Resenha: Meditações, Livro V

O Livro V das Meditações de Marco Aurélio começa com esta famosa passagem: “Na manhã em que você se levantar sem vontade, que este pensamento esteja presente, Eu estou me levantando para o trabalho de um homen. Por que, então, estou insatisfeito se vou fazer as coisas para as quais existo e para as quais fui trazido ao mundo? “, seguido de um comentário bem humorado que diz que sim, preferíamos ficar quentes debaixo dos cobertores, porque é mais agradável, e ainda assim não fomos feitos para nos deleitar (visão epicurista), mas para fazer o trabalho de um ser humano, o que significa – para os estoicos – ser útil à sociedade.

No parágrafo 3, Marco se lembra de ignorar a desaprovação ou crítica dos outros se sabe que o que está dizendo ou fazendo é a coisa certa a fazer ou a dizer. Este tipo de passagens são muitas vezes mal interpretadas pelos críticos do estoicismo como indicando uma atitude que pode levar a ignorar a crítica e abraçar os próprios preconceitos. Contudo Marco afirma muito claramente em outros trechos que o sábio aprende com a boa crítica, então não é essa a intenção: a idéia, ao contrário, é seguir em frente apesar das críticas mesquinhas e injustificadas.

No parágrafo 8 explicita sua visão panteísta, ou seja, o universo e Deus é a mesma ocorrência.

“aceite tudo o que acontece, mesmo que pareça desagradável, porque leva a isso, à saúde do universo e à prosperidade e felicidade de Zeus (Universo). Pois ele não teria trazido a nenhum homem o que trouxe, se não fosse útil para o todo… Por duas razões então é certo estar contente com o que lhe acontece; uma, porque foi feito para você e prescrito para você; e a outra, porque mesmo o que vem cruelmente para cada um de nós é para o poder que administra o universo uma causa de felicidade e perfeição… Para a integridade do todo você é mutilado, se cortar qualquer coisa da combinação e da continuidade, quer das partes ou das causas e você se corta.” (V,8)

O estoicismo é uma filosofia, não uma religião, então seus praticantes têm permissão para atualizá-lo de acordo com a melhor compreensão pessoal.

No parágrafo 20 temos uma passagem importante, que foi usada como título da obra contemporânea sobre estoicismo de Ryan Holiday, O Obstáculo é o Caminho:

“a mente converte e transforma cada obstáculo à sua atividade em um instrumento; O que impede a ação estimula a ação. O que fica no caminho torna-se o caminho.” (V,20)

Em torno dos parágrafos 23-24 ele retorna a um de seus temas recorrentes, a impermanência das coisas, tendo a perspectiva cósmica sobre os assuntos humanos: “Pense na substância universal, da qual você tem uma porção muito pequena, e no tempo universal, do qual um curto e indivisível intervalo foi atribuído a você, e no que é fixado pela Fortuna, e quão pequena parte dele é você.(V,24)

O parágrafo 28 merece ser destacado na íntegra porque que é bem colocado e bem-humorado:

“Você está indignado contra aquele cujas axilas fedem, ou com aquele cuja boca cheira mal? Que bem fará esta ira? Ele tem tal boca, tem tais axilas; é necessário que tal emanação venha de tais coisas; mas o homem tem razão, isso será dito, e ele é capaz, se tomar dores, de descobrir em que ele ofende; eu desejo-lhe o sucesso em sua descoberta. Bem, então, e você tem razão: por sua faculdade racional, estimule a faculdade racional dele; mostre-lhe seu erro, admoeste-o. Pois se ele escutar, você o curará, e não há necessidade de ira.” (V,28)

Outra passagem muito importante, esta sobre o suicídio, vem logo em seguida:

“se os homens não permitirem, então se afaste da vida, ainda assim como se você não sofresse nenhum dano. A casa está cheia de fumaça, e eu saio dela . Por que você acha que isso é algum problema? Mas enquanto nada desse tipo me expulsar, eu permaneço, sou livre, e nenhum homem me impedirá de fazer o que eu escolher; e eu escolho fazer o que está de acordo com a natureza do animal racional e social”

É uma simplificação do ensinamento de Epiteto: “Se a sala estiver cheia de fumo, se apenas moderadamente, vou ficar; se houver demasiada fumaça, vou. Lembre-se disso, mantenha-se firme, a porta está sempre aberta

O tema do suicídio é recorrente no estoicismo, e a abordagem estoica é, penso eu, ainda hoje muito válida.

