sísifo108 não arca com o peso de sua pedra, que as entranhas de um homem não podem ser restauradas e devoradas todos os dias. Ninguém é tão infantil como para temer Cérbero,109 ou as sombras, ou o traje espectral daqueles que são unidos por nada senão por seus ossos expostos. A morte nos aniquila ou nos desnuda. Se nós somos liberados então, lá permanece a melhor parte, depois que a tormenta é retirada, se somos aniquilados, nada permanece, tanto o que é bom quanto o que é mau são igualmente removidos.
19. Permita-me neste momento citar um versículo seu, primeiro insinuando que, quando você o escreveu, você quis dizer isso para si mesmo, não menos do que para os outros. É ignóbil dizer uma coisa e acreditar em outra e quão mais ignóbil é escrever uma coisa e acreditar em outra! Lembro-me de um dia que você estava lidando com o conhecido, que não caímos mortos de repente, mas que avançamos para a morte em passos lentos, morremos todos os dias.
20. Porque cada dia um pouco de nossa vida nos é tirada, mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. Contando até ontem, todo o tempo passado é tempo perdido. O próprio dia que passamos agora é compartilhado entre nós e a morte. Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu, da mesma forma, a hora final em que deixamos de existir não provoca por si só a morte, ela apenas completa o processo de morte. Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.
21. Ao descrever essa situação, você disse em sua eloquência costumeira, pois você é sempre impressionante mas nunca tão cáustico como quando está colocando a verdade em palavras apropriadas: “a morte vem gradualmente, a que nos leva é a morte última!” . Eu prefiro que você leia suas próprias palavras em vez de minha carta, pois então ficará claro para você que esta morte, da qual temos medo, é a última, mas não a única morte.
22. Vejo o que você está procurando, você está perguntando o que eu empacotei em minha carta, qual ditado estimulante de algum mestre, qual preceito útil. Assim, vou enviar-lhe algo que trata deste assunto em discussão. Epicuro censura aqueles que desejam, tanto quanto aqueles que se esquivam da morte: “É absurdo, diz ele, correr para a morte porque você está cansado da vida, quando é a sua maneira de viver que o fez correr para morte.”
23. E em outra passagem: “O que é tão absurdo quanto buscar a morte, quando é por medo da morte que você roubou a paz da sua vida?” E você pode acrescentar uma terceira declaração do mesmo cunho: “Os homens são tão irrefletidos, não, tão loucos, que alguns, por medo da morte, se obrigam a morrer”.110
24. Qualquer dessas ideias que você ponderar, irá tonificar sua mente para a resistência tanto à morte quanto à vida. Pois precisamos ser admoestados e fortalecidos em ambos os sentidos, não amar ou odiar a vida em demasia. Mesmo quando a razão nos aconselha a acabar com ela, tal impulso não deve ser adotado sem reflexão ou precipitadamente.
25. O homem sóbrio e sábio não deve bater em retirada da vida, ele deve fazer uma saída conveniente. E acima de tudo, ele deve evitar a fraqueza que tomou posse de tantos, o desejo da morte. Pois assim como há uma tendência irrefletida da mente para com outras coisas, assim, meu caro Lucílio, há uma tendência irrefletida para a morte. Isso muitas vezes se apodera dos homens mais nobres e espirituosos, assim como dos covardes e dos abjetos. Os primeiros desprezam a vida, os últimos acham-na fastidiosa e não lhe suportam o peso.
26. Outros também são movidos por uma saciedade de fazer e ver as mesmas coisas e não tanto por um ódio à vida como por estarem enfastiados com ela. Deslizamos para essa condição, enquanto a própria filosofia nos empurra, e dizemos: “Quanto tempo devo suportar as mesmas coisas? Eu continuarei a acordar e dormir, estar com fome e ser saciado, ter calafrios e transpirar? Não há fim para nada, todas as coisas estão ligadas em uma espécie de círculo, elas fogem e elas são perseguidas. A noite está próxima aos calcanhares do dia, o dia aos calcanhares da noite, o verão termina no outono, o inverno apressa-se depois do outono e o inverno se suaviza na primavera, toda a natureza assim passa, só para voltar. Eu não vejo nada de novo, mais cedo ou mais tarde, o homem enjoa disto também.” Há muitos que pensam que a vida, não sendo dolorosa, é supérflua.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
102Públio Rutílio Rufo despertou o ódio da ordem equestre, à qual pertencia a maior parte dos republicanos. Em 92 a.C., foi acusado de extorsão justamente por estes provincianos que havia tentado proteger e, apesar da acusação ser amplamente tida como falsa, o júri, composto quase que inteiramente de equestres, o condenou. Rufo aceitou o veredito resignado, um comportamento estoico esperado para um discípulo de Panécio. Cícero, Lívio, Veleio Patérculo e Valério Máximo concordam em que era um homem honrado e íntegro e a sua condenação foi resultado de uma conspiração.
103 Quinto Cecílio Metelo Numídico, foi eleito cônsul em 109 a.C. e censor em 102 a.C. e era o líder da facção aristocrática dos optimates no Senado Romano. Quando Saturnino obrigou os senadores a jurarem uma lei agrária no prazo de cinco dias sob pena de multa, Metelo preferiu exilar-se voluntariamente em Rodes a se submeter ao que considerava um grande desatino, o que resultou na sua expulsão do Senado e na perda de sua cidadania romana.
104Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola). Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a ameaça etrusca representada por Lar Porsena. Depois de rechaçar um primeiro ataque, os romanos se refugiaram atrás das muralhas da cidade e Porsena iniciou um cerco. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso e disse: “Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!”. Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse libertado.
105 Quinto Cecílio Metelo Pio Cipião Násica, conhecido como Metelo Cipião, foi um político da gente Cecília Metela da República Romana eleito cônsul em ٥٢ a.C. com Pompeu. Liderou tropas contra as forças de César, principalmente na Batalha de Farsalo (٤٨ a.C.) e na Batalha de Tapso (٤٦ a.C.) e foi derrotado.
106 Cneu Pompeu, conhecido também como Pompeu, o Jovem (79 a.C. – 12 de Abril 45 a.C.), foi um político romano da segunda metade do século I a.C., no período tardio da República Romana.
107Íxion foi amarrado a uma roda em chamas. No lugar das cordas, os deuses utilizaram serpentes. Íxion foi condenado a girar eternamente no calor do inferno.
108Sísifo foi obrigado a empurrar uma pedra até o topo de uma das montanhas do submundo, sendo que toda vez que estava chegando ao cume, a rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando assim, o labor de Sísifo uma punição eterna.
109Cérbero era um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.
Sêneca discute a importância de se afastar das ambições mundanas e da vida pública para alcançar uma existência verdadeiramente filosófica e estoica. Ele argumenta que a retirada dessas buscas vazias deve ser feita com cuidado e na hora certa, comparando-o com a estratégia de um gladiador no ringue. A análise de Sêneca começa com as desculpas típicas das pessoas em busca de riqueza:
“A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo.” Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima;” (XXII, §4)
Observe um ponto sutil aqui: Sêneca não está dizendo que a prosperidade não vale a pena prosseguir. É, afinal, um preferido indiferente. Lucílio estava preocupado com suas próprias ocupações. É por isso que seu amigo lembra que ele não tem nenhuma obrigação de viver freneticamente.
Sêneca então acrescenta: “Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão na minha recepção? Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância; eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.” (XXII, §9)
Este é um belo parágrafo, vale a pena meditar. Comece com o fim: as pessoas amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as próprias dificuldades. De fato, e o que realmente é gratificante na vida é a experiência em si, não tanto o resultado final. Você já esteve em uma caminhada? Claro, há satisfação quando você chega ao cume e pode olhar para a vista. Mas é todo o processo, bolhas e tudo, que vale a pena.
“Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter; você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos,mas há muitos mais que se apegam à escravidão.” (XXII, §10-11)
Novamente, que bela frase, especialmente no final: a pior escravidão é aquela a quem nos condenamos, mesmo sem perceber. A carta termina com uma contemplação mais geral da morte, que Sêneca diz ser o teste final de nossa virtude e nossa filosofia. No entanto, muitos simplesmente não conseguem, ou talvez não desejem ouvir, a mensagem, e é por isso que Sêneca conclui com esse sentimento: “Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem a viver nobremente, mas é impossível a qualquer homem viver por muito tempo” (XXII, §17).
1. Você já entendeu, a este ponto, que deve retirar-se daquelas buscas exibicionistas e ilusórias. Mas você ainda deseja saber como isso pode ser realizado. Há certas coisas que só podem ser apontadas por alguém que está presente. O médico não pode receitar por carta o tempo adequado para comer ou tomar banho, ele deve sentir o pulso. Há um velho ditado sobre gladiadores, que eles planejam sua luta no ringue a medida que observam atentamente algo no olhar do adversário, algum movimento de sua mão, até mesmo algum detalhe de seu corpo passa uma dica.
2. Podemos formular regras gerais e colocá-las por escrito, quanto ao que geralmente é feito ou deveria ser feito, tal conselho pode ser dado, não somente a nossos amigos ausentes, mas também às gerações seguintes, à posteridade.98 No que diz respeito, no entanto, a esta segunda questão, quando ou como o seu plano deve ser realizado, ninguém vai aconselhar a distância, temos de nos aconselhar na presença da situação real.
3. Você deve estar não somente presente em corpo, mas vigilante na mente, se você quiser aproveitar de oportunidade fugaz. Consequentemente, olhe ao redor por uma oportunidade, se você a vê, agarre-a e com toda sua energia e com toda sua força dedique-se a esta tarefa: livrar-se daqueles outros afazeres. Agora ouça atentamente o alvitre que vou oferecer: é minha opinião que você deve retirar-se desse tipo de existência ou então da existência completamente. Mas eu também defendo que você deva tomar um caminho suave, para que você possa desatar, em vez de cortar o nó que você tem se empenhando tanto em amarrar; apenas se não houver outra maneira de soltá-lo, então poderá cortá-lo. Nenhum homem é tão covarde que prefira pendurar-se em suspense para sempre do que soltar-se de uma vez por todas.
4. Enquanto isso, e isso é de primeira importância, não se prejudique, esteja satisfeito com o negócio ao qual você se dedicou ou, como prefere que as pessoas pensem, o negócio que lhe foi imposto. Não há nenhuma razão pela qual você deva estar lutando por mais tarefas, se o fizer, perderá toda a credibilidade e os homens verão que não foi uma imposição. A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo”. Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima. Uma parada tem seu significado, mesmo que esta não ofereça resistência, em vez de pedir ansiosamente por mais favores da Fortuna.
5. Você deveria me expulsar, se eu não só lhe aconselhasse, mas também não chamasse outros para aconselhá-lo; e cabeças mais sábias do que as minhas, homens diante dos quais eu vou colocar qualquer problema sobre o qual estou ponderando. Leia a carta de Epicuro sobre esta matéria, é dirigida a Idomeneu. Epicuro pede que se apresse o mais rápido que puder, a bater em retirada antes que alguma influência mais forte se apresente e retire dele a liberdade de fugir.99
6. Mas ele também acrescenta que ninguém deve tentar nada, exceto no momento em que possa ser feito de forma adequada e oportuna. Então, quando a ocasião procurada chegar, esteja pronto. Epicuro nos proíbe de cochilar quando estamos planejando fugir, ele nos oferece a esperança de uma liberação das provações mais duras, desde que não tenhamos pressa demais antes do tempo, nem que sejamos muito lentos quando chegar o momento.
7. Agora, eu suponho, você também está procurando a posição dos estoicos. Não há realmente nenhuma razão pela qual alguém deva criticar essa escola para você em razão de sua dureza; de fato, sua prudência é maior do que sua coragem. Talvez você esteja esperando que a escola diga palavras como estas: “É vil recuar diante de uma tarefa. Lute pelas obrigações que você uma vez aceitou. Nenhum homem é corajoso e sério se ele evita o perigo, seu espírito se fortalece com a própria dificuldade de sua incumbência”.
8. Ser-lhe-ão faladas palavras como estas, se a sua perseverança tiver um objetivo que valha a pena, se você não tiver que fazer ou sofrer algo indigno de um bom homem. Além disso, um bom homem não se desperdiçará com o trabalho desprezível e desacreditado, nem estará ocupado apenas por estar ocupado. Nem ele, como você imagina, se tornará tão envolvido em esquemas ambiciosos que terá que suportar continuamente o seu fluxo e refluxo. Não, quando ele vê os perigos, incertezas e riscos em que foi anteriormente jogado, ele vai se retirar, não virando as costas para o inimigo, mas retrocedendo pouco a pouco para uma posição segura.
9. Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão de clientes na minha recepção nem escolta para a minha liteira?” Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância, eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.
10. Os homens se queixam de suas ambições da mesma forma que se queixam de suas amantes, em outras palavras, se você penetrar seus sentimentos reais, você vai encontrar, não ódio, mas uma passageira implicância. Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter, você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar.
11. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão. Se, no entanto, você pretende se livrar dessa escravidão, se a liberdade é genuinamente agradável aos seus olhos e se você procurar apoio para este propósito único, que você possa ter a Fortuna de realizar este propósito sem perpétua irritação. Como pode toda a escola de pensadores estoicos não aprovar a sua conduta? Zenão, Crisipo e todos de seu grupo dar-lhe-ão conselho que é moderado, honrável e apropriado ao culto do seu próprio bem.
12. Mas se você se virar e olhar ao redor a fim de ver o quanto pode levar com você e quanto dinheiro você pode manter para equipar-se para a vida de ócio, você nunca vai encontrar uma saída. Nenhum homem pode nadar até a terra e levar sua bagagem com ele. Ascenda-se à uma vida superior, com a benevolência dos deuses, mas que não seja benevolência do tipo que os deuses dão aos homens quando, com rostos gentis e amáveis, outorgam males magníficos, justificando que coisas que irritam e torturam sejam concedidas em resposta às orações.
13. Eu estava colocando o selo nesta carta, mas deve ser aberta outra vez, a fim de que possa entregar a você a contribuição usual, levando com ela alguma palavra nobre. E há uma coisa que me ocorre, eu não sei o que é maior, sua verdade ou sua nobreza de enunciação. “Falado por quem?” Você pergunta. Por Epicuro, pois ainda estou me apropriando dos pertences de outros homens.
14. As palavras são: “Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de nela entrar”100. Tome alguém de sua relação, jovem, velho ou de meia-idade, você verá que todos têm igualmente medo da morte e são igualmente ignorantes sobre a vida. Ninguém tem nada terminado, porque mantivemos adiando para o futuro todos os nossos empreendimentos. Nenhum pensamento na citação dada acima me agrada mais do que isso, que insulta velhos como sendo infantis.
15. “Ninguém”, diz ele, “deixa este mundo de maneira diferente daquele que acaba de nascer”. Isso não é verdade, porque somos piores quando morremos do que quando nascemos, mas é nossa culpa e não da natureza. A natureza deveria repreender-nos, dizendo: “O que é isso? Eu lhe trouxe ao mundo sem desejos ou medos, livre da superstição, da traição e das outras maldições, sem qualquer outro vício da mesma natureza. Saiam como eram quando entraram!”
16. Um homem capturou a mensagem da sabedoria se ele puder morrer despreocupado como era ao nascer, mas a realidade é que estamos todos tremulantes na aproximação do temido final. Nossa coragem nos falha, nossas bochechas empalidecem, nossas lágrimas caem, embora sejam inúteis. Mas o que é mais vil do que se angustiar no próprio limiar da paz eterna?
