Carta 35: Sobre a Amizade entre Mentes Semelhantes

Na carta 35 Sêneca fala da relação entre amor a amizade verdadeira.

A mensagem é especialmente importante para quem tem filhos, como já percebemos no primeiro parágrafo:

“… quem lhe ama não é, em todos os casos, seu amigo. A amizade, portanto, é sempre útil, mas o amor, às vezes, faz mal. Tente aperfeiçoar-se, se não por outra razão, para que você possa aprender como amar.” (XXXV, 1)

De acordo com Sêneca o amor perfeito é aquele o qual todo egoísmo é removido, tornando-se igual a amizade verdadeira

Conclui a carta lembrando que a constância de objetivo é sinal de sabedoria:
quando quiser descobrir se conseguiu alguma coisa, considere se você deseja as mesmas coisas hoje que você desejou ontem.” (XXXV, 4)

(Imagem, Cornélia, por Joseph-Benoît Suvée, Louvre.   Cornélia Africana  mãe dos irmãos Gracos, conhecida pela sua virtude e força de caráter)


XXXV. Sobre a Amizade entre Mentes Semelhantes

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Quando eu insisto com tanta força em seus estudos, é meu próprio interesse que eu estou defendendo; quero sua amizade, e ela não me será proveitosa a menos que você continue, com a tarefa de se desenvolver. Por enquanto, embora me ame, você ainda não é meu amigo. “Mas,” você responde, “Têm essas palavras significado diferente?” Não, mas ainda, elas são totalmente diferentes em significado. Um amigo lhe ama, é claro; mas quem lhe ama não é, em todos os casos, seu amigo. A amizade, portanto, é sempre útil, mas o amor, às vezes, faz mal. Tente aperfeiçoar-se, se não por outra razão, para que você possa aprender como amar.
  2. Apresse-se, portanto, para que, enquanto aperfeiçoa-se para meu benefício, você não tenha aprendido a perfeição em benefício de outrem. Com certeza, já estou obtendo algum lucro ao imaginar que nós dois seremos de uma só mente, e que qualquer parte da minha força que tenha cedido à idade retornará para mim por sua força, embora não haja tanta diferença em nossas idades.
  3. Mas ainda assim desejo me alegrar no fato consumado. Nós sentimos uma alegria por aqueles que amamos, mesmo quando separados deles, mas tal alegria é leve e passageira; A visão de uma pessoa, a sua presença e a comunhão com ela, proporcionam algo de prazer vivo; isso é verdade, de alguma maneira, se alguém não só vê o homem que deseja, mas o tipo de homem que deseja. Doe-se a mim, portanto, como um presente de grande preço, e, para que você possa esforçar-se mais, reflita que você mesmo é mortal, e que eu sou velho.
  4. Apresse-se a me encontrar, mas apresse-se a encontrar-se em primeiro lugar. Progrida e, antes de tudo, procure ser consistente consigo mesmo. E quando quiser descobrir se conseguiu alguma coisa, considere se você deseja as mesmas coisas hoje que você desejou ontem. Um deslocamento da vontade indica que a mente está ao mar, indo em várias direções, de acordo com o curso do vento. Mas o que está estabelecido e sólido não vagueia de seu posto. Este é o terreno abençoado do homem completamente sábio, e também, em certa medida, daquele que está progredindo e tem feito alguns avanços. Qual é a diferença entre essas duas classes de homens? Um está em movimento, com certeza, mas não muda sua posição; simplesmente debate-se a cima e a baixo onde está; O outro não está absolutamente em movimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 34: Sobre um aluno promissor

Na carta 34 Sêneca fala sobre a alegria que um bom aluno proporciona a seu mestre.

Em questões éticas e morais, Sêneca afirma que o desejo de ser correto é praticamente o que basta:

Uma tarefa começada é meio caminho andado”. É mais do que a metade, pois a questão de que falamos é determinada pela alma. Consequentemente a maior parte da bondade é a vontade de querer ser bom(XXXIV, 3)

A carta é concluída com uma frase forte:

“Se os atos de um homem não estão em harmonia, sua alma está corrompida.”

(imagem, Mestre e seus pupilos por Daniel Huntington)


XXXIV. Sobre um aluno promissor

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu cresço em espírito e pulo de alegria e esqueço a minha idade e meu sangue corre quente novamente, sempre que percebo, a partir de suas ações e cartas, quanto você se superou; o homem convencional que você deixou para trás há muito tempo. Se o fazendeiro se satisfaz quando sua árvore cresce e dá frutos, se o pastor se satisfaz com o aumento de seu rebanho, se cada homem considera seu discípulo como a si próprio como se ainda em juventude, – então, quais pensa serem os sentimentos daquele que treinou uma mente e modelou uma nova ideia, quando de repente ele percebe que esta está madura?
  2. Eu me dou o crédito: você é obra minha. Quando vi suas habilidades, coloquei as mãos sobre você, lhe incentivei, e não permiti que você fosse preguiçoso, mas lhe estimulei continuamente. E agora estou fazendo o mesmo, mas desta vez, estou torcendo por alguém que está na disputa, e isto me anima.
  3. “O que mais quer de mim então?, você pergunta, “a vontade ainda é minha”. Bem, a vontade é neste caso quase tudo, e não apenas a metade, como diz o ditado “Uma tarefa começada é meio caminho andado”. É mais do que a metade, pois a questão de que falamos é determinada pela alma[1]. Consequentemente a maior parte da bondade é a vontade de querer ser bom. Você sabe o que eu quero dizer com um bom homem? Alguém que é completo, definido, – e que não pode ser corrompido por nenhuma coação ou necessidade.
  4. Eu vejo esta pessoa em você, somente quanto se curva sobre o seu trabalho e garante que suas palavras e ações se harmonizam e correspondem uma a outra e são feitas a partir do mesmo molde. Se os atos de um homem não estão em harmonia, sua alma está corrompida.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Ou seja, o provérbio pode aplicar-se a tarefas que um homem executa com as mãos, mas é uma subavaliação quando aplicado às tarefas da alma.

Carta 33: Sobre a Futilidade de aprender axiomas

Na carta 33 Sêneca aborda nossa responsabilidade sobre o legado que devemos deixar.  Prescreve estudar com profundidade a sabedoria dos antepassados ilustres:

Por esta razão, desista de acreditar que possa desnatar, por meio de resumos, a sabedoria de homens ilustres. Olhe para a sua sabedoria como um todo; estude-a como um todo… Examine as partes separadas, se quiser, desde que você as examine como partes do próprio homem. Uma bela mulher não é aquela cujo tornozelo ou braço é elogiado, mas cuja aparência geral faz você esquecer de admirar atributos únicos.” (XXXIII,5)

Contudo, após certo ponto, devemos nós mesmo criar novos ensinamentos, usando como alicerce o conhecimento adquirido com mestres reconhecidos:

Mas qual é a sua opinião? Por quanto tempo marchará sob as ordens de outro homem? Tome o comando, e proferira alguma palavra que a posteridade possa se lembrar. Coloque algo de seu próprio estoque.“(XXXIII,7)

Gosto muito do último parágrafo, que representa a síntese do conservadorismo, ou seja, devemos ampliar e melhorar a sociedade sempre conservando as tradições de base:

“O que então? Não seguirei os passos de meus predecessores? Devo realmente usar a estrada velha, mas se encontrar um atalho que seja mais suave para viajar, devo abrir a nova estrada[8]. Os homens que fizeram essas descobertas antes de nós não são nossos mestres, mas nossos guias. A verdade está aberta para todos; ainda não foi monopolizada. E ainda há muito dela para a posteridade descobrir.” (XXXIII,11)

(imagem: La Tache noire por Albert Bettannier)


XXXIII. Sobre a Futilidade de aprender axiomas

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você deseja que eu conclua essa carta assim como eu encerrei minhas cartas anteriores, com certas declarações tomadas dos chefes de nossa escola. Mas eles não se interessavam em resumos escolhidos; Toda a textura de seus trabalhos está cheia de força. Há volatilidade, você sabe, quando alguns objetos se erguem acima de outros. Uma única árvore não é notável se toda a floresta sobe à mesma altura.

