Esquerda, Direita e Escolhas – Eleição 2022

Ter uma visão política de esquerda ou direita são formas diferentes de buscar soluções dos problemas sociais.

O Estoico não se identifica em nada com a esquerda, acreditando que apesar de prometer muito entrega pouco, ainda mais quando suas teses são aplicadas em países corruptos. Exemplos não faltam na sofrida América Latina.

Dito isso, é importante debater as diferenças, assim crescemos e evoluímos e possibilita-se chegar a um ponto médio satisfatório.

Contudo, votar ou defender Lula não é esquerda ou direita. É simplesmente imoral. Defender Ladrão condenado em 3 instâncias que em 14 anos à frente do governo instituiu verdadeiro projeto de poder baseado em corrupção é falta de caráter.

Existem outros candidatos de esquerda.

Finalizo com uma citação de Sêneca, nos trazendo à realidade, que no fundo, tudo isso pouco importa:

“…os partidos são convocados e os candidatos estão fazendo oferendas em seus templos favoritos – alguns deles prometendo brindes em dinheiro e outros fazendo negócios por meio de um agente, ou desgastando as mãos com os beijos desses a quem eles recusarão o mínimo toque depois de serem eleitos, você não acha agradável, eu digo, ficar em paz e olhar para esta feira de vaidades sem comprar ou vender?
4. Quão grande alegria se sente quem olha sem preocupação, não apenas para a eleição de um pretor ou de um cônsul, mas para essa grande luta em que alguns procuram honras efêmeras e outros o poder permanente.”


(Sêneca , Carta CXVIII. Sobre a Futilidade da busca de Cargos, 3-4 )

Pensamento 93: Mente sã num corpo são

O estoicismo é uma filosofia integral, e como no ditado de Juvenal, “Mens sana in corpore sano“, sustenta que estar fisicamente bem preparado e saber se defender é uma característica do sábio.

Sócrates, o grande modelo de sábio dos estoicos, foi um soldado. Cleantes de Assos, o segundo escolarca da escola estoica de Atenas, foi um boxeador profissional. Marco Aurélio liderou legiões romanas em guerras contras os germânicos.



Livros citados:



* Parece que esta frase da imagem está mal atribuída, sendo de um general inglês do século XIX ao invés de Tucídides.

Resenha: A Arte da Prudência, por Baltasar Gracián

Baltasar Gracián, um erudito jesuíta espanhol, apresenta em “A Arte da Prudência” 300 ensinamentos para colocarmos em prática em nosso dia a dia. São estratégias de para se ter sucesso e atingir a felicidade em um mundo hostil. Mostrando as hipocrisias das relações humanas, os conselhos de Gracián envolvem temas como, amizade, trabalho, relacionamentos e conquistas, além de evidenciar sua visão espiritual e religiosa sobre o mundo. 

Na Espanha, nada supera o estoicismo de Baltasar Gracián, cheio de sagacidade, ironia e moral. O autor cita várias vezes Sêneca e também Marco Aurélio. Alguns exemplos:

É tolo aquele que aos quarenta anos de idade clama por saúde a Hipócrates, mais ainda aquele que clama por cordura a Sêneca.” § 36

Tema a si mesmo, e não precisará mais de Sêneca como preceptor imaginário.” §50

Caiu em desrespeito a ciência da filosofia. Sêneca introduziu-a em Roma e por algum tempo ela empolgou os nobres. Mas agora é considerada inútil e impertinente.” §100

Subimos a escada da vida, e os degraus – os dias – desaparecem um após o outro, no momento em que movemos nossos pés. Não há como descer, nada a fazer a não ser ir adiante.

Poderia escrever mais, contudo o prefácio de Jean Tosetto, que abre o texto, diz tudo:


Conselhos de gente como a gente

Por Jean Tosetto[1]

De tempos em tempos os executivos de grandes empresas elegem um novo livro de cabeceira, resgatando algum clássico do passado. Citar bestsellers atuais pode ser arriscado, pois antes de se tornarem referências duradouras, podem ficar ultrapassados ou cair numa espécie de folclore de segunda linha. Entretanto, jamais pegará mal citar um filósofo antigo, não é mesmo? Assim, políticos, esportistas e investidores replicam essas dicas quentes de leitura.