 


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Veja também:

Resenha: Meditações, Livro IV

Livro - meditacoes IV

No Livro 4, Marco Aurélio aborda o tipo de santuário que melhor sustenta o indivíduo . Ele alerta contra a vã acumulação de riqueza material. Em vez disso, ele sugere a prática da autodisciplina, criando ordem pessoal e tranquilidade a partir de dentro. A prática proporciona proteção contra a inveja, e lembra o homem de refrear o apetite pela fama, fortuna e louvor.

Segundo o imperador “Os homens buscam retiros para si mesmos, casas no campo, a beira-mar e nas montanhas … Mas está em seu poder sempre que você escolher se retirar em si mesmo”(§3), ou seja, em nenhum outro lugar há mais sossego ou mais liberdade dos problemas do que em sua própria alma. O livro IV pode ser resumido pelo parágrafo 7:

“O universo é transformação: a vida é opinião. Retire a sua opinião, e então é tirada a reclamação: ‘Fui prejudicado’. Tire a queixa: ‘fui ferido’, e o dano é tirado.” (IV,7)

Marco Aurélio também traz à tona o tema da comunidade política apoiada e sustentada pelos mesmos princípios racionais daqueles que sustentam um bom homem. O que é bom para o todo na ordenação do universo é bom para a sociedade e também é bom para o indivíduo. Não se pode ser um estranho ao universo e ao que ali se passa; agir desta forma é ser como um filósofo sem roupa.

Não só a vida é breve tanto para o “mendigo como para o rei”, diz Aurélio, mas seus eventos e acontecimentos (nascimento, doença, saúde, casamento, guerra, banquetes, etc.) são recorrentes e cíclicos. As mesmas coisas acontecem a todas as pessoas em suas vidas. A diferença está em como as contínuas mudanças de um estado para o outro (exemplificadas pelas mutações entre os elementos da terra, do ar, do fogo e da água) são percebidos. Uma pessoa enterra outra, assim como cidades inteiras, como Pompeia e Herculano, já foram enterradas. Não faz sentido, portanto, deixar que o medo da morte guie a vida.

O Livro 4 contém uma série de aforismos curtos. Por exemplo, Aurélio diz:

“Não faça como se você fosse viver dez mil anos. A morte paira sobre você. Enquanto vive, enquanto está em seu poder, seja bom.” (IV,17)

“Tudo é efêmero, tanto quem se lembra como o que é lembrado”. (IV,35)

“Você é uma pequena alma carregando um cadáver”(IV,41)

“Seja como o promontório contra o qual as ondas se quebram continuamente, contudo, ele permanece firme e doma a fúria da água que o circunda.”(IV,49)


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Resenha: Meditações, Livro III

No Livro III o foco está nos conceitos de Vida, Morte e Divindade.  Devemos fazer o certo não nos importar com riqueza, fama e opinião dos outros

“Hipócrates, depois de curar muitas doenças, ele próprio adoeceu e morreu… Alexandre e Pompeu, e Caio César, depois de tantas vezes destruírem completamente cidades inteiras,  eles também finalmente se retiraram da vida… Você embarcou, fez a viagem, veio à praia; saia. Se de fato há outra vida, não há falta de deuses, nem mesmo ali; mas se a um estado sem sensação, você deixará de ser dominado por dores e prazeres, e de ser um escravo do corpo, que é tão inferior quanto aquele que o serve é superior.” (III,3)

Marco Aurélio, assim como Epiteto, muitas vezes se refere a deuses, e contempla a possibilidade de que não há nenhum, que morremos e entramos em um estado “sem sensação”. E, no entanto, isso não muda as coisas na perspectiva estoica:

“Se você trabalhar naquilo que está diante de você, seguindo a razão correta com seriedade, vigor, calma, sem permitir que nada mais o distraia, mas mantendo sua alma pura, como se você fosse obrigado a devolvê-la imediatamente; se você não esperasse nada, nada temendo, mas satisfeito com sua atividade atual, segundo a natureza, e com a verdade absoluta em cada palavra e som que você proferir, você vai viver feliz. E não há nenhum homem que seja capaz de impedir isso.” (III,12)