2. A poesia está repleta de declarações desse tipo, assim como a história. Por esta razão, eu não quero que pense que essas expressões pertençam a Epicuro. Elas são propriedade comum e enfaticamente nossas[1]. São, no entanto, mais notáveis em Epicuro, porque aparecem em intervalos infrequentes e quando se não espera por elas, e porque é surpreendente que palavras valentes possam ser faladas a qualquer momento por um homem afeminado. Pois é isso que a maioria das pessoas sustenta. Na minha opinião, no entanto, Epicuro é realmente um homem corajoso, mesmo que use vestes compridas. Força moral, energia e prontidão para a batalha são encontradas entre os persas[2], tanto quanto entre os homens que zombam de si mesmos.

3. Portanto, você não precisa recorrer a trechos e citações; pensamentos que se podem extrair aqui e ali nas obras de outros filósofos percorrem todo o corpo de nossos escritos. Portanto, não temos bens de mostruário, nem enganamos o comprador de tal maneira que, se ele entrar na nossa loja, não encontrará nada, exceto o que é exibido na janela. Nós permitimos que os próprios compradores retirem suas amostras de qualquer lugar que desejem.

4. Suponha que desejemos separar cada mote do estoque geral; a quem devemos dar-lhes crédito? A Zenão, Cleantes, Crisipo, Panécio ou Posidônio[3]? Nós estoicos não somos súditos de um déspota: cada um de nós reivindica sua própria liberdade. Com eles[4], por outro lado, o que Hermarco diz ou Metrodoro diz, é atribuído a uma única fonte. Naquela fraternidade, tudo o que qualquer homem diz é creditado a liderança e autoridade de um só[5]. Nós não podemos, eu defendo, não importa como, selecionar um item bom de uma multidão de coisas igualmente boas.

Só o pobre conta o seu rebanho.Pauperis est numerare pecus.[6]

Onde quer que você dirija seu olhar, você encontrará algo que pode se destacar do resto, se o contexto em que o lê não for igualmente notável.

5. Por esta razão, desista de acreditar que possa desnatar, por meio de resumos, a sabedoria de homens ilustres. Olhe para a sua sabedoria como um todo; estude-a como um todo. Ela elabora um plano coesamente tecido, linha a linha, uma obra-prima, da qual nada pode ser tirado sem ferir o todo. Examine as partes separadas, se quiser, desde que você as examine como partes do próprio homem. Uma bela mulher não é aquela cujo tornozelo ou braço é elogiado, mas cuja aparência geral faz você esquecer de admirar atributos únicos.

6. Se você insistir, no entanto, não serei mesquinho com você, mas pródigo; pois há uma enorme multidão dessas passagens; elas estão espalhadas em profusão, – elas não precisam ser arrebanhadas, mas apenas colhidas. Elas não gotejam ocasionalmente; elas fluem continuamente. Elas são ininterruptas e estão intimamente ligadas. Sem dúvida, seria muito benéfico para aqueles que ainda são principiantes; pois um axioma único é compreendido mais facilmente quando é marcado e delimitado como uma linha de verso.

7. É por isso que damos aos filhos um provérbio, ou o que os gregos chamam Chreia[7], para ser aprendido de cor, pois esse tipo de coisa pode ser compreendido pela mente jovem, que ainda não totalmente capaz. Para um homem, no entanto, cujo progresso é definitivo, perseguir os extratos escolhidos e escorar sua fraqueza pelos ditos mais conhecidos e mais breves e depender de sua memória, é vergonhoso; é hora de se apoiar em si mesmo. Um homem deveria criar tais máximas e não as memorizar. Pois é vergonhoso até para um ancião, ou alguém que tenha avistado a velhice, ter um conhecimento de livro de anotações. – Foi o que Zenão disse. Mas o que você mesmo disse? Esta é a opinião de Cleantes. Mas qual é a sua opinião? Por quanto tempo marchará sob as ordens de outro homem? Tome o comando, e proferira alguma palavra que a posteridade possa se lembrar. Coloque algo de seu próprio estoque.

8. Por isso, considero que não há nada de eminência em homens como estes, que nunca criam nada, mas sempre se escondem à sombra dos outros, desempenhando o papel de intérpretes, nunca ousando pôr em prática o que eles tanto estudam. Eles exercitam suas lembranças no material de outros homens. Mas uma coisa é lembrar, outra, saber. Lembrar é meramente salvaguardar algo confiado à memória; saber, no entanto, significa fazer tudo você mesmo; significa não depender da cópia e não precisar lançar o olhar todo o tempo para o mestre.

9. “Assim disse Zenão, assim disse Cleantes, de fato!” Que haja uma diferença entre você e seu livro! Quanto tempo você deve ser um aprendiz? De agora em diante, seja professor também! “Mas por que”, pergunta-se, “eu deveria continuar ouvindo palestras sobre o que eu posso ler?” “A voz viva”, responde o mestre, “é uma grande ajuda”. Talvez, mas não a voz que apenas se faz o porta-voz das palavras de outra pessoa, e só executa o dever de um repórter.

10. Considere também este fato. Aqueles que nunca alcançaram a sua independência mental começam, em primeiro lugar, seguindo o líder nos casos em que todos abandonaram o líder; depois, em segundo lugar, seguem-no em assuntos onde a verdade ainda está sendo investigada. No entanto, a verdade nunca será descoberta se descansarmos satisfeitos com as descobertas já feitas. Além disso, aquele que segue o outro não só não descobre nada, mas nem sequer está investigando.

11. O que então? Não seguirei os passos de meus predecessores? Devo realmente usar a estrada velha, mas se encontrar um atalho que seja mais suave para viajar, devo abrir a nova estrada[8]. Os homens que fizeram essas descobertas antes de nós não são nossos mestres, mas nossos guias. A verdade está aberta para todos; ainda não foi monopolizada. E ainda há muito dela para a posteridade descobrir.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

 

[1] Tanto estoica como epicurista.

[2] Que usavam mangas compridas.

[3] Zenão. . . Posidônio: os estoicos são citados por ordem de sucessão: primeiro os três chefes da escola, então os estoicos que trouxeram o conhecimento para Roma, Panécio e Posidônio, contemporâneo de Pompeu e Cicero. Embora Sêneca classifique Posidônio com os mestres, ele não mostrará um interesse próximo na ética ou antropologia de Posidônio até a letra LXXXIII, quando ele claramente começou a lê-lo como um estímulo para argumentação.

[4] Os epicuristas.

[5] Creditado a um homem: isto é, Epicuro, que se apropriou das sábias palavras de seus seguidores.

[6] Trecho de Metamorfose de Ovídio.

[7] Chreia, uma forma de educação gramatical consistida em fazer os alunos tomarem um axioma de um sábio escolhido e reformulá-lo em diferentes padrões sintáticos.

[8] Sêneca não se compara a um caminhante, mas a um construtor de estrada (o verbo é munire, construir uma estrada), que, portanto, criará caminhos para que os outros usem depois dele.

Carta 32: Sobre progresso

A carta 32 é curta mas seu ensinamento é profundo e simples.
Sêneca nos pede para continuar no curso do progresso e não desviar para modismos, novos começos ou para atividades menos importantes.

Lembra que para as coisas realmente importantes não temos um prazo determinado por terceiros e nos enganamos achando que temos muito tempo sobrando, o desperdiçamos e acabamos por não realizar aquilo que importa.

Nós dividimos a vida em pequenos pedaços, e a desperdiçamos. Apresse-se adiante, então, querido Lucílio, e reflita o quanto aceleraria sua velocidade se um inimigo estivesse nas suas costas, ou se suspeitasse que a cavalaria estivesse se aproximando e pressionando fortemente em seus passos durante uma fuga.” (XXXII, 2-3)

Então pensemos na celebre frase do compositor Duke Ellington: “Não preciso de tempo, preciso de um prazo limite“.