Deste modo, dizem que o ex-presidente norte-americano Bill Clinton relê “Meditações”, do imperador Marco Aurélio, todos os anos. O badalado especulador Nassim Nicholas Taleb citou Sêneca em seus escritos e pronto: muita gente começou a ler as cartas do estoico que fora questor em Roma. Porém, quem ocupa o Olimpo das recomendações literárias para pessoas que desejam vencer na carreira são o chinês Sun Tzu, autor de “A Arte da Guerra”, e o florentino Nicolau Maquiavel, que escreveu “O Príncipe”.

Maquiavel ficou tão famoso que sua obra-prima é mais conhecida pelo seu próprio sobrenome do que pelo título formal. Involuntariamente, ele conseguiu a façanha de cunhar um adjetivo. Se um dia alguém te chamar de maquiavélico, cuidado: isso não é exatamente um elogio. Um sujeito maquiavélico pode se passar por alguém astuto, capaz de elaborar um plano bem detalhado que prevê reações para eventuais revezes, mas para a maioria das pessoas, o maquiavélico é alguém sem princípios éticos, que ignora os preceitos morais.

Esse é um dos problemas de alguém que lê “O Príncipe” de Maquiavel: desconfiar que não podemos agir feito damas ou cavalheiros, pois damas e cavalheiros são pessoas previsíveis – e ser previsível na política (ou no ambiente de trabalho) não seria o caminho indicado para se dar bem no longo prazo, de acordo com o escritor. O outro problema é que você tem que se imaginar no lugar de um regente nacional quando está lendo este legado renascentista, incluindo a edição comentada por Napoleão Bonaparte.

Algo semelhante acontece com “A Arte da Guerra”. Sun Tzu não escreveu o tratado militar para os civis, mas para os generais. Cabe ao leitor se colocar no lugar de um chefe de tropas para extrair as lições práticas para o seu cotidiano – uma tarefa que fica mais difícil para quem está começando a trabalhar no chão de uma fábrica ou fazendo estágio num escritório. Você vira a última página e pensa consigo mesmo:

“Então eu preciso ser uma pessoa inescrupulosa para subir na vida?”

Queria encaixar um palavrão na frase anterior, aquele que ofende o elemento e sua progenitora, mas seria uma indelicadeza com o prefácio de “A Arte da Prudência”, de Baltasar Gracián, afinal de contas, ele foi padre e professor, mais do que um militar vitorioso.

Gracián compreendia como poucos os diversos níveis hierárquicos das organizações, dado que além de integrar um exército que venceu batalhas na Guerra da Catalunha, em meados do século XVII, ele pertenceu à Companhia de Jesus. Ou seja, ele foi um subalterno que galgou passos até ganhar a alcunha de “O Pai da Vitória”. No meio do caminho aprendeu a lidar com superiores, colegas no mesmo patamar e pessoas sob suas ordens.

Quando Gracián reuniu trezentos aforismos para publicar em forma de livro, ele sabia que a maioria absoluta dos leitores jamais seriam generais ou chefes de estado, muito menos papas ou cardeais. Esse talvez seja o aspecto mais reconfortante de sua obra. Ao ler a “A Arte da Prudência” ficamos com a impressão de que podemos ser vencedores, mesmo sem alcançar o ápice da carreira que imaginamos. Ápice que o autor também não alcançou, mas isso não impediu que seu nome ficasse marcado na História.

Também é agradável ficar com a sensação de que não precisamos ser como uma máquina fria e sem coração (mas que sabe dissimular) para ter sucesso em nosso ambiente de trabalho. Porém, isso não quer dizer que podemos ser ingênuos e desarmados. Não precisar ser como as raposas não significa que devemos agir feito cordeiros.

Embora tenha sido um teólogo exemplar, Gracián não leva sua coleção de conselhos para o lado místico ou religioso. Ao contrário, ele se baseia na lógica e na observação do que estava ao seu redor para tecer máximas de teor prático e realista, repletas de conceitos racionais de retórica refinada, que levaram os críticos a classificar o filósofo neo-estoico como membro do Conceptismo, corrente literária do estilo barroco que tinha no poeta Francisco Gómez de Quevedo seu maior expoente.

