Temos uma excelente novidade! Um pouco de variação. Quem acompanha o blog sabe que publicamos 99 cartas de Sêneca, traduzidas do inglês por Alexandre Vieira.
Recentemente o professor Aldo Dinucci lançou livro com tradução direto do latim de Cartas Selecionadas. Ao ler irão perceber estilo muito mais conciso e próximo do original de Sêneca. Não irei comentar a carta, mas trazer a pequena introdução que Aldo nos enviou:
“Pessoal, pretendi fazer um manual de Sêneca com a minha tradução destas nove cartas do Latim. Sêneca me ajudou muito em um período muito difícil de minha vida. Esse livro é minha homenagem a quem considero um dos mais poderosos intelectuais (filósofo, dramaturgo, poeta, humorista, político) de todos os tempos. Meu objetivo é que seu pensamento continue ajudando quantas pessoas dele necessitarem. Saudações a todos. Aldo Dinucci.“
Professor Doutor em Logica & Filosofia – Universidade Federal de Sergipe
(1) Onde está aquela tua prudência? Onde está a sagacidade nas coisas que se devem discernir? Onde está a grandeza de alma? Já as pequenas coisas te afligem? Teus servos viram, em tuas ocupações, a oportunidade para a fuga. Se os amigos te enganaram, que tenham então este nome, o qual nosso erro lhes colocou de modo impensado. E que sejam assim chamados, para que seja mais vergonhoso não o serem. Pois bem, há algo a menos dentre as tuas coisas: aqueles amigos, que agora te faltam, são aqueles que destruíam a tua obra e te consideravam molesto aos demais.
(2) Nenhuma destas coisas é insólita, nenhuma inesperada. Ofender-te com estas coisas é tão ridículo quanto te queixares porque caíste em público ou porque te sujaste na lama. A mesma condição tem a vida, o banho público, a multidão, a viagem: algumas coisas serão atiradas em ti, algumas coisas acontecerão. Não é coisa delicada viver. A uma longa viagem vieste e é necessário que escorregues, que tropeces, que caias, que te canses e que exclames: “Ó Morte!”, isto é, é necessário que mintas. Num lugar, deixarás para trás um companheiro; noutro, sepultarás um; noutro ainda, terás medo; deste modo, por entre ferimentos, é necessário atravessar esta difícil viagem. (3) Deseja alguém morrer? Que seu espírito esteja preparado contra todas as coisas; que saiba, por si mesmo, que chegou onde estronda o trovão. Que saiba por si mesmo que chegou onde…
Perdas e Vingança estabeleceram seus quartéis de governo E pálidas e tristes doenças e a velhice habitam[1].
Nesta morada, é necessário gastar a vida. Escapar dela não podes, desprezá-la podes. (4) Desprezarás, porém, se muitas vezes pensares e conjecturares as coisas futuras. Todos mais corajosamente atravessam aquilo para o que durante muito tempo se prepararam, e, do mesmo modo, resistem se previamente refletem sobre os obstáculos. Por outro lado, teme-se muito aquilo contra o que não se preparou, mesmo as coisas fúteis. Isto é necessário fazer: que nada seja para nós inesperado. E, porque todas as coisas são mais graves por <serem> novidades, a reflexão constante te defenderá disso – assim, peço-te que, de modo algum, ajas como um mau recruta.
(5) “Os servos me deixaram”.A outro roubaram, a outro falsamente acusaram, a outro assassinaram, a outro traíram, a outro esmagaram, a outro envenenaram, a outro atingiram com falsa acusação: o que quer que digas, aconteceu a muitos. Em seguida, <é preciso que saibas que> muitos e variados dardos há e são dirigidos a nós. Alguns estão fixados em nós, alguns são lançados e chegam com força máxima, (6) alguns, que vão atingir outros, resvalam em nós.
(6) Em nada nos admiremos destes <dardos>, para os quais nascemos; os quais, por esta razão, de modo algum devem ser lamentados, porque são pátria para todos. Assim, digo que são iguais <para todos>, pois também se pode sofrer daquilo do que se escapa. Além disso, uma lei equitativa é o que é estabelecido para todos, não o que ocorre para todos. Que seja prescrita equidade ao espírito e que paguemos, sem queixas, os tributos de nossa condição mortal.
(7) O inverno faz vir o frio: é necessário gelar. O tempo traz de novo o calor: é necessário arder. A intempérie do céu provoca a saúde: é necessário adoecer. Uma fera em algum lugar se aproximará de nós, e também um homem mais pernicioso que todas as feras. Algo a água, algo o fogo retirar-nos-á. Esta condição das coisas não podemos mudar. Mas isto podemos <fazer>: adotar um espírito elevado e digno do homem nobre para (8) que corajosamente suportemos as coisas fortuitas e nos harmonizemos com a Natureza. A Natureza tempera este reino que vês com as mutações: o céu sereno sucede ao coberto de nuvens; agitam-se os mares com a condição de que se acalmem; parte do céu se ergue, parte imerge. A eternidade das coisas consiste nos contrários.
(9) É necessário que nosso espírito se adapte a esta lei; é necessário que siga esta lei, que a obedeça. E, o que quer que aconteça, é necessário que pense ter devido acontecer e que não deseje repreender a natureza, que siga a Divindade, da qual todas as coisas provêm.
Mau soldado é quem (10) segue gemendo o comandante. Portanto, cheios de ardor e diligentes, recebamos as ordens e não desertemos o curso desta belíssima obra à qual foi entrelaçada o que quer que teremos de suportar. E deste modo, exortemos a Júpiter, cujo governo é ornador dessa imensidade, da mesma maneira que nosso Cleantes o exorta através de versos mais que eloquentes, versos os quais me é permitido traduzir para o nosso idioma, a exemplo de Cícero, mais eloquente dos homens. Se te agradarem, aprová-los-á, se te desagradarem, saberás que aqui segui o exemplo de Cícero:
(11) Conduz-me, ó Pai Excelso e Senhor do Mundo, Para onde quer que queiras, nenhum obstáculo impedir-me-á de seguir-te. Diligente, estarei junto a ti. E, caso eu não o queira fazer o que é possível ao intrépido, ainda assim seguir-te-ei, gemendo e infeliz. O Destino conduz quem lhe obedece e arrasta a quem lhe opõe resistência.
(12) Que vivamos assim, que falemos assim; que o destino nos encontre prontos e diligentes. Eis o espírito elevado que confiou a si mesmo ao destino. E, em oposição a ele, o fraco e degenerado, que luta contra e julga mal a ordem do mundo e prefere corrigir os Deuses que a si mesmo.
Na carta 99 Sêneca fala sobre a consolação estoica para aqueles que sofrem com a morte. É uma carta severa, na qual vemos que o estoicismo pode ser duro, mas oferece um caminho para o fim do luto.
Nesta carta, Sêneca é bastante firme em sua oposição ao Epicurismo, contudo quebra o mito de que o estoicismo e insensível ao sofrimento:
“Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.” (XCIX, 15)
Ou seja, o estoico sente emoções e sofre por elas, apenas tenta mante-las sob controle, ao invés de ficar sob controle delas.
1. Anexei uma cópia da carta que escrevi a Marulo[1] na ocasião da perda de seu filho em tenra idade – morte que, fiquei sabendo, ele suportou com quase nula coragem, comportando-se de forma bastante afeminada em sua dor. Nesta carta não observei a forma habitual de condolências: pois não acreditava que ele deveria ser tratado suavemente já que, na minha opinião, ele merecia críticas e não consolação. Quando um homem é atingido e está achando difícil suportar um ferimento grave, devemos fazer sua vontade por um tempo: permitamos que ele satisfaça seu pesar ou, de qualquer forma, dissipe o primeiro choque, até que a dor vá esmorecendo e perca a violência inicial.
2. Mas aqueles que adotam indulgência no sofrimento devem ser repreendidos imediatamente e devem saber que existe alguma insensatez, mesmo nas lágrimas.[2] “É consolação que você procura? Deixe-me dar-lhe uma repreensão em vez disso! Você se comporta como uma mulher na maneira em que você encara a morte do seu filho, o que faria se tivesse perdido um amigo íntimo? Um filho, um filho pequeno de futuro incerto está morto, apenas um fragmento de tempo foi perdido!
3. Nós caçamos desculpas para o sofrimento, nós até mesmo proferimos queixas injustas sobre a Fortuna, como se a Fortuna nunca nos desse motivos para reclamar! Mas eu realmente acreditava que você possuísse espírito suficiente para lidar com problemas concretos, sem contar os problemas irreais sobre os quais os homens se lamentam por força do hábito. Se você tivesse perdido um amigo (o maior golpe de todos),[3] mesmo assim você deveria tentar se regozijar por tê-lo possuído em vez de lamentar sua perda.
4. Mas muitos homens não conseguem contar quão variados foram seus ganhos, quão ótimas foram as suas alegrias. Sofrimento como o seu tem isso entre outros males: não é apenas inútil, mas ingrato. Foi tudo em vão ter tido tantos amigos? Durante tantos anos, em meio a associações tão próximas, depois de uma comunhão tão íntima de interesses pessoais, nada foi realizado? Você enterra a amizade com um amigo? E por que lamentar-se por ter perdido, se não foi útil tê-lo tido? Acredite-me, grande parte daqueles que amamos, embora o acaso tenha removido suas pessoas, ainda permanecem conosco. O passado é nosso e não há nada mais seguro para nós do que aquilo que se foi.
5. Nós somos ingratos pelos ganhos passados porque esperamos o futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não fosse ser rapidamente misturado com o passado. As pessoas estabelecem um limite estreito para suas alegrias se elas só as aproveitam no presente, tanto o futuro quanto o passado servem para nosso deleite: um pela antecipação e o outro pelas memórias, mas o primeiro é contingente e pode não acontecer, enquanto o segundo é certo. Que loucura é, portanto, perder o controle sobre o que é o mais certo de tudo? Vamos descansar contentes com os prazeres que nos foram dados a desfrutar, se no entanto, enquanto nós os desfrutamos, a alma não foi perfurada como uma peneira, apenas para perder novamente o que havia recebido.
6. Existem inúmeros casos de homens que, sem lágrimas, enterraram filhos no auge da vida – homens que voltaram da pira funerária para a câmara do Senado ou para quaisquer outros deveres oficiais e imediatamente se ocuparam de outra coisa. E com razão pois, em primeiro lugar, é inútil se afligir se não for receber ajuda da aflição. Em segundo lugar, é injusto se queixar sobre o que aconteceu com um homem, mas que está reservado a todos. Mais uma vez, é tolo lamentar a perda, quando existe um intervalo tão curto entre os perdidos e os perdedores. Portanto, devemos ser mais resignados em espírito, porque acompanharemos de perto aqueles que perdemos.
7. Observe a rapidez do Tempo – a mais rápida das coisas – considere a brevidade do curso ao longo do qual aceleramos à velocidade máxima, perceba essa multidão de humanos que se esforça para o mesmo ponto com breves intervalos entre eles – mesmo quando eles parecem mais longos, aquele que você conta como morto simplesmente se postou à frente.[4] E o que é mais irracional do que lamentar o seu antecessor, quando você mesmo deve viajar a mesma jornada?
8. Um homem lamenta um evento que ele sabe que irá acontecer? Ou, se não pensar que a morte está no futuro do homem, se enganou. Um homem lamenta um evento que admite ser inevitável? Quem se queixa da morte de alguém, está se queixando de que ele era humano. Todos estamos vinculados pelo mesmo termo: aquele que tem o privilégio de nascer, está destinado a morrer.
9. Períodos de tempo nos separam, a morte nos nivela. O período que se situa entre o nosso primeiro dia e o nosso último é inconstante e incerto: se você o contar pelos problemas, é longo até para um rapaz, se por sua velocidade, é escasso mesmo para um idoso. Tudo é instável, traiçoeiro e mais incerto do que qualquer clima. Todas as coisas são jogadas e se deslocam para os seus opostos ao comando da Fortuna, em meio a esta turbulência de assuntos mortais, nada além da morte está mais certamente reservado a qualquer um. E, no entanto, todos os homens se queixam da única coisa da qual nenhum deles é iludido.
10. “Mas ele morreu na infância”. Eu ainda não estou preparado para dizer que aquele que rapidamente chega ao fim de sua vida conseguiu o melhor da barganha, voltemos a considerar o caso daquele que atingiu a velhice. Quão exíguo é o tempo que ele tem de vantagem sobre a criança! Pondere a grande extensão do abismo do tempo e considere o universo e depois contraste nossa vida humana com o infinito, então você verá quão breve é aquilo pelo que oramos e que procuramos alongar.
11. Quanto deste tempo é desperdiçado com o choro, quanto com preocupação! Quanto com orações para a morte antes da chegada da morte, quanto com nossa saúde, quanto com nossos medos! Quanto é ocupado por nossos anos de inexperiência ou de esforço inútil! E metade de todo esse tempo é desperdiçado em dormir. Adicione, além disso, nossos problemas, nossas dores, nossos perigos e você compreenderá que, mesmo da vida mais longa, a vida real é a menor parcela.
12. No entanto, quem irá admitir algo como: “Não está em melhor condição um homem que tem permissão para voltar para casa rapidamente, cuja jornada é realizada antes que ele fique cansado”? A vida não é um bem nem um mal: é simplesmente o lugar onde o bem e o mal existem. Por isso, este menino não perdeu nada além de uma aposta onde a chance de perder era mais provável que a de ganhar. Ele poderia ter se tornado sóbrio e prudente, ele poderia, via educação cuidadosa, ter sido moldado ao melhor padrão, mas (e esse medo é mais razoável), ele poderia ter se tornado exatamente como muitos.
13. Observe os jovens da linhagem mais nobre cuja extravagância os jogou na arena[5], note aqueles homens escravos de suas paixões próprias e as de outros em luxúria mútua, cujos dias nunca passam sem embriaguez ou algum ato vergonhoso, assim será claro para você que havia mais a temer do que a esperar. Por esta razão, você não deve dar desculpas para o sofrimento ou exasperar os ligeiros revezes, indignando-se.
14. Eu não estou exortando você a fazer um esforço e se levantar a grandes alturas, pois a minha opinião sobre você não é tão baixa que me faça pensar que é necessário que invoque todos os seus poderes para enfrentar esse problema que não é dor, é uma mera picada – e é você mesmo quem está transformando isso em dor. Sem dúvida, a filosofia lhe fará bom serviço, se você puder suportar corajosamente a perda de um menino que ainda era melhor conhecido por sua babá do que por seu pai.
15. E então? Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.
16. O que então devemos fazer? Deixe-nos permitir que caiam, mas não ordenemo-las a fazê-lo, deixe-as, de acordo com a emoção, inundar os nossos olhos, mas não como a mera atuação. Deixe-nos, de fato, não adicionar nada ao sofrimento natural, nem o aumentar seguindo o exemplo dos outros. A exibição do sofrimento faz mais demandas do que o próprio sofrimento. Como poucos homens estão tristes em sua própria companhia! Eles lamentam mais alto para serem ouvidos, pessoas, que reservadas e silenciosas quando sozinhas, são induzidas a novos acessos de lágrimas quando veem outras perto delas! Nessas ocasiões elas se debatem, embora pudessem fazer isso com mais facilidade se ninguém estivesse presente para controlá-las, nessas ocasiões elas rezam pela morte, nessas ocasiões elas se revolvem em seus leitos. Mas seu sofrimento afrouxa com a saída dos espectadores.
