Consolação a Políbio, “ad Polybium, De Consolatione”, é a terceira carta de consolação de Sêneca, escrita no ano 44 quando o filósofo se encontrava no exílio na ilha de Córsega para o qual fora enviado sob a acusação de adultério com Júlia Lívila, irmã de Calígula.
A obra dirige-se a Políbio, Secretário particular do Imperador Cláudio, para consolá-lo sobre a morte de seu irmão. O ensaio contém a filosofia estoica de Sêneca, com particular atenção à inescapável realidade da morte. Embora seja sobre um assunto muito pessoal, o ensaio em si não parece particularmente empático ao caso específico de Políbio, dando uma visão mais ampla sobre a dor e o luto, sem nunca citar o nome do irmão falecido.
O texto é, sem dúvida, uma tentativa de Sêneca de conseguir seu retorno do exílio, usando boa parte do texto para lisonjear e vergonhosamente bajular o Imperador Cláudio, ironicamente procurando atrair empatia para si mesmo no processo: “Eu forçaria algumas gotas a fluir destes olhos, exaustos como estão com o choro sobre as minhas próprias aflições domésticas, se isso pudesse ser de alguma utilidade para você.” (II, 1)
Estudiosos são unânimes na consideração de que Consolação a Políbio é uma adulação para que Políbio interceda junto a Cláudio em favor de Sêneca. Isso mostra um momento de fraqueza do filósofo já que Sêneca faz uso da dor alheia para tirar vantagens pessoais. Essa realidade não impede a obra de exemplificar uma das mais significativas faces do brilhante autor e de documentar lados menos explorados de sua personalidade histórica.
O gênero literário Consolação foi cultivado por todas as grandes escolas, nela, o filósofo procura entender a dor que abala a pessoa a ser consolada e, ainda, compreender sua visão de mundo para assim expor sua filosofia, de forma que seja melhor assimilada pelo espírito em luto. Cleonice van Raij[1], diz:
Entre os filósofos e retores romanos o primeiro que se ocupou desse gênero foi Cícero, por ocasião da morte de sua filha Túlia, quando escreveu uma Consolação, a fim de abrandar a própria dor. Tal Consolação, infelizmente, não chegou até nós, restando dela apenas alguns fragmentos conservados nas Tusculanas. Sêneca, sem a menor dúvida, foi o mais fecundo escritor latino de Consolações, se considerarmos não só os textos conhecidos sob esse nome, mas também os vários tratados de alto teor consolatório, como Sobre a brevidade da vida, Sobre a tranquilidade da alma, De remediis fortuitorum[2] (Sobre os remédios dos acontecimentos fortuitos) e as cartas que, em grande parte, pertencem a esse gênero, como as LXIII, LXXXI, XCIII e CVII, dirigidas a Lucílio. No entanto, as genuínas Consolações, ou seja, aquelas que mais respondem às exigências da tradição consolatória, são três: A Márcia, A Hélvia e A Políbio.