17. A razão, entretanto, é que somos despojados de todos os nossos bens, abandonamos a carga de nossa vida e estamos em perigo, pois nenhuma parte da mesma foi acondicionada no porão, tudo foi lançado ao mar e se afastou. Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem viver nobremente, enquanto é impossível a qualquer homem viver por muito tempo.
Sêneca escreve esta carta durante um período de turbulência política e social em Roma, provavelmente refletindo sobre as suas próprias experiências e observações sobre os perigos da vida pública. A carta é estruturada em torno de conselhos práticos sobre como evitar os males que ameaçam a paz e segurança pessoal. É a primeira carta na qual Sêneca explicitamente coloca orientação política em seus ensinamentos e diz a Lucílio que muitas vezes devemos considerar um governante tirano da mesma forma que uma tempestade: um capitão prudente desvia seu curso e não tenta mudar aquilo que sabe ser muito mais forte.
O estoicismo, em oposição ao epicurismo, defende participação na política e sociedade civil. Nesta carta Sêneca alerta para os limites de tal estratégia usando o exemplo de Catão que durante a guerra civil do fim da república combateu tanto Júlio Cesar como Pompeu.
A Carta 14 é uma rica fonte de conselhos sobre como viver de acordo com a virtude em tempos turbulentos. Sêneca não apenas discorre sobre a teoria estoica, mas oferece orientações práticas para viver uma vida que evite as armadilhas da ambição, do medo e da violência, promovendo uma filosofia de vida que valoriza a tranquilidade interior e a moderação.
Esta carta serve tanto como um guia para a conduta pessoal quanto como um reflexo sobre as complexidades da participação política e social, temas que continuam relevantes para o debate filosófico contemporâneo sobre ética e política.
Sêneca termina com um alerta sobre os riscos da busca por riquezas: “Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.” (XIV, §17)
1. Confesso que todos temos um afeto inato por nosso corpo, admito que somos responsáveis por sua proteção, por cuidar bem dele. Eu não defendo que o corpo não deva ser saciado em tudo, mas mantenho que não devemos ser escravos dele. Será escravo de muitos aquele que faz de seu corpo seu mestre, que teme demasiadamente por ele, que julga tudo de acordo com o corpo.
2. Devemos nos conduzir não como se devêssemos viver para o corpo, mas como se não pudéssemos viver sem ele. Nosso grande amor por ele nos deixa inquietos de medo, nos sobrecarrega de cuidados e nos expõe a ofensas. A virtude é considerada inferior pelo homem que considera seu corpo muito importante. Devemos cuidar do corpo com o maior cuidado, mas também devemos estar preparados para quando a razão, o amor-próprio e o dever exigirem o sacrifício, entregá-lo às chamas.
3. Contudo, na medida do possível, evitemos tanto os desconfortos como os perigos e retiremo-nos a um terreno seguro, pensando continuamente em como repelir todos os objetos do medo. Se não me engano, há três classes principais: temos medo da carestia, tememos a doença e tememos os problemas que resultam da violência dos mais fortes.
4. E de tudo isso, o que mais nos assusta é o pavor que paira sobre nós da violência de nosso vizinho, pois é acompanhada por grande clamor e tumulto. Mas os males naturais que eu mencionei, carestia e doença, nos furtam silenciosamente sem terror aos olhos ou aos ouvidos. O outro tipo de mal vem, por assim dizer, sob a forma de grande desfile militar. Em torno dele há um séquito de espadas, fogo, correntes e uma multidão de animais para ser solta sobre as entranhas evisceradas dos homens.
5. Imagine-se submetido à prisão, à cruz, à tortura, aos ganchos,57 à forca e à empalação. Pense nos membros humanos rasgados por cavalos movidos em direções opostas, da camisa terrivelmente besuntada com materiais inflamáveis, e de todos os outros aparelhos inventados pela crueldade, além daqueles que eu mencionei! Não é de admirar, então, se nosso maior terror é de tal sorte, porque ele vem em muitas formas e sua parafernália é aterrorizante. Pois, assim como o torturador conquista mais por conta da quantidade de instrumentos que exibe – de fato, o espetáculo vence aqueles que teriam pacientemente resistido ao sofrimento – similarmente, de todos os agentes que coagem e dominam nossas mentes, os mais eficazes são aqueles ostensivos. Esses outros problemas não são, evidentemente, menos graves. Quero dizer fome, sede, úlceras do estômago e febre engolem nossas entranhas. Eles são, no entanto, secretos, eles não vociferam e se anunciam, mas os outros, com formidáveis vestimentas de guerra, prevalecem em virtude de sua ostentação e aparelhagem.
6. Vamos, portanto, cuidar para que nos abstenhamos de ofender. Às vezes é o povo que devemos temer; às vezes um grupo de oligarcas influentes no Senado, se o método de governar o Estado é tal que a maior parte do negócio é feita por esse grupo; e às vezes indivíduos equipados com poder pelo povo e contra o povo. É oneroso manter a amizade de todas essas pessoas, basta não fazer deles inimigos. Assim o sábio nunca provocará a ira daqueles que estão no poder, mais que isso, o sábio vai mesmo mudar seu curso, exatamente como iria desviar-se de uma tempestade se estivesse conduzindo um navio.
7. Quando você viajou para a Sicília, você precisou atravessar o estreito. Seu capitão foi imprudente e desdenhou o violento vento sul – vento que encrespa o mar siciliano e cria correntes poderosas – ou ele procurou a costa à esquerda? A praia pedregosa, de onde Caríbdis58 agita os mares em confusão. Seu capitão mais cuidadoso, entretanto, questiona aqueles que conhecem a localidade quanto às marés e ao significado das nuvens. Ele mantém seu curso longe daquela região notória por suas águas agitadas. Nosso sábio faz o mesmo, foge de um homem forte que pode ser nocivo a ele, fazendo questão de não parecer evitá-lo, porque uma parte importante de sua segurança reside em não buscar segurança abertamente; porque aquilo que se evita, se condena.
8. Portanto, devemos olhar ao redor e verificar como podemos nos proteger da multidão. E antes de tudo, não devemos ter ânsias como as dela, pois a rivalidade resulta em conflitos. Novamente, não possuamos nada que possa ser arrebatado de nós para o grande lucro de um inimigo conspirador. Permita que haja o menor espólio possível na sua pessoa. Ninguém se propõe a derramar o sangue de seus semelhantes por causa do sangue em si, ou de qualquer maneira, apenas muito poucos. Mais assassinos especulam sobre seus lucros do que em dar vazão ao próprio ódio. Se você está de mãos vazias, o salteador da estrada passa por você. Mesmo ao longo de uma estrada infestada, os pobres podem viajar em paz.
9. Em seguida, devemos seguir o velho ditado e evitar três coisas com especial cuidado: ódio, ciúme e desdém. E só a sabedoria pode mostrar-lhe como isso pode ser feito. É difícil seguir o meio termo, devemos ser cuidadosos para não deixar que o medo do ciúme nos leve a tornarnos desdenhosos, para que, quando escolhemos não menosprezar os outros, não deixemos que eles pensem que podem nos menosprezar. O poder de inspirar medo tem levado muitos homens a terem medo. Afastemo-nos de todas as maneiras, pois é tão nocivo ser desprezado quanto ser admirado.
10. Você deve, portanto, refugiar-se na filosofia. Essa busca, não só aos olhos dos homens bons, mas também aos olhos dos que são mesmo moderadamente maus, é uma espécie de emblema protetor. Pois o discurso no tribunal, ou qualquer outra busca por atenção popular, traz inimigos para um homem, mas a filosofia é pacífica e foca-se em seu próprio negócio. Os homens não podem desprezá-la, ela é honrada por cada profissão, até mesmo a mais vil entre elas. O mal nunca pode crescer tão forte e a nobreza de caráter nunca pode ser tão conspirada, que o nome da filosofia deixe de ser digno e sagrado. Filosofia em si, no entanto, deve ser praticada com calma e moderação.