(Imagem:  O Juramento dos Horácios por Jacques-Louis David)


 

XXXII. Sobre progresso

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Eu tenho perguntado sobre você, e perguntando a todos que vem da sua parte do país, o que você está fazendo, e onde está gastando seu tempo, e com quem. Você não pode me enganar; porque eu estou acompanhando. Viva como se tivesse certeza de que receberei notícias de suas ações, ou melhor, como se tivesse certeza de que eu as vejo. E se você se perguntar o que particularmente me agrada do que eu ouço, é que eu não ouço nada, que a maioria daqueles que eu pergunto não sabem o que você está fazendo.
  2. Esta é uma boa prática – abster-se de associar-se a homens de outra estampa e de outros objetivos. E estou realmente confiante de que você não pode ser corrompido, que você vai manter o seu propósito, mesmo que a multidão o cerque e procure distraí-lo. O que, então, está em minha mente? Não tenho medo de que o alterem; mas tenho medo de que possam retardar seu progresso. E muito mal é feito por quem te atrasa, especialmente porque a vida é tão curta; e a tornamos ainda mais curta por nossa instabilidade, por fazer sempre novos começos na vida, agora um e depois imediatamente outro. Nós dividimos a vida em pequenos pedaços, e a desperdiçamos.
  3. Apresse-se adiante, então, querido Lucílio, e reflita o quanto aceleraria sua velocidade se um inimigo estivesse nas suas costas, ou se suspeitasse que a cavalaria estivesse se aproximando e pressionando fortemente em seus passos durante uma fuga. É verdade; O inimigo está realmente pressionando você; você deve aumentar a sua velocidade e fugir e chegar a uma posição segura, lembrando-se continuamente que é nobre completar sua vida antes da morte chegar, e então esperar em paz o quinhão restante do seu tempo, não reivindicando nada para si mesmo, uma vez que você já está em posse de uma vida feliz; pois tal vida não se torna mais feliz por ser mais longa.
  4. Oh, quando será que saberá que o tempo não significa nada para você, quando está calmo e sereno, despreocupado com o amanhã, porque está a gozar a sua vida ao máximo? Você sabe o que torna os homens gananciosos pelo futuro? É que ninguém se encontrou ainda. Seus pais, com certeza, pediram outras bênçãos para você; mas eu mesmo rezo mais para que possa desprezar todas as coisas que os seus pais desejaram para você em abundância. Suas orações saqueiam muitas outras pessoas, simplesmente para que você possa ser enriquecido. Tudo o que eles pedem para você precisará ser removido de outra pessoa.
  5. Eu oro para que você possa ter tal controle sobre si mesmo que sua mente, agora abalada por pensamentos errantes, possa finalmente descansar e ser firme, para que ela possa estar contente com ela mesma e, alcançar uma compreensão do que seja verdadeiramente bom, – e isso estará em nossa posse tão logo tenhamos este conhecimento, – que não há necessidade de anos adicionais. Aquele que finalmente superou todas suas necessidades, aquele que atingiu sua dispensa honrosa e é livre, aquele ainda viverá depois que sua vida foi concluída.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 31: Sobre o canto da Sereia

Na carta 31 Sêneca desafia-nos a rejeitar, até mesmo desafiar ativamente, os  bons desejos de outras pessoas, porque elas tendem a desejar para nós os tipos errados de coisas (o sucesso, beleza, dinheiro, etc.). O que devemos desejar é tornar-se o tipo de pessoa que faz coisas honrosas e duradouras; outros têm a tendência de não orar por isso em nosso nome:

“Seja surdo para aqueles que mais te amam; eles rezam por coisas ruins com boas intenções. E, se você quiser ser feliz, suplique aos deuses que nenhuma das preces para você sejam levadas a cabo. O que eles desejam acumular sobre você não são realmente coisas boas; há apenas um bem, a causa e o sustento de uma vida feliz – confiar em si mesmo.” (XXXI.2-3)

Esta carta é mais densa e complexa do que a maioria das já publicadas, então o melhor é lê-la com calma e tirar você mesmo suas conclusões, sem ser influenciados por este interprete.

Gostaria de destacar no entanto que esta é a primeira carta na qual Sêneca transmite sua ideia de Deus:

“Seu dinheiro, entretanto, não o colocará em nível com Deus; porque Deus não tem posses. Seu manto bordado não fará isso; porque Deus não traja vestes; nem irá a sua reputação, nem a notoriedade de seu nome por todo o mundo; porque ninguém conhece a Deus. A multidão de escravos que carrega sua liteira ao longo das ruas da cidade e em lugares estrangeiros não irá ajudá-lo, porque este Deus de quem falo, embora seja o mais alto e poderoso dos seres, carrega todas as coisas em seus próprios ombros. Nem a beleza nem a força podem fazer você abençoado, pois nenhuma dessas qualidades pode resistir à velhice. O que temos de procurar, então, é o que não passa cada dia mais e mais ao controle de algum poder que não pode ser resistido. E o que é isso? É a alma, mas a alma que é justa, boa e grande. O que mais você poderia chamar de tal alma do que um deus morando como convidado em um corpo humano?  Esta modelagem não será feita em ouro ou prata; uma imagem que deve ser à semelhança de Deus não pode ser moldada de tais materiais; lembre-se que os deuses, quando eram bons para com os homens, eram moldados em barro.” (XXXI.10-11)

(imagem Criação de Adão, Michelangelo, Capela Sistina)


XXXI. Sobre o canto da Sereia

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Agora reconheço o meu Lucílio! Ele está começando a revelar o caráter prometido. Acompanhe o ímpeto que o levou a fazer tudo o que é melhor, trabalhando de forma aprovada pela multidão. Eu não o consideraria maior ou melhor do que você planejou; pois no seu caso as fundações cobrem uma grande extensão de terreno; apenas acabe com tudo o que planejou e tome controle dos planos que você teve em mente.
  2. Em suma, você será um homem sábio, se você tapar seus ouvidos; nem é suficiente fechá-los com cera; você precisa de um abafador mais potente do que aquele que dizem Ulysses usou para seus camaradas. A música que ele temia era sedutora, mas não vinha de todos os lados; a canção, no entanto, que você tem que temer, ecoa em torno de você não de um único promontório, mas de cada canto do mundo. Navegue, portanto, não apenas evitando uma região que você desconfie por causa de suas traiçoeiras delícias, mas de todas as cidades. Seja surdo para aqueles que mais te amam; eles rezam por coisas ruins com boas intenções. E, se você quiser ser feliz, suplique aos deuses que nenhuma das preces para você sejam levadas a cabo.
  3. O que eles desejam acumular sobre você não são realmente coisas boas; há apenas um bem, a causa e o sustento de uma vida feliz – confiar em si mesmo. Mas isso não pode ser alcançado, a menos que se aprenda a desprezar o trabalho e a considerá-lo entre as coisas que não são nem boas nem más. Pois não é possível que uma única coisa seja ruim em um momento e boa em outro, às vezes leve e para ser suportada, e às vezes uma causa de pavor.
  4. O trabalho não é um bem. Então, o que é um bem? Eu digo, o desprezo ao trabalho[1]. É por isso que eu devo repreender homens que trabalham sem propósito. Mas quando, por outro lado, um homem luta por coisas honrosas, à proporção em que se aplica cada vez mais, e se permite cada vez menos ser derrotado ou deter-se, eu recomendarei sua conduta e gritarei meu encorajamento, dizendo: “Por tanto você é melhor! Levante-se, inspire o ar fresco, e supere essa colina, se possível, em um único arranco!”
  5. O trabalho é o sustento das mentes nobres. Não há, portanto, nenhuma razão para que, de acordo com essa velha promessa de seus pais, você deva escolher a fortuna que você deseja, ou o que você deva orar por ela; além disso, é vil para um homem que já recebeu toda a rodada de honras mais altas ainda importunar os deuses. Que necessidade há de juramentos? Faça-se feliz através de seus próprios esforços; você pode fazer isso, quando compreender que tudo o que é misturado com a virtude é bom, e que tudo o que é ligado ao vício é ruim. Da mesma forma que nada brilha se não tem luz misturada em si, e nada é negro a menos que contenha a escuridão ou atraia para si algo de penumbra, e como nada é quente sem o auxílio do fogo e nada frio sem ar; assim é a associação da virtude e do vício que torna as coisas honradas ou vis.
  6. O que então é o Bem? O conhecimento das coisas. O que é Mal? A falta de conhecimento das coisas. O seu sábio, que também é um artesão, vai rejeitar ou escolher em cada caso, como convém à ocasião; mas ele não teme o que ele rejeita, nem admira o que ele escolhe, se ele tiver uma alma forte e inconquistável. Eu o proíbo de ficar abatido ou deprimido. Não é suficiente se você não fugir do trabalho; peça por ele.
  7. “Mas,” você diz, “não é o trabalho insignificante e supérfluo, e trabalho inspirado por causas ignóbeis, um trabalho ruim?” Não; não mais do que o que é gasto em nobres empreendimentos, já que a própria qualidade que suporta o trabalho e se ergue a um árduo esforço é do espírito que diz: “Por que se torna negligente? Não é a digno de um homem temer o suor”.
  8. E além disto, para que a virtude seja perfeita, deve haver um temperamento e um esquema de vida uniforme que seja consistente consigo mesmo; e esse resultado não pode ser alcançado sem o conhecimento das coisas, e sem a arte que nos permite compreender as coisas humanas e as coisas divinas. Esse é o maior bem. Se você aproveitar este bem, você começa a ser um associado dos deuses, e não seu suplicante.
  9. “Mas como,” você pergunta, “alguém atinge esse objetivo?” Você não precisa atravessar as colinas de Peninos ou Graian, ou atravessar o deserto de Candavian, ou enfrentar o Sirte, ou Cila ou Caribdis[2], embora você tenha viajado através de todos estes lugares pelo suborno de um pequeno governador; a viagem pela qual a natureza o equipou é segura e agradável. Ela lhe deu tais dons para que possa, se não for desonesto com eles, elevar-se ao nível de Deus.
  10. Seu dinheiro, entretanto, não o colocará em nível com Deus; porque Deus não tem posses. Seu manto bordado não fará isso; porque Deus não traja vestes; nem irá a sua reputação, nem a sua própria presença, nem a notoriedade de seu nome por todo o mundo; porque ninguém conhece a Deus; muitos até o tem em baixa estima, e não sofrem por fazê-lo. A multidão de escravos que carrega sua liteira ao longo das ruas da cidade e em lugares estrangeiros não irá ajudá-lo, porque este Deus de quem falo, embora seja o mais alto e poderoso dos seres, carrega todas as coisas em seus próprios ombros. Nem a beleza nem a força podem fazer você abençoado, pois nenhuma dessas qualidades pode resistir à velhice.
  11. O que temos de procurar, então, é o que não passa cada dia mais e mais ao controle de algum poder que não pode ser resistido. E o que é isso? É a alma, mas a alma que é justa, boa e grande. O que mais você poderia chamar de tal alma do que um deus morando como convidado em um corpo humano? Uma alma como esta pode descer para um cavaleiro romano, assim como para um filho de liberto ou a um escravo. Pois o que é um cavaleiro romano, ou o filho de um liberto, ou um escravo? São meros títulos, nascidos da ambição ou do mal. Pode-se saltar para o céu das próprias favelas. Apenas eleve-se
e molde-se a de acordo com seu Deus.et te quoque dignum Finge deo.[3]