17. Neste assunto, como em outros também, estamos cometemos a falha de nos ajustar ao padrão dos muitos e de atuamos de acordo ao que é convencional e não ao que é certo. Nós abandonamos a natureza e nos rendemos à multidão, que nunca é boa conselheira em nada e, a este respeito, como em todos os outros, é modelo de inconstância. As pessoas veem um homem que sofre seu sofrimento com bravura: o chamam de desalmado e selvagem; elas veem um homem que colapsa e se agarra aos seus mortos: o chamam de efeminado e fraco.
18. Tudo, portanto, deve ser baseado na razão. Mas nada é mais tolo do que cortejar uma reputação de tristeza e sancionar lágrimas, pois eu acredito que, em um homem sábio, algumas lágrimas caem por consentimento, outras por sua própria força. Eu vou explicar a diferença da seguinte maneira: quando a primeira notícia de alguma grave perda nos choca, quando abraçamos o corpo que em breve passará de nossos braços para as chamas funerárias, então as lágrimas são expelidas de nós pela necessidade da natureza. E a força vital, ferida pelo golpe de tristeza, sacode o corpo inteiro e também os olhos que, pressionados, fazem fluir a umidade que neles se encontra.
19. Lágrimas como essas caem por um processo próprio, processo esse involuntário, mas diferentes são as lágrimas que permitimos escapar quando nós meditamos em memória daqueles que perdemos. E há nelas uma certa tristeza quando lembramos o som de uma voz agradável, uma conversa cordial e os afazeres de outrora, em tal momento os olhos se afrouxam, por assim dizer, com alegria. A esse tipo de lágrimas nos entregamos, já o primeiro tipo nos subjuga.
20. Não há portanto, somente porque um grupo de pessoas está em sua presença ou sentado ao seu lado, nenhum motivo para você segurar ou derramar suas lágrimas, sejam elas impedidas ou derramadas, elas nunca são tão vergonhosas como quando fingidas. Deixe-as fluir naturalmente. Mas é possível que as lágrimas fluam dos olhos daqueles que estão quietos e em paz. Elas costumam fluir sem prejudicar a influência do sábio, com tanta restrição que elas não mostram nenhuma carência de sentimento ou auto respeito.
21. Podemos, asseguro-lhe, obedecer à natureza e ainda manter a nossa dignidade. Vi homens dignos de reverência, durante o enterro daqueles próximos e queridos, com semblantes sobre os quais o amor foi escrito, claro, mesmo depois que todo o aparato do luto foi removido e que não mostrou outra conduta do que aquela de verdadeira emoção. Há uma graciosidade mesmo no sofrimento. Isso deve ser cultivado pelo sábio, mesmo em lágrimas; assim como em outros assuntos também, há uma certa suficiência, é com o imprudente que tanto as dores quanto as alegrias transbordam.
22. Aceite com um espírito sereno o que é inevitável. Por acaso lhe aconteceu algo inacreditável, extraordinário? Ou que seja inédito? Quantos homens neste momento estão fazendo arranjos para funerais! Quantos estão comprando roupas de luto! Quantos estão chorando, quando você mesmo encerrou seu luto! Tão frequentemente quanto você reflete sobre a perda de seu filho, reflita também sobre o homem, que não tem nenhuma promessa segura de nada, a quem a Fortuna não acompanha inevitavelmente os confins da velhice, mas deixa-o ir apenas até qualquer ponto que julga adequado.
23. Você pode, no entanto, falar com frequência sobre os falecidos e celebrar sua memória na medida do possível. Essa memória irá retornar a você com mais frequência se você receber sua chegada sem amarguras, pois ninguém gosta de conversar com alguém que é triste e muito menos com a própria tristeza. As conversas dele, as brincadeiras de infância que fazia, se você as escutava com prazer, relembre delas frequentemente, afirme com decisão que ele poderia ter realizado todas as esperanças que você concebeu em seu espírito paterno.
24. De fato, esquecer os amados mortos, enterrar a memória junto com seus corpos, encharcá-los com lágrimas e depois deixar de pensar neles: essa é a marca de uma alma inferior à do homem. Pois é assim que os pássaros e as bestas amam seus jovens, seu afeto é rapidamente despertado e quase atinge loucura, mas esfria totalmente quando seu objeto morre. Essa qualidade não beneficia um homem de bom senso. Este deve continuar a lembrar, mas deve deixar de lamentar.
25. E, em nenhum caso, aprovo a observação de Metrodoro, de que há um certo prazer inerente à tristeza e que se deve obter esse prazer em momentos como estes. Estou citando as palavras reais de Metrodoro em ‘Cartas de Metrodoro à irmã’: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor e que é preciso captar no próprio momento”.[6]
26. Não tenho dúvidas sobre quais serão seus sentimentos nesses assuntos, pois o que é mais vil do que “perseguir” o prazer no meio do luto – sim, em luto – e mesmo entre as lágrimas de alguém perseguir o que dará prazer? Estes são os homens que nos acusam de um rigor muito grande, caluniando nossos preceitos por causa da suposta dureza – porque, dizem eles, declaramos que o sofrimento não deve ser colocado na alma, ou então deve ser descartado imediatamente. Mas qual é o mais incrível ou desumano: não sentir nenhum sofrimento pela perda de um amigo ou ir a procura do prazer no meio do sofrimento?
27. O que nós estoicos aconselhamos é honrável: quando a emoção provoca um fluxo moderado de lágrimas e, por assim dizer, deixa de efervescer, a alma não deve ser entregue ao sofrimento. Mas o que você quer dizer, Metrodoro, ao afirmar que na grande dor deveria haver uma mistura de prazer? Esse é o método doce para pacificar as crianças, essa é a maneira como acalmamos os gritos dos bebês, derramando leite em suas gargantas! Mesmo no momento em que o corpo do seu filho está na pira, ou seu amigo em seu último suspiro, você não sofrerá a suspensão do prazer, em vez de agradar seu próprio sofrimento com prazer? O que é o mais honrado: remover o sofrimento de sua alma ou admitir o prazer até mesmo na companhia do sofrimento? Eu disse “admitir”? Não, eu quero dizer “perseguir” e também através do próprio sofrimento.
28. Metrodoro diz: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor”. Nós, estoicos, podemos dizer isso, mas você não pode. O único bem que você reconhece é o prazer e o único mal, a dor. Que relação pode haver entre um bem e um mal? Mas suponha que tal relação exista; agora, a todo tempo, deveria ser descartada? Devemos examinar o sofrimento também e ver com que elementos de deleite e prazer está rodeado?
29. Certos remédios, que são benéficos para algumas partes do corpo, não podem ser aplicados a outras partes porque a estas são, de certa forma, irritantes e impróprios. O que, em certos casos, funcionaria para um bom propósito sem qualquer prejuízo ao respeito próprio, pode tornar-se impróprio por causa da situação da ferida. Você também não ficaria envergonhado de curar a tristeza com o prazer? Não, este ponto dolorido deve ser tratado de forma mais drástica. Isto é o que você deve recomendar de preferência: que nenhuma sensação de mal pode alcançar alguém que esteja morto, pois se pode alcançá-lo, ele não está morto.
30. E eu digo que nada pode machucar aquele que é tão insignificante, pois se um homem pode ser ferido, ele está vivo. Você acha que ele está mal porque ele não existe mais ou porque ele ainda existe como alguém? E, no entanto, nenhum tormento pode vir a ele pelo fato de não existir mais, pois que sentimento pode pertencer a alguém que não existe? Nem tampouco do fato de que ele existe, pois ele escapou da maior desvantagem que a morte tem em si, ou seja, a inexistência.
31. Digamos, portanto a um homem que chora com saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o universo, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de toda a sucessão dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nada. E ainda assim, ó loucura humana, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é a existência!
32. Estas palavras que eu escrevi para você, não com a ideia de que você deva esperar de mim uma cura em uma data tão tardia – pois é claro para mim que você se contou tudo o que você vai ler na minha carta – mas com a ideia de que eu deveria repreendê-lo, mesmo pelo leve atraso durante o qual você regrediu de seu verdadeiro ser e que eu deva encorajá-lo para o futuro, despertar seu espírito contra a Fortuna e ficar atento a todos os seus golpes, não como se eles fossem possíveis, mas como se fossem inevitáveis e certos de chegar.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Provavelmente Quinto Júnio Marulo que foi um senador romano da gente Júnia nomeado cônsul sufecto para o nundínio de setembro a dezembro de 62. Ver Tácito, Anais, XIV, 48.
[2] Como Lipsius assinalou, o restante da carta de Sêneca consiste na citada carta a Marulo.
[3] A visão romana difere da visão moderna, assim como esta carta é bastante mais severa do que a Carta LXIII (sobre a morte de Flaco).
[4] Linguagem quase idêntica às palavras finais da carta LXIII: “quem putamus perisse, praemissus est“
[5] Na época de Nero muitos jovens de classe nobre passaram a participar dos jogos de arena e corridas de biga, seguindo o (mau) exemplo do imperador. Ver Francis Holland no livro “Sêneca, Vida e Filosofia”.
Na carta 98 Sêneca mais uma vez alerta contra a busca por felicidade e sobre a excessiva confiança na Fortuna, ou seja, não prever que eventos prejudiciais acontecerão conosco.
Devemos ter em mente que tudo que acreditamos possuir, desde bens materiais aos amigos e família, são apenas empréstimos temporários, que um dia deixaremos de ter:
“Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.”
Sêneca apresenta exemplos que homens de virtude e diz que devemos segui-los sem medo: “As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio, crucificação por Régulo, veneno por Sócrates, exílio por Rutílio e espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”. (XCVIII,12)
1. Você nunca deve acreditar que qualquer pessoa que dependa da felicidade esteja feliz! É um apoio frágil esse prazer em coisas forasteiras, a alegria que veio de fora partirá algum dia. Mas essa alegria que brota completamente de si próprio é leal e sólida, aumenta e nos atende até o fim enquanto todas as outras coisas que provocam a admiração da multidão são apenas bens temporários. Você pode responder: “O que você quer dizer? Não seria possível que essas coisas sirvam tanto para utilidade quanto para trazer satisfação?” Claro. Mas somente se elas dependerem de nós, e não nós delas.
2. Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.
3. Um homem ruim torna tudo ruim, mesmo coisas que vieram com a aparência do melhor. Mas o homem reto e honesto corrige os erros da Fortuna e suaviza dificuldades e amarguras porque sabe como suportá-las, ele também aceita prosperidade com apreciação e moderação e enfrenta problemas com firmeza e coragem. Embora um homem seja prudente, embora ele conduza todos os seus interesses com um julgamento bem equilibrado, embora ele não tente nada além de suas forças, ele não alcançará o bem, que está livre e fora do alcance das ameaças, a menos que tenha certeza de lidar com habilidade com aquilo que é incerto.
4. Se você prefere observar outros homens – pois é mais fácil chegar a uma conclusão ao julgar os assuntos dos outros – ou se você se observa, com todo o preconceito deixado de lado, você perceberá e reconhecerá que não há utilidade em todas essas coisas desejáveis e amadas a menos que você se equipe em oposição à inconstância do acaso e suas consequências e a menos que você repita com frequência e com indiferença, em cada transtorno, as palavras: “Os deuses decretaram o contrário”.[1]
5. Não, em vez disso, adote uma frase que seja mais corajosa e mais próxima da verdade – uma sobre a qual você possa suportar com segurança seu espírito. Diga a si mesmo, sempre que as coisas se revelem contrárias à sua expectativa: “Os deuses decretaram o melhor!” Se você estiver com essa disposição de espírito, nada irá afetá-lo. Esta disposição você conseguirá se refletir sobre os possíveis altos e baixos nos assuntos humanos antes de testar a força da Fortuna, se vier a considerar filhos ou esposa ou propriedade com a ideia de que não os possuirá necessariamente para sempre e que não será mais miserável apenas porque os tenha deixado de possuir.
6. É trágico que a alma esteja apreensiva pelo futuro e miserável em antecipação à miséria, consumada com um ansioso desejo de que os objetos que dão prazer permaneçam em sua posse até o fim. Pois tal alma nunca estará em repouso. Na espera do futuro, perderá as bênçãos presentes que poderia já desfrutar. E não há diferença entre o sofrimento por algo perdido e o medo de perdê-lo.
7. Mas, por isso, não aconselho você a ser indiferente. Em vez disso, se afaste do que pode causar medo. Certifique-se de prever tudo o que possa ser previsto no planejamento. Observe e evite, muito antes de acontecer, qualquer coisa que seja susceptível de causar prejuízo. Para realizar isso, sua melhor assistência será um espírito confiante e uma mente fortemente decidida a suportar todas as coisas. Aquele que pode suportar a Fortuna, também pode se precaver contra a Fortuna. De qualquer forma, não há turbilhão de ondas quando o mar está calmo. E não há nada mais miserável ou tolo do que o medo prematuro. Que loucura é antecipar os problemas!
8. Muito bem, para expressar meus pensamentos em passo rápido e retratar em uma frase aqueles homens intrometidos e autotorturadores que estão tão descontrolados em meio a seus problemas como estão antes dos problemas: “Sofre mais do que é necessário, quem sofre antes que seja necessário”. Tais homens não pesam a quantidade de seus sofrimentos, por causa da mesma deficiência que os impede de estarem prontos para isso e com a mesma falta de restrição imaginam ingenuamente que sua Fortuna durará para sempre e imaginam ingenuamente que seus ganhos devem aumentar, assim como simplesmente continuar. Eles esquecem esse trampolim sobre o qual as coisas mortais são jogadas e eles acreditam garantir a si mesmos uma continuação infinita das dádivas da chance.
9. Por esta razão, considero excelente a frase de Metrodoro,[2] em uma carta de consolo à sua irmã pela perda de seu filho, um menino de grande promessa: “Todo o bem relativo aos mortais é mortal”.[3] Ele está se referindo aos bens para os quais os homens se atiram em cardumes. Pois o bem real não perece, é certo e duradouro e consiste em sabedoria e virtude – é a única coisa imortal que é concedida aos mortais.
10. Mas os homens são tão instáveis e tão esquecidos do seu objetivo e do ponto para onde todos os dias os empurram, que ficam surpresos com a perda de qualquer coisa, embora algum dia eles sejam obrigados a perder tudo. Qualquer coisa de que você tenha o título de proprietário está em sua posse, mas não é sua, pois não há força naquilo que é fraco, nem qualquer coisa duradoura e invencível naquilo que é frágil. Devemos perder nossas vidas tão seguramente quanto perderemos nossa propriedade e isso, se compreendemos a verdade, é em si mesmo um consolo. Perca então com serenidade, pois você deve perder sua vida também.
11. Que recurso encontramos, então, diante dessas perdas? Simplesmente isso: manter em memória as coisas que perdemos e não sofrer pela perda do gozo que derivamos delas. Pois “ter” pode ser tirado de nós, “ter tido”, nunca. Um homem é ingrato no mais alto grau se, depois de perder algo, ele não sinta nenhum agradecimento por tê-lo recebido. A Fortuna nos rouba a coisa, mas nos deixou a utilidade e prazer que tiramos dela – e perdemos isso se somos tão injustos a ponto de nos arrepender de tê-la tido ao mesmo tempo que exigimos continuar a possuí-la.
12. Apenas diga a si mesmo: “de todas essas experiências que parecem tão assustadoras, nenhuma delas é insuperável. As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio[4], crucificação por Régulo, [5] veneno por Sócrates, exílio por Rutílio[6] e uma morte infligida pela espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”.