Perto do final do Livro III vem outra citação popular:

“Curto é, pois, o tempo que cada homem vive; e pequeno é o canto da terra onde vive; e curta é também a mais longa fama póstuma, e mesmo isto só continuado por uma sucessão de humanos, que morrerão muito cedo, e que não conhecem sequer a si mesmos, e menos ainda aquele que morreu há muito tempo.” (III,10)

Ou seja, ele nos lembra, de uma perspectiva mais ampla: que a busca por riqueza e fama é ridícula e sem sentido. Marco Aurélio então nos lembra (bem, a si  mesmo, já que as meditações eram seu diário pessoal) de nunca comprometer o bem comum e o que é certo para obter elogios dos outros, poder ou prazer. Segundo ele, não devemos desejar “precisar de muros e cortinas:“, ou seja, desejar qualquer coisa de que nos envergonhemos em público.

“Então, o dever de um homem é permanecer em pé, não ser mantido em pé pelos outros.” (III,5)


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Resenha: Meditações, Livros I e II

Nos próximos dias farei uma série de posts comentando as Meditações de Marco Aurélio.

É provavelmente o clássico estoico mais lido de todos. Como é sabido, foi escrito como um diário pessoal do imperador romano e, portanto, não foi escrito para publicação. Isso explica a estranha estrutura, bem como o estilo.

Hoje começamos com os dois primeiros livros.

Livro I

O primeiro livro das Meditações é essencialmente uma lista de pessoas a quem Marcos agradece, cada uma acompanhada de uma explicação sobre o motivo de sua gratidão. É, naturalmente, uma lista esclarecedora. Termina por agradecer aos deuses (ou Fortuna) por lhe terem dado muitas coisas boas em sua vida, incluindo bons pais, bons professores e bons amigos.

A impressão geral que se tem do Livro I é de um homem humilde, apesar de sua posição muito poderosa, alguém que está pronto para aprender e tenta seriamente fazer o seu melhor na vida para melhorar a si mesmo e ajudar os outros.

Livro II

O segundo livro começa com uma de suas passagens mais citadas:

“Comece a manhã dizendo a si mesmo, eu me encontrarei com o intrometido, o ingrato, arrogante, enganador, invejoso, anti-social. Tudo isso acontece com eles por causa de sua ignorância do que é bom e mau.” (II,1)

Outra preciosidade vem no parágrafo 8, onde ele diz: “O fracasso em observar o que está na mente de outro raramente fez um homem infeliz; mas aqueles que não observam os movimentos de suas próprias mentes devem ser necessariamente infelizes.”

Mais ao final, parágrafo 11, Marco Aurélio reafirma a doutrina estoica sobre as coisas indiferentes:

“a morte, e a vida, a honra e a desonra, a dor e o prazer, todas essas coisas acontecem igualmente aos homens bons e maus, sendo coisas que não nos tornam nem melhores nem piores. Portanto, não são nem boas nem ruins.” (II,11)

Conclui com sua definição de filosofia, que ele diz ser o único guia para os homens:

“consiste em manter o daemon dentro de um homem livre de violência e ileso, superior às dores e prazeres, não fazendo nada sem um propósito, nem ainda falsamente e com hipocrisia, não sentindo a necessidade de outro homem fazer ou não fazer nada; e além disso, aceitando tudo o que acontece, e, finalmente, esperando a morte com uma mente alegre”

 


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Livro: Meditações de Marco Aurélio

Meditações foi escrito em grego Grego Koiné, intitulado Τὰ εἰς ἑαυτόν, literalmente “coisas para eu próprio”, é uma série de 12 livros em que Marco Aurélio registra suas notas pessoais sobre o estoicismo como fonte de sua própria orientação e auto-aperfeiçoamento. Marco Aurélio enfrentava desafios, conspirações e obstáculos durante o dia, e à noite ele se colocava em profunda reflexão e escrevia suas notas pessoais antes de dormir.

É improvável que o imperador tenha pretendido que os escritos fossem publicados e a obra não tem título oficial, “Meditações” é um dos vários títulos comumente atribuídos à coleção. Esses escritos assumem a forma de citações de tamanho variável, de uma frase a parágrafos longos.