Esta modelagem não será feita em ouro ou prata; uma imagem que deve ser à semelhança de Deus não pode ser moldada de tais materiais; lembre-se que os deuses, quando eram bons para com os homens, eram moldados em barro.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] O argumento é que o trabalho não é, em si mesmo, um bem; se fosse, não seria louvável a um tempo e censurável em outro. Pertence, portanto, à classe de coisa que os estoicos chamavam de indiferente (indifferentia).

[2] Cila ou Caribdis: Sêneca estende a metáfora da ascensão para incluir as cadeias de montanha que atravessam a região montanhosa da Candávia, perto da Via Egnatia na Macedônia, depois (retornando aos perigos marítimos) os Sirtes da Líbia (bancos de areia traiçoeiros) e os dois perigos do estreito da Sicília confrontadas por Ulysses: Cila na costa da Calábria e Char Caribdis da Sicília (ver a carta XIV.8).

[3] Trecho de Eneida de Virgílio.

Carta 30: Sobre Conquistar o Conquistador (a morte)

Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la, dessa vez ilustrando seus ensinamentos com o caso real de Aufidius Bassus historiador romano contemporâneo de seu pai (Sêneca, o Velho).

Bassus está muito idoso e fraco, porém lúcido e corajoso frente a morte: “A filosofia nos concede essa dádiva; faz-nos alegres na própria visão da morte, fortes e corajosos embora o corpo nos falhe” (XXX, 2)

Na sequência Sêneca defende a ordem natural: “é tão tolo temer a morte quanto temer a velhice; pois a morte segue a velhice exatamente como a velhice segue a juventude. Aquele que não deseja morrer não pode ter desejado viver. Pois a vida nos é concedida com a condição de que morreremos” (XXX,10)

Termina a carta com seu frequente bom humor e final marcante:

“Mas o que eu realmente deveria temer é que você odeie esta longa carta mais do que a própria morte; então eu vou concluir. Você, entretanto, sempre pense na morte para que nunca precise temê-la.” (XXX, 18)

(imagem, Sarcófago de Junius Bassus, Museu do Tesouro de São Pedro, Vaticano)