13. Novamente, aqueles objetos que atraem a multidão sob a aparência de beleza e felicidade, foram desprezados por muitos homens e em muitas ocasiões. Fabrício, [7] quando era general, recusou riquezas e quando foi censor as marcava com desaprovação. Túbero considerou a pobreza digna de si mesmo e da divindade no Capitólio quando, ao usar pratos de barro em um festival público, mostrou que o homem deveria estar satisfeito com o que os deuses ainda podiam usar. O ancião Séxtio rejeitou as honras do cargo, ele nasceu com a obrigação de participar de assuntos públicos e, no entanto, não aceitou a faixa larga[8] mesmo quando o divino Júlio lhe ofereceu. Pois ele entendia que o que pode ser dado também pode ser retirado. Deixe-nos também, portanto, realizar algum ato corajoso por nossa própria iniciativa, deixe-nos ser incluídos entre os tipos ideais da história.
14. Por que ficamos negligentes? Por que desanimamos? O que poderia ser feito, pode ser feito se apenas purificarmos nossas almas e seguirmos a natureza; pois quando se afasta da natureza, se é obrigado a desejar e temer e ser escravo das coisas do acaso. Podemos retornar ao caminho verdadeiro, podemos ser restaurados ao nosso estado adequado. Deixe-nos então ser assim, para que possamos suportar a dor, sob qualquer forma que atacar nossos corpos, e dizer à Fortuna: “Você está lidando com um homem, procure alguém a quem você possa conquistar!”Ä[9]
15. Por essas palavras e palavras de um tipo semelhante, a malignidade da úlcera é acalmada; e espero que possa ser reduzida, e seja curada ou interrompida, e envelheça junto com o próprio paciente. No entanto, estou confortável em relação a ele. O que agora estamos discutindo é a nossa própria perda: a partida de um excelente homem velho. Pois ele viveu uma vida plena e qualquer coisa adicional pode ser desejada por ele, não por sua própria causa, mas por causa daqueles que precisam de seus serviços.
16. Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si mesmo, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. Outra pessoa poderia ter acabado com esses sofrimentos, mas o nosso amigo considera não menos vil fugir da morte do que fugir para a morte. “Mas”, vem a resposta, “se as circunstâncias justificarem, ele não tomará a partida?” Claro, se ele não pode mais ser útil a ninguém, se todo o seu negócio passar a ser lidar com a dor.
17. Isto, meu querido Lucílio, é o que queremos dizer ao estudar filosofia enquanto a aplicamos, praticando-a na verdade – anote a coragem que um homem prudente possui contra a morte e contra a dor quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra. O que devemos fazer deve ser aprendido com quem faz.
18. Até agora, lidamos com argumentos – se alguém pode resistir à dor, ou se a aproximação da morte pode abater até grandes almas. Por que discutir isso ainda mais? Aqui há um fato imediato para nós enfrentarmos – a morte não torna nosso amigo mais valioso para enfrentar a dor nem a dor para enfrentar a morte. Em vez disso, ele confia em si mesmo diante de ambas. Ele não sofre com resignação porque espera a morte, nem morre com prazer porque está cansado de sofrer. À dor ele resiste, a morte ele espera.
[2]Metrodoro de Lâmpsaco foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro principais defensores do epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem.
[4] Ver outras referências a Múcio nas epístolas XXIV e LXVI.
[5]NT: Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos
[6]NT: Públio Rutílio Rufo foi um político da gente Rutília da República Romana eleito cônsul em 104 a.C.
[7] NT: Caio Fabrício Luscino, dito Monocular, foi eleito cônsul por duas vezes, em 283 e 278 a.C. As histórias sobre Fabrício são os padrões de austeridade e incorruptibilidade, muito parecidas com as contadas sobre Cúrio Dentato.
[8] A faixa larga (de púrpura) ornava a toga dos senadores, por oposição à faixa estreita que decorava a toga dos equestres. Séxtio, portanto, recusou a oferta de ter seu nome na lista dos membros da classe senatorial. “Divino Júlio” é referência a Júlio Cesar.
[9] NT: Os filólogos estão de acordo em haver uma lacuna. Ao final do parágrafo 14. Hense defende que a carta 98 termina no §14 e que o texto a partir do §15 seria outra, cujo inicio se perdeu. Ignora-se quem seria este “excelente homem velho” referido a seguir.
Na curta e fantástica carta 96 Sêneca volta ao tema de como lidar com dificuldades, afirmando que tudo não passa de percepção, e que sofrimento e dificuldades são partes inevitáveis da vida:
“você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! (…) Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente.” (XCVI, 1-2)
Para Sêneca, uma boa vida é uma vida de lutas, de enfrentamento. Aquele que não é atingido pela Fortuna e foge dos perigos e de suas responsabilidades é um covarde.
1. Apesar de tudo, você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! Se você me perguntar, acho que, para um homem, não há aflição além da própria circunstância de ele julgar que a natureza contém em si motivos de aflição. Não me tolerarei mais no dia em que eu achar algo intolerável. Estou doente; mas isso é parte da minha fortuna. Meus escravos caíram doentes, minha renda desapareceu, minha casa ficou insalubre, fui atacado por perdas, acidentes, fadiga e medo; isso é algo comum. Não, isso foi uma atenuação; isso é algo inevitável.
2. Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente. Se você confia em mim, essas são minhas emoções mais íntimas que acabo de revelar: quando tudo parecia ser difícil e árduo, eu formei o meu carácter em meio de todo tipo de circunstâncias aparentemente desfavoráveis e duras, eu me treinei não apenas para obedecer a Deus, mas para concordar com Suas decisões. Eu O segui porque minha alma quer, e não porque eu deva. Nunca me acontecerá algo que eu receba com mal humor ou com um rosto retorcido. Devo pagar todos os meus impostos voluntariamente. Agora, todas as coisas que nos fazem gemer ou recuar, são parte do imposto da vida – coisas, meu querido Lucílio, que você nunca deve esperar, nem sequer pedir, isenção.
3. Era doença da bexiga que o fazia apreensivo; cartas depressivas vieram de você; você estava cada vez pior; vou tocar a verdade mais de perto e dizer que você temeu por sua vida. Mas venha, você não sabia que, quando rezava por uma longa vida, que era por isso que orava? Uma longa vida inclui todos esses problemas, assim como uma longa jornada inclui pó e lama e chuva.
4. “Mas”, você chora, “eu queria viver e, ao mesmo tempo, ser imune a todos os males”. Um grito tão efeminado não faz crédito a um homem. Considere em que atitude você receberá esta oração minha (eu a ofereço não só em um bom, mas em um nobre espírito): “Que todos os deuses proíbam que a Fortuna o mantenha em luxo!”
5. Pergunte-se voluntariamente, o que escolheria se algum deus lhe desse a escolha – uma vida em um mercado ou vida em um acampamento. E, no entanto, a vida, Lucílio, é realmente uma batalha. Por esta razão, aqueles que são jogados no mar, aqueles que seguem subindo e descendo sobre penhascos e alturas, aqueles que seguem campanhas que trazem o maior perigo, são heróis e combatentes de primeira linha; mas as pessoas que vivem em um ócio podre e fácil enquanto outras trabalham, são meras “rolinhas” covardes que se escondem dos ataques. Os homens as desprezam.
Na carta 95, Sêneca atende um pedido de Lucílio para aprofundar a discussão do tema da carta anterior, ou seja, a validade do ensino de preceitos em contraste com o uso de princípios. O texto é longo e complexo, e Sêneca, de forma bem humorada já alerta o leitor:
“…aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido’. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo‘…” (XCV, 1-3)
Para Sêneca, ambos são úteis e imprescindíveis, mas sem princípios, os preceitos são inúteis, pois “quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes“:
“Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases; as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.” (XCV, 12)
Como de costume, apresenta uma fantástica analogia para ilustrar seu ponto:
“Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada. ” (XCV, 37-38)
1. Você continua pedindo-me para explicar sem adiamento um tópico que eu observei uma vez que deveria ser adiado até o momento apropriado e para informar-lhe, por carta, se este departamento de filosofia que os gregos chamam de “paraenético”(paraenetice)[1] e nós, romanos, chamamos de “preceptorial”(praeceptiva), é suficiente para nos dar uma sabedoria perfeita. Eu sei que você vai entender se eu me recusar a fazê-lo. Mas aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido”.
2. Pois as vezes buscamos com esforço o que deveríamos recusar se fosse oferecido voluntariamente. Chame isso inconstância ou descaramento[2] – devemos punir o hábito com pronta observância. Há muitas coisas que nós gostaríamos que os homens pensassem que desejamos, mas que realmente não desejamos. Um palestrante às vezes traz ao palco um enorme trabalho de pesquisa, escrito na letra mais minúscula e muito dobrado; depois de ler uma grande parte, ele diz: “Eu vou parar, se desejarem”; e surge um grito: “Leia mais, continue lendo!” Dos lábios daqueles que estão ansiosos para que o palestrante libere o paço. Muitas vezes queremos uma coisa e oramos por outra, sem contar a verdade nem mesmo aos deuses, o bom é que os deuses ou não nos atendem ou têm pena de nós.
3. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo”, e pode classificar-se entre aqueles homens cujas esposas muito ambiciosas os deixam frenéticos, ou aqueles que as riquezas, ganhas pelo suor extremo da testa, só trazem angustias, ou aqueles que são torturados pelos cargos públicos que procuraram por todo tipo de dispositivo e trabalho, e todos os outros que são responsáveis por seus próprios infortúnios.
4. Mas devo parar este preâmbulo e abordar o problema em questão. Os homens dizem: “A vida feliz consiste na conduta correta, os preceitos guiam para a conduta correta, portanto os preceitos são suficientes para alcançar a vida feliz”. Mas nem sempre nos orientam para a conduta correta; isso ocorre somente quando a vontade é receptiva; e às vezes são aplicados em vão, quando as opiniões erradas atormentam a alma.
5. Além disso, um homem pode agir corretamente sem saber que ele está agindo corretamente. Pois ninguém, exceto aquele treinado desde o início e equipado com uma razão completa, pode desenvolver proporções perfeitas, entender quando deve fazer certas coisas e até que ponto, e em cuja companhia, e como, e por quê. Sem esse treinamento, um homem não pode esforçar-se com todo seu coração ao que é honrado, ou mesmo com firmeza ou alegria, mas sempre estará olhando para trás e hesitando.
6. Também é dito: “Se a conduta honrosa resulta dos preceitos, os preceitos são amplamente suficientes para a vida feliz; como a primeira dessas afirmações é verdadeira, portanto a segunda também é verdadeira”. Devemos responder a estas palavras que a conduta honrosa é, com certeza, provocada por preceitos, mas não apenas por preceitos.
7. “Então”, vem a resposta, “se as outras artes se contentam com os preceitos, a sabedoria também estará contente com eles, pois a própria sabedoria é uma arte de viver. E, no entanto, o piloto é feito por preceitos que lhe dizem isso ou aquilo sobre como virar o leme, colocar suas velas, fazer uso de um vento justo, bordejar, fazer o melhor das brisas inconstantes e variáveis – tudo da maneira correta. Outros artesãos também são guiados por preceitos, portanto, os preceitos serão capazes de realizar o mesmo resultado no caso do nosso artesão na arte de viver”.
8. Agora, todas essas artes estão preocupadas com as ferramentas da vida, mas não com a vida como um todo. Portanto, há muito para embaraçar essas artes e complicá-las – como a esperança, a ganância, o medo. Mas essa arte que professa ensinar a arte da vida não pode ser impedida por qualquer circunstância de exercer suas funções; pois sacode as complicações e atravessa os obstáculos. Gostaria de saber o quão diferente sua posição em relação as outras artes? No caso destas últimas, é mais perdoável errar voluntariamente ao invés de por acidente; mas, no caso da sabedoria, a pior falha é cometer o pecado deliberadamente.
9. Quero dizer algo assim: um estudioso se ruborizará por vergonha, não se ele cometer um erro gramatical intencionalmente, mas se o fizer involuntariamente; se um médico não perceber que seu paciente está falecendo, é um praticante muito mais pobre do que se reconhecesse o fato e escondesse seu conhecimento. Mas, nesta arte de viver, um erro voluntário é mais vergonhoso. Além disso, muitas artes, sim e as mais liberais de todas, têm sua doutrina especial, e não apenas preceitos de conselhos. Na profissão médica, por exemplo, existem as diferentes escolas: de Hipócrates, de Asclepíades,[3] de Temiso.
10. E, além disso, nenhuma arte que se preocupe com teorias pode existir sem suas próprias doutrinas; os gregos chamam de dogmatas, enquanto nós, romanos, podemos usar o termo “doutrinas” ou “princípios”, ou “princípios adotados”,[4] como você encontrará em geometria ou astronomia. Mas a filosofia é tanto teórica como prática; contempla e, ao mesmo tempo, age. Você está realmente enganado se você acha que a filosofia não oferece nada além de ajuda mundana; suas aspirações são mais altas do que isso. Ela chama: “Eu investigo todo o universo, nem estou satisfeita, me mantendo dentro de uma morada mortal, para dar conselhos favoráveis ou desfavoráveis. Os grandes assuntos convidam e estão bem acima de você. Nas palavras de Lucrécio[5]:
11. Para ti, eu revelarei os caminhos do céu
E os deuses, espalhando-se diante de teus olhosOs átomos, – de onde todas as coisas são trazidas ao nascimento,Aumentado e promovido pelo poder criativo,E atingem a putrefação quando a Natureza os expulsa.
Nam tibi de summa caeli ratione deumqueDisserere incipiam et rerum primordia pandam ;Unde omnis natura creet res, auctet alatque,Quoque eadem rursus natura perempta resolvat.
Filosofia, portanto, sendo teórica, deve ter suas doutrinas.
12. E por quê? Porque nenhum homem pode realizar devidamente as ações certas, exceto aquele que tenha sido dotado da razão, que lhe permitirá, em todos os casos, cumprir todas as categorias de dever. Essas categorias ele não pode observar a menos que receba preceitos para cada ocasião, e não só pela da ocasião. Os preceitos por si próprios são fracos e, por assim dizer, sem raízes se forem prescritos às partes e não ao todo. São as doutrinas que nos fortalecerão e nos apoiarão em paz e calma, que incluirão simultaneamente a totalidade da vida e do universo em sua plenitude. Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases;[6] as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.
13. As pessoas dizem: “A sabedoria antiga aconselhava apenas o que se deveria fazer e evitar, e, no entanto, os homens de tempos passados eram homens muito melhores. Quando os eruditos apareceram, os sábios tornaram-se raros. Dessa forma, a franca e simples virtude foi transformada em conhecimento escondido e astuto, somos ensinados a debater e não a viver”.
14. Claro, como você diz, a sabedoria antiga, especialmente em seus primórdios, era imperfeita; mas também as outras artes, nas quais a destreza desenvolveu com o progresso. Nem naqueles dias havia necessidade de curas cuidadosamente planejadas. A maldade ainda não havia chegado a um ponto tão alto, ou se espalhado tão amplamente. Os vícios simples podiam ser tratados com curas simples; agora, no entanto, precisamos de defesas erguidas com todo o cuidado, por causa dos poderes mais fortes pelos quais somos atacados.
15. A medicina consistiu-se uma vez no conhecimento de algumas ervas, para impedir o fluxo de sangue ou para curar feridas; então, gradualmente, atingiu o seu estágio atual de complexa variedade. Não é de admirar que, nos primeiros dias, o medicamento tivesse menos a fazer! Os corpos dos homens ainda eram sólidos e fortes; sua alimentação era leve e não estragada pela arte e pelo luxo, pois então começamos a procurar pratos não para a remoção, mas para o despertar do apetite, e inventamos inúmeros molhos para estimular a gula, então, o que antes era alimento para um homem faminto tornou-se um fardo para o estômago cheio.