O estilo de escrita que permeia o texto é simplificado, direto e refletindo a perspectiva estoica de Marco no próprio texto. Marco, no texto, não se enxerga como pertencente à realeza, mas como um homem entre outros homens, o que permite ao leitor relacionar-se com sua sabedoria.

Um tema central das meditações é a importância de analisar o julgamento de si mesmo e dos outros em uma perspectiva cósmica. A aceitação da morte e o debate sobre a existência ou não de Deus permeia todo o livro.

Suas ideias estoicas envolvem evitar a indulgência sensorial, uma habilidade que segundo ele libertará o homem das dores e prazeres do mundo material. Ele afirma que a única maneira que um homem pode ser prejudicado por outros é permitir que sua reação o domine, tudo é opinião. Racionalidade e lucidez permitem que se viva em harmonia com o universo. Marco Aurélio frequentemente expressa uma atitude do que hoje poderíamos chamar de agnóstica, implicando ou mesmo afirmando diretamente que não importa se alguém acredita na providência divina (para os estoicos Deus é a própria natureza) ou em apenas átomos e caos (visão epicureana, ateísta).

As ideias e princípios recorrentes expressadas por por Marco Aurélio são aquelas que ele acreditava importante para si mesmo como homem e como imperador. É provavelmente o clássico estoico mais lido de todos.

As lições, percepções e perspectivas contidas neste notável trabalho são tão relevantes hoje quanto eram há dois milênios atrás.

Trechos:

“a morte, e a vida, a honra e a desonra, a dor e o prazer, todas essas coisas acontecem igualmente aos homens bons e maus, sendo coisas que não nos tornam nem melhores nem piores. Portanto, não são nem boas nem más.” (II,11)

“Retire a sua opinião, e então é tirada a reclamação: ‘Fui prejudicado’. Tira a queixa: ‘Fui ferido’, e o dano é tirado.” (IV,7)

“Não faça como se você fosse viver dez mil anos. A morte paira sobre você. Enquanto vive, enquanto está em seu poder, seja bom.” (IV,17)

“Tudo é efêmero, tanto quem se lembra como o que é lembrado”. (IV,35)

“É uma coisa ridícula para um homem não fugir da sua própria maldade, que é realmente possível, mas tentar fugir da maldade de outros homens, que é impossível.” (VII, 71)

“Se um homem está equivocado, instrua-o gentilmente e mostre-lhe seu erro. Mas se não for capaz, culpe-se a si mesmo, ou não culpe nem a si mesmo.” (X,4)

“Não fale mais sobre como o homem bom deve ser, mas seja um bom homem”(X,16)

“Se não é certo, não o faça: se não é verdade, não o diga”(XII,17)

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Carta #68: Sobre Sabedoria e Aposentadoria

Na carta 68 Sêneca fala sobre afastar-se dos negócios e cargo públicos para perseguir o desenvolvimento espiritual.    Diz que devemos usar nosso tempo para descobrir nossas falhas intimas e as corrigir, ou ao menos,  as identificar:

“Quando você se afasta do mundo, seu objetivo é conversar consigo mesmo, não ter homens falando sobre você. Mas o que você deve falar? Faça exatamente o que as pessoas gostam de fazer quando falam sobre seus vizinhos, – fale mal de si mesmo quando está sozinho; então você vai se acostumar a falar e ouvir a verdade. Acima de tudo, no entanto, pondere sobre o que você sente ser a sua maior fraqueza.” (LXVIII, 6)

Esta carta tende ao que hoje chamamos de auto-ajuda,  mas não deixa de ser verdadeira e diz que nunca é tarde para tentar se desenvolver.  Uma pessoa como uma ferida aparente seria poupada de crítica se fizer uma pausa para o tratamento.  Sêneca diz que mesma tolerância deve ser dada às feridas da alma:

O que, então, estou fazendo com o meu tempo livre? Estou tentando curar minhas próprias feridas. Se eu lhe mostrasse um pé inchado, ou uma mão inflamada, ou alguns tendões enrugados em uma perna murcha, você me permitiria ficar quieto em um lugar e aplicar loções ao membro doente. Mas meu problema é maior do que qualquer um destes, e eu não posso mostrá-lo a você. O abcesso, ou úlcera, está profundamente dentro do meu peito. Rezem, orem, não me elogiem. (LXVIII, 8)

Imagem: Foto do altar de Domício Enobarbo no Museu do Louvre.  Mostra uma autoridade do estado sentado em uma “cadeira  curul”, símbolo de poder político.