11. “Muito bem, então,” você responde, “você considera a filosofia de Marco Catão como moderada?” A voz de Catão se esforçou para reprimir uma guerra civil. Catão segurou as espadas de chefes de clãs enlouquecidos. Quando alguns pereceram, vítimas de Pompeu e outros de César, Catão desafiou as duas facções ao mesmo tempo!
12. Não obstante, alguém pode muito bem questionar se, naqueles dias, um sábio deveria ter tomado alguma parte nos assuntos públicos e perguntado: “O que você quer dizer, Marco Catão? Não é agora uma questão de liberdade, há muito tempo a liberdade foi desmoronada e arruinada. A questão é se César ou Pompeu controlam o Estado. Por que, Catão, você deve tomar partido nessa disputa? Não é assunto seu, um tirano está sendo escolhido. O melhor pode vencer, mas o vencedor será condenado a ser o pior homem.” Refiro-me ao papel final de Catão. Mas mesmo nos anos anteriores o homem sábio não foi autorizado a intervir em tal pilhagem do Estado pois o que poderia fazer Catão senão erguer a voz e pronunciar palavras em vão? Em certa ocasião ele foi levado pelas mãos pela multidão, foi cuspido e forçosamente removido do foro e assinalado para o exílio, em outra, foi levado direto do senado para a prisão.
13. Contudo, consideraremos mais tarde59 se o sábio deve dar atenção à política, entretanto, peço-lhe que considere aqueles estoicos que, afastados da vida pública, se retiraram para a privacidade com o propósito de melhorar a existência dos homens e elaborar leis para a raça humana sem incorrer no descontentamento daqueles que estão no poder. O homem sábio não perturbará os costumes do povo, nem atrairá a atenção da população por quaisquer modos de vida novos.
14. “O que, então? Pode alguém que seguir este plano estar sempre seguro?” Não posso garantir-lhe isto mais do que posso garantir uma boa saúde no caso de um homem que observe a moderação embora, de fato, boa saúde resulte de tal moderação. Às vezes um navio afunda no porto, mas o que você acha que acontece em mar aberto? E quão mais cercado de perigo estaria um homem, que mesmo em seu retiro não está seguro, se ele estiver ocupado trabalhando em muitas coisas! As pessoas inocentes às vezes perecem, quem negaria isso? Mas os culpados perecem com mais frequência. A habilidade de um soldado não é julgada se ele recebe o golpe de morte através de sua armadura.
15. E, finalmente, o homem sábio considera a razão de todas as suas ações, mas não os resultados. O começo está em nosso próprio poder, a Fortuna decide o assunto, mas eu não permito que ela passe sentença sobre mim mesmo. Você pode dizer: “Mas ela pode infligir uma medida de sofrimento e de problemas.” Um bandido de estrada pode matar-me; condenar-me, isso jamais!
16. Agora você estende sua mão para o presente diário. Áureo, de fato, será o presente com o qual eu o agraciarei; e, na medida em que mencionamos o ouro, deixe-me dizer-lhe como o seu uso e gozo pode trazer-lhe maior prazer. “Aquele que menos precisa de riquezas, desfruta mais das riquezas”. “Nome do autor, por favor!”, você diz. Agora, para mostrar o quão generoso eu sou, é minha intenção elogiar os ditos de outras escolas. A frase pertence a Epicuro, ou Metrodoro, ou alguém daquela escola de pensamento particular.60
17. Mas que diferença faz quem disse as palavras? Elas foram proferidas ao mundo. Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade. Ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seus registros de juros, em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um guarda-livros.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
57 Os ganchos referidos eram usados para arrastar corpos de condenados até junto das “gemoniae scalae”, isto é, “ escadas dos gemidos”, de onde eram lançados ao rio Tibre.
58Caríbdis (em grego: Χάρυβδις), na mitologia grega, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon.
Na 12ª carta Sêneca explora a velhice não apenas como um estágio da vida, mas como uma fase repleta de ensinamentos e prazeres próprios. A carta reflete a autopercepção de Sêneca sobre sua própria velhice, utilizando exemplos cotidianos para ilustrar a passagem do tempo.
Ele começa recordando uma visita recente a uma de suas casas de campo, durante as quais ele reclamou a um de seus funcionários que estava gastando muito dinheiro na manutenção. Mas seu zelador protestou que a casa estava envelhecendo, e os reparos eram, portanto, totalmente justificados. Então Seneca escreve: “E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando? “(XII, §1)
Qual deve ser a atitude da pessoa sábia em relação à velhice? Sêneca coloca muito vividamente a Lucílio:
“Vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: ‘Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado’E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Quando um homem diz: ‘Eu tenho vivido!’, toda manhã que acorda, recebe um bônus.“(XII.9)
Como ele frequentemente faz nas cartas, Sêneca termina com um “presente”, uma citação significativa de outro autor, que neste caso é: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.“ (XII, §10), outra referência ao suicídio a ser escolhido sob certas circunstâncias.
O ditado acima é de ninguém menos que Epicuro, o principal rival da escola estóica. Sêneca, então, imagina Lucílio protestando: “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. (XII, §11)
Mais uma vez, uma bela frase e um exemplo de verdadeira sabedoria: não importa de onde a verdade venha, uma vez descoberta, é nossa propriedade coletiva.
1. Para onde quer que eu me vire, vejo evidências de meus avançados anos. Visitei recentemente a minha casa de campo e reclamei do dinheiro gasto na manutenção do prédio. Meu caseiro sustentou que as falhas não eram devidas a seu próprio descuido. Ele estava fazendo todo o possível, mas a casa era velha. E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando?
2. Eu estava com raiva e usei a primeira oportunidade de exalar meu mal humor na presença do caseiro. “Está claro!” Exclamei eu, “que esses plátanos estão negligenciados, não têm folhas, seus ramos são tão retorcidos e enrugados, os caules estão ásperos e desalinhados! Isso não aconteceria se alguém afofasse a terra sob seus pés e os regasse.” O caseiro jurou por meu gênio protetor46 que “ele estava fazendo todo o possível e nunca relaxou seus esforços, mas aquelas árvores eram velhas”. Só entre nós, eu havia plantado essas árvores, eu as tinha visto em sua primeira florada.
3. Então, virei-me para a porta e perguntei: “Quem é aquele quebrantado?Vocês fizeram bem em coloca-lo na entrada, porque ele já está de saída,47 onde você o pegou?” Mas o escravo disse: “Você não me reconhece, senhor? Sou Felício, você costumava me trazer pequenas imagens,48 meu pai era o Filósito, o zelador, e eu sou seu escravo querido”. “O homem está louco”, comentei. “Meu escravo predileto tornou-se um menininho de novo? Mas é bem possível, seus dentes estão caindo.”49
4.Estou obrigado a admitir que minha velhice se tornou aparente. Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheia de prazer se alguém sabe como usá-la. As frutas são mais bem-vindas quando quase passadas. A juventude é mais encantadora em seu fim, o último drinque deleita o ébrio: é o copo que o sacia e dá o toque final em sua embriaguez.
5. Cada prazer reserva para o fim as maiores delícias que contém. A vida é mais deliciosa quando está em declive mas ainda não atingiu o fim abrupto. E eu mesmo acredito que o período que se encontra, por assim dizer, à beira do telhado, possui prazeres próprios. Ou então, o próprio fato de não desejarmos prazeres, toma o lugar dos próprios prazeres. Como é reconfortante ter cansado o apetite e ter acabado com ele!
