Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Na carta 5 Sêneca explica o significado do lema estoico  “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado:

…Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.” (Carta 5, §7-8)

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

V. Sobre a virtude do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar, eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, a não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre suas vestes ou seu estilo geral de vida.

2. Devem ser evitados trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo. E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.

3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova de uma vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário, caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.

4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o senso comum, a humanidade, o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza”,1 mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, tomar comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.

5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado razoavelmente sem grande dispêndio. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio que eu sanciono. Nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral, todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.

6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e eles todos?” Sim, distinção muito grande. Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.

7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato2 que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes estão, contudo, realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

8. Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.

9. Animais evitam os perigos que veem e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça, pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a previsão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Lema da escola estoica.

2 NT: Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes. Não se conhecem outros detalhes da sua vida, mas era um filósofo eminente entre os estoicos deste período. Era um escritor prolífico, ainda que não tenha chegado nenhum escrito até aos nossos dias. Diógenes Laércio menciona seis tratados de sua autoria.

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.

Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia:  “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


IV. Sobre os terrores da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.

2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.

3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.

4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.

5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.

6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.

7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.

8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?

9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.

10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5] Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.

11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1]  A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.

[2] Nome de Calígula.

[3] Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.

[4] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[5] O Jardim de Epicuro.

[6] Ver Epicuro, Cartas e Princípios. A mesma citação é repetida na carta 27, neste volume, e também na carta 119. Ver Cartas de um Estoico, Volume III.

Carta 3: Sobre a verdadeira e falsa amizade

Sobre a amizade real.

Seneca adverte Lucílio contra fazer um homem em um amigo antes de conhecer o caráter deste homem. Contudo, uma vez que alguém se tornou um amigo, devemos confiar e compartilhar as ansiedades deste. (Veja também a carta 9 sobre as amizades do homem sábio.)

Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos e se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda, a mais segura.” (Carta II, §5)

(imagem: A Ceia em Emaús  por Caravaggio)

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Carta 1: Sobre aproveitar o tempo

Na primeira carta Sêneca fala o que considera o mais importante, aproveitar bem nosso tempo.  Faz um alerta para não deixarmos tudo para o fim da vida, quanto “é demasiado tarde para gastarmos quando chegarmos à raspa do tacho. Daquilo que permanece no fundo, a quantidade é pouca e a qualidade é vil.

(Imagem: La persistencia de la memoria por  Salvador Dalí)


Carta 1: Sobre aproveitar o tempo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Continue a agir assim, meu querido Lucílio: liberte-se por conta própria; poupe e aproveite seu tempo, que até recentemente tem sido retirado a força de você ou furtado ou simplesmente escapado de suas mãos. Faça-se acreditar na verdade de minhas palavras: que certos momentos são arrancados de nós, que alguns são removidos suavemente e que outros fogem além de nosso alcance. O tipo mais desgraçado de perda, no entanto, é aquele devido ao descuido. Ademais, se você prestar atenção ao problema, você verá que a maior parte de nossa vida passa enquanto estamos fazendo coisas desagradáveis, uma boa parte enquanto não estamos fazendo nada e tudo isso enquanto estamos fazendo o que não deveríamos fazer.

2. Qual homem você pode me mostrar que coloca algum valor em seu tempo, que dá o devido valor a cada dia, que entende que está morrendo diariamente? Pois estamos equivocados quando pensamos que a morte é coisa do futuro; a maior parte da morte já passou. Quaisquer anos atrás de nós já estão nas mãos da morte. Portanto, Lucílio, faça como você me escreve que você está fazendo: mantenha cada hora ao seu alcance. Agarre a tarefa de hoje e você não precisará depender tanto do amanhã. Enquanto estamos postergando, a vida corre.

3. Nada, Lucílio, é nosso, exceto o tempo. A natureza nos deu o privilégio desta única coisa, tão fugaz e escorregadia que qualquer um pode esbulhar tal posse. Que tolos esses mortais são! Eles permitem que as coisas mais baratas e inúteis, que podem ser facilmente substituídas, sejam contabilizadas depois de terem sido adquiridas; mas nunca se consideram em dívida quando recebem parte dessa preciosa mercadoria, o tempo! E, no entanto, o tempo é o único empréstimo que nem o mais agradecido destinatário pode pagar.