LXVIII. Sobre Sabedoria e Aposentadoria

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu me rendo ao seu plano; retirar-se e esconder-se em repouso. Mas ao mesmo tempo esconda sua aposentadoria também. Ao fazer isso, você pode ter certeza de que estará seguindo o exemplo dos estoicos, se não o seu preceito. Mas você estará agindo de acordo com o seu preceito também; assim satisfará tanto a si mesmo quanto a qualquer estoico que você quiser.
  2. Nós estoicos não instamos os homens a assumir a vida pública em todos os casos, ou em todos os momentos, ou sem qualquer reserva[1]. Além disso, quando atribuímos ao nosso sábio o campo da vida pública que é digno dele, ou seja, o universo, ele não está separado da vida pública, mesmo que se retire; talvez, tenha abandonado apenas um pequeno canto e tenha passado para regiões maiores e mais vastas; e quando é posto nos céus, compreende quão humilde era o lugar em que se colocava quando sentava na Cadeira Curul[2] ou ao tribunal. Coloque isso no coração, o homem sábio nunca é mais ativo nos negócios do que quando as coisas divinas, assim como as coisas humanas, atingem seu âmbito de competência.
  3. Volto agora ao conselho que estou determinado a lhe dar, – que você mantenha sua aposentadoria em segundo plano. Não há necessidade de prender um cartaz sobre si mesmo com as palavras: “Filósofo e Quietista.” Dê ao seu propósito algum outro nome; chame-o de má saúde e fraqueza corporal, ou mera preguiça. Pois se vangloriar de nossa aposentadoria é egoísmo vazio.
  4. Certos animais escondem-se confundindo as marcas de suas pegadas na redondeza de suas tocas. Você deveria fazer o mesmo. Caso contrário, sempre haverá alguém perseguindo seus passos. Muitos homens passam por aquilo que é visível, e perscrutam coisas ocultas e dissimuladas; uma sala trancada convida o ladrão. As coisas que estão ao ar livre parecem baratas; o arrombador passa pelo que está exposto à vista. Este é o caminho do mundo, e o caminho de todos os homens ignorantes: eles desejam irromper em coisas ocultas. Portanto, é melhor não se gabar da aposentadoria.
  5. No entanto, é uma espécie de bazófia fazer muito de seu esconderijo e de sua retirada da visão dos homens. Fulano de tal retirou-se em Taranto; aquele outro homem se encerrou em Nápoles; esta terceira pessoa por muitos anos não cruzou a soleira de sua própria casa. Anunciar a aposentadoria é captar uma multidão.
  6. Quando você se afasta do mundo, seu objetivo é conversar consigo mesmo, não ter homens falando sobre você. Mas o que você deve falar? Faça exatamente o que as pessoas gostam de fazer quando falam sobre seus vizinhos, – fale mal de si mesmo quando está sozinho; então você vai se acostumar a falar e ouvir a verdade. Acima de tudo, no entanto, pondere sobre o que você sente ser a sua maior fraqueza.
  7. Cada homem conhece melhor os defeitos de seu próprio corpo. E assim se alivia o estômago com o vômito, outro o alimenta com o comer frequente, outro drena e purga seu corpo pelo jejum periódico. Aqueles cujos pés são visitados pela dor abstêm-se do vinho ou do banho. Em geral, os homens que são descuidados em outros aspectos saem de seu caminho para aliviar a doença que frequentemente os aflige. Assim é com as nossas almas; há nelas certas partes que estão, por assim dizer, na lista de doentes, e para essas partes a cura deve ser aplicada.
  8. O que, então, estou fazendo com o meu tempo livre? Estou tentando curar minhas próprias feridas. Se eu lhe mostrasse um pé inchado, ou uma mão inflamada, ou alguns tendões enrugados em uma perna murcha, você me permitiria ficar quieto em um lugar e aplicar loções ao membro doente. Mas meu problema é maior do que qualquer um destes, e eu não posso mostrá-lo a você. O abcesso, ou úlcera, está profundamente dentro do meu peito. Rezem, orem, não me elogiem, não digam: “Que grande homem, aprendeu a desprezar todas as coisas, condenando as loucuras da vida do homem, fugiu!” Não tenho condenado nada além de mim.
  9. Não há nenhuma razão pela qual você deva desejar vir a mim com objetivo de progredir. Você está enganado se você acha que vai receber qualquer ajuda vinda deste lado; não é um médico que habita aqui, mas um homem doente. Eu prefiro que você diga, ao deixar minha presença: “Eu costumava pensar que ele era um homem feliz e erudito, e tinha aguçado os ouvidos para ouvi-lo, mas tenho sido defraudado. Eu não vi nada, ouvi nada do que ansiava e do que voltei para ouvir.” Se você sentir assim, e falar assim, algum progresso foi feito. Eu prefiro que você perdoe, em vez de invejar a minha aposentadoria.
  10. Então você diz: “É a aposentadoria, Sêneca, que você está recomendando a mim? Você está cedendo sobre as máximas de Epicuro!” Eu recomendo a aposentadoria para você, mas só que você pode usá-la para atividades maiores e mais bonitas do que aquelas que você renunciou; bater nas portas arrogantes dos influentes, fazer listas alfabéticas de velhos sem filhos, exercer a mais alta autoridade na vida pública, – esse tipo de poder o expõe ao ódio, é de curta duração e, se você o classifica em seu verdadeiro valor, é de mau gosto.
  11. Um homem estará muito adiante de mim quanto à sua influência na vida pública, outro em salário como oficial do exército e na posição que resulta disto, outro na multidão de seus clientes; mas vale a pena ser superado por todos esses homens, contanto que eu mesmo possa superar a Fortuna. E eu não sou oponente digno para ela na multidão; ela tem o maior apoio.
  12. Que em dias anteriores você tivesse estado disposto para seguir este propósito! Será que não estávamos discutindo a vida feliz à vista da morte! Mas, mesmo agora, não tenhamos demora. Pois agora podemos tomar a palavra da experiência, que nos diz que há muitas coisas supérfluas e hostis; para isso deveríamos há muito tempo ter tomado a palavra da razão.
  13. Façamos o que os homens costumam fazer quando estão atrasados em começar, e desejam compensar o tempo perdido aumentando a sua velocidade – vamos aplicar o esporão. Nossa idade atual é a melhor possível para essas atividades; pois o período de ferver e espumar é agora passado. As falhas que eram descontroladas no primeiro calor da juventude estão agora enfraquecidas, e apenas mais um pouco de esforço é necessário para extingui-las.
  14. “E quando,” você pergunta, “aquilo que você não aprende até a sua partida, e como ela irá beneficiar você?” Precisamente desta maneira, que eu vou partir um homem melhor. Você não precisa pensar, no entanto, que qualquer momento da vida é mais equipado para a obtenção de uma mente sã do que aquele que conquistou a si mesmo por muitas provações e por muitos arrependimentos por erros do passado, e teve suas paixões atenuadas, atingiu um estado de saúde. Este é realmente o momento de ter adquirido este bem; aquele que alcançou a sabedoria em sua velhice, alcançou-a por seus anos.