16. Daí vem palidez e um tremor de músculos encharcados pelo vinho e uma magreza repulsiva, devido à indigestão e não à fome. Dessa forma, pequenos passos cambaleantes e uma marcha incerta como a da embriaguez. Daí a hidropisia,[7] espalhando sob toda a pele e a barriga crescendo para uma pança através de um hábito de consumir mais do que pode. Daí a icterícia, os semblantes descoloridos e os corpos que se apodrecem por dentro, e os dedos que se tornam nodosos quando as articulações se endurecem e os músculos entorpecidos e sem poder de sensação e a palpitação do coração.
17. Por que razão eu menciono tonturas? Ou falar de dor nos olhos e na orelha, comichão e dor no cérebro febril e úlceras internas em todo o sistema digestivo? Além disso, existem inúmeros tipos de febre, algumas agudas em sua malignidade, outras nos arrasando com danos sutis e outras que vêm acompanhadas de calafrios e severa maleita.
18. Por que devo mencionar as outras doenças inumeráveis, as torturas que resultam de uma vida luxuosa? Os homens costumavam estar livres de tais males, porque eles ainda não haviam diminuído sua força pela indulgência, porque eles tinham controle sobre si mesmos e proviam suas próprias necessidades. Eles enrijeceram seus corpos pela labuta e pelo trabalho real, cansando-se correndo ou caçando ou cultivando a terra. Eles eram revigorados por comida da qual apenas um homem faminto poderia ter prazer. Por isso, não havia necessidade de todas as nossas poderosas parafernálias médicas, de tantos instrumentos e caixas de pomadas. Por razões simples, eles gozavam de uma saúde simples; foi necessário um percurso elaborado para produzir doenças elaboradas.
19. Note o número de coisas – tudo a passar por uma única garganta – que o luxo mistura, depois de devastar a terra e o mar. Tantos pratos diferentes certamente devem estar em desacordo; eles são unidos fortemente e são digeridos com dificuldade, cada um acotovelando o outro. E não é de admirar que as doenças resultantes de alimentos variados sejam diversas e variadas; deve haver um transbordamento quando tantas combinações não naturais se misturam. Por isso, há tantas maneiras de estar doente quanto há de viver.
20. O ilustre fundador da guilda e da profissão da medicina[8] observou que as mulheres nunca perdiam os cabelos nem sofriam dor nos pés; e, no entanto, hoje em dia elas ficam sem cabelos e são afligidas pela gota. Isso não significa que o físico da mulher tenha mudado, mas que tenha sido conquistado; ao competir por indulgências masculinas, elas também competem pelos males dos quais os homens são herdeiros.
21. Elas dormem tão tarde e bebem tanto licor quanto eles; elas desafiam os homens na luta e na bebedeira; elas não são menos dadas ao vômito de estômagos distendidos e, assim, descarregando todo o vinho novamente; nem estão atrás dos homens em consumir gelo, como um alívio para suas digestões febris. E elas mesmo igualam os homens em suas paixões, embora tenham sido criadas para sentir amor passivamente (que os deuses e deusas possam amaldiçoá-las!). Elas inventam as variedades mais impossíveis de não castidade e na companhia dos homens elas fazem o papel dos homens. Que maravilha, então, que possamos checar a declaração do melhor e mais experiente médico, quando tantas mulheres são carecas e sofrem de gota! Por causa de seus vícios, as mulheres deixaram de merecer os privilégios de seu sexo; elas renegaram sua natureza feminina e, portanto, estão condenadas a sofrer as doenças dos homens.
22. Os médicos da antiguidade não sabiam nada sobre a prescrição de nutrientes frequentes e o sustento do pulso fraco com vinho; eles não entendiam a prática da sangria e de aliviar as queixas crônicas com banhos de vapor; eles não entendiam como, ao enfaixar os tornozelos e os braços, convocar às partes externas a força que havia se refugiado ao centro. Eles não eram obrigados a buscar muitas variedades de alívio, porque as variedades de sofrimento eram muito poucas em número.
23. Hoje em dia, no entanto, a que etapa os males da doença estão avançados! Este é o juro que pagamos pelos prazeres que desejamos além do que é razoável e correto. Você não precisa imaginar que as doenças estão além da conta: conte os cozinheiros! Todos os interesses intelectuais estão em suspenso; aqueles que seguem conferências de cultura em salas vazias, em lugares afastados. Os salões do professor e do filósofo estão desertos; mas que multidão nos cafés! Quantos jovens assediam as cozinhas de seus amigos glutões!
24. Não devo mencionar as tropas de escravos sem fortuna que devem suportar outros tratamentos vergonhosos depois que o banquete acaba. Não devo mencionar as tropas de catamitas[9], classificadas de acordo com a nação e a cor, que devem ter a mesma pele lisa e a mesma maneira de vestir os cabelos, de modo que nenhum menino com madeixas lisas possam ficar entre os de cabelos encaracolados. Nem devo mencionar a confusão de padeiros, e o número de garçons que em um determinado aviso correm para transportar os pratos. Oh, deuses! Quantos homens trabalham para divertir uma única barriga!
25. O que? Você imagina que esses cogumelos, o veneno do gourmet, não causam maldade em segredo, mesmo que não tenham tido efeito imediato? O que? Você acha que sua neve de verão não endurece o tecido do fígado? O que? Você acha que aquelas ostras, uma comida gosmenta engordada em lodo, não sobrecarregam com o peso da lama? O que? Você não acha que o chamado “garum – o molho das Províncias”, o extrato apodrecido de peixe venenoso, queime o estômago com sua putrefação salgada? O que? Você acha que os pratos corrompidos que um homem engole quase queimando do fogo da cozinha são apagados no sistema digestivo sem fazer mal? Quão repugnantes, e quão insalubres são os seus arrotos, e como os homens ficam enojados consigo mesmos quando respiram os vapores da orgia de ontem! Você pode ter certeza de que a comida deles não está sendo digerida, mas está apodrecendo.
26. Lembro-me de ter ouvido uma fofoca sobre um prato notório em que tudo do qual os gourmets adoram era amontoado por um restaurante que estava rapidamente entrando em bancarrota; havia dois tipos de mexilhões e as ostras aparadas na linha onde são comestíveis, separadas a intervalos por ouriços-do-mar; o todo estava flanqueado por tainhas cortadas e servidas sem as espinhas.[10]
27. Nestes nossos dias estamos envergonhados de alimentos separados; as pessoas misturam muitos sabores em um. A mesa de jantar faz o que o estômago deveria fazer. Eu vislumbro em seguida que a comida será servida já mastigada! E quão longe disso estamos quando separamos conchas e ossos e o cozinheiro executa o trabalho dos dentes? Eles dizem: “É muito difícil levar nossos luxos um a um, deixe-nos ter tudo servido ao mesmo tempo e misturado com o mesmo sabor. Por que eu deveria me contentar com um único prato? Vamos ter muitos chegando ao mesmo tempo, as delícias de vários cursos devem ser combinadas e confundidas.”
28. Aqueles que costumavam declarar que isso era feito para exibição e notoriedade devem entender que não é feito para exibição, mas que é uma oblação ao nosso senso de dever! Deixe-nos ter, ao mesmo tempo, embebidos no mesmo molho, pratos que costumam ser servidos separadamente. Não há diferença: deixe as ostras, os ouriços-do-mar, os crustáceos e os salmonetes serem misturados e cozidos no mesmo prato. Um vomitado não formaria uma massa mais caótica!
29. E como a comida em si é complicada, de modo que as doenças resultantes são complexas, inexplicáveis, múltiplas, variadas, os medicamentos começaram a fazer campanha contra eles de muitas maneiras e por muitas regras de tratamento. Agora, eu declaro que a mesma afirmação se aplica à filosofia. Ela era mais simples porque os pecados dos homens eram em menor escala e podiam ser curados com pequena dificuldade; no entanto, em face de toda inversão moral, os homens não devem deixar nenhum remédio não experimentado. E seria possível que essa praga fosse então superada!
30. Estamos loucos, não apenas individualmente, mas a nível nacional. Evitamos o homicídio culposo e assassinatos isolados; mas e a guerra e o tão voraz crime de matar povos inteiros? Não há limites para nossa ganância, nenhuma para nossa crueldade. E enquanto esses crimes forem cometidos escondido e por indivíduos, eles são menos prejudiciais e menos portentosos; mas as crueldades são praticadas de acordo com atos do senado e da assembleia popular, e o público é convidado a fazer o que é proibido ao indivíduo.
31. Ações que seriam punidas com a morte quando cometidas em particular, são louvadas por nós, porque os generais uniformizados as realizaram. O homem, naturalmente a classe de ser vivo mais branda, não tem vergonha de se deleitar com o sangue dos outros, de fazer guerra e de encaminhar seus filhos à guerra, quando as feras e os animais selvagens mantêm a paz uns com os outros.
32. Contra esta loucura excessiva e disseminada a filosofia tornou-se uma questão do maior esforço, e tomou forças em proporção às forças ganhas pela oposição. Costumava ser fácil repreender os homens que eram escravos da bebida e que procuravam comida da mais luxuosa; Não seria exigido um esforço poderoso para trazer o espírito de volta à simplicidade de onde apenas a pouco partira. Mas agora
É preciso a mão rápida, ao mestre artesão.
Nunc manibus rapidis opus est, nunc arte magistra.[11]
33. Os homens procuram prazer de todas as fontes. Nenhum vício permanece dentro dos limites; o luxo é precipitado em ganância. Estamos impressionados com o esquecimento daquilo que é honroso. Nada de valor é atraente, é vil. O homem, um objeto de reverência aos olhos do homem, agora é abatido por brincadeira e esporte; e aqueles que costumavam acreditar ser profano treinar com o propósito de infligir feridas, estão expostos e indefesos; e é um espetáculo satisfatório ver um homem feito um cadáver.[12]
34. Em meio a esta condição de inversão da moral, é necessário algo mais forte do que o habitual – algo que sacuda esses males crônicos; a fim de erradicar uma crença profunda em ideias erradas, a conduta deve ser regulada por doutrinas. É somente quando adicionamos preceitos, consolo e encorajamento a estes, que podem prevalecer; por si só são ineficazes.
35. Se nos fossemos segurar os homens firmemente atados e os afastarmos dos males que os agarraram firmemente, eles deveriam aprender o que é maligno e o que é bom. Eles deveriam saber que tudo, exceto a virtude, podem mudar de qualificativo, e merecerem umas vezes serem consideradas como más e outras como boas. Assim como o principal vínculo de união do soldado é seu juramento de fidelidade, seu amor à bandeira, e seu horror à deserção, e assim como, após essa etapa, outros deveres podem ser facilmente exigidos dele, e confiança dada a ele uma vez o juramento ter sido administrado; assim é com aqueles que você traz para a vida feliz: os primeiros fundamentos devem ser colocados, e a virtude trabalhada nesses homens. Que sejam mantidos por uma espécie de adoração supersticiosa da virtude; que eles a amem; deixe-os desejar viver com ela e se recusarem a viver sem ela.
36. “Mas o que, então,” dizem, “certas pessoas não ganharam caminho para a excelência sem treinamento complicado? Não fizeram grandes progressos obedecendo apenas preceitos básicos?” Muito verdadeiro; mas seus temperamentos eram propícios, e eles pegaram atalho pelo caminho. Pois assim como os deuses imortais não aprenderam a virtude tendo nascido com a virtude completa e contendo em sua natureza a essência do bem – mesmo assim certos homens estão equipados com qualidades incomuns e alcançam sem um longo aprendizado o que normalmente é uma questão de ensino, acolhendo coisas honestas assim que as ouvem. Por isso, as mentes escolhidas se apoderam rapidamente da virtude, ou então a produzem dentro de si mesmas. Mas seu companheiro embotado e lento, que é prejudicado por seus maus hábitos, deve ter essa ferrugem da alma incessantemente esfregada.
37. Agora, assim como o primeiro tipo, que está inclinado para o bem, pode ser elevado às alturas com mais rapidez: também os espíritos mais fracos podem ser auxiliados e libertados de suas opiniões malignas se confiarmos a eles os princípios aceitos da filosofia; e você pode entender o quão essencial são esses princípios da seguinte maneira. Certas coisas se afundam em nós, tornando-nos preguiçosos de certa forma, e precipitados de outras. Essas duas qualidades, a de imprudência e a outra de preguiça, não podem ser controladas ou despertadas, a menos que removamos suas causas, que são admiração equivocada e medo confuso. Enquanto estivermos obcecados por tais sentimentos, você pode nos dizer: “Você deve esse dever ao seu pai, isso para seus filhos, isso para seus amigos, isso para seus hóspedes”; mas a ganância sempre nos impedirá, não importa como tentemos. Um homem pode saber que ele deve lutar por seu país, mas o medo o dissuadirá. Um homem pode saber que ele deve suar sua última gota de energia em favor de seus amigos, mas o luxo irá proibir. Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta.
38. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; não servirá nada mais do que colocar as armas ao seu lado e se aproximar do inimigo sem ter as mãos livres para usar essas armas. A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada.
39. Suponha que um homem aja como deveria; ele não pode se manter assim de forma contínua ou consistente, já que não saberá o motivo de tal forma de agir. Parte de sua conduta resultará corretamente por fortuna ou prática; mas à sua mão não há nenhuma regra pelo qual possa regular seus atos, e em que possa confiar para lhe dizer se o que faz está certo. Aquele que é bom por simples acaso não dá garantia de manter esse caráter para sempre.
40. Além disso, os preceitos talvez o ajudem a fazer o que deve ser feito; mas eles não o ajudarão a fazê-lo da maneira correta; e se eles não o ajudam a esse fim, eles não o conduzem à virtude. Eu admito a você que, se admoestado, um homem fará o que deveria; mas isso não é suficiente, já que o crédito reside, não na ação real, mas na forma como é feito.
41. O que é mais vergonhoso do que uma refeição cara que come a renda mesmo de um equestre[13]? Ou o que é tão digno da condenação do censor como sempre saciar a si mesmo e seu “gênio” interior? – se posso usar os termos dos nossos gastrônomos! E, no entanto, muitas vezes um jantar inaugural[14] custa ao homem mais cuidadoso um milhão de sestércios![15] A própria soma é vergonhosa se gasta na gula, mas é irrepreensível se gasta para honrar o cargo! Pois não é luxo, mas uma despesa sancionada pelo costume.
42. Um salmonete de tamanho monstruoso foi oferecido ao imperador Tibério. Dizem que pesava quatro quilos e meio (e por que não deveria fazer cócegas nos palatos de certos glutões mencionando seu peso?). Tibério ordenou que fosse enviado para o mercado de peixe e colocado à venda, observando: “Eu vou ser tomado inteiramente por surpresa, meus amigos, se Apício[16] ou Otávio não comprar esse salmonete”. O palpite tornou-se realidade além da expectativa: os dois homens o disputaram, e Otávio ganhou, adquirindo assim uma grande reputação entre os seus íntimos porque comprou por cinco mil sestércios um peixe que o Imperador havia vendido e que até Apício não conseguiu comprar. Pagar tal preço foi vergonhoso para Otávio, mas não para o indivíduo que comprou o peixe para presenteá-lo a Tibério – embora eu também estivesse inclinado a culpar o último também; mas, de qualquer modo, admirava um presente do qual pensava ser digno de César.
43. Outro exemplo: quando as pessoas se sentam ao lado da cama de seus amigos doentes, nós honramos seus motivos. Mas, quando as pessoas fazem isso com o objetivo de alcançar um legado, são como abutres à espera de carniça. O mesmo ato pode ser vergonhoso ou honorável: a maneira e os princípios que o motivaram fazem toda a diferença. Ora, todas nossas as ações serão honestas se nós as conformarmos à moralidade, se pensarmos que a honra e seus resultados sejam o único bem que pode cair na fortuna do homem; pois outras coisas só são temporariamente boas.