6. “Mas,” você diz, “é um incômodo estar olhando a morte no rosto!” A Morte, no entanto, deve ser olhada no rosto por jovens e velhos. Nós não somos convocados de acordo com nossa classificação alfabética na lista do censor.50 Além disso, ninguém é tão velho que seria impróprio para ele esperar mais um outro dia de existência. E um dia, lembre-se, é uma etapa na jornada da vida. Nosso escopo de vida é dividido em partes, consiste em grandes círculos que encerram menores. Um círculo abraça e limita o resto, atinge desde o nascimento até o último dia da existência. O próximo círculo limita o período de nossa juventude. O terceiro limita toda a infância em sua circunferência. Outra vez, há, em uma classe em si, o ano. Contém dentro de si todas as divisões de tempo pela adição da qual obtemos o total da vida. O mês é limitado por um anel mais estreito. O menor círculo de todos é o dia, mas mesmo um dia tem seu começo e seu término, seu nascer e seu pôr-do-sol.
7. Por isso Heráclito,51 cujo estilo obscuro lhe deu seu sobrenome, observou: “Um dia é igual a todos os dias”. Diferentes pessoas têm interpretado o ditado de maneiras diferentes. Alguns afirmam que os dias são iguais em número de horas, e isso é verdade pois se por “dia” queremos dizer vinte e quatro horas de tempo, todos os dias devem ser iguais, na medida em que a noite adquire o que o dia perde. Mas outros sustentam que um dia é igual a todos os dias por meio da semelhança, porque o espaço de tempo mais longo não possui nenhum elemento que não possa ser encontrado em um único dia, a saber, a luz e a escuridão, e até a eternidade faz esses revezamentos mais numerosos, não diferentes quando é mais curto e diferente novamente quando é mais longo…52
8. Portanto, todos os dias deveriam ser regulados como se fechassem a série, como se estivessem completando nossa existência. Pacúvio,53 que por muito tempo ocupava a Síria, costumava realizar um ritual de sepultamento em sua própria honra, com vinho e banquetes fúnebres, e depois ser levado da sala de jantar para seu sarcófago, enquanto os eunucos aplaudiam e cantavam em grego: “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida!”
9. Assim Pacúvio vinha enterrando-se todos os dias. Vamos, no entanto, fazer por um bom motivo o que ele costumava fazer por um motivo vil, vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer:
Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado.54
E se os deuses se agradam em acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Esse homem é o mais feliz e está seguro em sua própria posse de si mesmo, pois pode esperar o amanhã sem receio. Quando um homem diz: “Eu tenho vivido!”, toda manhã ao acordar, recebe um bônus.
10. Mas agora eu devo concluir a minha carta. “O quê?”, você diz, “virá a mim sem qualquer contribuição?” Não tenha medo, trago algo e, melhor, mais do que algo, muito. Pois o que há de mais nobre do que o seguinte provérbio de que eu faço desta carta portadora: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.”55 Claro que não. Em todos os lados encontram-se muitos caminhos curtos e simples para a liberdade e agradeçamos aos deuses que nenhum homem possa ser mantido na vida. Podemos desprezar os próprios constrangimentos que nos prendem.
11. “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?”Qualquer verdade, eu sustento, é minha propriedade. E continuarei a amontoar citações de Epicuro sobre você, para que todas as pessoas que juram pelas palavras de outrem e que valorizam o orador e não o que é dito, compreendam que as melhores ideias são domínio público.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
46 Na religião pagã romana, o gênio (genius) era uma das divindades domésticas individualmente associada a cada homem. Cada um possuía o seu genius (e a mulher seu juno). Especialmente venerado era o genius do chefe de família.
47Uma alusão irônica ao funeral romano; os pés do cadáver apontando para a porta.
48Pequenas figuras, geralmente de terracota, eram frequentemente dadas às crianças como presente durante o festival da Saturnalia. Neste festival, era costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, entre senhores e escravos. Nessa ocasião os escravos gozavam de uma grande liberdade em relação aos seus senhores. Ver Horácio, Sátiras, livro II, 7.
49O antigo escravo se assemelha a uma criança na medida em que está perdendo os dentes (mas pela segunda vez).
51Heráclito de Éfeso (ca 535 a.C. – 475 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o “Pai da dialética”. Recebeu a alcunha de “O Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, “Sobre a Natureza”, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.
53 A Síria era legalmente governada por Élio Lâmia, nomeado por Tibério, que, impedido de sair de Roma, administrava a província por intermédio do seu legado Pacúvio. Ver Tácito, Anais.
A sétima carta de Sêneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.
Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:
“Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!‘ (VII, §4-5)”
Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria.“(VII, §6)”
1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado, alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.
2. Ligar-se à multidão é prejudicial. Não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar algum espetáculo, pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.
3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão, mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva.1 Eles estão expostos a golpes em todos os pontos e ninguém nunca desfere golpes em vão.
4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos, ao meio-dia, os jogam aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia para o intervalo.
5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo. Mas e você? Que crime você cometeu, pobre colega, que mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco de gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você2 não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender por si a ser cruel.
6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão: é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles. Tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultivemos nossas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.
7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância: o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta? Você deve imitar ou abominar o mundo.
8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau, simplesmente porque eles são muitos, nem deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo pois os homens aprendem enquanto ensinam.
9. O vão orgulho em divulgar suas habilidades não deve induzi-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adequasse a tal multidão; mas como ela é, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitem sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços. Foi por si mesmo que você aprendeu.
10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com você três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito3 diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão e uma multidão apenas tanto como um homem.”
11. O seguinte também foi nobremente falado por ele ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor. Eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.”4
12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens o louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro, seus autênticos bens são internos.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
Notas:
1 Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados eram frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceriam por toda a parte do dia.
2 A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.
3Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. – 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C. Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.
Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.
Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia: “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.
(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)
1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.
2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.
3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.
4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.
5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.
6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.
7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.
8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?
9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.
10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5]“Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza”.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.
11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.
[3]Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.
[4]Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.
Hoje, contrariando os ensinamentos de Sêneca, tive a oportunidade de assistir a uma luta de gladiadores nas ruínas de um anfiteatro romano em Carnuntum (60Km de Viena).
Vale a pena ler a a Carta 7, Sobre multidões, de Sêneca, que é toda baseada nos espetáculos das arenas.
O evento começou com uma cerimônia religiosa em latim (e alemão ) depois houve várias lutas simuladas.
Sêneca cita frequentemente as lutas de gladiadores. Sempre criticando o espetáculo, as vezes tirando lições dos condenados.
A Carta 93: Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento, termina, como de costume, com uma analogia fantástica, desta vez usando os gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:
12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário* do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
* Espoliário na Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.
Na carta 102 são abordados dos assuntos, primeiro uma indagação de Lucílio sobre se boa reputação após a morte é considera um bem para os estoicos. Sêneca responde essa questão, mas logo em seguida passa para aquilo que realmente queria falar: sobre a imortalidade de alma, ou se a vida continua após a morte do corpo.
Sêneca então mostra a visão cosmopolita do estoicismo e faz analogia de nossa vida terrena como sendo semelhante a vida de um feto no útero, ou seja, apenas uma preparação para a etapa seguinte:
“A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento.” (CII, §21)
“Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. “ (CII, §23)
A carta é excelente em sua totalidade e merece leitura atenta. Ao final, Sêneca concede também aos ateus, dizendo que mesmo quem assim pensa pode continuar a ser útil depois de morto pois somos “ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.” (CII, §30).
1. Assim como um homem é importuno quando desperta um sonhador de seus sonhos agradáveis – pois ele está arruinando um prazer que pode ser irreal, mas, no entanto, tem a aparência da realidade – da mesma maneira sua carta me causou ruptura. Pois me trouxe de volta abruptamente, absorvido que estava em uma meditação agradável e pronto para prosseguir se tivesse sido permitido.
2. Estava prazerosamente investigando a imortalidade da alma ou melhor, pelos deuses, acreditando nessa doutrina! Pois eu estava dando crédito às opiniões dos grandes autores, que não só aprovam, mas prometem essa condição agradável. Eu estava me entregando a uma esperança tão nobre, pois eu já estava cansado de mim, começando a desprezar os fragmentos da minha existência aniquilada e sentindo que estava destinado a passar para a infinidade do tempo e na herança da eternidade, quando de repente fui despertado pelo recebimento de sua carta e perdi meu lindo sonho. Mas, assim que eu puder me liberar de você, eu vou tentar rememorar minha linha de pensamento e salvá-la.