 

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] O estoicismo pregava “cidadania mundial”, e isso foi interpretado de várias maneiras em diferentes períodos. Os professores da Grécia viram nela uma oportunidade para uma cultura mais ampla; Os romanos, uma missão mais prática, ou seja, atividade política.

[2] Cadeira curul é um tipo de cadeira famosa por seu uso tradicional na Roma Antiga e na Europa até o século XX. Em Roma, era o símbolo de poder político ou military. Foi adotada posteriormente por reis de toda a Europa.

Pensamento #48: Homens são punidos por sacrilégio, embora ninguém possa causar dano aos deuses

 

“aquele que carrega armas mortais e tem intenções de roubar e matar, é um bandido antes mesmo de ter mergulhado as mãos no sangue; Sua maldade consiste e é mostrada em ação, mas não começa assim. Homens são punidos por sacrilégio, embora ninguém possa causar dano aos deuses. “

Sêneca Sobre os Benefícios, Livro V,14

(imagem A mártir búlgara de Konstantin Makovsky)

Carta 67: Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Na carta 67 Sêneca aborda um mal entendido comum em relação ao estoicismo.  A Filosofia não requer ou exige sofrimento ou qualquer dificuldade,  mas apenas diz que estas são situações corriqueiras que devem ser suportadas com tranquilidade,  já que não deveria ser surpresa para ninguém:

“Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.” (LXVII, 4)

Cita os exemplos de conduta estoica como Catão, Rutílio e Régulo que foram testados pela adversidade e souberam suporta-la com sabedoria. Conclui dizendo que uma vida sem sobressaltos e ataques da Fortuna é uma vida insossa:

Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa. “(LXVII,14)

Imagem:  Pintura de Salvator Rosa (1615-1673), A Morte de Régulo. A tortura infligida a Régulo, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.