44. Penso, então, que deve haver profundamente implantada uma firme crença que se aplicará à vida como um todo: é o que eu chamo de “princípio”. E, como essa crença é, assim serão nossos atos e nossos pensamentos. Como nossos atos e nossos pensamentos são, então nossa vida será. Quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes.
45. Marco Bruto, no livro que ele tem intitulado “Sobre o(s) dever(es)”, dá muitos preceitos a pais, filhos e irmãos; mas ninguém cumprirá seu dever como deveria, a menos que tenha algum princípio ao qual possa basear sua conduta. Devemos colocar diante de nossos olhos o objetivo do Bem Supremo, para o qual devemos lutar, e para o qual todos os nossos atos e palavras devem ter referência – assim como os marinheiros devem orientar seu curso de acordo com uma certa estrela.
46. A vida sem ideais é errática: assim que um ideal é configurado, as doutrinas começam a ser necessárias. Tenho certeza de que você admitirá que não há nada mais vergonhoso do que uma conduta incerta e vacilante, do que o hábito de um recuo receoso, sem saber onde por os pés. Esta será a nossa experiência em todos os casos, se primeiro não eliminarmos as causas que nos entravam e manietam a alma e a impedem de dar o melhor de si própria.
47. Preceitos são geralmente ditos sobre como os deuses devem ser adorados. Mas vamos proibir que as lâmpadas sejam iluminadas no sábado,[17] já que os deuses não precisam de luz, nem os homens apreciam a fuligem. Permitamos que os homens ofereçam saudações matutinas e se aglomerem nas portas dos templos; as ambições mortais são atraídas por tais cerimônias, mas Deus é adorado por aqueles que realmente o conhecem. Permita-nos proibir trazer toalhas e raspadores de banho para Júpiter, e oferecer espelhos para Juno; pois Deus não precisa de servos. Claro que não; ele mesmo faz serviço à humanidade, em todos os lugares e a tudo Deus sempre está à mão para ajudar.
48. Embora um homem ouça quais limites deve observar em sacrifício, e até onde deve se afastar de superstições onerosas, ele nunca fará progresso suficiente até que tenha concebido uma ideia correta de Deus – referindo-se a Ele como alguém que possui todas as coisas, e atribui todas as coisas, e as concede sem contrapartida.
49. E por que razão os deuses têm feito ações de bondade? É a sua natureza. Quem pensa que não estão dispostos a fazer mal, está errado; eles não podem fazer mal. Eles não podem receber ou infligir ferimentos; pois causar dano tem a mesma natureza que sofrer danos. A natureza universal, toda gloriosa e toda bonita, tornou-se incapaz de infligir males aqueles que retirou do perigo do mal.
50. O primeiro ato para adorar os deuses é acreditar nos deuses; ao lado de reconhecer sua majestade, reconhecer sua bondade sem a qual não há majestade. Além disso, para saber que eles são comandantes supremos no universo, controlando todas as coisas pelo seu poder e agindo como guardiões da raça humana, mesmo que às vezes não sejam conscientes do indivíduo. Eles não dão nem têm o mal, mas eles castigam e restringem certas pessoas e impõem penalidades e, às vezes, punem ao conceder o que parece bom externamente. Você quer ser agradável aos deuses? Então seja um bom homem. Quem os imita, está os adorando suficientemente.
51. Então vem o segundo problema, como lidar com homens. Qual é o nosso propósito? Que preceitos oferecemos? Devemos pedir que se abstenham de derramar sangue? Que pequena coisa não é prejudicar alguém a quem você deveria ajudar! É realmente digno de grandes elogios, quando o homem trata o homem com bondade! Devemos aconselhar esticar a mão para o marinheiro naufragado, ou apontar o caminho para ao viajante, ou compartilhar uma migalha com o faminto? Sim, se eu puder apenas lhe dizer primeiro tudo o que deve ser concedido ou retido; entretanto, posso estabelecer para a humanidade uma regra curta para os nossos deveres nas relações humanas:
52. Tudo o que você vê, o que abrange o divino e o homem, é um – somos partes de um grande corpo. A natureza nos produziu relacionados uns com os outros, já que ela nos criou da mesma fonte e para o mesmo fim. Ela engendrou em nós um afeto mútuo, e nos fez propensos a amizades. Ela estabeleceu equidade e justiça; de acordo com sua decisão, é mais lamentável cometer do que sofrer lesões. Por meio de suas ordens, deixe nossas mãos estarem prontas para todos que precisam ser ajudados.
53. Deixe este verso penetrar seu coração e estar sempre pronto nos seus lábios:
Deixe-nos possuir coisas em comum; o nascimento é nosso em comum. Nossas relações uns com os outros são como um arco de pedra, que colapsaria se as pedras não se apoiassem mutuamente.
54. Em seguida, depois de considerar deuses e homens, vejamos como devemos fazer uso das coisas. É inútil que possamos ter preceitos, a menos que comecemos por refletir sobre a opinião que devemos ter em relação a tudo – acerca da pobreza, riqueza, renome, desgraça, cidadania, exílio. Deixe-nos banir o rumor e definir um valor em cada coisa, perguntando o que cada coisa é de fato, e não o que os homens lhe chamam.
55. Passemos agora a uma consideração das virtudes. Algumas pessoas nos aconselharão a avaliar altamente a prudência, apreciar a bravura e ter mais próximo, se possível, a justiça do que todas as outras qualidades. Mas isso não nos fará bem, se não soubermos o que é a virtude, seja simples ou composta, seja uma ou mais do que uma, se suas partes estão separadas ou entrelaçadas umas com as outras; se aquele que tem uma virtude também possui as outras virtudes; e quais são as distinções entre elas.
56. O carpinteiro não precisa investigar sua arte à luz de sua origem ou de sua função, mais do que um artista de pantomima precisa investigar a arte de dançar; se essas artes se entendem, nada falta, pois não se referem à vida como um todo. Mas a virtude significa o conhecimento de outras coisas além de si mesma: se quisermos aprender a virtude, devemos aprender tudo sobre a virtude.
57. A conduta não terá razão, a menos que a vontade de agir seja correta; pois esta é a fonte de conduta. Nem, novamente, a vontade estará certa sem uma atitude correta da mente; pois esta é a fonte da vontade. Além disso, essa atitude de espírito não será encontrada mesmo no melhor dos homens, a menos que tenha aprendido as leis da vida como um todo e tenha elaborado um julgamento adequado sobre tudo e a menos que tenha reduzido os fatos a um padrão de verdade. A paz mental é desfrutada apenas por aqueles que alcançaram um padrão de julgamento fixo e imutável; o resto da humanidade continuamente rasa e vagante em suas decisões, flutuando em uma condição onde alternadamente rejeitam as coisas e as buscam. Permanecem indecisos sem saber se hão de levar ou não até ao fim os seus propósitos.
58. E qual é a razão para esse jogar de um lado para o outro? É porque nada é claro para eles, porque eles usam o critério mais inseguro – a opinião comum. Se você quiser sempre desejar a mesma coisa, você deve desejar a verdade. Mas não se pode alcançar a verdade sem princípios básicos; os princípios abraçam toda a vida. As coisas boas e más, honestas e vergonhosas, justas e injustas, obedientes e desleais, as virtudes e a prática delas, a posse de confortos, valor e respeito, saúde, força, beleza, agilidade dos sentidos – todas essas qualidades exigem quem seja capaz de avaliá-las. À pessoa deve ser concedido saber qual o valor de cada objeto a ser classificado.
59. Por vezes você é enganado e acredita que certas coisas valem mais do que seu real valor; na verdade, você é enganado pois acha que deva valorar em mera moeda aquelas coisas que nós, homens, consideramos valer mais, por exemplo, riqueza, influência e poder. Você nunca entenderá isso, a menos que tenha investigado o padrão real pelo qual essas condições são relativamente avaliadas. Como as folhas não podem prosperar por meio de seus próprios esforços, mas precisam de um ramo ao qual elas possam se apegar e de onde possam tirar a seiva, então seus preceitos, quando levados sozinhos, desaparecem; eles devem ser enxertados em uma escola de filosofia.
60. Além disso, aqueles que eliminam os princípios não entendem que são provados pelos próprios argumentos através os quais eles dão para refutá-los. Pois o que esses homens estão dizendo? Eles estão dizendo que os preceitos são suficientes para desenvolver a vida e que os princípios de sabedoria (em outras palavras, dogmas) são supérfluos. E, no entanto, esse próprio enunciado deles é um princípio, como se eu devesse agora observar que é preciso dispensar os preceitos com o fundamento de serem supérfluos, que é preciso fazer uso de princípios e que nossos estudos devem ser direcionados exclusivamente para esse fim; assim, pela minha própria afirmação de que os preceitos não devem ser levados a sério, eu estaria proferindo um preceito!
61. Existem alguns assuntos em filosofia que precisam de admoestação; há outros que precisam de prova, e uma grande prova, também, porque eles são complicados e dificilmente podem ser esclarecidos com o maior cuidado e a maior habilidade dialética. Se as provas forem necessárias, também são doutrinas; as doutrinas deduzem a verdade por meio do raciocínio. Alguns assuntos são claros e outros são vagos: aqueles que os sentidos e a memória podem abraçar são claros; aqueles que estão fora do alcance deles são vagas. Mas a razão não é satisfeita por fatos óbvios; sua função mais alta e mais nobre é lidar com coisas ocultas. As coisas escondidas precisam de prova; a prova não pode vir sem princípios; portanto, princípios são necessários.
62. O que leva a um acordo geral, e semelhante a um perfeito, é uma crença segura em certos fatos; mas, se, sem essa garantia, todas as coisas estão à deriva em nossas mentes, então os princípios são indispensáveis; pois eles dão às nossas mentes os meios de uma decisão inabalável.
63. Além disso, quando aconselhamos um homem a considerar seus amigos tão altamente como a si mesmo, para refletir que um inimigo pode se tornar um amigo, a estimular o amor no amigo e aplacar o ódio no inimigo, acrescentamos: “Isso é justo e honroso”. Agora, o elemento justo e honroso em nossos princípios é abraçado pela razão; portanto, a razão é necessária; pois sem ela os princípios também não podem existir.
64. Mas vamos unir as duas. Pois, de fato, os ramos são inúteis sem suas raízes, e as raízes são fortalecidas pelos ramos que produziram. Todos podem entender quão úteis são as mãos; elas, obviamente, nos ajudam. Mas o coração, a fonte do crescimento, do poder e do movimento das mãos, está escondido. E posso dizer o mesmo sobre os preceitos: eles são manifestos, enquanto os princípios da sabedoria estão escondidos. E como somente os iniciados conhecem a porção mais sagrada dos ritos, então, na filosofia, as verdades ocultas são reveladas apenas aos que são membros e foram admitidos nos ritos sagrados. Mas os preceitos e outros assuntos são familiares mesmo para os não iniciados.
65. Posidônio sustenta que não só a dação de preceitos (não há nada para impedir que use essa palavra), mas mesmo a persuasão, a consolação e o encorajamento são necessários. Para isso, ele acrescenta a investigação das causas (mas não consigo ver por que eu não deveria ousar chamar isso de “etiologia”,[19] uma vez que os estudiosos que monitoram a língua latina usam o termo como tendo o direito de fazê-lo). Ele observa que também será útil ilustrar cada virtude particular; esta ciência Posidônio chama etologia, enquanto outros a chamam de caracterismo. Dá os sinais e as marcas que pertencem a cada virtude e vício, de modo que, por meio deles, a distinção pode ser feita entre coisas semelhantes.
66. Sua função é a mesma que a do preceito. Pois aquele que profere preceitos diz: “Se você quiser ter autocontrole, aja assim e assim”. Aquele que ilustra, diz: “O homem que age assim e assim, e se abstém de certas outras coisas, possui autocontrole”. Se você perguntar qual é a diferença aqui, digo que uma pessoa dá os preceitos da virtude, a outra dá sua personificação. Essas ilustrações, ou, para usar um termo comercial, essas amostras, têm, eu confesso, uma certa utilidade; basta colocá-las à exposição com boas recomendações, e você encontrará homens para copiá-las.
67. Você, por exemplo, julgaria ser útil ter evidências para que você reconhecesse um cavalo de puro sangue e não fosse enganado em sua compra ou desperdiçasse seu tempo por um animal inferior? Mas quanto mais útil é conhecer as marcas de uma alma insuperável – marcas que alguém pode apropriar de outro para si mesmo!
68. Imediatamente, o potro de raça pura pisa a terra,Marchando com um passo animado;É o primeiro a caminha e a atravessar os rios de peito abertoCom ousadia, confia na ponte desconhecida,Não temendo estrondo vazio. Seu pescoço elevadoE cabeça ágil, barriga curta e costas fortes,Seu peito com espírito exibe seus nervos… … Então, se a guerra ressoa ao longeNão pode descansar, mas pica os ouvidos com os membros curiosos,Reunindo sob suas narinas, espirala fogo.
Continue pecoris generosi pullus in arvisAltius ingreditur et mollia crura reponit;Primus et ire viam et fluvios temptare minantisAudet et ignoto sese committere ponti,Nec vanos horret strepitus. Illi ardua cervixArgutumque caput, brevis alvus obesaque terga,Luxuriatque toris animosum pectus……Turn, si qua sonum procul arma dederunt.Stare loco nescit, micat auribus et tremit artusConlectumque premens volvit sub naribus ignem.[20]
69. A descrição de Virgílio, embora se refira a outra coisa, poderia perfeitamente ser o retrato de um homem corajoso; de qualquer forma, eu mesmo não deveria selecionar nenhum outro símile para um herói. Se eu tivesse que descrever Catão, que estava desesperado no meio da guerra civil, que primeiro atacou os exércitos que já marchavam para os Alpes, que mergulhou de frente no conflito civil, esse é exatamente o tipo de expressão e atitude que eu deveria dar a ele.
70. Certamente, ninguém poderia mais “marchar com um passo animado” do que aquele que se levantou contra César e Pompeu ao mesmo tempo e quando alguns estavam apoiando o partido de César e outros, o de Pompeu, lançou um desafio aos dois líderes, mostrando assim que a república também tinha alguns apoiantes. Pois não basta dizer de Catão “não treme ao ouvir ruídos vãos”. Claro que ele não tem medo! Ele não recua frente a ruídos reais e iminentes; Diante de dez legiões, reforços gauleses e uma multidão de cidadãos e estrangeiros, ele pronuncia palavras repletas de liberdade, encorajando a República a não falhar na luta pela liberdade, mas a lutar contra todos os perigos; ele declara que é mais honrado cair em servidão do que estar de acordo com ela.
71. Que força e energia ele tem! Que confiança ele exibe em meio ao pânico geral! Ele sabe que é o único cuja situação não está em questão, e que os homens não perguntam se Catão é livre, mas se ele ainda está entre os livres. Daí o seu desprezo pelo perigo e pela espada. Que prazer dizer, admirando a firmeza constante de um herói que não caiu quando todo o estado estava em ruínas: “Um peito másculo, abundante em coragem!”