Assim, Gracián se distancia de Sun Tzu e Maquiavel, para se aproximar de Sêneca e Marco Aurélio na estante de livros que sobrevivem à cabeceira da cama daqueles que apreciam uma leitura edificante e prazerosa.

Disponível na Amazon, Apple, Google e Kobo.



[1] Jean Tosetto (1976) é arquiteto e urbanista graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, São Paulo. Tem escritório próprio desde 1999. O autor e editor de livros é adepto do Value Investing e colabora com a Suno Research desde janeiro de 2017, onde já escreveu livros de sucesso em parcerias com Tiago Reis, Professor Baroni e Felipe Tadewald. Publicou sua primeira obra, “MP Lafer: a recriação de um ícone”, em 2012, de forma independente.

Princípio: Conceito de Paixão para os estoicos

Para os estoicos paixão é entendida como sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; entre esses sentimentos, a ira, por exemplo.

Ou seja, o termo “paixão”, ao contrário do uso contemporâneo, é sempre negativo, é um vício, não virtude.

Marco Aurélio usa o termo inúmeras vezes em suas meditações, como em:

a mente livre de paixões é uma cidadela[1] [fortaleza], pois o ser humano não tem nada mais seguro para o qual possa se refugiar e para o qual o futuro seja inexpugnável. Aquele, pois, que não viu isso é um homem ignorante; mas aquele que o viu e não rumou a esse refúgio é um infeliz.” (VIII,48)

Pois no mesmo grau em que a mente de um homem está mais próxima da liberdade de toda a paixão, no mesmo grau também está mais próxima da força: e como o sentido da dor é uma característica da fraqueza, assim é também a raiva.“( XI, 18)

Sêneca também condena a paixão em seus textos:

A estupidez[2] é vil, abjeta, má, servil e exposta a muitas das paixões mais cruéis. Essas paixões, que são severas capatazes, às vezes governam em turnos e às vezes juntas, porém podem ser banidas de você pela sabedoria, que é a única liberdade real. Há apenas um caminho que leva para lá e é um caminho reto: você não se extraviará. Prossiga com passo firme e se você tiver todas as coisas sob seu controle, coloque-se sob o controle da razão, se a razão se tornar sua governante, você se tornará governador de muitos. ” (XXXVII, 4)


Livros citados:


Notas:

[1] Essa passagem deu título ao excelente livro de Pierre Hadot “La citadelle intérieure. Introduction aux Pensées de Marc Aurèle”

[2] Na linguagem do estoicismo, a estupidez, “stultitia”, é a antítese da “sapientia”, sabedoria. Lembre que por ‘estupidez’ não deve entender-se meramente a ausência de conhecimentos, mas antes o estado de quem vive à margem dos princípios morais estabelecidos pela filosofia.


Audiolivro: O Manual de Epicteto

O Manual de Epicteto, também conhecido por Encheirídion, é um curto guia com conselhos éticos estoicos compilado por Flávio Arriano, aluno de Epicteto. Encheirídion — termo grego que significa “punhal” ou livro portátil, manual — consiste em um conjunto de aforismos que o filósofo deve ter sempre à mão, para ajudá-lo a enfrentar e vencer as dificuldades da vida: para lembra-lo, conforme ensinava Epicteto, que não devemos considerar como nossas aquelas coisas que não estão sob o nosso controle — os acontecimentos que não dependem de nós, os reveses da sorte e a opinião alheia  pois assim nos tornaríamos escravos delas, mas devemos, sim, concentrar nossos esforços naquilo que está sob o nosso controle.

O Manual de Epicteto foi traduzido diretamente do grego pelo doutor Aldo Dinucci, professor do departamento de filosofia antiga da universidade federal de Sergipe e pesquisador honorário da Universidade de Kent no Reino Unido.

Nesta série iremos compartilhar a cada poucos dias um capitulo do manual.
Audiolivro disponível na Tocalivros e Ubook. Em breve também no Googleplay e Applestore

I.