XXX. Sobre Conquistar o Conquistador (a morte)

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu vi Aufidio Baso[1], aquele homem nobre, com saúde aquebrantada e lutando com seus anos. Mas eles já pesam tanto sobre ele que não pode se levantar; a velhice se assentou sobre ele, – sim, com todo o seu peso. Você sabe que seu corpo sempre foi delicado e sem vigor. Por muito tempo ele manteve a saúde na mão, ou, para falar mais corretamente, equilibrou-a; de repente, desmoronou.
  2. Assim como em um navio que faz água, você sempre pode parar a primeira ou a segunda fissura, mas quando muitos buracos começam a abrir e deixar entrar a água, o casco decrépito não pode ser salvo; da mesma forma, no corpo de um velho, há um certo limite até o qual você pode sustentar e escorar sua fraqueza. Mas quando começa a se assemelhar a um edifício em ruinas, quando cada articulação começa a espanar e enquanto uma está sendo reparada outra cai, – então é hora de um homem olhar em volta e considerar como pode sair.
  3. Mas a mente de nosso amigo Baso é ativa. A filosofia nos concede essa dádiva; faz-nos alegres na própria visão da morte, fortes e corajosos embora o corpo nos falhe. Um grande piloto pode navegar mesmo quando sua vela é rasgada; se seu navio for desmantelado, ele ainda pode arrumar o que resta do seu casco e segurá-lo ao seu curso. É isso que o nosso amigo Baso está fazendo; e ele contempla seu próprio fim com a coragem e a compostura que você consideraria apatia indevida em um homem que assim contemplasse o outro.
  4. Este é um grande feito, Lucílio, e um que necessita longa prática para se aprender, – partir calmamente quando a hora inevitável chega. Outros tipos de morte contêm um ingrediente de esperança: uma doença chega ao fim; um fogo é extinguido; as casas em ruina depositaram em segurança aqueles que pareciam certos de serem esmagados; O mar devolveu ilesos a costa aqueles a quem tinha engolido, com a mesma força pela qual os dragou; O soldado retraiu sua espada do pescoço de seu inimigo condenado. Mas aqueles a quem a velhice está levando para a morte não têm nada a esperar; a velhice por si só não concede nenhuma prorrogação. Nenhum final, é claro, é mais indolor; mas não há nenhum mais persistente.
  5. Nosso amigo Baso me pareceu assistir a seu próprio funeral, e ter seu próprio corpo para o enterro, e vivendo quase como se tivesse sobrevivido a sua própria morte, e suportando com resignação sábia seu pesar por sua própria partida. Pois ele fala livremente sobre a morte, tentando persuadir-nos de que, se este processo contém qualquer elemento de desconforto ou de medo, é culpa do moribundo, e não da própria morte; também, que não há mais aborrecimento no momento atual do que existe depois que acabou.
  6. “E é tão insano”, acrescenta, “para um homem temer o que não lhe acontecerá, como temer o que ele não sentirá se acontecer”. Ou será que alguém imagina que é possível que o agente pelo qual o sentimento é removido possa ser sentido? “Portanto,” diz Baso, “a morte está tão além de todo o mal que está além de todo o medo do mal.”
  7. Sei que tudo isso tem sido dito muitas vezes e deverá ser repetido muitas vezes ainda; mas nem quando os liam eram tais preceitos tão eficazes, nem quando os ouvia dos lábios daqueles que estavam a uma distância segura do medo das coisas que eles declaravam não deveriam ser temidas. Mas esse velho homem teve o maior impacto em mim quando falou da morte e a morte estava próxima.
  8. Pois devo dizer-lhe o que penso: Eu sustento que alguém é mais corajoso no próprio momento da morte do que quando se aproxima da morte. Pois a morte, quando está perto de nós, dá até aos homens inexperientes a coragem de não procurar evitar o inevitável. Assim, o gladiador, que, não importa o quão covarde foi durante toda a luta, oferece a sua garganta ao seu adversário e direciona a lâmina vacilante para o local vital. Mas um fim que está próximo, e que está prestes a vir, requer coragem obstinada da alma; isto é uma coisa mais rara, e ninguém, a não ser o homem sábio, pode manifestar.
  9. Portanto, eu escutei Baso com o mais profundo prazer; ele estava lançando seu voto sobre a morte e apontando sua natureza quando observada, por assim dizer, mais próximo à mão. Suponho que um homem teria a sua confiança em um grau maior, e teria mais credibilidade, se ele tivesse voltado à vida e pudesse declarar de experiência própria que não há mal na morte; e assim, com respeito à aproximação da morte, estes dirão com maior propriedade qual inquietação traz quem esteve em seu caminho, que a viram vindo e a receberam.
  10. O Baso pode ser incluído entre estes homens; e ele não quer nos enganar. Ele diz que é tão tolo temer a morte quanto temer a velhice; pois a morte segue a velhice exatamente como a velhice segue a juventude. Aquele que não deseja morrer não pode ter desejado viver. Pois a vida nos é concedida com a condição de que morreremos; para este fim nos leva nosso caminho. Portanto, quão tolo é temê-la, já que os homens simplesmente esperam o que é certo, mas temem apenas o que é incerto!
  11. A morte tem sua regra fixa, – equitativa e inevitável. Quem pode reclamar quando é governado por cláusulas que válidas a todos? A parte principal da equidade, entretanto, é igualdade. Mas é supérfluo neste momento presente defender a causa da Natureza; pois deseja que nossas leis sejam idênticas às suas; ela decide o que ela compôs, e compõe novamente o que ela decidiu.
  12. Além disso, se um homem tiver a sorte de ser colocado suavemente à deriva pela velhice, – e não subitamente arrancado da vida, mas retirado pouco a pouco, oh, em verdade, ele deve agradecer aos deuses, um e todos, porque, depois de ter tido a sua plenitude, ele é levado a um descanso estabelecido para a humanidade, um descanso que é bem-vindo ao cansado. Você pode observar certos homens que anseiam pela morte ainda mais fervorosamente do que outros costumam mendigar por vida. E não sei qual destes homens nos dá maior coragem, aqueles que exigem a morte ou aqueles que a encontram alegre e tranquilamente, pois a primeira atitude é às vezes inspirada pela loucura e pela repentina raiva; a segunda é a calma que resulta de julgamento firme. Antigamente homens encontravam-se com a morte com um ataque de raiva; mas quando a morte vem ao seu encontro, ninguém a recebe com alegria, exceto o homem que há muito tempo se preparou para a morte.
  13. Admito, portanto, que visitei com mais frequência esse meu querido amigo com muitos pretextos, mas com o propósito de saber se eu o encontraria sempre o mesmo, e se sua força mental talvez estivesse diminuindo em paralelo as competências de seu corpo. Mas estava aumentando, assim como a alegria do jóquei costuma mostrar-se mais claramente quando está na sétima rodada da prova, e se aproxima do prêmio.
  14. De fato, ele dizia com frequência, em harmonia com os conselhos de Epicuro: “Espero, antes de tudo, que não haja dor no momento em que um homem expira, mas se houver, encontrar-se-á um elemento de conforto em sua própria brevidade, pois nenhuma grande dor dura por muito tempo e, em todo caso, um homem encontrará alívio no momento em que alma e corpo estão sendo separados, mesmo que o processo seja acompanhado de dor terrível, no pensamento de que depois que a dor acabar, não pode sentir mais dor. Mas tenho certeza de que a alma de um velho está em seus lábios e que só é necessária uma pequena força para desprendê-la do corpo. Fogo que tenha capturado uma construção que o sustente precisa de água para ser apagado, ou, às vezes, a destruição do próprio edifício, mas o fogo em que falta sustento de combustível morre de si mesmo.”
  15. Fico feliz em ouvir essas palavras, meu caro Lucílio, não tão novas para mim, mas como me levando à presença de um fato real. E o que então? Não vi muitos homens romperem o fio da vida? Eu realmente vi esses homens; mas aqueles que têm mais influência em mim se aproximam da morte sem qualquer ódio pela vida, dando passagem à morte, por assim dizer, e não a puxando para eles.
  16. Baso sempre dizia: “É por nossa própria culpa que sentimos essa tortura, porque nos tememos pela morte somente quando acreditamos que nosso fim está próximo”. Mas quem não está perto da morte? Ela está pronta para nós em todos os lugares e em todos os momentos. “Consideremos”, continuou ele, “quando algum agente da morte parece iminente, quão mais próximos estão outras variedades de morrer do que aquelas temidas por nós”.
  17. Um homem é ameaçado por um inimigo, mas esta forma de morte é antecipada por um ataque de indigestão. E se estamos dispostos a examinar criticamente as várias causas do nosso medo, descobriremos que algumas existem, e outras só parecem existir. Não temamos a morte; temamos o pensamento da morte. Pois a morte está sempre a mesma distância de nós; portanto, se é para ser temida absolutamente, é para ser temida sempre. Pois qual estação de nossa vida é isenta da morte?
  18. Mas o que eu realmente deveria temer é que você odeie esta longa carta mais do que a própria morte; então eu vou concluir. Você, entretanto, sempre pense na morte para que nunca precise temê-la.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Aufidius Bassus foi um historiador romano que viveu no reinado de Tibério. Sua obra, foi continuada por Plínio. Sêneca, o Velho, (pai do nosso Sêneca) fala muito de Bassus como historiador.

Carta 29: Sobre evitar ajudar os não interessados

Na carta 29 Sêneca nos ensina que não devemos tentar ajudar aqueles que não pediram ajuda ou os que não se interessam por nossos ensinamentos: “não se deve falar com um homem a menos que ele esteja disposto a ouvir.” (XXIX, 1)

Segundo Sêneca, quando distribuímos nossa ajuda indiscriminadamente esta é diluída e enfraquecida: “O arqueiro não deve atingir ao alvo apenas às vezes; ele deve errar apenas às vezes. Aquilo que é eficaz por acaso não é uma arte. Ora, a sabedoria é uma arte; ela deve ter um objetivo definido, escolhendo apenas aqueles que farão progresso, mas se afastando daqueles a quem considera incorrigíveis, mas não os abandonando prematuramente, e apenas quando o caso se mostra sem solução mesmo após tentado remédios drásticos.“(XXIX, 3)

Conclui a carta com mais uma frase de Epicuro: “Eu nunca quis atender à multidão, pois o que eu sei, eles não aprovam, e o que eles aprovam, eu não sei.”(XXIX, 10)

(Imagem Platão e Aristóteles em “Escola de Atenas” por Raphael)