72. Será útil não apenas indicar qual é a qualidade usual dos homens bons e delinear suas figuras e características, mas também relacionar e estabelecer que homens desse tipo houveram. Podemos imaginar a última e mais valente ferida de Catão, através da qual a Liberdade expirou por último; ou o sábio Lélio e sua vida harmoniosa com seu amigo Cipião; ou os nobres atos do outro Catão, o velho, em feitos públicos ou privados; ou os bancos de madeira de Q. Tubero com pele de cabra em vez de tapeçarias, e vasos de barro expostos para o banquete frente ao próprio santuário de Júpiter! O que mais significou, exceto consagração da pobreza diante do próprio Capitólio? Embora eu não conheça nenhum outro seu para o classificar entre os Catões, este não é o suficiente? Era uma censura pública, não um banquete.
73. Quão lamentavelmente os que desejam a glória mas não conseguem entender o que é a glória, ou de que maneira deve ser procurada! Naquele dia, a população romana viu a mobília de muitos homens; ficaram maravilhados apenas com a de um! O ouro e a prata de todos os outros foram quebrados e derretidos várias vezes; mas os copos de barro de Tubero persistirão pela eternidade.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Na retórica, a protrepsia (grego: πρότρεψις) e a paraênesis (παραίνεσις) são dois estilos de exortação intimamente relacionados que são empregados por filósofos morais. O uso de “conselhos por preceitos”, discutido na carta anterior por outro ângulo.
[2] “vernilitas”, o descaramento ou ousadia de um escravo domestico.
[3]Asclepíades de Bitínia (129 a.C. – 40 a.C.) foi um médico grego nascido em Prusa, na Bitínia, que trabalhou em Roma. Teve sua formação em Alexandria, o maior centro científico de sua época. Asclepíades tinha muitos pupilos, que formavam a escola Metódica.
[6] Do Latim “elementa et membra”, pode significar “letras e cláusulas” ou “matéria e formas de matéria”.
[7] A hidropsia, também conhecida como ascite, ou barriga d’água, não é uma doença propriamente dita, mas um sinal clínico que pode ser decorrente de algumas enfermidades., uma síndrome. Ela ocorre quando há retenção de líquidos na cavidade abdominal, músculos e pele, o que prejudica o bom funcionamento do organismo como um todo.
[9]Catamita era o companheiro jovem, pré-adolescente ou adolescente, em uma relação de pederastia entre dois homens no mundo antigo, especialmente na antiga Roma. Geralmente refere-se a amantes homossexuais jovens e passivos.
[12] Mais uma vez Sêneca critica os tão populares jogos de gladiadores
[13] A ordem equestre romana (ordo equester) formava a mais baixa das duas classes aristocráticas da Roma Antiga, estando abaixo da ordem senatorial (ordo senatorius).
[14] Jantar de gala oferecido pelo oficial ao assumir seu posto.
[15] O sestércio (sestertius, em latim) era uma antiga moeda romana. O sestércio foi criado por volta de 211 a.C. como uma pequena moeda de prata que valia um-quarto de denário
[16] Marco Gávio Apício (ou simplesmente Apício; em latim Marcus Gavius Apicius) foi um gastrônomo romano do século I d.C. suposto escritor do livro De re coquinaria, a melhor fonte para se conhecer a gastronomia do mundo romano.
[17] Alusão ao culto judaico, que se difundiu um tanto em Roma e chegou mesmo a gozar de uma certa protecção de Popeia, mulher de Nero.
[18] Trecho de Heaautontimorumenos (O Punidor de Si Mesmo), de Públio Terêncio Afro.
[19]etiologia (do grego αιτία, aitía, “causa”) é o estudo ou ciência das causas.
[20] Trecho de Geórgias, iii, de Virgílio, 75-81 e 83-85.
Na carta 94 Sêneca usa a técnica do diálogo para debater se preceitos, ou seja, conselhos práticos sobre casos individuas, são ou não úteis à filosofia.
Usa os primeiros 17 parágrafos para apresentar a opinião de Aríston, um estoico que estudou com Zenão. Ao fim desta exposição ficamos convencidos que o uso de conselhos práticos é algo indevido e inútil à filosofia. Contudo, Sêneca usa então o restante da carta para desmontar cada um dos argumentos dos antigos estoicos e defender aguerridamente a utilidade dos preceitos:
As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos desperta. Concentra a memória e a impede de perder o controle. (XCIV, 25)
“Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas? Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada. (XCIV, 28)
A carta também debate pontos de vista de Cleantes e Posodônio, filósofos estoicos gregos cujas obras não sobreviveram ao tempo.
1. Esse departamento da filosofia que fornece preceitos adequados a caso individual, em vez de enquadrá-los para a humanidade em geral[1] – o que, por exemplo, aconselha como um marido deve se conduzir em relação a sua esposa ou como um pai deve educar seus filhos, ou como um mestre deve governar seus escravos – este departamento da filosofia, digo, é aceito por alguns como a única parte significativa, enquanto os outros departamentos são rejeitados com o argumento de que eles se desviam para além da esfera de necessidades práticas – como se qualquer homem pudesse dar conselhos sobre uma parcela da vida sem ter adquirido primeiro um conhecimento do total da vida como um todo!
2. Mas Aríston,[2] o estoico, pelo contrário, acredita que o departamento acima mencionado é de pouca importância – ele afirma que não penetra na mente, não tendo neles mais que preceitos de velhos e que o maior benefício é derivado dos dogmas reais da filosofia e da definição do Sumo Bem. Quando um homem ganha uma compreensão completa dessa definição e aprende tais princípios, diz ele, será capaz de deliberar por si próprio o que fazer em cada situação.
3. Assim como o aluno do lançamento do dardo continua visando um alvo fixo e, assim, treina a mão para dar direção ao míssil. Quando, por instrução e prática, ganha a habilidade desejada, ele pode empregá-lo contra qualquer alvo que deseje tendo aprendido a atingir não qualquer objeto aleatório, mas precisamente o objeto em que ele apontou. Aquele que se equipa para toda a vida não precisa ser aconselhado sobre cada item separado, porque agora está treinado para se opor a seu problema como um todo; pois não sabe apenas como ele deve viver com sua esposa ou seu filho, mas como ele deve viver corretamente. Nesse conhecimento, também está incluído a forma adequada de viver com esposa e filhos.
4. Cleantes sustenta que este departamento da sabedoria é realmente útil, mas que é uma coisa fraca, a menos que seja derivada de princípios gerais, isto é, a menos que seja baseado em um conhecimento dos dogmas reais da filosofia e suas principais rubricas. Este assunto é, portanto, duplo, levando a duas linhas de investigação separadas: primeiro, é útil ou inútil? E, segundo, pode produzir um bom homem? Em outras palavras, é supérfluo, ou torna todos os outros departamentos supérfluos?
5. Aqueles que exigem a visão de que este departamento é supérfluo argumentam da seguinte forma: “Se um objeto que é mantido na frente dos olhos interfere com a visão, ele deve ser removido. Porque enquanto estiver no caminho, é uma perda de tempo oferecer tais preceitos como estes: Caminhe assim e assim, estenda a mão naquela direção”. Da mesma forma, quando algo cega a alma de um homem e impede-a de ver a linha do dever claramente, não adianta aconselhá-lo: “Viva assim e assim com seu pai, assim e assim com sua esposa”. Porque os preceitos não servirão de nada, enquanto a mente está nublada de erro, somente quando a nuvem estiver dispersa ficará claro qual é o dever de cada um. Caso contrário, você apenas mostrará ao homem doente o que ele deveria fazer se estivesse bom, em vez de fazê-lo bom.
6. Suponha que você esteja tentando revelar ao homem pobre a arte de “agir como rico”; como se pode realizar isso enquanto sua pobreza não for alterada? Você está tentando deixar claro para um faminto de que maneira ele deve atuar o papel de alguém com um estômago bem preenchido; o primeiro requisito, no entanto, é aliviá-lo da fome que agarra seus sinais vitais. “O mesmo, asseguro-lhe, é válido para as falhas, as próprias falhas devem ser removidas e não devem ser dados preceitos que não possam ser realizados enquanto as falhas permanecem. A menos que você expulse as falsas opiniões sob as quais sofremos, o avarento nunca receberá instrução sobre o uso adequado do seu dinheiro, nem o covarde quanto ao modo de desprezar o perigo.”
7. Você deve fazer com que o avarento saiba que o dinheiro não é bem nem um mal, mostre-lhe homens de riqueza que são miseráveis até o último grau. Você deve informar o covarde que as coisas que geralmente nos assustam são menos temerosas que o boato anuncia, se o objeto do medo é o sofrimento ou a morte, que quando a morte vem – fixada por lei para todos nós – muitas vezes é um grande consolo refletir que nunca pode voltar, que em meio ao sofrimento, a determinação da alma será tão boa como uma cura, pois a alma torna mais leve qualquer fardo que resista com uma determinação corajosa. E lembre-se que a dor tem essa qualidade excelente: se for prolongada, ela não pode ser grave e, se grave, não pode ser prolongada; e que devemos aceitar corajosamente o que quer que as leis inevitáveis do universo lance sobre nós.
8. Quando, por meio de tais doutrinas, você trouxer o homem pecador para um senso de sua própria condição, quando souber que a vida feliz não é aquilo que se ajusta ao prazer, mas o que está em conformidade com a Natureza, quando ele cair profundamente apaixonado pela virtude como o único bem do homem e evitar a infâmia como o único mal do homem, e quando ele souber que todas as outras coisas – riqueza, cargos, saúde, força, domínio – ocupam posição intermediário, indiferente, e não devem ser contadas nem entre bens nem entre os males, então ele não precisará de um bedel para cada ação separada, para dizer-lhe: “Caminha assim e assim, coma assim e assim. Esta é a conduta própria de um homem e a de uma mulher, isto para um homem casado e isso para um solteiro.”
9. De fato, as pessoas que se esforçam para oferecer esses conselhos não são capazes de pô-los em prática. É assim que o pedagogo aconselha o menino e a avó, seu neto, é o professor mais irritadiço da escola que afirma que nunca se deve perder o temperamento. Vá para uma escola primária, e você aprenderá que apenas esses pronunciamentos, que emanam de filósofos altamente qualificados, podem ser encontrados no livro de aula para meninos!
10. Outro ponto: vocês oferecerão preceitos que são claros ou preceitos que são duvidosos? Aqueles que são claros não precisam de conselheiro, e preceitos duvidosos não ganham credibilidade, de modo que a prestação de preceitos é supérflua. Na verdade, você deveria estudar o problema dessa maneira: Se você está aconselhando alguém em uma questão obscura e de sentido duvidoso, você deve completar seus preceitos por meio de provas, e se você deve recorrer a provas, seus meios de prova são mais eficazes e mais satisfatórios em si mesmos.
11. É assim que você deve tratar seu amigo, assim seu cidadão, assim seu associado. E por quê? “Porque é justo.” No entanto, posso encontrar todo esse material incluído sob o título de Justiça. Acho que o jogo limpo é desejável em si mesmo, não sermos forçados a isso pelo medo nem contratados para esse fim via pagamento, e que nenhum homem é justo senão quem é atraído por qualquer coisa além da própria virtude do ato. Depois de convencer-me dessa visão e absorvê-la completamente, o que posso obter de tais preceitos, que só ensinam quem já está treinado? Para quem sabe, é supérfluo dar preceitos, a quem não sabe, é insuficiente. Pois deve ser informado, não só o que está sendo instruído a fazer, mas também o porquê.
12. Repito, tais preceitos são úteis para aquele que tem ideias corretas sobre o bem e o mal, ou para quem não tem? O último não receberá nenhum benefício de você; uma ideia que entra em conflito com seu conselho já monopolizou sua atenção. Aquele que tomou uma decisão cuidadosa sobre o que deva ser procurado e o que deva ser evitado sabe o que deve fazer, sem uma única palavra de você. Portanto, todo esse departamento de filosofia pode ser abolido.
13. Há duas razões pelas quais nos extraviamos: ou há na alma uma qualidade má que foi provocada por opiniões erradas, ou, mesmo que não possuídas por ideias falsas, a alma é propensa a falsidade e rapidamente corrompida por alguma aparência externa que a atrai na direção errada. Por esta razão, é nosso dever tratar com cuidado a mente doente e liberá-la de falhas, ou tomar posse da mente quando ainda está desocupada e ainda inclinada ao que é mal. Ambos os resultados podem ser alcançados pelas principais doutrinas da filosofia, portanto, a oferta de tais preceitos não serve de nada.
14. Além disso, se dermos preceitos a cada indivíduo, a tarefa é estupenda. Pois uma classe de preceito deve ser dada ao financista, outra ao fazendeiro, outra ao homem de negócios, outra a quem cultiva as boas graças da realeza, outra a quem procurará a amizade de seus iguais, outra a ele que irá julgar os de menor hierarquia.
15. No caso do casamento, você avisará a uma pessoa como ela deve se comportar com uma esposa que antes de seu casamento era uma donzela, e outra como deveria se comportar com uma mulher que anteriormente tinha estado casada com outro; como o marido de uma mulher rica deve agir, ou outro homem com uma esposa sem dote. Ou você não pensa que há alguma diferença entre uma mulher estéril e uma que tem filhos, entre uma avançada em anos e uma mera garota, entre uma mãe e uma madrasta? Não podemos incluir todos os tipos e, no entanto, cada tipo requer tratamento separado; mas as leis da filosofia são concisas e são válidas em todos os casos.
16. Além disso, os preceitos da sabedoria devem ser definidos e certos: quando as coisas não podem ser definidas, estão fora da esfera da sabedoria; pois a sabedoria conhece os limites adequados das coisas. Devemos, portanto, acabar com este departamento de preceitos, porque não pode cumprir tudo aquilo que promete apenas a alguns, mas a sabedoria abraça tudo.
17. Entre a insanidade das pessoas em geral e a insanidade que está sujeita a tratamento médico, não há diferença, exceto que esta sofre de doença e a primeira de opiniões falsas. Em um caso, os sintomas da loucura podem ser atribuídos a doenças; no outro a má saúde da mente. Se alguém oferecer preceitos a um louco – como ele deveria falar, como ele deveria andar, como ele deveria se comportar em público e privado, este seria mais lunático do que a pessoa a quem ele está aconselhando. O que é realmente necessário é tratar a bílis negra[3] e remover a causa essencial da loucura. E isso é o que também deve ser feito no outro caso: o da mente doente. A própria loucura deve ser abalada; caso contrário, suas palavras de conselho desaparecerão no ar.
18. Isto é que Aríston diz; e eu responderei seus argumentos um a um. Primeiro, em oposição ao que ele diz sobre a obrigação de alguém de remover o que bloqueia o olho e dificulta a visão. Eu admito que essa pessoa não precisa de preceitos para ver, mas que precisa de tratamento para curar sua visão e livrar-se do obstáculo que a prejudica. Pois é a natureza que nos dá a nossa visão; e aquele que remove os obstáculos restaura a natureza para sua própria função. Mas a natureza não nos ensina nosso dever em todos os casos.
19. Mais uma vez, se a catarata de um homem é curada, ele não pode, imediatamente após sua recuperação, devolver a visão a outros homens também; mas quando somos libertos do mal, podemos também libertar os outros. Não há necessidade de incentivo, ou mesmo de conselho, para que o olho possa distinguir cores diferentes; preto e branco podem ser diferenciados sem instigação de outro. A mente, por outro lado, precisa de muitos preceitos para ver o que deve fazer na vida; no tratamento dos olhos o médico não só realiza a cura, mas também dá conselhos na barganha.
20. Ele diz: “Não há nenhuma razão pela qual você deva imediatamente expor sua visão fraca para um brilho perigoso, comece com a escuridão, e então entre em meia-luz, e, finalmente, seja mais ousado, acostumando-se gradualmente à luz brilhante do dia. Não há razão para que você deva estudar imediatamente depois de comer, não há razão para que você imponha tarefas difíceis aos seus olhos quando estão inchados e inflamados, evite os ventos e as fortes rajadas de ar frio que sopram no seu rosto” – E outras sugestões do mesmo tipo, que são tão valiosas quanto as próprias drogas. A arte do médico complementa remédios por conselho.