4. Você pode desejar saber como eu, que prego a você, estou praticando. Confesso francamente: meu saldo em conta corrente é como o esperado de alguém generoso mas cuidadoso. Não posso vangloriar-me de não desperdiçar nada, mas pelo menos posso lhe dizer o que estou desperdiçando, a causa e a maneira de desperdício; posso lhe dar as razões pelas quais sou um homem pobre. Minha situação, no entanto, é a mesma de muitos que são reduzidos à miséria sem culpa própria: todos os perdoam, mas ninguém vem em seu socorro.

5. Qual é o estado das coisas, então? É isto: eu não considero um homem como pobre, se o pouco que lhe resta o é suficiente. Contudo, aconselho-o a preservar o que é realmente seu; e nunca é cedo demais para começar. Pois, como acreditavam os nossos antepassados, é demasiado tarde para gastarmos quando chegarmos à raspa do tacho. Daquilo que permanece no fundo, a quantidade é pouca e a qualidade é vil.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Estoicismo: o bom, o mau e o indiferente. Artigo de Orlando Tambosi

Texto muito bom, indicado por um leitor da página.

https://otambosi.blogspot.com/2024/10/estoicismo-o-bom-o-mau-e-o-indiferente.html

Segue tradução livre:


Estoicismo: o bom, o ruim e o indiferente.

Hoje, milhões de pessoas se declaram estoicas: esportistas, políticos e empresários… Dependendo de como é apresentado, o estoicismo pode parecer uma filosofia sábia e sensata ou cruel e resignada. Daniel Tubau via Ethic:

Conta-se que, em certa ocasião, o escravo Epicteto pediu ao seu professor Musonius Rufus que intercedesse junto ao seu senhor para que parasse de maltratá-lo. Musonius respondeu com uma pergunta: “O que é isso? Musonius respondeu com uma pergunta: “Devo perguntar a ele se posso obter o mesmo de você? Pois é inútil esperar de outro o que se tem para si mesmo”. Epicteto, que sempre se referia a seu professor como “querido Rufus”, lembrou-se dessa lição como um passo decisivo em seu caminho para a indiferença, para o controle das emoções e das paixões. Se seu senhor o maltratava não dependia do próprio Epicteto, mas se ele era indiferente ao maltrato, dependia dele.

Para muitos, essa história é um exemplo magnífico do poder do estoicismo. Para outros, a anedota mostra os problemas do estoicismo dogmático levado ao extremo. É difícil não pensar que Musonius Rufus, que, em vez de ajudar a aliviar a dor física de seu aluno, foi descompromissado, comportou-se de forma tão cruel quanto o mestre de Epicteto. Um estoico responderá que não entendemos sua filosofia e que conceitos como “crueldade” ou “dor física” são apenas emoções, e que aqueles que se preocupam apenas com o que é seu não estão sujeitos a esses altos e baixos emocionais.

Hoje, milhões de pessoas se declaram estoicas: esportistas, políticos e empresários como Jack Dorsey, fundador do Twitter, ou Elon Musk, atual dono da rede social, além de celebridades como Arnold Schwarzenegger ou Angelina Jolie… Todos eles encontram no estoicismo do escravo Epicteto, do imperador Marco Aurélio ou de Sêneca a resposta para suas perguntas mais inquietantes: como devemos viver, como devemos lidar com a frustração e a dor, como devemos nos relacionar com os outros?

Não é fácil descobrir as razões da popularidade do estoicismo, que surgiu repentinamente, depois de décadas descansando nos bastidores da história. […]

Uma das razões foi, sem dúvida, a crise de 2008 e a sensação de incerteza que começou a tomar conta de milhões de pessoas em todo o mundo. Isso levou à multiplicação de livros de autoajuda e à busca de formas individuais de salvação, já que a confiança nas instituições foi perdida. A inquietação aumentou com a pandemia, que se abateu sobre a humanidade como um castigo incompreensível. É uma situação que pode ser comparada à do Império Romano na época de Sêneca e Epicteto, e até mesmo durante o governo do estoico Marco Aurélio, que, apesar de ser o último dos “bons imperadores”, viveu em uma sociedade desiludida, onde floresceram religiões e filosofias que ofereciam não apenas sabedoria, mas também, e acima de tudo, salvação.