Carta XXIX: Sobre evitar ajudar os não interessados

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você tem perguntado sobre o nosso amigo Marcelino e você deseja saber como ele está se dando. Ele raramente vem me ver, por nenhuma outra razão senão que ele tem medo de ouvir a verdade, e no momento está se mantendo afastado do perigo de ouvi-la; pois não se deve falar com um homem a menos que ele esteja disposto a ouvir. É por isso que muitas vezes se questiona se Diógenes[1] e os outros cínicos, que empregavam uma liberdade de expressão sem discernimento e ofereciam conselhos a qualquer um que se interpusesse, deveriam ter seguido esse caminho.
  2. Por que se deve reprimir os surdos ou aqueles que são mudos de nascimento ou por doença? Mas você responde: “Por que eu deveria poupar palavras? Elas não custam nada. Eu não posso saber se irei ajudar o homem a quem dou conselhos, mas sei bem que vou ajudar alguém se eu aconselhar muitos. Eu tenho que disseminar este conselho a mão-cheia. É impossível que alguém que tente muitas vezes não tenha sucesso alguma vez.”
  3. Esta prática, meu caro Lucílio, é, creio eu, exatamente o que um homem de grande alma não deve fazer; sua influência está enfraquecida; ela tem muito pouco efeito sobre aqueles que poderia ajudar se não tivesse se tornado tão rançosa. O arqueiro não deve atingir ao alvo apenas às vezes; ele deve errar apenas às vezes. Aquilo que é eficaz por acaso não é uma arte. Ora, a sabedoria é uma arte; ela deve ter um objetivo definido, escolhendo apenas aqueles que farão progresso, mas se afastando daqueles a quem considera incorrigível, mas não os abandonando prematuramente, e apenas quando o caso se mostra sem solução mesmo após tentado remédios drásticos.
  4. Quanto ao nosso amigo Marcelino, ainda não perdi a esperança. Ele ainda pode ser salvo, mas a ajuda deve ser oferecida em breve. Há realmente o risco que possa prejudicar seu ajudante; pois há nele um caráter inato de grande vigor, embora inclinado à maldade. No entanto, enfrentarei esse perigo e serei corajoso o suficiente para lhe mostrar suas falhas.
  5. Ele agirá de acordo com sua maneira usual; ele recorrerá à sua inteligência, – a inteligência que pode gerar sorrisos mesmo de lamentos. Ele vai virar a brincadeira, primeiro contra si mesmo, e depois contra mim. Ele evitará todas as palavras que eu vou dizer. Ele questionará nossos sistemas filosóficos; ele acusará os filósofos de aceitar propinas, manter amantes e satisfazer seus apetites. Ele me mostrará um filósofo que foi apanhado em adultério, outro que assombra os cafés e outro que aparece na corte.
  6. Ele vai trazer a meu conhecimento Aristo, o filósofo de Marcus Lépido, que costumava manter discussões em sua carruagem; pois esse foi o tempo que ele levou para editar suas pesquisas, de modo que Escauro disse dele quando lhe perguntaram a que escola pertencia: “De qualquer modo, ele não é um dos filósofos caminhantes[2]“. Júlio Graecino também, homem de distinção, quando lhe pediu uma opinião sobre o mesmo ponto, respondeu: “Não posso lhe dizer, porque não sei o que ele faz quando desmontado”, como se a consulta se referisse a um gladiador de biga.
  7. São charlatões desse tipo, para quem seria mais meritório ter deixado a filosofia sozinha ao invés de traficar dela, que Marcelino vai jogar em meu rosto. Mas decidi resistir às provocações; ele pode me ridicularizar, mas eu talvez o leve às lágrimas; ou, se ele persistir em suas piadas, eu me alegrarei, por assim dizer, no meio da tristeza, porque ele é abençoado com uma espécie tão alegre de loucura. Mas esse tipo de alegria não dura muito. Observe esses homens, e você vai notar que em um curto espaço de tempo eles riem em excesso e encolerizam-se em excesso.
  8. É meu plano aproximar e mostrar-lhe quanto maior é seu valor quando muitos o desprezam. Mesmo que eu não extinga seus defeitos, vou pôr um controle sobre eles; eles não cessarão, mas pararão por um tempo; e talvez até cessem, se criarem o hábito de parar. Esta é uma coisa a não ser desprezada, uma vez que para homens seriamente feridos a bênção de um alívio é um substituto para a saúde.
  9. Então, enquanto me preparo para tratar com Marcelino, você, que é capaz, e que entende de onde e para onde vai seu caminho, e que, por essa razão tem uma ideia da distância a percorrer, ajuste seu caráter, desperte sua coragem, e fique firme em face das coisas que o tem aterrorizado. Não conte o número daqueles que inspiram medo em você. Você não consideraria como um tolo quem tem medo de uma multidão em um lugar onde pode passar só um por vez? Da mesma forma, não há muitos que têm possibilidade de matar você, embora haja muitos que ameaçam você com a morte. A natureza ordenou assim que, como somente um lhe deu vida, assim somente um a retirará.
  10. Se você tivesse alguma vergonha, você teria me liberado de pagar a última parcela. Ainda assim, também não serei sovina, mas irei exonerar minhas dívidas até o último centavo e forçar sobre você o que ainda devo: “Eu nunca quis atender à multidão, pois o que eu sei, eles não aprovam, e o que eles aprovam, eu não sei.”
  11. “Quem disse isso?” Você pergunta, como se fosse ignorante a quem eu estivesse insistindo em servir; é Epicuro. Mas esta mesma palavra de ordem soa em seus ouvidos por cada seita, – Peripatético, Académico[3], Estoico, Cínico. Pois quem é satisfeito pela virtude pode agradar à multidão? É preciso truques para ganhar aprovação popular; E tem de fazer-se semelhante a eles; eles vão recusar aprovação se eles não reconhecerem em você um de si próprios. No entanto, o que você pensa de si é muito mais do que o que os outros pensam de você. A benevolência dos homens ignóbeis só pode ser conquistada por meios ignóbeis.
  12. Qual será o benefício, então, daquela filosofia alardeada, cujos elogios cantamos e que, segundo se diz, deve ser preferida a toda arte e toda propriedade? Certamente, isso fará com que você prefira agradar a si mesmo ao invés da população, isso fará você ponderar, e não meramente contar, os julgamentos dos homens, vai fazer você viver sem medo de deuses ou homens, vai fazer você vencer males ou acabar eles. Caso contrário, se eu o vejo aplaudido pela aclamação popular, se a sua entrada na cena é saudada por um rugido de aplausos e aplausos, as marcas de distinção se valem apenas para atores, – se todo o estado, mesmo as mulheres e crianças, cantam seus louvores, como posso ajudar a apiedar-se de você? Pois eu sei a qual caminho leva a tal popularidade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um discípulo de Antístenes, antigo pupilo de Sócrates. Tornou-se um mendigo que habitava as ruas de Atenas, fazendo da pobreza extrema uma virtude; diz-se que teria vivido num grande barril, no lugar de uma casa, e perambulava pelas ruas carregando uma lamparina, durante o dia, alegando estar procurando por um homem honesto. O Cinismo foi uma corrente filosófica marcada por um ostensivo desprezo pelo conforto e prazer.

[2]Escola peripatética foi um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, o fundador. Fundada em c.336 a.C., quando Aristóteles abriu a primeira escola filosófica no Liceu em Atenas, durou até o século IV. “Peripatético” (em grego clássico: περιπατητικός), é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’. Peripatéticos (ou ‘os que passeiam’) eram discípulos de Aristóteles,

[3]Academia de Platão (também chamada de Academia PlatônicaAcademia de Atenas ou Academia Antiga) é uma academia fundada por Platão, aproximadamente em 384/383 a.C..

Carta 28: Sobre viajar como cura para o descontentamento

Na carta 28 Sêneca retoma o ensinamento de Sócrates de que viajar ou mudar de ambiente não é solução para nossos problemas, isso porque:

“Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.” (XXVIII.2)

Porém uma vez que a paz interior é atingida, qualquer lugar ou ambiente será agradável:

“você não ficara surpreso em não obter benefício dos cenários novos aos quais você busca através da exaustão das cenas antigas. Pois o primeiro lhe teria agradado de toda forma, se você o tivesse entendido como sendo inteiramente seu. Como é, no entanto, você não está viajando; você está à deriva e sendo conduzido, apenas trocando um lugar por outro, embora o que você procura, – viver bem, – pode ser encontrado em toda parte”. (XXVIII.6)

Na conclusão Sêneca diz “Mas o que importa quantos mestres um homem tem? “Escravidão” não tem plural; e quem a despreza é livre“.