3. Havia uma observação, no início da sua carta, de que eu não havia explicado todo o problema ao tentar provar uma das crenças da nossa escola, que a reputação adquirida após a morte é um bem, pois não resolvi o problema com o qual geralmente somos confrontados: “nenhum bem resulta de soluções de continuidade, mas a reputação é constituída por uma solução de continuidade.”
4. O que você está perguntando, meu querido Lucílio, pertence a outro tópico do mesmo assunto e foi por isso que adiei os argumentos, não só sobre esse tópico, mas também em outros tópicos que também abordaram o mesmo fundamento. Pois, como você sabe, certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. Consequentemente, lidei com a parte essencial do assunto que tem a ver com a conduta moral[1] – ou seja, se é tolo e inútil se preocupar com o que está além do nosso último dia, ou se nossos bens morrem com a gente e não resta mais nada daquele homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa que nós não perceberemos quando ela suceder, é possível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela possa valer.
5. Todas essas coisas têm uma visão moral as conduzindo e, portanto, foram inseridas sob o tópico apropriado. Mas as observações dos dialéticos em oposição a essa ideia tiveram que ser peneiradas e portanto, foram deixadas de lado. Agora que você exige uma resposta para todas elas, eu examinarei todas as suas afirmações em bloco e depois as refutarei individualmente.
6. A menos que eu faça uma observação preliminar, será impossível entender minhas refutações. E qual é essa observação preliminar? Simplesmente isto: existem certos corpos contínuos, como um homem; existem certos corpos compostos, como navios, casas e tudo o que é o resultado da união de partes separadas em uma soma total. Existem certos outros constituídos por coisas distintas, cada membro permanecendo separado – como um exército, uma população ou um senado – pois as pessoas que constituem tais corpos estão unidas em virtude de lei ou função, mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Bem, quais outras observações preliminares ainda desejo fazer?
7. Simplesmente isso: acreditamos que nada é bom, se for composto de coisas distintas. Pois um único bem deve ser enquadrado e controlado por uma única alma e a qualidade essencial de cada bem individual deve ser única. Isso poderia ser provado quando você desejar, entretanto, mesmo assim, teve que ser posto de lado, porque nossas próprias armas estão sendo usadas contra nós.
8. Os adversários falam assim: “Você diz que nenhum bem pode ser composto de coisas que são distintas? No entanto, essa reputação da qual você fala, é simplesmente a opinião favorável dos homens de bem. Assim como a reputação não consiste em observações de uma pessoa e como uma má reputação não consiste na desaprovação de uma pessoa, tal renome não significa que apenas agradamos a uma pessoa boa. Para se constituir em renome, é necessário o acordo de muitos homens dignos e louváveis. Isso resulta da decisão de um número – em outras palavras, de pessoas que são distintas. Portanto, a reputação não é um bem.”
9. A segunda objeção diz, novamente: “a reputação é o louvor dado a um homem bom por homens de bem. Louvor significa fala: agora a fala é um enunciado com um significado particular e uma expressão, mesmo dos lábios dos homens de bem, não é um bem em si. Pois qualquer ato de um bom homem não é necessariamente bom, ele grita seus aplausos e silva sua desaprovação, mas não se chama o grito ou a vaia de bens, mesmo que sua conduta possa ser admirada e louvada – não mais do que alguém poderia aplaudir um espirro ou uma tosse. Portanto, a reputação não é um bem.”
10. “Finalmente, diga-nos se o bem pertence àquele que louva ou a quem é louvado: se você diz que o bem pertence a quem é louvado, você estaria em um caminho tolo como se dissesse que é minha a boa saúde do meu vizinho. Mas louvar homens dignos é uma ação honrosa; assim, o bem é exclusivamente do homem que faz o louvor, do homem que realiza a ação, e não de nós, que estamos sendo louvados. E, no entanto, essa é a questão em discussão, que você quer provar.”
11. Devo agora responder apressadamente às distintas objeções. A primeira pergunta ainda é, se qualquer coisa boa pode consistir em coisas de distintas – e há votos emitidos nos dois lados. Mais uma vez, a reputação precisa de muitos votos? A reputação pode ser satisfeita com a decisão de um único homem de bem: é um bom homem que decide que somos homens de bem.
12. Então a réplica é: “O quê! Você definiu a reputação como a estima de um indivíduo e a má reputação como a conversa fiada rancorosa de um único homem? Glória, também, levamos a ser mais generalizada, pois exige o acordo de muitos homens.” Mas a posição dos muitos é diferente daquela de um. E por que? Porque se o bom homem pensa bem de mim, isso equivale praticamente a ser bem pensado por todos os homens bons; pois todos vão pensar o mesmo, se eles me conhecerem. O seu julgamento é semelhante e idêntico. O efeito da verdade é igual. Eles não podem discordar, o que significa que eles necessariamente manteriam a mesma visão, não podendo manter juízos diferentes.
13. “A opinião de um homem”, você diz, “não é suficiente para criar glória ou renome”. No primeiro caso, um julgamento é uma ponderação universal porque todos, se lhes fosse pedido, teriam uma única opinião; no outro caso, no entanto, homens de caráter diferente dão juízos divergentes. Você encontrará emoções desconcertantes – tudo duvidoso, inconstante, não confiável. E você pode supor que todos os homens são capazes de manter uma opinião? Até mesmo um indivíduo não mantém uma única opinião. Com o bom homem é a verdade que causa a crença e a verdade tem apenas uma função e uma semelhança; enquanto na segunda classe de que falei, as ideias com as quais eles concordam são infundadas. Além disso, aqueles que são falsos nunca são firmes: são irregulares e discordantes.
14. “Mas o louvor”, diz o objetor, “não é senão um enunciado e um enunciado não é um bem”. Quando eles dizem que o renome é o louvor concedido ao bem pelo bem, o que eles referem não é um enunciado, mas um julgamento. Pois um bom homem pode permanecer em silêncio; mas se ele decide que uma certa pessoa é digna de louvor, essa pessoa é objeto de louvor.
15. Além disso, o louvor é uma coisa, e discurso laudatório é outra. O último exige um enunciado também. Portanto, ninguém fala de “um louvor fúnebre”, mas diz “discurso laudatório” – pois sua função depende da fala. E quando dizemos que um homem é digno de louvor, asseguramos haver bondade nele, não em palavras, mas em julgamento. Portanto, a boa opinião, mesmo de alguém que em silêncio sente aprovação interior de um homem bom, é louvor.
16. Mais uma vez, como eu disse, o louvor é uma questão de alma e não de discurso; pois a fala traz o louvor que a mente concebeu e publica-o à atenção dos muitos. Pois julgar um homem digno de louvor, é louvá-lo. E quando nosso trágico poeta nos canta que é maravilhoso “ser louvado por um herói muito louvado”, ele quer dizer, “por alguém digno de louvor”. Mais uma vez, quando um bardo igualmente venerável diz: “Louvor dá vida às artes”, ele não significa dar louvor, pois isso prejudica as artes. Nada tem corrompido oratória e todos os outros estudos que dependem de ouvir tanto quanto a aprovação popular.
17. A reputação exige necessariamente palavras, mas a glória pode se contentar com os julgamentos dos homens e é suficiente sem a palavra falada. É satisfeita não só em aprovação silenciosa, mas mesmo diante de protestos abertos. Existe, na minha opinião, essa diferença entre a reputação e glória – a última depende dos julgamentos dos muitos; mas a reputação, dos julgamentos de homens de bem.