Sejam quais forem as razões de sua popularidade atual, o estoicismo é, pelo menos à primeira vista, a filosofia clássica que oferece as respostas mais rápidas e, de certa forma, mais convincentes. Tem muitas frases brilhantes, anedotas substanciais que misturam imperadores e escravos com bilionários condenados ao suicídio, como Sêneca, e algumas fórmulas quase mágicas para sair de problemas sem a necessidade de ferramentas, dinheiro ou ajuda externa, já que sua alegação básica é que nossa serenidade e paz de espírito dependem inteiramente de nós e não do mundo exterior.

O caminho para a serenidade nos é mostrado por Epicteto nos primeiros capítulos do Manual: há coisas que dependem de nós mesmos e coisas que não dependem de nós mesmos. Não depende de nós o que os outros fazem ou pensam. Embora possamos obviamente tentar influenciar seu comportamento, o resultado final será o que eles escolherem fazer ou pensar. Também não depende de nós o fato de chover, nevar ou fazer muito calor. Não depende de nós se vamos a uma festa e um bêbado nos incomoda, se alguém joga uma bebida em nós ou se somos pisoteados ou empurrados.

Tudo isso não depende de nós. Mas o que depende de nós é como reagimos a qualquer uma dessas circunstâncias. O que está totalmente sob nosso controle, em última análise, são nossas emoções. Assim, quando seu mestre aplicou uma máquina de tortura em sua perna, Epicteto, talvez se lembrando do conselho de Musonius Rufus, simplesmente o advertiu: “Você vai quebrá-la”. Até que um dia, de fato, seu mestre quebrou a perna, e Epicteto disse calmamente: “Eu lhe disse que você a quebraria.

Dependendo de como o apresentamos, o estoicismo pode parecer uma filosofia sábia e sensata ou cruel e resignada. […]

Este texto é um trecho do “Manual de Vida Estoica” de Epicteto, reinterpretado por Daniel Tubau (Editorial Rosameron, 2024).

Meditações, entrevista de Aldo Dinucci à Veja

Com o lançamento da tradução das Meditações por Aldo Dinucci a resvista Veja publicou uma resenha e pequena entrevista. Segue entrevista:

Com a palavra, o tradutor das Meditações, Aldo Dinucci.

Meditações é daqueles livros que se tornaram um best-seller atemporal e universal. A que o senhor atribui tamanho êxito?
O diário de Marco Aurélio permaneceu praticamente perdido por séculos e séculos, com esparsas notícias ao longo da Antiguidade Tardia e da Idade Média, sendo publicado na Europa apenas no século XVI, com inúmeras edições em línguas modernas a partir de então. No seu libelo, Marco dialoga consigo mesmo, de modo similar ao que fazem amigos íntimos ao trocarem impressões entre si sobre temas relativos à vida.
Esse sentimento de intimidade é muito evidente no texto, razão pela qual costuma ser lido por algumas pessoas dezenas de vezes, estabelecendo-se assim laços afetivos de amizade entre o leitor vivo e o filósofo que há muito se foi. A extraordinária sensibilidade de Marco ilumina temas que concernem à humanidade como um todo, como a reflexão sobre o que é a vida plena, sobre a fraternidade humana, sobre a morte, sobre o lugar do humano no Cosmos, tudo isso entre belíssimas imagens da natureza e da nossa vida cotidiana.

O diário de Nos últimos anos, tivemos o lançamento de muitos livros que beberam, de forma evidente ou nem tanto, de lições do estoicismo para promover discursos de autoajuda ou do tipo “como vencer na vida”. O senhor acredita que, muito embora ajudem a popularizar essa corrente filosófica, eles também possam deturpar ideias e intenções caras à escola estoica?
O mercado cultural afeta hoje quase todos os aspectos de nossa vida: vestuário, cinema, música, alimentação, religião… Tudo acaba se transformando em mercadoria para consumidores cada vez mais existencialmente vazios. Essas mercadorias são niveladas por baixo no que se refere ao aspecto cultural propriamente dito, razão pela qual muitos dizem haver acabado a boa música, o bom cinema, a boa literatura. Isso ocorre porque o mercado cultural almeja não a qualidade de seus produtos, mas meramente a quantidade de consumidores e de renda arrecadada.