21. “Mas,” vem a resposta, “o erro é a fonte do pecado, os preceitos não eliminam o erro, nem expulsam nossas falsas opiniões sobre o bem e o mal”. Eu admito que os preceitos por si só não são eficazes para derrubar as crenças equivocadas da mente; mas eles, naquela conta, não falham quando acompanhados de outras medidas também. Em primeiro lugar, eles atualizam a memória; em segundo lugar, quando classificados em suas próprias categorias, os assuntos que se mostraram uma massa confusa quando considerados como um todo, podem ser considerados dessa forma com maior cuidado. De acordo com a teoria dos nossos adversários, você pode até dizer que o consolo e a exortação são supérfluos. No entanto, eles não são supérfluos; nem também o é o conselho.
22. “Mas é loucura”, replicam, “prescrever o que um homem doente deveria fazer, como se estivesse bom, quando você realmente deveria restaurar sua saúde, porque sem saúde preceitos não valem a pena”. Mas não tem homens doentes e homens sadios em comum, no sentido em que eles precisam de conselhos contínuos? Por exemplo, para não acatar avidamente os alimentos, e para evitar ficar exausto. Pobre e rico têm em comum certos preceitos válidos a ambos.
23. “Cure a ganância deles, então”, as pessoas dizem, “e você não precisará palestrar tanto para os pobres como para os ricos, desde que, no caso de cada um deles, o desejo tenha diminuído”. Mas não é uma coisa ser livre do desejo por dinheiro, e outra coisa saber como usar esse dinheiro? Os sovinas não conhecem os limites adequados em matéria de dinheiro, mas mesmo aqueles que não são avarentos não conseguem compreender o seu uso. Então vem a resposta: “Evite o erro e seus preceitos se tornam desnecessários”. Isso esta errado; pois supor que a avareza é diminuída, que o luxo é confinado, que a imprudência é retida, e que a preguiça é estimulada pela espora; mesmo depois que os vícios são removidos, devemos continuar a aprender o que devemos fazer, e como devemos fazê-lo.
24. “Nada”, diz-se, “será realizado aplicando conselhos sobre faltas mais graves”. Não; e nem mesmo medicamentos podem dominar doenças incuráveis; no entanto, são usados em alguns casos como remédio, em outros como alívio. Nem mesmo o poder da filosofia universal, embora convoque toda a sua força para o propósito, removerá da alma o que é agora uma doença teimosa e crônica. Mas a sabedoria, apenas porque ela não tem poder para curar tudo, não é incapaz de fazer curas.
25. As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos despertar. Concentra a memória e a impede de perder o controle. Deixamos passar muito do que está diante dos nossos próprios olhos. O conselho é, de fato, uma espécie de exortação. A mente geralmente tenta ignorar mesmo aquilo que está diante de nossos olhos; devemos, portanto, impor a ela o conhecimento de coisas perfeitamente conhecidas. Pode-se repetir aqui o ditado de Calvo[4] sobre Vatínio[5]: “Vocês sabem que o suborno está acontecendo, e todos sabem que vocês sabem disso”.
26. Você sabe que a amizade deve ser escrupulosamente honrada e, no entanto, você não a mantém honrada. Você sabe que um homem faz errado ao exigir a castidade de sua esposa, enquanto ele mesmo está com esposas de outros homens; você sabe que, assim como sua esposa não deve ter relações com um amante, você também não deve se relacionar com uma amante; e ainda assim você não age de acordo. Portanto, você deve ser continuamente trazido a lembrar desses fatos; pois eles não devem estar no armazém, mas estar prontos para o uso. E o que quer que seja saudável deve ser frequentemente discutido e muitas vezes trazido à frente da mente, para que possa estar não apenas familiar a nós, mas também pronto para o uso. E lembre-se, também, de que, desta forma, as verdades evidentes se tornam ainda mais evidentes.
27. “Mas se”, vem a resposta, “seus preceitos não são óbvios, você será obrigado a adicionar provas, daí as provas e não os preceitos serão úteis”. Mas a influência do bedel não pode ser útil, mesmo sem provas? É como as opiniões de um especialista jurídico, que são válidas mesmo que os motivos para elas não sejam entregues. Além disso, os preceitos que são dados são de grande peso em si mesmos, sejam eles narrados no tecido da canção ou condensados em provérbios de prosa, como a famosa sabedoria de Catão: “Não compre o que você deseja, mas o que você deve ter. O que você não precisa, é caro mesmo por um ceitil”.[6] Ou aquelas respostas oraculares, como:
28. “Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas:
Esquecer os problemas é a maneira de curá-los.A fortuna favorece os corajosos, mas o covarde fica pelo caminho.
Iniuriarum remedium est oblivio.Audentes fortuna iuvat, piger ipse sibi obstat.[7]
Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada.
29. A alma carrega dentro de si a semente de tudo o que é honrado, e esta semente é estimulada ao crescimento por conselho, como uma faísca que ventilada por uma suave brisa desenvolve seu fogo natural. A virtude é despertada por um toque, um choque. Além disso, há certas coisas que, embora na mente, ainda não estão prontas para serem aplicadas, mas começam a funcionar facilmente assim que são colocadas em palavras. Certas coisas se espalham em vários lugares, e é impossível que a mente não organizada organize-as em ordem. Portanto, devemos levá-las à unidade, e juntar-se a elas, para que elas possam ser mais poderosas e mais uma elevação para a alma.
30. Ou, se os preceitos não servem de nada, então todos os métodos de instrução devem ser abolidos e devemos nos contentar apenas com a Natureza. Aqueles que mantêm esta visão não entendem que um homem é animado e rápido de inteligência, outro é lento e estúpido, e certamente alguns homens têm mais inteligência do que outros. A força do espírito é nutrida e continua crescendo por preceitos; ele acrescenta novos pontos de vista para aqueles que são inatos e corrige ideias depravadas.
31. “Mas suponha”, as pessoas replicam, “que um homem não é possuidor de dogmas sólidos, como o conselho pode ajudá-lo quando é acorrentado por dogmas viciosos?” Nesse caso, com certeza, ele é libertado disso; pois sua disposição natural não foi esmagada, mas superada e mantida baixa. Mesmo assim, continua tentando se levantar de novo, lutando contra as influências que fazem o mal; mas quando ganha apoio e recebe ajuda de preceitos, cresce mais forte, desde que o problema crônico não tenha corrompido ou aniquilado o homem natural. Nesse caso, nem mesmo o treinamento que vem da filosofia, lutando com todas as suas forças, fará a restauração. Que diferença, de fato, há entre os dogmas da filosofia e os preceitos, a menos que seja isso, que os primeiros são gerais e os últimos especiais? Ambos lidam com conselhos, um através do universal, o outro através do particular.
32. Alguns dizem: “Se alguém está familiarizado com dogmas justos e honestos, será supérfluo aconselhá-lo”. De jeito nenhum; pois essa pessoa realmente aprendeu a fazer coisas que deveria fazer; mas não vê com suficiente clareza quais são essas coisas. Pois somos impedidos de realizar ações dignas de louvor, não só por nossas emoções, mas também por falta de prática para descobrir as demandas de uma situação particular. Nossas mentes muitas vezes estão sob um bom controle e, no entanto, estão ao mesmo tempo inativas e inexperientes em encontrar o caminho do dever, e o conselho torna isso claro.
33. Mais uma vez, está escrito: “Retire todas as falsas opiniões relativas ao beme ao mal, mas substitua-as por opiniões verdadeiras, então o conselho não terá função a executar”. A ordem da alma pode, sem dúvida, ser estabelecida dessa maneira; mas estas não são as únicas maneiras. Pois, embora possamos deduzir por provas apenas o que é o bem e o mal, no entanto, os preceitos têm seu próprio papel. A prudência e a justiça consistem em certos deveres; e os deveres são definidos por preceitos.
34. Além disso, o julgamento quanto ao bem e ao mal se fortalece ao seguir nossos deveres, e os preceitos nos conduzem para esse fim. Pois ambos estão de acordo um com o outro; nem os preceitos podem assumir a liderança, a menos que os deveres os seguirem. Observam sua ordem natural; portanto, os preceitos são claramente os primeiros.
35. “Preceitos”, diz-se “são inúmeros”. Errado de novo! Pois não são inúmeros no que diz respeito a coisas importantes e essenciais. Claro que há pequenas distinções, devido ao tempo, ou ao lugar, ou à pessoa; mas, mesmo nesses casos, existem preceitos que possuem uma aplicação geral.
36. “Ninguém, no entanto”, diz, “cura a loucura por preceitos e, portanto, também não cura a maldade”. Há uma distinção; pois se você livrar um homem de insanidade, ele se torna sano novamente, mas se removemos falsas opiniões, a visão de uma conduta prática não segue imediatamente. Mesmo assim, o conselho irá, no entanto, confirmar a opinião certa sobre o bem e o mal. E também é errado acreditar que os preceitos não são úteis aos loucos. Apesar de por si só serem inúteis, os preceitos são uma ajuda para a cura. Tanto repreensão como castigo dominam um lunático. Note-se que aqui me referi a lunáticos cujo juízo é perturbado, mas não desesperadamente perdido.
37. “Ainda assim”, é objetado, “as leis nem sempre nos fazem fazer o que devemos fazer, e o que mais são leis senão preceitos misturados com ameaças?” Agora, antes de tudo, as leis não persuadem exatamente porque ameaçam; preceitos, no entanto, em vez de coação, corrigem os homens com súplicas. Novamente, as leis amedrontam o homem a não cometer crime, enquanto os preceitos incitam o homem ao seu dever. Além disso, podemos dizer mesmo que as leis favorecem os bons costumes, desde que pretendam não só impor como também instruir.
38. Neste ponto, eu não concordo com Posidônio, que diz: “Não creio que as Leis de Platão deveriam ter os preâmbulos que lhes foram adicionados. Pois uma lei deve ser breve, para que os não iniciados possam compreendê-la com mais facilidade. Deve ser uma voz, por assim dizer, enviada do céu, deve mandar, não debater. Nada me parece mais estúpido ou mais tolo do que uma lei com preâmbulo. Advirta-me, diga-me o que você deseja que eu faça; não estou aprendendo, mas obedecendo.” Mas leis moldadas desta maneira são úteis; por isso você notará que um estado com leis defeituosas terá defeitos morais.
39. “Mas”, diz-se, “não são úteis em todos os casos”. Bem, nem é a filosofia; e, no entanto, a filosofia não é tão ineficaz e inútil no treinamento da alma. Além disso, a filosofia não é a Lei da Vida? Admitamos, se quisermos, que as leis não servem; não é necessariamente verdade que o aconselhamento também não deva servir. Por este motivo, você deve dizer que a consolação não serve, e a advertência, exortação, repreensão e elogio; uma vez que são todos variações de conselhos. É através de tais métodos que chegamos a uma condição perfeita da mente.
40. Nada é mais bem-sucedido em trazer influências honrosas para suportar a mente, ou em endireitar o espírito vacilante que é propenso ao mal, do que a associação com homens bons. Pois a visão frequente, a audição frequente deles pouco a pouco penetra no coração e adquire a força dos preceitos. Somos realmente elevados apenas por conhecer homens sábios; e alguém pode ser ajudado por um grande homem, mesmo quando ele está em silêncio.
41. Eu não poderia facilmente dizer-lhe como isso nos ajuda, embora eu esteja certo do fato de ter recebido ajuda dessa maneira. Fédon[8] diz: “Certos animais pequenos não deixam dor quando nos picam, tão sutil é seu poder, tão enganoso no propósito de danos. A picada é revelada por um inchaço e, mesmo no inchaço, não há ferida visível”. Essa também será sua experiência ao lidar com homens sábios, você não descobrirá como ou quando o benefício vem para você, mas descobrirá que o recebeu.
42. “Qual é o ponto desta observação?” Você pergunta. É, que bons preceitos beneficiarão você tanto quanto bons exemplos. Pitágoras declara que nossas almas experimentam uma mudança quando entramos em um templo e contemplamos as imagens dos deuses face a face e aguardamos as declarações de um oráculo.
43. Além disso, quem pode negar que mesmo os mais inexperientes são efetivamente atingidos pela força de certos preceitos? Por exemplo, por tais provérbios breves, mas importantes como: “Nada em excesso[9]”, “A mente gananciosa não é satisfeita por nenhum ganho”, “Você deve esperar ser tratado pelos outros como você mesmo os tratou”[10]. Recebemos um tipo de choque quando ouvimos tais palavras; ninguém pensa em duvidar delas ou em perguntar “Por quê?” Tão fortemente, deveras, a mera verdade, não acompanhada por explicações, nos atrai.
44. Se a reverência reina na alma e reprime o vício, por que o conselho não pode fazer o mesmo? Além disso, se a repreensão dá uma sensação de vergonha, por que o conselho não tem o mesmo poder, mesmo se usa preceitos nus? O conselho que ajuda a sugestão por razão – que acrescenta o motivo de fazer uma coisa determinada e a recompensa que aguarda aquele que realiza e obedece a tais preceitos – é mais efetivo e se instala mais profundamente no coração. Se os comandos são úteis, também é o conselho. Mas se alguém é ajudado por comandos; portanto, também é ajudado por conselhos.
45. A virtude é dividida em duas partes – na contemplação da verdade e na conduta. O treinamento ensina a contemplação, e a admoestação ensina a conduta. E a conduta correta pratica e revela a virtude. Mas se, quando um homem está prestes a agir, ele é ajudado por conselhos, ele também é ajudado pela admoestação. Portanto, se a conduta correta é necessária para a virtude, e se, além disso, a admoestação deixa clara a conduta correta, então a admoestação também é uma coisa indispensável.
46. Há dois fortes apoios para a alma: confiar na verdade e convicção em nós mesmos; ambas são o resultado da admoestação. Pois os homens acreditam nelas, e quando a crença é estabelecida, a alma recebe grande inspiração e fica cheia de confiança. Portanto, a admoestação não é supérflua. Marco Agripa, um homem de grande alma, a única pessoa entre aquelas que as guerras civis levaram à fama e poder cuja prosperidade ajudou o estado, costumava dizer que estava muito endividado com o provérbio: “Harmonia faz crescer as pequenas coisas, a falta de harmonia faz com que as coisas grandes apodreçam”.[11]
47. Ele considerava que havia se tornado o melhor dos irmãos e o melhor dos amigos em virtude desse ditado. E se os provérbios de tal tipo, quando aceitos intimamente pela alma, podem moldar essa mesma alma, por que a seção da filosofia que consiste em tais provérbios não pode gozar de influência igual? A virtude depende em parte do treinamento e, em parte, da prática; você deve aprender primeiro e, em seguida, fortalecer sua aprendizagem por ação. Se isso é verdade, não só as doutrinas da sabedoria nos ajudam, mas também os preceitos, que controlam e banem nossas emoções por meio de uma espécie de decreto oficial.
48. Aríston diz: “A filosofia é dividida em conhecimento e estado de espírito. Pois quem aprendeu e entendeu o que deva fazer e evitar, não é um homem sábio até que sua mente seja metamorfoseada na forma daquilo que ele aprendeu. Este terceiro departamento – o de preceito – é composto de ambos os outros, de dogmas de filosofia e estado de espírito. Portanto, é supérfluo no que diz respeito ao aperfeiçoamento da virtude, as outras duas partes são suficientes para esse propósito”.