18. A réplica vem: “Mas de quem é o bem deste renome, esse louvor prestado a um homem bom por homens bons? É de quem é louvado por alguém ou de quem louva?” Dos dois, eu digo. É meu próprio bem, porque sou louvado, porque naturalmente nasço para amar todos os homens e me alegro por ter feito boas ações e me felicito por eu ter encontrado homens que expressam suas ideias de minhas virtudes com gratidão; que eles sejam gratos, é um bem para muitos, mas também é um bem para mim. Pois o meu espírito está assim ordenado, que posso considerar o bem dos outros homens como meus – em qualquer caso, aqueles de cujo bem eu sou a causa.
19. Este bem é também o bem daqueles que fazem o louvor, pois é aplicado por meio da virtude. E todo ato de virtude é um bem. Meus amigos não poderiam ter encontrado essa bênção se eu não tivesse sido um homem de estampa correta. É, portanto, uma boa pertença a ambos os lados – o que é louvado quando se merece – tão verdadeiramente quanto uma boa decisão é o bem daquele que toma a decisão e também daquele a favor de quem a decisão foi tomada. Você duvida de que a justiça seja uma benção para o seu possuidor, bem como para o homem a quem o louvor devido foi pago? Louvar o merecedor é a justiça, portanto, o bem pertence a ambos os lados.
20. Esta será uma resposta suficiente para esses comerciantes em sutilezas. Mas não deve ser nosso propósito discutir as coisas com inteligência e arrastar a filosofia de sua majestade a jogos de palavras tão insignificantes. Quão melhor é seguir a estrada aberta e direta, ao invés de planejar uma rota tortuosa que você deve retraçar com problemas infinitos! Pois tal argumentação nada mais é do que o esporte de homens que habilmente fazem malabarismos uns com os outros.
21. Diga-me quão de acordo com a natureza é permitir que a mente atinja o universo ilimitado! A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento, toda a cúpula arredondada dentro da qual a terra e o mar, dentro do qual o ar que separa o humano do divino também os une e onde todas as estrelas tomam turno em sentinela.
22. Mais uma vez, a alma não suportará uma extensão estreita da existência. “Todas as eras”, diz a alma, “são minhas, nenhuma época está fechada para grandes mentes, todo o tempo está aberto para o progresso do pensamento. Quando chegar o dia de separar o celestial de sua mistura terrena, eu vou deixar o corpo aqui onde eu o encontrei e, por minha própria vontade, me entregarei aos deuses. Agora não estou separada deles, mas sou simplesmente detida em uma prisão lenta e terrena.”
23. Estes atrasos da existência mortal são um prelúdio para a vida mais longa e melhor. Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. Um começo diferente, uma condição diferente, nos aguarda.
24. Ainda não podemos, exceto em intervalos raros, suportar a luz do céu, portanto, olhe para a frente sem temer a hora marcada, a última hora do corpo, mas não da alma. Examine tudo o que reside em você, como se fosse bagagem em um quarto de hotel: você deve viajar. A natureza deixa-lhe tão desnudo na partida quanto como na entrada.
25. Você não pode levar mais do que trouxe, além disso, você deve descartar a maior parte do que você trouxe com você para a vida: você será despojado da própria pele que o cobre, que foi sua última proteção, você será despojado da carne e perderá o sangue que circulou pelo seu corpo, você será despojado de ossos e nervos, a armação dessas partes fracas e transitórias.
26. Aquele dia que você teme como sendo o fim de todas as coisas, é o nascimento de sua eternidade. Por que postergar? Deixe de lado seu fardo, como se você não tivesse deixado previamente o corpo que era o seu esconderijo! Você se agarra ao seu fardo, você luta. No seu nascimento também foi necessário um grande esforço na parte da sua mãe para libertá-lo. Você chora e lamenta e, no entanto, esse mesmo choro aconteceu no nascimento também. Mas naquela ocasião podia ser desculpado – pois você veio ao mundo inteiramente ignorante e inexperiente. Quando você deixou a proteção calorosa e cuidadosa do útero de sua mãe, um ar mais livre passou em seu rosto, então você estremeceu com o toque de uma mão áspera e olhou com surpresa para objetos desconhecidos, ainda frágil e ignorante de todas as coisas.
27. Mas agora não é novidade ser separado daquilo que você já fez parte. Deixe seus membros já inúteis com resignação e dispense esse corpo em que você morou por tanto tempo. Será despedaçado, enterrado fora da vista e decomposto. Por que se abater? Isto é o que normalmente acontece: quando nascemos, as secundinas[2] sempre perecem. Por que amar uma coisa como se fosse sua própria posse? Era apenas a sua cobertura. Chegará o dia que irá rompê-la e ir para longe da companhia do ventre desagradável e fétido.
28. Afaste-se disso o máximo que puder e afaste-se do prazer, exceto daqueles que podem estar ligados a coisas essenciais e importantes. Afaste-se disso mesmo agora e reflita sobre algo mais nobre e mais elevado. Algum dia os segredos da natureza serão revelados a você, a névoa será removida de seus olhos e a luz brilhante fluirá em você de todos os lados. Imagine-se o quão grande é o brilho quando todas as estrelas misturam seus brilhos, nenhuma sombra perturbará o céu limpo. Toda a extensão do céu brilhará uniformemente, pois o dia e a noite são trocados apenas na atmosfera mais baixa. Então você vai dizer que você viveu na escuridão, depois de ter visto, em seu estado perfeito, a luz perfeita – aquela luz que agora você vê sombriamente com visão constrangida até o último grau. E, no entanto, tão distante quanto esteja, você já olha para ela com admiração, o que você acha que será a luz celestial quando você a vir em seu próprio âmbito?
29. Esses pensamentos não permitem que nada mesquinho se estabeleça na alma, nada vil, nada cruel. Eles sustentam que os deuses são testemunhas de tudo. Eles nos ordenam encontrar a aprovação dos deuses, nos preparar para nos juntarmos a eles em algum momento futuro e planejar a imortalidade. Aquele que apreendeu essa ideia não retrocede frente a nenhum exército atacante, não é aterrorizado pela trombeta e nem é intimidado por nenhuma ameaça.
30. Um homem que aguarda com expectativa pela morte, não sente medo. Mesmo aquele também, que acredita que a alma permanece somente enquanto for agrilhoada ao corpo, que se dispersa imediatamente após o perecimento,[3] mesmo quem assim pensa e age, pode continuar a ser útil depois de morto. Pois embora seja tirado da visão dos homens, ainda assim
a grande virtude do herói, a grande nobreza dasua raça continua a viver no nosso espírito.
Multa viri virtus animo multusque recursatGentis honos.[4]
Considere o quanto somos ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] NT: Nenhuma das cartas conservadas é dedicada à discussão deste problema.
[2] NT: Secundinas: placenta, cordão umbilical e membranas, normalmente expulsos do útero após o parto.
Na carta 101 Sêneca fala sobre a tolice de adiar o estudo da filosofia, isto é, aprender como viver uma boa vida, e focar em negócios, com a esperança de, no futuro, estar “bem provido” para uma vida de estudos. Sêneca diz que nunca sabemos o dia de nossa morte, logo, devemos estar todos os dias preparados:
“No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.” (CI, 7)
Sêneca, um dos homens mais ricos de seu tempo, faz uma observação muito correta e interessante para quem deseja enriquecer: diz que existem dois bons caminhos para a riqueza material: saber como ganhar dinheiro ou conservá-lo, “pois qualquer um desses dois pode fazer um homem rico.”