(imagem Mercúrio e Argos por Velazquez, Mercúrio era o deus protetor dos viajantes)


XXVIII. Sobre Viajar como cura para o descontentamento

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você acha que só você teve essa experiência? Você está surpreso, como se fosse uma novidade, que depois de tão longa viagem e tantas mudanças de cena você não tenha sido capaz de se livrar da tristeza e do peso de sua mente? Você precisa de uma mudança de alma, em vez de uma mudança de clima. Embora você possa atravessar vastos espaços de mar, e embora, como nosso Virgílio observa:  As terras e as cidades são deixadas para trás, Suas falhas o seguirão a qualquer lugar que você viaje. [1]
  2. Sócrates fez a mesma observação a alguém que se queixou; ele disse: “Por que você se admira que viajar o globo não o ajuda, visto que você sempre se leva consigo? A razão que o colocou a vagar está sempre em seu calcanhar.” Que prazer há em ver novas terras? Ou na inspeção de cidades e pontos de interesse? Toda a sua agitação é inútil. Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.
  3. Reflita que seu comportamento presente é como o da profetisa que Virgílio descreve: ela está excitada e incitada pela fúria e contém dentro de si muita inspiração que não é sua: A sacerdotisa entra em frenesi, se por acaso pode agitar o grande deus do seu coração.[2]
  4. Você perambula para cá e para acolá, para livrar-se do fardo que pesa sobre você, embora este se torne mais problemático por causa de sua própria inquietação, assim como em um navio a carga quando estacionária não traz nenhum problema, mas quando se desloca para os lados, faz o navio inclinar-se lateralmente na direção onde se estabeleceu. Qualquer coisa que você faz diz respeito a você, e você se machuca por sua própria agitação; porque você está agitando um homem doente.
  5. Uma vez esse problema removido, toda mudança de cena se tornará agradável; embora você possa ser levado às extremidades da terra, a qualquer canto de uma terra selvagem que você possa se encontrar, esse lugar, por mais difícil que seja, será uma morada hospitaleira. A pessoa que você é importa mais do que o lugar para o qual você vai; por isso não devemos fazer da mente um fiador para um só lugar. Viva essa crença: “Não nasci para nenhum canto do universo, todo este mundo é meu lar”.
  6. Se você entender este fato claramente, você não ficara surpreso em não obter benefício dos cenários novos aos quais você busca através da exaustão das cenas antigas. Pois o primeiro lhe teria agradado de toda forma, se você o tivesse entendido como sendo inteiramente seu. Como é, no entanto, você não está viajando; você está à deriva e sendo conduzido, apenas trocando um lugar por outro, embora o que você procura, – viver bem, – pode ser encontrado em toda parte.
  7. Pode existir algum lugar tão cheio de confusão como o Fórum? No entanto, você pode viver em silêncio até mesmo lá, se necessário. Naturalmente, se alguém tivesse permissão para fazer os próprios arranjos, deveria fugir da própria vista e vizinhança do Fórum. Pois, assim como os lugares pestilentos atacam até mesmo a constituição mais forte, há também alguns lugares que são prejudiciais para uma mente saudável que ainda não é bastante sólida, pois está se recuperando de sua doença.
  8. Eu discordo daqueles que se atiram nas ondas e, dando boas-vindas a uma existência tempestuosa, lutam diariamente contra os problemas da vida. O sábio suportará tudo isso, mas não o escolherá; ele prefere estar em paz em vez de em guerra. É muito pouco ter eliminado suas próprias falhas, se você deve brigar com as dos outros.
  9. Dizem: “Havia trinta tiranos em torno de Sócrates, e, contudo, eles não podiam quebrar seu espírito”; Mas o que importa quantos mestres um homem tem? “Escravidão” não tem plural; e quem a despreza é livre, – não importa quão grande seja a multidão de senhores que enfrente.
  10. É hora de parar, mas não antes de eu ter pago minha obrigação. “O conhecimento do pecado é o começo da salvação”. Este ditado de Epicuro parece-me ser um nobre. Pois quem não sabe que pecou, não deseja correção; você deve descobrir-se em erro antes que você possa se reformar.
  11. Alguns se vangloriam de suas falhas. Você acha que um homem tem alguma intenção de consertar seus caminhos se considera seus vícios como se virtudes fossem? Portanto, na medida do possível, prove-se culpado, procure acusações contra si mesmo; desempenhe o papel, primeiro de acusador, depois de juiz, por último de executor. Às vezes seja duro com você mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Eneida de Virgílio.
Terraeque urbesque recedant, sequentur te, quocumque perveneris

[2] Trecho de Eneida de Virgílio.
Bacchatur vates, magnum si pectore possit Excussisse deum.

Carta 27: Sobre o Bem que Permanece

Na carta 27 Sêneca fala dos problemas que prazeres passageiros causam e da incômoda culpa que deixam muito depois do prazer acabar.

“Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. ” (XXVII.2)

Sempre atual, Sêneca fala do pouco valor dado a sabedoria: “Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.” (XXVII.8)

Conclui a carta com mais um dito de Epicuro: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” (XXVII.9)

(Imagem, Denário de prata de Metelo Cipião, exemplo de conduta estoica segundo Sêneca)


XXVII. Sobre o Bem que permanece

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. “O que?”, diz você, “Está me dando conselhos?” De fato, você já se aconselhou, já corrigiu suas próprias falhas? É esta a razão por que você tem tempo livre para reformar outros homens? Não, não sou desavergonhado ao ponto de pretender curar meus semelhantes quando estou doente. Estou, no entanto, discutindo com você problemas que afetam a nos dois, e compartilhando o remédio com você, como se estivéssemos padecendo no mesmo hospital. Ouça-me, portanto, como faria se eu estivesse falando sozinho. Eu estou confessando a você meus pensamentos mais íntimos, e estou discutindo comigo mesmo, usando-o apenas como pretexto.
  2. Eu continuo gritando para mim mesmo: “Conte seus anos, e você terá vergonha de desejar e perseguir as mesmas coisas que você desejou em seus dias de juventude. Certifique-se desta única coisa antes de morrer, – deixe suas falhas perecerem antes. Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. Eles não são substanciais, eles não são confiáveis, mesmo se eles não nos prejudicam, eles são passageiros.
  3. Procure ao invés bens que permanecem. Mas não há tal bem, a não ser aquele descoberto pela alma por si mesma: só a virtude proporciona uma alegria eterna e tranquilizadora, mesmo que surja algum obstáculo, mas como uma nuvem passageira, que se interpõe frente ao sol, mas nunca prevalece contra ele. “
  4. Quando será sua vez de alcançar esta alegria? Até agora, você realmente não foi lerdo, mas você deve acelerar o seu ritmo. Resta muito trabalho; para enfrentá-lo, você deve usar todas suas horas de vigília, e todos seus esforços, se você deseja o resultado realizado. Este assunto não pode ser delegado a outra pessoa.
  5. O outro tipo de atividade intelectual admite assistência externa. Em nossa época havia um certo homem rico chamado Calvísio Sabino; ele tinha a conta bancária e o cérebro de um escravo liberto. Nunca vi um homem cuja boa fortuna tenha sido uma ofensa maior a sua propriedade. Sua memória era tão falha que ele às vezes esqueceria o nome de Ulisses, ou Aquiles, ou Príamo, nomes que conhecemos tão bem quanto conhecemos os de nossos próprios assistentes. Nenhum idoso senil, que não pode dar a homens seus nomes próprios, mas é compelido a inventar nomes para eles, – nenhum homem, eu digo, clama os nomes dos membros de sua tribo de forma tão atroz como Sabino costumava chamar os heróis de Troia e Aqueus. Mas, no entanto, ele desejava parecer erudito.
  6. Assim ele inventou este atalho para aprender: ele pagou preços fabulosos por escravos, – um para conhece Homero de cor e outro para Hesíodo; ele também delegou um escravo especial para cada um dos nove poetas líricos[1]. Você não precisa se admirar que ele tenha pago altos preços por esses escravos; se ele não os encontrava prontos à mão ele encomendava um a ser feito sob medida. Depois de recolher este séquito, ele começou a aborrecer seus convidados; Ele mantinha esses ajudantes ao pé de seu sofá, e pedia de vez em quando os versos para que ele os repetisse, que, muitas vezes, eram quebrados no meio de uma palavra.
  7. Satelio Quadrato, um instigador e, consequentemente, um puxa-saco de milionários fúteis, e também (pois esta qualidade vai com as outras duas) um zombador deles, sugeriu a Sabino que ele deveria ter filólogos para reunir os pedaços. Sabino observou que cada escravo havia lhe custado cem mil sestércios; Satelio respondeu: “Você poderia ter comprado tantas quantas estantes de livros por uma quantia menor.” Mas Sabino sustentou que o que qualquer membro de sua casa sabe, ele mesmo também sabe.
  8. Este mesmo Satelio começou a aconselhar Sabino a tomar lições de luta, mesmo doentio, pálido e magro como era, Sabino respondeu: “Como posso? Eu mal posso ficar vivo agora.” – “Não diga isso, eu lhe suplico” – replicou o outro -, “considere quantos escravos perfeitamente saudáveis você tem!” Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.
  9. Mas deixe-me pagar a minha dívida e dizer adeus: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” Epicuro repete este dizer de várias maneiras e contextos; mas nunca pode ser repetido em excesso, já que nunca é compreendido muito bem. Pois para algumas pessoas o remédio deve ser meramente prescrito; no caso de outras, deve ser forçado goela abaixo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Troia e Aqueus: a Ilíada era a leitura de matéria-prima dos estudantes romanos de elite, mas Calvísio, nem conseguia lembrar seus heróis homéricos. (Os assistentes pessoais atendiam os políticos fornecendo os nomes de quem eles encontravam no fórum.) Hesíodo era muito favorecido por suas máximas morais, mas os nove poetas líricos são muito menos propensos a fazer parte do repertório romano e a compra de nove escravos, um por cada poeta, certamente foi adicionado por Sêneca para animar a história.