LXVII. Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Se eu posso começar com uma observação comum, a primavera está se revelando gradualmente; mas embora seja preparação para o verão, quando se esperaria clima quente, está bastante frio, e ainda não se pode ter certeza disso. Pois ela desliza frequentemente para trás para o tempo do inverno. Você deseja saber o quão incerto ainda é? Eu ainda não estou seguro para um banho que pode ser absolutamente frio; mesmo neste momento eu tremo de frio. Você pode dizer que esta não é maneira de mostrar tolerância, quer ao calor ou ao frio; muito verdadeiro, querido Lucílio, mas na minha idade, raramente alguém fica satisfeito com o frio natural. Eu mal posso deixar de ter frio no meio do verão. Assim, eu passo a maior parte do tempo embrulhado;
  2. E agradeço a velhice por me manter preso à minha cama. Por que não devo agradecer à velhice por isso? Aquilo o que eu não deveria querer fazer, não tenho a capacidade de fazer. A maioria das minhas conversas é com livros. Sempre que suas cartas chegam, imagino que estou com você, e tenho a sensação de que estou prestes a falar a minha resposta, em vez de escrevê-la. Portanto, vamos juntos investigar a natureza de seu problema, como se estivéssemos conversando um com o outro.
  3. Você me pergunta se todo bem é desejável. Você diz: “Se é bom ser corajoso sob a tortura, ir à tortura com um coração forte, suportar a doença com resignação; segue-se que essas coisas são desejáveis. Mas não vejo que nenhuma delas valha a pena ser desejada. De qualquer forma, eu ainda não conheço ninguém que tenha feito uma promessa por ter sido cortado em pedaços pela vara, ou retorcido pela gota, ou feito mais alto pela roda de tortura.
  4. Meu caro Lucílio, você deve distinguir entre estes casos; então você compreenderá que há algo neles que é desejável. Eu prefiro estar livre da tortura; mas se chegar o momento em que deva ser suportada, desejo que eu possa conduzir-me com bravura, honra e coragem. É claro que eu prefiro que a guerra não ocorra; mas se a guerra ocorrer, desejo que eu possa suportar nobremente as feridas, a fome e tudo o que a exigência da guerra traz. Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.
  5. Alguns de nossa escola pensam que, de todas essas qualidades, não é desejável uma resistência intrépida, embora não seja desprezada, porque devemos procurar pela oração unicamente o bem que é puro, pacífico e fora do caminho dos problemas. Pessoalmente, eu não concordo com eles. E porque? Primeiro, porque é impossível que qualquer coisa seja boa sem ser também desejável. Porque, novamente, se a virtude é desejável, e se nada que é bom carece de virtude, então tudo o que é bom é desejável. E, finalmente, porque uma resistência corajosa mesmo sob tortura é desejável.
  6. Neste ponto, eu lhe pergunto: a bravura não é desejável? No entanto, a bravura despreza e desafia o perigo. A parte mais bela e admirável da bravura é que ela não se acovarda da tortura, avança para encontrar ferimentos, e às vezes nem evita a lança, mas recebe-a com o peito aberto. Se a bravura é desejável, também é a resistência paciente da tortura; pois isso é uma parte da bravura. Apenas filtre essas coisas, como sugeri; então não haverá nada que possa confundir você. Pois não é a mera resistência à tortura, mas a corajosa resistência, que é desejável. Eu, portanto, desejo a resistência “corajosa”; e isso é virtude.
  7. “Mas,” você diz, “quem desejou tal coisa para si mesmo?” Algumas orações são abertas e sinceras, quando os pedidos são oferecidos especificamente; outras orações são expressas indiretamente, quando incluem muitos pedidos sob um título. Por exemplo, desejo uma vida de honra. Agora, uma vida de honra inclui vários tipos de conduta; pode incluir o barril em que Régulo[1] estava confinado, ou a ferida de Catão que foi rasgada por sua própria mão, ou o exílio de Rutílio, ou a xícara de veneno que removeu Sócrates da prisão para o céu. Consequentemente, ao orar por uma vida de honra, ore também por aquelas coisas sem as quais, em algumas ocasiões, a vida não pode ser honrada.