Na carta Sêneca defende que não devemos nos apegar a viva a qualquer custo. Ele dá o exemplo de Caio Mecenas, que preferia consumir-se por dor, morrer membro por membro, ao invés de expirar de uma vez por todas. Termina a carta com uma poderosa frase:
“O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo.” (CI, 15)
1. Todos os dias e todas as horas revelam-nos o que somos, e nos lembram com uma nova evidência de que nos esquecemos das nossas fraquezas e fragilidades; então, enquanto planejamos a eternidade, eles nos obrigam a olhar a morte sobre nossos ombros. Você me pergunta o que significa esse preâmbulo? Refere-se a Cornélio Sinésio, um equestre romano distinguido e capaz, quem você conheceu. De origem humilde, ele atingiu a grande sucesso, e o resto do caminho já se mostrava fácil diante dele. Pois é mais fácil crescer em dignidade social do que começar a ascensão.
2. E a riqueza é muito lento para chegar onde há pobreza; até que possa se fugir dela, vai hesitante, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca mais para. Sinésio já estava ao lado da riqueza, ajudado nessa direção por dois ativos muito poderosos: saber como ganhar dinheiro e como conservá-lo também, pois qualquer um desses dons poderia ter feito dele um homem rico.
3. Aqui estava uma pessoa que vivia muito simplesmente, cuidadoso com a saúde e riqueza. Ele, como de costume, me visitou no início da manhã e então passou o dia inteiro, até o anoitecer, à beira do leito de um amigo que estava seriamente e irremediavelmente doente. Depois de um jantar confortável, de repente ele foi apanhado por um agudo ataque de angina e, com a respiração firmemente bloqueada por sua garganta inchada, mal viveu até o amanhecer. Então, dentro de poucas horas depois de cumprir todos os deveres de um homem sadio e saudável, ele caiu morto!
4. Aquele que estava aventurando investimentos por terra e mar, que também entrara na vida pública e não deixara nenhum tipo de negócio sem ser testado, durante a própria realização do sucesso financeiro e durante a própria investida dos bens pecuniários aos seus cofres, foi arrebatado deste mundo!
Enxerte agora as suas peras, Meliboeus, e pode suas videiras em ordem!
Insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine vites.[1]
Mas quão tolo é delimitar e fazer planos para um longa vida, quando nem sequer é proprietário do dia seguinte! Que loucura é traçar esperanças de grande alcance! Dizer: “Vou comprar e construir, emprestar a juros e receber dinheiro, ganhar títulos de honra e, então, velho e cheio de anos, vou me entregar a uma vida privada para estudos estando bem provido.”
5. Acredite em mim quando digo que tudo é duvidoso, mesmo para aqueles que são prósperos. Ninguém tem o direito de desenhar para si mesmo seu futuro. Aquilo que nós seguramos desliza através de nossas mãos e a sorte nos corta exatamente na hora que estamos com estoque cheio. O tempo escoa por lei racional, mas na escuridão para nós; e o que significa para mim saber que o curso da natureza é certo, quando o meu é incerto?
6. Planejamos viagens distantes e adiamos o retorno depois de percorrer costas estrangeiras, planejamos o serviço militar e as recompensas lentas de campanhas difíceis, buscamos poder e as promoções de um cargo a outro e, ao mesmo tempo, a morte está ao nosso lado. Mas como nunca pensamos nisso, a não ser que afete ao nosso próximo, os casos de morte nos pressionam dia a dia, para permanecer em nossas mentes apenas enquanto despertam nossa surpresa.
7. No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.
8. A maior falha na vida é que está sempre imperfeita, a se completar, e que uma certa parte dela é adiada. Aquele que diariamente coloca os toques finais de sua vida nunca está com falta de tempo. E, no entanto, a partir desse desejo surge o medo e a ânsia de um futuro que destrói a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver, nossas almas perturbadas são colocadas em um estado de medo inexplicável.
9. Como, então, devemos evitar essa vacilação? Há apenas um jeito, como não há nenhuma previsão em nossa vida, se for fechada em si mesmo. Pois só está preocupado com o futuro aquele a quem o presente não é satisfatório. Mas quando eu pago à minha alma o devido, quando uma mente equilibrada sabe que um dia não difere da eternidade, seja qual for o dia ou o problema que o futuro possa trazer. Nesse caso a alma se destaca em alturas elevadas e ri sinceramente para si mesmo quando pensa na sucessão interminável dos tempos. Pois quais distúrbios podem resultar da mudança e da instabilidade da Fortuna, se se nós estivermos firmes perante a instabilidade?
10. Portanto, meu querido Lucílio, comece imediatamente a viver e conte cada dia separado como uma vida separada. Aquele que assim se preparou, aquele cuja vida cotidiana tenha sido um todo arredondado, está tranquilo em sua mente; mas aqueles que vivem só pela esperança descobrem que o futuro imediato desliza sempre de suas mãos e que a ganância toma seu lugar, e o medo da morte, uma maldição que traz maldição sobre todo o resto. Daí veio aquela oração mais degradada, na qual Mecenas não se recusa a sofrer fraqueza, deformidade e, como clímax, até mesmo a dor da crucificação apenas para que prolongasse o sopro da vida em meio a esses sofrimentos:[2]
11. Faça-me fraco na mão, fraco com pé mancando,Imponha uma corcunda inchada, afrouxe meus dentes instáveis;Enquanto exista vida, estou bem; mantenha-me indoMesmo que eu, á dura cruz fique empalado
Debilem facito manu, debilem pede coxo,Tuber adstrue gibberum, lubricos quate dentes ;Vita dum superest, benest; hanc mihi, vel acutaSi sedeam cruce, sustine.
12. Lá está ele, orando por aquilo que, se tivesse sucedido a ele, seria a coisa mais lamentável do mundo! E buscando um adiamento do sofrimento, como se estivesse pedindo por vida! Deveria considerá-lo mais desprezível se desejasse viver até o momento da crucificação: “Não!”, Ele chora, “você pode enfraquecer meu corpo somente se deixar o sopro de vida na minha carcaça maltratada e ineficaz! Mutile-me se quiser, mas permita-me, disforme e deformado como eu estou, apenas um pouco mais de tempo no mundo! Você pode me pregar e colocar meu lugar na cruz lancinante!” Vale a pena aturar a própria ferida, e manter-se empalado sobre um pelourinho, que só pode adiar algo que é o bálsamo dos problemas, o fim da punição? Vale a pena tudo isso apenas para possuir o sopro de vida que finalmente deverá ser entregue?
13. O que você pediria para Mecenas, a não ser a indulgência dos deuses? O que ele quer dizer com versos tão efeminados e indecentes? O que ele quer dizer ao contemporizar com tal medo? O que ele quer dizer com mendigar vil à vida? Ele nunca ouviu Virgílio ler as palavras:
Ele pede o clímax do sofrimento e – o que é ainda mais difícil de suportar – prolongamento e extensão do sofrimento. E o que ele ganha desse modo? Simplesmente o benefício de uma existência mais longa. Mas que tipo de vida é uma morte vagarosa?
14. Pode ser encontrado quem prefira consumir-se por dor, morrer membro por membro ou deixar a vida esvair gota por gota, ao invés de expirar de uma vez por todas? Pode alguém ser encontrado disposto a ser preso à árvore amaldiçoada,[4] há muito doente, já deformado, inchado com tumores no peito e nos ombros e respirando a vida em meio a uma agonia prolongada? Eu acho que teria muitas desculpas para morrer mesmo antes de montar a cruz! Negue, agora, se puder, que a natureza é muito generosa ao tornar a morte inevitável.
15. Muitos homens estão preparados para entrar em pechinchas ainda mais vergonhosas: trair amigos para viver mais ou voluntariamente aviltar seus filhos e, assim, aproveitar a luz do dia que é testemunha de todos os seus pecados. Devemos nos livrar desse desejo de vida e aprender que não faz diferença quando o seu sofrimento vem, porque em algum momento você é obrigado a sofrer. O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo. Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Trecho de Éclogas de Virgílio (também chamadas de Bucólicas).
[2] Horácio, seu amigo íntimo, escreveu “para animar o Macenas desanimado”; e Plínio menciona suas febres e sua insônia “perpetua febris … Eidem triennio supremo nullo horae momento contigit somnus”.