O estoicismo, assim como tudo mais, acabou sendo transformado em produto nesse contexto do capitalismo tardio em que vivemos, apresentado por meio de simplificações grosseiras e evidentes deturpações, mais ou menos como a teologia da prosperidade o faz em relação ao cristianismo. A filosofia do Pórtico (como é também conhecido o estoicismo), na Antiguidade, jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos e reconectar o humano ao Cosmos, exortando seus seguidores a ações que concorram não para o sucesso individual, mas para o bem comum, como Marco não se cansa de repetir em seu diário.

Que mensagem do livro de Marco Aurélio o senhor julga a mais preciosa para estes tempos pós-modernos, pós-pandêmicos, regidos pela tal pós-verdade?
Cada vez mais, estamos, humanos das ruas, fartos do dogmatismo e do cinismo de certos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos: ou temos aqueles que se creem donos da verdade e querem nos fazer passar essa suposta verdade goela abaixo, ou temos os cínicos no pior sentido do termo, os que não creem em nada e se resignam a uma atitude irreverente e malévola diante das vicissitudes humanas. Marco não vai nem por um caminho nem por outro. Nosso imperador não é jamais dogmático, mas se questiona frequentemente quanto aos mais centrais princípios filosóficos, como quando, por exemplo, se indaga se há providência divina (a tese estoica) ou apenas átomos (a tese atomista e epicurista), refletindo e nos fazendo refletir simultaneamente sobre as duas possibilidades.

Sua ideia mais importante (e menos conhecida) é que a humanidade é uma grande fraternidade, e que devemos alimentar em nós esse pensamento para que possamos agir visando ao bem comum, seja o de nossa comunidade imediata, seja o da humanidade como um todo, seja o do Cosmos. Para Marco, o humano é um animal racional e político, que só pode alcançar seu fim (quer dizer, sua plenitude e sua realização) agindo de forma comunitária por meio da interpretação adequada dos papéis que lhe cabem na sociedade e no Cosmos, tais como os de ser racional, filho ou filha, irmã ou irmão, pai, mãe, vizinho, político, entre tantos personagens que são atribuídos a nós, humanos, em nossas breves existências.

Texto completo em:
https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/o-sucesso-atemporal-das-meditacoes-do-imperador-filosofo/

Stoicon Brasil 2023

Sábado, dia 25 de Novembro, acontecerá o Stoicon Brasil, com palestras de pesquisadores do tema no Brasil.

PROGRAMAÇÃO:

14h00 

  • Raquel Wachtler: Pode a cadela filosofar? – Sobre a filosofia canina de Hipárquia 
  • Afonso Júnior: A Medeia de Sêneca
  • (Moderação: Vilmar Prata)

15h00  

  • Mariana Condé: O estatuto das imagens na filosofia de Sêneca
  • Vilmar Prata: Perguntas para o amanhã: cidadania estoica em um mundo sem cidadania  
  • (Moderação: Afonso Júnior:)

16h00 

  • João Leite Ribeiro: Estoicismo e amizade
  • Donato Ferrara: “Apenas os mortos viram o fim da guerra” 
  • (Moderação: Aldo Dinucci )

17h00 

  • Alexandre Pires: O estoicismo na obra O Crítico de Baltazar Gracián
  • Jean Tosetto: O Capitalismo depende de consumidores emotivos e investidores racionais
  • (Moderação: Donato Ferrara )

INSCRIÇÕES: Clique aqui.

Pensamento 100: Cuidado com o ecletismo filosófico

Assim como nas religiões, as escolas filosóficas foram desenvolvidas ao longo dos séculos e constituem uma doutrina coerente e completa. Tanto o estoicismo e epicurismo são filosofias que nos ensinam a arte de viver bem.

Apesar de terem o mesmo objetivo, suas práticas e ideias são bastante antagônicas, assim será uma péssima ideia tentar escolher e conciliar os pontos que gostamos em cada uma delas e ignorar os pontos que não gostamos.

Não funciona, vira um Frankenstein eclético, algo assim:

Dito isso, segue um excelente artigo sobre O estoico e o epicurista.

https://otambosi.blogspot.com/2023/08/o-estoico-e-o-epicurista.html?view=classic