  8. Oh três vezes e quatro vezes mais
    Quem debaixo das altas muralhas de Tróia
    Conheceu a morte feliz diante dos olhos dos pais![2]
    O que importa se você oferece esta oração para algum indivíduo, ou admite que era desejável no passado?
  9. Décio sacrificou-se pelo Estado; ele esporou seu cavalo e correu para o meio do inimigo, buscando a morte. O segundo Décio, rivalizando com o valor de seu pai, reproduzindo as palavras que se haviam tornado sagradas e familiares, se atirou ao ponto de luta mais pesada, ansioso apenas por que seu sacrifício pudesse trazer um presságio de sucesso, e considerando uma morte nobre como uma coisa a ser desejada. Você duvida, então, se é melhor morrer glorioso e realizar alguma ação de valor?
  10. Quando alguém suporta tortura bravamente, está usando todas as virtudes. A resistência talvez seja a única virtude que está a vista e mais manifesta, mas a bravura está lá também, e resistência e resignação e paciência são seus ramos. Lá, também, há planejamento; pois sem planejamento nenhum projeto pode ser empreendido; é o planejamento que aconselha alguém a suportar tão bravamente como possível as coisas que não pode evitar. Há também firmeza, que não pode ser deslocada de sua posição, que a ferramenta que nenhuma força pode fazer abandonar o seu propósito. Existe toda a inseparável companhia das virtudes; cada ato honrado é a obra de uma só virtude, mas está de acordo com o julgamento de todo o concílio. E o que é aprovado por todas as virtudes, embora pareça ser obra de um só, é desejável.
  11. O quê? Você acha que essas coisas só são desejáveis as quais vêm a nós em meio a prazer e facilidade, e que nós adornamos nossas portas em acolhimento? Há certos bens cujas características são proibitivas. Há certas orações que são oferecidas por uma multidão, não de homens que se alegram, mas de homens que se curvam reverentemente e adoram.
  12. Não foi assim que Régulo orou para que chegasse a Cartago? Vestir-se com a coragem de um herói, e afastar-se das opiniões do homem comum. Forme uma concepção apropriada da imagem da virtude, uma coisa que excede a beleza e a grandeza; esta imagem não deve ser adorada por nós com incenso ou guirlandas, mas com suor e sangue.
  13. Eis que Marcos Catão, deitado sobre o peito santificado, suas mãos sem mancha, e despedaçando as feridas que não foram suficientemente profundas para matá-lo! Que, por favor, deveria dizer a ele: “Espero que tudo seja como você quiser”, e “Estou triste”, ou “Boa fortuna em sua empreitada”?
  14. A este respeito, penso no nosso amigo Demétrio, que chama de existência fácil, não perturbada pelos ataques da Fortuna, um “Mar Morto”. Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por suas ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa.
  15. O estoico Átalo costumava dizer: “Eu prefiro que a Fortuna me mantenha em seu acampamento em vez de no luxo, se sou torturado, mas suporto corajosamente, tudo está bem, se morrer, mas morrer corajosamente, também está bem.” Ouça Epicuro; ele irá dizer-lhe que isso é realmente agradável. Jamais aplicarei uma palavra afeminada a um ato tão honroso e austero. Se eu for para a fogueira, devo ir invicto.
  16. Por que não consideraria isto desejável – não porque o fogo me queime, mas porque não me vença? Nada é mais excelente ou mais belo do que a virtude; tudo o que fazemos em obediência às suas ordens é bom e desejável.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.; em latimMarcus Atilius Regulus). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio:

O terque quaterque beati,
Quis ante ora patrura Troiae sub moenibus altis
Contigit oppetere!