Das coisas, algumas estão sob nosso controle, outras não. Estão sob nosso controle o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa– em suma: o quanto for ação nossa. Mas não estão sob nosso controle o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: o quanto não for ação nossa. As coisas que estão sob nosso controle são por natureza livres, desimpedidas, desobstruídas. As que não estão sob nosso controle são fracas, escravas, obstruídas, de outros. Lembra, então, que, se pensares livres as coisas que são por natureza escravas, e tuas as que são de outro, tu te farás obstáculo, chorarás, te inquietarás, censurarás tanto os Deuses quanto os homens. Mas se pensares teu unicamente o que é teu, e o que é de outro, como o é, de outro, ninguém jamais te forçará, ninguém te impedirá, não censurarás ninguém, não acusarás ninguém, nem, uma vez que seja, agirás constrangido, não terás inimigos, ninguém te causará dano, pois não sofrerás nada prejudicial. Então, almejando coisas tão importantes, lembra que é preciso não te empenhares de modo comedido, mas abandonar completamente algumas coisas e, por hora, deixar outras para depois. Porém, se queres tanto as coisas importantes quanto comandar e enriquecer, talvez não obterás nenhuma destas coisas, porque almejas também as importantes, e não atingirás de modo algum aquelas coisas em razão das quais unicamente resultam a liberdade e a felicidade. Então, pratica dizer prontamente a toda impressão em estado bruto que “És impressão e de modo algum és o que se apresenta”. Em seguida, examina-a e julga-a por essas regras que possuis, em primeiro lugar e principalmente se está ou não sob nosso controle. E, caso esteja entre as que não estão sob nosso controle, tem à mão que “Nada és em relação a mim”.

Livro impresso:

Pensamento 90: Sêneca, “A Verdade Nunca Morre”

Com o desfecho do julgamento, Johnny Depp divulgou uma carta, que para minha surpresa termina com uma citação de Sêneca, em latim:

“Veritas nunquam perit” ou “A Verdade Nunca Morre“, tirada da peça As Troianas.

Apesar dele não ser nenhum estoico, abusando de álcool e drogas, a carta de Depp tem conteúdo bastante de estoico, onde o ator explica sua motivação para expor sua vida pessoal em busca da verdade:
“Desde o início, o objetivo de apresentar este processo era revelar a verdade, independentemente do resultado” (“From the very beginning, the goal of bringing this case was to reveal the truth, regardless of the outcome.”)

Gladiadores em Carnuntum

Hoje, contrariando os ensinamentos de Sêneca, tive a oportunidade de assistir a uma luta de gladiadores nas ruínas de um anfiteatro romano em Carnuntum (60Km de Viena).

Vale a pena ler a a Carta 7, Sobre multidões, de Sêneca, que é toda baseada nos espetáculos das arenas.

O evento começou com uma cerimônia religiosa em latim (e alemão ) depois houve várias lutas simuladas.

Familia Gladiatoria Carnuntina
Gladiadores aguardando sua vez de lutar
Luta encenada
Lictores com suas Fasces.

Sêneca cita frequentemente as lutas de gladiadores. Sempre criticando o espetáculo, as vezes tirando lições dos condenados.

A Carta 93: Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento, termina, como de costume, com uma analogia fantástica, desta vez usando os gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:

12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário* do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

* Espoliário na Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.

Eis nossa Luta: Enlouquecer ou não.

Mais um excelente artigo de Aldo Dinucci, falando da industria cultural e como garimpar joias culturais na imensidão de banalidades da internet. Critica também o modismo do estoicismo como autoajuda voltado ao sucesso pessoal.

Para se tornar produto vendável e caber na diminuta caixinha de papelão do mercado, foi preciso amputar boa parte de sua proposta filosófica original. Pior: deixou de ser uma filosofia, lançou-se no lixo sua lógica, sua metafísica, sua crítica aos costumes, seu pensamento político, e foi reduzido a um prontuário de prescrições para indivíduos vitimados pela falta de perspectivas da atualidade, para os quais já se produz a literatura de autoajuda em geral. 

Se não é possível mudar o mundo em larga escala, é sempre possível mudar o mundo no nosso entorno imediato e em nossa cabeça. 

Artigo publicado originalmente VIVA VOX ESTOICISMO em 04 de maio de 2022.