A carta começa com uma interpretação de Sêneca do significado de memeto mori[3], ajudando o amigo a colocar as coisas em perspectiva e fazendo referência à cosmologia estoica e sua ideia de que o universo é cíclico e que passa por séries de criação e destruição:
“O que, de fato, já fez mãos mortais que não seja mortal? As sete maravilhas do mundo, e quaisquer maravilhas ainda maiores que a ambição de eras posteriores tenha construído, serão vistas um dia niveladas com o chão. Assim é: nada dura para sempre, poucas coisas duram até mesmo por muito tempo… todo esse universo, contendo deuses e homens e todas as suas obras, um dia será varrido e mergulhado uma segunda vez em sua escuridão e caos originais”. (I, 1-2)
A finalidade é dupla: lembrar a Políbio que seria soberba pensar que nosso próprio destino deve ser diferente do de qualquer outro, e também levar consolo com a compreensão do funcionamento do mundo. Na seção IV Sêneca volta para a ideia estoica da imparcialidade da fortuna (destino):
“Podemos continuar culpando o destino por muito mais tempo, mas não podemos alterá-lo: ele permanece duro e inexorável: ninguém pode movê-lo por reprovações, por lágrimas ou pela justiça. A fortuna nunca poupa ninguém, nunca faz concessões a ninguém…. Olhe em volta, para todos os mortais: em todos os lugares há razões amplas e constantes para chorar:” (IV, 1-2)
Na quinta seção vemos mais uma técnica de abordagem: Políbio é exortado a pensar sobre o que seu próprio irmão falecido desejaria. Além disso, ele tem que pensar no restante de sua família, incluindo seus outros irmãos, não os desanimando com a própria depressão:
“Você deve imitar os grandes generais em tempos de desastre, quando eles têm o cuidado de provocar um comportamento alegre e esconder as desgraças por uma alegria manipulada, de modo que, se os soldados vissem seu líder derrubado, eles mesmos ficariam desanimados”. (V, 2)
No meio do ensaio, Sêneca alerta Políbio que os piores momentos serão quando ele se encontrar sozinho em casa. Mas um remédio está à mão: ocupar a mente, não permitir nenhum momento desocupado. Sêneca acaba sugerindo perseguições literárias já que Políbio havia traduzido para o latim Homero e escrito uma versão em prosa do poema épico de Virgílio. Ainda em outra investida, Sêneca diz que não se deve lamentar por si mesmo: pergunte a si mesmo: “sofro por minha causa ou por aquele que se foi”? Depois afirma que não se deve sofrer temendo a sorte do falecido seguido com uma análise estoica do significado de estar morto, lembrando a Políbio que, embora seu irmão não possa mais desfrutar de uma série de prazeres oferecidos pela vida, agora ele também está sendo poupado das muitas tristezas e reviravoltas da fortuna que caracterizam a existência humana, pois no final: “Nada há de certo sequer um dia inteiro. Quem pode dizer se a morte veio a seu irmão por malícia ou por bondade?” (IX, 6)
Na 10° seção Sêneca aplica um dos conceitos estoicos favoritos, que mais tarde, fora muito muito utilizado por Epicteto, isto é, que as coisas e as pessoas de nossas vidas nunca são nossas, mas sim emprestadas do universo:
“você não precisa pensar por quanto tempo mais você poderia tê-lo, mas por quanto tempo você o teve. A natureza o deu a você, assim como dá outros a outros irmãos, não como uma propriedade absoluta, mas como um empréstimo: depois, quando achou oportuno, o acolheu de volta e seguiu suas próprias regras de ação, em vez de esperar até que você tivesse entregado seu amor à saciedade.” (X, 4)
As seções XII a XVII são usadas praticamente na íntegra para bajular o imperador Cláudio, na tentativa de ganhar sua graça e conseguir escapar do exílio. Algumas partes são tão exageradas que beiram à comédia:
“…fixe seus olhos em César sempre que as lágrimas se aproximarem deles; eles ficarão secos ao contemplar aquela luz maior e mais brilhante; seu esplendor os atrairá e os prenderá firmemente a si mesmo” (XII, 3) “…tão bondoso e gracioso como é para com todos os seus seguidores que já colocou muitos bálsamos curativos sobre esta sua ferida, e lhe forneceu muitos antídotos para sua tristeza. Por que, mesmo se ele não tivesse feito nada disso, não é a mera visão e o pensamento de César em si o seu maior consolo?” (XII, 3) “Que os deuses e deusas o preservem por muito tempo na terra: que ele rivalize com os feitos do imperador Augusto, e o ultrapasse em longos dias!” (XII, 5)
Ao final Sêneca sugere como terapia para seu amigo, que escreva sobre o irmão: “prolongue a lembrança de seu irmão inserindo algumas memórias dele entre seus outros escritos: pois esse é o único tipo de monumento que pode ser erguido pelo homem que nenhuma tempestade pode ferir, nenhum tempo destruir.” (XVIII, 2). Sêneca, por todo seu legado, é o mais compassivo, o mais humano, dos estoicos. O final da carta nos dá muitos exemplos disso, dois deles:
“Eu sei, de fato, que há alguns homens, cuja inteligência é mais áspera do que brava, que dizem que o homem sábio nunca choraria.” (XVIII, 5). “Deixe suas lágrimas fluírem, mas deixe-as um dia parar de fluir: lamente tão profundamente quanto você quiser, mas deixe seus lamentos cessarem um dia: regule sua conduta de modo que tanto filósofos quanto irmãos possam aprová-la.” (XVIII, 7)
Consolação a Políbio confirma que Sêneca, como o próprio reafirma inúmeras vezes em sua obra, não é o sábio estoico ideal, mas alguém meramente humano, que precisa se esforçar diariamente para trilhar o caminho da virtude. Por isso mesmo, considero o mais autêntico e convincente dos filósofos estoicos.