Carta 26: Sobre a velhice e a morte

Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la.

Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de suicídio imposta por Nero. Ainda assim, ele é grato por sua mente ainda estar afiada, mesmo que seu corpo estivesse em decadência, como convém a um estoico que dá valor à sua faculdade mental e considera o corpo um indiferente preferido.

você diz,  é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.”(XXVI.4)

Uma morte rápida e súbita é fácil e preferível, mas a realidade é que a maioria de nós vai decair lentamente, perdendo tanto a nossa força física quanto a mental no processo. Esse é o difícil desafio de se aproximar do fim, e é por isso que a forma como nos aproximamos da morte é o teste final de nosso caráter. Como vamos reagir à nossa crescente dependência dos outros? É melhor ficar por aqui até o último minuto, ou caminhar pela porta aberta, como Epiteto diz, enquanto ainda estamos no controle? (

É uma boa prática perguntar a nós mesmos a mesma questão, não apenas sobre a morte, mas sobre como nos comportamos todos os dias: estamos realmente tentando, ainda que imperfeitamente, viver a vida estoica, ou é apenas conversa? Sêneca atribui valor limitado ao aprendizado teórico. A prova está na prática:

Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.”(XXVI.7)

Este é um ponto crucial, e tão comumente subestimado. Muitas vezes falamos de alguém morrendo “prematuramente”. Mas nós baseamos isso em expectativas estatísticas. Do ponto de vista do Logos, a teia cósmica de causa e efeito, não existe algo muito cedo ou muito tarde. As coisas acontecem quando acontecem. E esse conhecimento teórico tem o potencial de ser de enorme interesse prático, não perca tempo, pela simples razão de que você não saber quanto tempo tem no banco.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


XXVI. Sobre a velhice e a morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Eu estava ultimamente dizendo que estava à vista da velhice[1]. Agora estou com medo de ter deixado a velhice atrás de mim. Pois alguma outra palavra se aplicaria agora a meus anos, ou de qualquer maneira a meu corpo; uma vez que a velhice significa um tempo da vida que se está cansado, em vez de esmagado. Você pode me classificar na classe desgastada, – daqueles que estão chegando ao fim.
  2. No entanto, eu agradeço a mim mesmo, com você como testemunha; porque eu sinto que a idade não causou nenhum dano a minha mente, embora eu sinta seus efeitos em minha constituição. Somente meus vícios, e as ajudas exteriores a esses vícios, chegaram à senilidade; minha mente é forte e se regozija por ter apenas ligeira conexão com o corpo. Ela deixou de lado a maior parte de sua carga. Está alerta; ela rejeita o tema da velhice; declara que a velhice é seu tempo de florescimento.
  3. Deixe-me levá-la em consideração, e deixá-la aproveitar as vantagens que possui. A mente me pede que pense um pouco e considere o quanto dessa paz de espírito e moderação de caráter devo à sabedoria e quanto a meu tempo de vida; me convida a distinguir cuidadosamente o que não posso fazer e o que não quero fazer… pois por que alguém deve queixar-se ou considerar uma desvantagem, se as forças que deveriam chegar a um fim falharam?
  4. “Mas,” você diz, “é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.” Mas há algum melhor fim para tudo isso do que planar para seu próprio refúgio, quando a natureza se vai? Não que haja algo doloroso em um choque e uma partida repentina da existência; é apenas porque este outro modo de partida é fácil, – uma retirada gradual. Eu, de qualquer modo, como se o teste estivesse à mão e chegasse o dia de pronunciar sua decisão sobre todos os anos da minha vida, vigio-me e comungo assim comigo:
  5. “A demonstração que fizemos até o presente, em palavra ou em ação, não vale nada. Tudo isso é apenas uma promessa insignificante e enganosa de nosso espírito, e está envolto em muito charlatanismo. Vou deixar a cargo da morte determinar o progresso que fiz. Portanto, sem timidez, estou preparando para o dia em que, deixando de lado todo o artifício de palco e maquiagem de ator, eu deverei me julgar, – se estou meramente declamando sentimentos corajosos, ou se realmente os sinto, se todas as ameaças arrojadas que eu proferi contra a fortuna eram fingimento e farsa.
  6. Deixe de lado a opinião do mundo, ela é sempre vacilante e sempre parcial. Deixe de lado os estudos que você tem perseguido durante toda a sua vida, a morte entregará o julgamento final em seu caso. Isto é o que quero dizer: seus debates e palestras, seus axiomas recolhidos a partir dos ensinamentos dos sábios, sua conversa culta, – tudo isso não oferece nenhuma prova da verdadeira força da sua alma. O homem mais tímido pode fazer um discurso ousado. O que você fez no passado será evidente apenas no momento em que você expirar seu último suspiro. Eu aceito as condições; eu não me acovardo frente a decisão. “
  7. Isto é o que eu digo a mim mesmo, mas gostaria que você pensasse que eu o digo a você também. Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.
  8. Eu estava apenas pretendendo parar, e minha mão estava se preparando para a frase de encerramento; mas os ritos ainda devem ser realizados e as despesas de viagem para a carta desembolsadas. E apenas suponha que eu não direi de quem eu pretendo emprestar a soma necessária; você sabe de cujos cofres dependo. Espere só mais um momento, e eu pagarei de minha conta; Entretanto, Epicuro me favorece com estas palavras: “Pense na morte”, ou melhor, se preferir a frase, pense na “migração para o céu”.
  9. O significado é claro, – é uma coisa maravilhosa aprender minuciosamente como morrer. Você pode considerar que é supérfluo aprender um texto que pode ser usado apenas uma vez; mas essa é exatamente a razão pela qual devemos pensar em uma coisa. Quando nunca podemos provar se realmente sabemos alguma coisa, devemos sempre estar aprendendo.
  10. “Pense na morte”. Ao dizer isso, ele nos pede para pensar na liberdade. Aquele que aprendeu a morrer desaprendeu a escravidão; está acima de qualquer poder externo, ou, pelo menos, está além disso. Que terrores tem prisões e correntes e grades para ele? A sua saída é clara. Existe apenas uma cadeia que nos liga à vida, e essa é o amor pela vida. A corrente não pode ser desprezada, mas pode ser enganada, de modo que, quando a necessidade exigir, nada pode retardar ou impedir que estejamos prontos para fazer de uma só vez o que em algum momento seremos obrigados a fazer.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Veja a carta XII. Sêneca tinha por este tempo, pelo menos, sessenta e cinco anos. Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de Nero para cometer suicídio.