Eu, os Estoicos e a Indústria Cultural

Por Aldo Dinucci

Tive o privilégio de viver parte de minha infância e de minha adolescência em Petrópolis, entre os anos 70 e 80. Na época, era uma cidade ainda pacata, mas com tradição cultural. Havia vários sebos pela Rua do Imperador, nos quais excelentes bibliotecas de falecidos intelectuais petropolitanos podiam ser compradas a retalho. Graças a esse fato, tive acesso à grandes obra da literatura ocidental e brasileira: boas edições de obras de Homero, Virgílio, Dante, Kaváfis, Gide, Exupéry, Graciliano, Mário de Andrade, Vinicius, Jung, Platão, Lucrécio, entre outros, podiam ser compradas por uns trocados. Tive acesso assim à boa literatura, evidentemente fundamental para a minha formação. A atmosfera bucólica da cidade, o clima ameno, o casario antigo e suas montanhas repletas de florestas da Mata Atlântica de Altitude colaboraram para que eu pudesse ler e absorver essas obras.

Não havia internet, mas, pelo rádio, podíamos ouvir uma programação musical de qualidade. Havia, por exemplo, a JB FM, que transmitia músicas clássicas pela noite, em uma programação que enviavam pelo correio em um folheto aos que o requisitassem por carta. Havia também a Rádio Mec, que apresentava sempre o melhor da MPB. Por esses meios, conheci Rachmaninoff, Prokofiev, Jobim, Vinicius (de novo!), Dick Farney, Chopin, Debussy, Cartola, entre tantos outros, responsáveis por constituir, nota por nota, diversos platôs de minha alma.

Os estoicos, na Antiguidade, viviam imersos culturalmente no que havia de melhor em sua época: conheciam profundamente os poetas trágicos, sabiam de cor miríades de versos de Homero e Virgílio, além, é claro, de todo o tesouro cultural filosófico da Antiguidade. Eram intelectuais, incluindo polímatas, como Possidônio; lógicos, como Crisipo, Carnéades e Antípatro; astrônomos, como Gêmino de Rodes e Cleomedes; intelectuais multifacetados, como Sêneca. 

Naqueles tempos, como em todos os tempos, havia uma cultura popular. Entre os ingredientes nada apetecíveis da cultura popular romana, estavam os jogos de gladiadores, que envolviam, como bem se sabe, grande carnificina, e eram assistidos por multidões ensandecidas. Assim, não é de estranhar que filósofos como Sêneca e Marco Aurélio repudiassem essas manifestações culturais.

Os estoicos partem da tese socrática segundo a qual a humanidade é fundamentalmente insana, porque mergulhada na ignorância. A filosofia estoica, nesse sentido, consiste em reeducar o indivíduo para que ele possa se livrar dessa herança má do senso comum, o qual está sempre repleto de equívocos sobre o que é o humano e qual é sua relação com o Cosmos. Então, não é de surpreender que os estoicos fossem críticos ferrenhos dos costumes, não tentando corrigi-los diretamente, pois isso era algo que viam como ao mesmo tempo impossível e imoral, já que eles mesmos não se viam como detentores da verdade capazes de reeducar a humanidade, transmitindo suas reflexões somente àqueles que iam às escolas de filosofia em busca de esclarecimento. Epicteto resume, em um fragmento, a missão da filosofia estoica: 

Eis nossa Luta: Enlouquecer ou não. 

Passemos, agora, à nossa época. Podemos dizer que hoje temos o predomínio da indústria cultural [1], que tem, como critério principal, além da ideologia que tentam nos impingir, o lucro. Some-se a isso que, no Brasil, atravessamos um verdadeiro processo de invasão cultural norte-americana, via internet, tv, literatura etc desde os anos 80 [2]. Isso poderia até ser bom em alguma medida se não fosse acompanhado pela destruição de nossa cultura nacional e se o que eles nos enviam fosse cultura de qualidade. Mas, claro, não é. São filmes, música e literatura sem qualquer senso estético ou autenticidade. E sequer podemos criticar essas subculturas abertamente, pois logo somos tachados de elitistas.

Coloquei em itálico no parágrafo anterior o termo critério: de fato, já se sabe que não temos mais critérios estéticos nos dias de hoje, e como poderíamos tê-los se o critério passou a ser precipuamente o lucro? Assim, vivemos o predomínio absoluto, nas artes e na mídia, do que vende mais. Isso atinge todas as áreas da cultura: música, literatura, cinema, religião e… agora também filosofia. 

Como é sabido, a religião se tornou também um produto da indústria cultural, sobretudo através da teologia da prosperidade [3], que está de pleno acordo com o capitalismo e o consumismo atuais, o que explica seu grande sucesso de vendas.