Em tempo, a bajulação não teve nenhum efeito sobre Políbio ou Cláudio e Sêneca permaneceu no exílio até a morte do imperador.
Sobre Políbio:
Gaio Júlio Políbio foi um escravo liberto do Imperador Cláudio que foi elevado ao secretariado durante seu reinado. No começo do governo de Cláudio, Políbio, de acordo com Sêneca, tinha o cargo de libellis, responsável pelas petições dirigidas ao imperador[4]. Já Suetônio[5] defende que antes da ascensão do imperador, ele auxiliava Cláudio em suas atividades literárias, judiciais e históricas como pesquisador e assim tomou o lugar oficial na burocracia imperial, com o título de studiis. O mesmo Suetônio, que era biógrafo e secretário do Imperador Adriano, afirma que Cláudio apreciava tanto a ajuda que era permitido a Políbio caminhar entre os cônsules quando em assuntos oficiais.
No resumo bizantino do relato de Dião Cássio[6], Pallas, Calisto e Narciso, outros três libertos graduados na administração imperial, têm grande preeminência, mas Políbio aparece separado do grupo mais poderoso de liberto. Nesse relato, os três libertos aparecem atuando em conjunto, inicialmente em acordo com Messalina e depois contrários a ela. A deslealdade levou Políbio à sua derrocada. Ele foi executado por crimes contra o Estado enquanto Sêneca vivia em exílio. Dião Cássio afirmou que a imperatriz Messalina preparou sua morte quando ela se cansou dele como amante.
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[1] Raij, Cleonice. 1999. A Filosofia Da Dor Nas Consolações De Sêneca. Letras Clássicas, nº 3 (outubro), 11-21. https://doi.org/10.11606/issn.2358-3150.v0i3p11-21.
[2] Este texto não é de Sêneca, mas falsamente atribuído a ele na idade média, assim como suas supostas cartas a Paulo de Tarso (São Paulo)
[3] Memento mori é uma expressão latina que significa algo como “lembre-se de que você é mortal”, “lembre-se de que você vai morrer” ou traduzido literalmente como “lembre-se da morte”.
[4] Sêneca descreve as funções de Políbio na seção VI, 5.
[5] Caio Suetônio Tranquilo, (em latim: Gaius Suetonius Tranquillus, Roma, 69 d.C. — ca. 141 d.C.) dedicou-se às armas e às letras. Escreveu as Vidas dos Doze Césares, tendo sido contemporâneo na idade adulta apenas do último de seus biografados, Domiciano. Teve prestígio na corte de Adriano, tendo sido secretário. Suetônio foi um grande estudioso dos costumes de sua gente e de seu tempo e escreveu um grande volume de obras eruditas, nas quais descrevia os principais personagens da época. Foi, sobretudo, um indiscreto devassador das intimidades da corte romana, dando-nos uma visão íntima dos vícios dos imperadores e das picuinhas que dividiam a nobreza.
[6] Dião Cássio foi um historiador romano, publicou a História de Roma em 80 volumes.