Lamentavelmente, o estoicismo também virou um produto a mais da indústria cultural, vendido como panaceia contra os sofrimentos impostos pelo capitalismo tardio, enfatizando a resiliência e a luta contra o sofrimento. Para se tornar produto vendável e caber na diminuta caixinha de papelão do mercado, foi preciso amputar boa parte de sua proposta filosófica original. Pior: deixou de ser uma filosofia, lançou-se no lixo sua lógica, sua metafísica, sua crítica aos costumes, seu pensamento político, e foi reduzido a um prontuário de prescrições para indivíduos vitimados pela falta de perspectivas da atualidade, para os quais já se produz a literatura de autoajuda em geral. 

Não é preciso dizer que esse tal estoicismo, produto da cultura industrial, está em completa contradição com o estoicismo originário, que se constituía como escola filosófica, investigando em detalhe todas as partes da filosofia e criando laços de amizade e amor fraternal entre seus membros.

Finalmente chego ao ponto que almejei ao começar a escrever este texto. O que fazer diante desse cenário? Ou melhor, como um estoico antigo agiria diante de uma situação como a que vivemos? Primeiro, como observei em texto anterior, um estoico antigo não tentaria mudar o mundo sozinho, pois nem se vê com tal estatura moral, nem vê isso como possível. Segundo, creio eu, buscaria selecionar cultura de qualidade para si, como de fato o faziam. Aceitar que esta seja a situação do mundo não implica que aceitemos esta situação para nós mesmos. Se não é possível mudar o mundo em larga escala, é sempre possível mudar o mundo no nosso entorno imediato e em nossa cabeça. 

Assim, se a indústria cultural se me é imposta pela TV, desligo a TV. Se o jornal passa a ser suspeitoso quanto a me empurrar ideologia barata, evito lê-lo. Se a TV a cabo passa a me bombardear com filmes comerciais ruins, cancelo minha inscrição. Entrementes, me volto para os textos e para as culturas autênticas que formaram nossa civilização, como as dos gregos, dos romanos, dos orientais, dos africanos. Esses objetos culturais autênticos ainda existem e se escondem (ou antes foram abandonados) nas bibliotecas e nos museus, reais ou virtuais. Portanto, se não há mais critério de qualidade no mundo em que vivo senão aquele que a cultura industrial quer me impor, crio eu mesmo meus critérios e deixo o que a indústria cultural produz a quem interessar possa.

Efetivamente, não mudarei o mundo em larga escala com ações assim, e não o pretendo. Mas farei aquilo que os estoicos antigos almejavam: buscarei minha felicidade através de critérios escolhidos por mim mesmo, selecionando as coisas externas (que incluem livros, músicas, lugares, viagens, pessoas) de acordo com meus próprios critérios e gostos. Tenho praticado isso e isso tem me trazido grande alegria e felicidade. Afinal, a indústria cultural, apesar de poderosa financeiramente e espalhafatosa, entra em minha casa pelas estreitas portas das telas de TV, de computador e de celular. E posso fechar essas portas com apenas um dedo      

P.S. Este texto é resultado de conversas minhas com Marcos Vinícios Pereira de Almeida, mestrando em filosofia pela UFG, a quem agradeço pelas conversas inspiradoras.


[1] Que se pode definir como “ramo de negócios… que se apropriou dos meios tecnológicos surgidos na virada do século XIX para o XX com objetivos não apenas de lucrar com a produção e a venda de mercadorias culturais, mas também de direcionar… o comportamento das massas…” (Rodrigo Duarte, Indústria cultural e meios de comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 28-9). 

[2] Quanto a isso, ver Júlia Falivene Alves, A invasão cultural norte-americana. São Paulo: Moderna, 2004.   

[3] “Teologia da prosperidade (também conhecida como Evangelho da prosperidade) é uma doutrina religiosa cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel. Baseada em interpretações não-tradicionais da Bíblia, geralmente com ênfase no Livro de Malaquias, a doutrina interpreta a Bíblia como um contrato entre Deus e os humanos; se os humanos tiverem fé em Deus, Ele irá cumprir suas promessas de segurança e prosperidade. Reconhecer tais promessas como verdadeiras é percebido como um ato de fé, o que Deus irá honrar.” (Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_prosperidade)