49. Sobre essa base, portanto, mesmo a consolação seria supérflua, uma vez que isso também é uma combinação dos outros dois, assim como a exortação, a persuasão e até mesmo a própria prova. Pois a prova também se origina de uma atitude mental bem ordenada e firme. Mas, embora essas coisas resultem de um estado de mente sã, o estado sadio da mente também resulta delas; é, ao mesmo tempo, tanto o criador delas como resultante delas.
50. Além disso, o que você menciona é a meta de um homem já perfeito, de alguém que atingiu o auge da felicidade humana. Mas a obtenção dessas qualidades é lenta, e, entretanto, por questões práticas, o caminho deve ser mostrado em benefício de alguém que ainda esteja longe da perfeição, mas que esteja fazendo progresso. Sabedoria por sua própria força talvez descubra este caminho sem a ajuda da admoestação; pois ela trouxe a alma a um estágio onde esta pode ser impulsionada apenas na direção certa. Os personagens mais fracos, no entanto, precisam de alguém para precedê-los, para dizer: “Evite isso” ou “Faça isso”.
51. Além disso, se alguém aguarda o momento em que possa saber sozinho qual é a melhor linha de ação, algumas às vezes se desviará e, desviando-se, será impedido de chegar ao ponto em que é possível contentar-se consigo próprio. A alma deve, portanto, ser guiada no momento em que está se tornando capaz de se guiar. Os meninos estudam de acordo com a direção. Seus dedos são segurados e guiados por outros para que possam seguir os contornos das letras; Em seguida, eles são obrigados a imitar uma cópia e a alicerçar nela um estilo de caligrafia. Da mesma forma, a mente é ajudada se for ensinada de acordo com a direção.
52. Tais fatos provam que este departamento da filosofia não é supérfluo. A questão em seguida surge se esta parte sozinha é suficiente para tornar os homens sábios. O problema deve ser tratado no devido momento[12]; mas no momento, omitindo todos os argumentos, não é claro que precisamos de alguém a quem possamos invocar como nosso mentor em oposição aos preceitos dos homens em geral?
53. Não há nenhuma palavra que atinja nossos ouvidos sem nos fazer mal; somos feridos tanto por bons desejos quanto por maldições. As orações irritadas de nossos inimigos inculcam medos falsos em nós; e o carinho de nossos amigos nos prejudica por seus desejos gentis. Pois esse carinho nos coloca a tatear por bens que estão distantes, inseguros e vacilantes, quando realmente podemos abrir o depósito de felicidades de casa.
54. Não nos permitimos, eu mantenho, viajar por uma estrada direta. Nossos pais e nossos escravos nos atraem para o errado. Ninguém confina seus erros para si mesmo; as pessoas pulverizam insensatez entre os seus vizinhos, e recebem-na por sua vez. Por esta razão, em um indivíduo, você encontra os vícios das nações, porque a nação os deu ao indivíduo. Cada um, ao corromper os outros, corrompe-se; o indivíduo embebe e, em seguida, transmite, a maldade, o resultado é uma grande massa de maldade, porque o pior em cada pessoa separada é concentrado em uma massa.
55. Devemos, portanto, ter um guardião, por assim dizer, para nos puxar continuamente pelo ouvido e dissipar rumores e protestar contra entusiasmos populares. Pois você está enganado se supor que nossas falhas são inatas em nós; elas vieram de fora, foram empilhadas sobre nós. Por isso, ao receber admoestações frequentes, podemos rejeitar as opiniões que retinam sobre nossos ouvidos.
56. A natureza não nos predestinou para nenhum vício; ela nos produziu em saúde e liberdade. Ela não colocou diante de nossos olhos nenhum objeto que pudesse atiçar em nós a coceira da ganância. Ela colocou ouro e prata debaixo de nossos pés, e ordenou que os pés pisoteassem e esmagassem tudo o que nos pisa e esmaga. A natureza elevou nosso olhar para o céu e desejou que quiséssemos olhar para cima para contemplar suas obras gloriosas e maravilhosas. Ela nos deu o nascente e o pôr-do-sol, o curso giratório do mundo apressado que revela as coisas da terra ao dia e os corpos celestes de noite, os movimentos das estrelas, que são lentos se você os compara com o universo, mas mais rápido se você refletir sobre o tamanho das órbitas que descrevem com velocidade; ela nos mostrou os sucessivos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos, maravilhosos porque ocorrem regularmente ou porque, por causas súbitas, eles ajudam a ver – como trilhas noturnas de fogo, ou relâmpagos no céu aberto não acompanhado pelo som de Trovões, ou colunas e as traves dos vários fenômenos de luzes.
57. Ela ordenou que todos esses corpos deveriam prosseguir acima de nossas cabeças; mas ouro e prata, com o ferro que, devido ao ouro e à prata, nunca traz a paz, ela escondeu, como se fossem coisas perigosas para confiar à nossa guarda. Somos nós mesmos que os arrastamos para a luz do dia, para que possamos lutar por eles; somos nós mesmos que, cavoucando a terra inferior, extraímos as causas e ferramentas de nossa própria destruição; somos nós mesmos que atribuímos nossas próprias faltas à Fortuna e não coramos ao considerar como os mais elevados objetos aqueles que uma vez se encontravam nas profundezas da Terra.
58. Você deseja saber quão falso é o brilho que engana seus olhos? Na verdade, não há nada mais imundo ou mais envolvido na escuridão do que essas coisas da terra, afundadas e cobertas há tanto tempo na lama onde elas pertencem. É claro que elas são sujas; elas foram transportadas por um longo e sombrio poço de mina. Não há nada mais feio que esses metais durante o processo de refinamento e separação do minério. Além disso, assista os próprios operários que devem lidar e peneirar a árida categoria de sujeira, o tipo que vem do fundo; veja como besuntados de fuligem eles são!
59. E, no entanto, as coisas que eles lidam poluem a alma mais do que o corpo, e há mais impureza no dono da mina do que no trabalhador. Portanto, é indispensável que sejamos admoestados, que tenhamos algum defensor com mente reta e, em meio a todos os tumultos e sons discordantes da falsidade, ouçamos apenas uma voz. Mas qual voz será essa? Certamente, uma voz que, em meio a todo o tumulto da busca de si mesmo, sussurra palavras saudáveis na orelha ensurdecida, dizendo:
60. Você não precisa ter inveja daqueles a quem as pessoas chamam de grandioso e afortunado, os aplausos não precisam perturbar sua atitude serena e sua sanidade mental, você não precisa se sentir enojado com seu espírito calmo porque você vê um grande homem vestido de púrpura, protegido pelos conhecidos símbolos de autoridade, você não precisa julgar o magistrado para quem o caminho é aberto como sendo mais feliz do que você, a quem o funcionário dele empurra da estrada. Se você exerce uma atividade lucrativa para si mesmo, e prejudicial a ninguém, limpe suas próprias falhas do caminho.
61. Há muitos que atearam fogo às cidades, que atacaram guarnições que permaneceram inexpugnáveis por gerações e seguras por várias eras, que criam montes tão altos como as paredes que são sitiando, que com aríetes e catapultas destroem torres que foram criadas em uma altura maravilhosa. Há muitos que podem enviar suas colunas à frente e pressionar destrutivamente sobre a parte de trás do inimigo, que pode alcançar o Grande Mar gotejando com o sangue das nações; mas mesmo esses homens, antes que pudessem conquistar seu inimigo, foram conquistados por sua própria ganância. Ninguém suportou seu ataque; mas eles mesmos não podiam suportar o desejo de poder e o impulso à crueldade; no momento em que pareciam estar perseguindo outros, eles próprios estavam sendo perseguidos.
62. Alexandre foi perseguido ao infortúnio e despachado para países desconhecidos por um desejo louco de destruir o território de outros homens. Você acredita que o homem estava em seus sentidos tanto que começou pela Grécia a devastação, a terra onde ele recebeu sua educação? Aquele que arrancou o mais caro tesouro de cada nação, exigindo que os espartanos fossem escravos, e que os atenienses ficassem quietos? Não contente com a ruína de todos os estados que Filepe havia conquistado ou subornado a escravidão, derrubou várias comunas em diversos lugares e carregou suas armas em todo o mundo; sua crueldade estava cansada, mas nunca cessou – como uma besta selvagem que rasga em pedaços mais do que sua fome demanda.
63. Ele juntou muitos reinos em um único reino; gregos e persas temem o mesmo senhor; as nações que Dário tinha deixado livre se submeteram ao jugo: ainda assim ele passa além do oceano e do sol, julgando vergonhoso que ele desvie seu curso de vitória dos caminhos que Hercules e Baco haviam pisado; ele ameaça a própria violência da natureza. Ele não deseja ir; mas ele não pode ficar; ele é como um peso que cai de cabeça, seu percurso acaba apenas quando chega ao chão.
64. Não foi virtude ou razão que persuadiu Cneu Pompeu a participar de guerras estrangeiras e civis; era o desejo louco de sua glória irreal. Ora ele atacava a Hispânia e a facção de Sertório; depois se retirava para acorrentar os piratas e subjugar os mares. Estas eram apenas desculpas e pretextos para ampliar seu poder.
65. O que o atraiu para a África, para o Norte, contra Mitrídates, para a Armênia e todos os cantos da Ásia? Certamente era o desejo ilimitado de poder; pois apenas em seus próprios olhos ainda não era suficientemente grande. E o que levou Júlio César à destruição combinada de si mesmo e do estado? Fama, egoísmo, e a definição de nenhum limite para a primazia sobre todos os outros homens. Ele não podia permitir que uma única pessoa o ultrapassasse, embora o estado permitisse que dois homens ficassem à cabeça.
66. Você acha que Caio Mario, que já foi cônsul (ele recebeu este cago em uma ocasião, e o roubou em todas as outras) cortejou todos os seus perigos por inspiração da virtude quando matava os Teutos e os Cimbros, e perseguindo Jugurta através das regiões selvagens da África? Mario comandou exércitos, mas quem comandava Mário era a ambição.
67. Quando homens como esses estavam perturbando o mundo, eram eles mesmos perturbados – como os ciclones que turbilhonam o que tomaram, mas que primeiro se turbilhonam a sim mesmos e podem por isso se atirar com toda a força, totalmente sem controle; portanto, depois de causar tal destruição para os outros, eles sentem em seu próprio corpo a força ruinosa que lhes permitiu causar estragos para muitos. Não pense que alguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.
68. Devemos desvendar todos os casos que são forçados diante de nossos olhos e amontoados em nossos ouvidos; devemos limpar nossos corações, pois eles estão cheios de conversa maligna. A virtude deve ser conduzida no lugar que estas ocuparam, – uma espécie de virtude que pode erradicar a falsidade e as doutrinas que transgridam a verdade, ou possa nos separar da multidão, na qual confiamos demais e possa nos restaurar para a fruição de opiniões sólidas. Pois esta é a sabedoria – um retorno à Natureza e uma restauração à condição a qual os erros do homem nos conduziram.
69. É uma grande parte da saúde ter abandonado os conselheiros da loucura e ter fugido para longe de uma companhia que é mutuamente prejudicial. Para que você possa conhecer a verdade da minha observação, veja como é diferente a vida de cada indivíduo perante o público daquela de seu eu interior. Uma vida tranquila não dá, por si só, lições de conduta correta; o campo não ensina uma vida simples; não, mas quando testemunhas e espectadores são removidos, as falhas que amadurecem em público calam fundo.
70. Quem veste o manto púrpura para exibi-lo aos olhos de ninguém? Quem usa peitoral de ouro quando janta sozinho? Quem, enquanto se deita sob a sombra de uma árvore do campo, mostra na solidão o esplendor de seu luxo? Ninguém se torna elegante apenas para sua própria visão, ou mesmo para a admiração de alguns amigos ou parentes. Em vez disso, ele espalha seus vícios bem providos em proporção ao tamanho da multidão admiradora.
71. É assim: claquistas e testemunhas são agentes irritantes de todas as nossas fraquezas. Você pode nos fazer cessar de desejar, se apenas nos faz deixar de nos exibir. A ambição, o luxo e o capricho precisam de um palco para agir; você vai curar todos esses males se você procurar o isolamento.
72. Portanto, se a nossa morada estiver situada no meio de uma cidade, deve haver um conselheiro que esteja perto de nós. Quando os homens louvam grandes rendas, ele deve louvar a pessoa que pode ser rica com um patrimônio pequeno e que meça sua riqueza pelo uso que faz dela. Em face daqueles que glorificam a influência e o poder, deve, por sua própria vontade, recomendar um tempo dedicado ao estudo, e uma alma que abandonou o externo e se encontrou.
73. Ele deve apontar pessoas, felizes na estimativa popular, que cambaleiam em suas invejadas alturas de poder, mas que estão consternadas e mantêm uma opinião muito diferente de si do que os outros detêm. O que outros acreditam ser elevado, é para eles um precipício completo. Por isso, eles estão assustados e agitados sempre que olham para baixo o abrupto íngreme de sua grandeza. Pois eles refletem que existem várias maneiras de cair e que o ponto mais alto é o mais escorregadio.
74. Então eles temem aquilo para o qual se esforçaram, e a boa fortuna que os fez importantes aos olhos dos outros pesa mais sobre si mesmos. Então eles louvam o lazer banal e independência; eles odeiam o glamour e tentam escapar enquanto suas fortunas ainda não são prejudicadas. Então, finalmente, você pode vê-los estudando filosofia em meio ao seu medo, e caçando conselhos de qualidade quando suas fortunas dão errado. Por estas duas coisas estão, por assim dizer, em polos opostos – boa fortuna e bom senso; é por isso que somos mais sábios quando estamos em meio à adversidade. É a prosperidade que nos afasta do caminho íntegro.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Isto é a praecepta, a moral prática, que ministra conselhos, por oposição à moral teórica que estabelece os princípios básicos, decreta.
[2]Aríston de Quios (em grego: Ἀρίστων ὁ Χίος; fl. c. 260 a.C.) foi discípulo de Zenão. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica.
[3] Humorismo, ou humoralismo, foi uma teoria sobre a constituição e funcionamento do corpo humano adotada pelos médicos e filósofos gregos e romanos. Essencialmente, essa teoria afirmava que o corpo humano era preenchido com quatro substâncias básicas, chamadas de os quatro humores, ou humores, o quais estão balanceados quando a pessoa está saudável. Todas as doenças e inaptidões resultavam do excesso ou da deficiência de um desses quatro humores. Os quatro humores eram identificados como bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Os gregos e os romanos, e os estabelecimentos médicos posteriores da Europa Ocidental que adotavam e adaptavam a filosofia médica clássica, acreditavam que cada um desses humores poderia aumentar e diminuir no corpo, dependendo da dieta e da atividade.
[4]G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero, amigo íntimo de Catulo, célebre sobretudo pelos seus discursos contra Vatínio (cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo Tácito e Plínio. Utilizou uma oratória tão refinada que, no julgamento de Vatínio, foi interrompido no meio do discurso por uma frase: “Jurados, pergunto-lhes se irão condenar o suspeito simplesmente pela eloquência do acusador!”
[5]Públio Vatínio foi um político da gente Vatínia da República Romana eleito cônsul em 47 a.C.. Depois de terminado seu mandato, Vatínio foi acusado formalmente por Caio Livínio Calvo de aceitar subornos.
[6]Moeda referida também no Novo Testamento (Lucas 12:6) que tem o valor de 1/16 de denário. Quantia insignificante, coisa de pequeno valor.
[8]Provavelmente referência a Fédon de Élis, um filósofo grego. Fédon era nativo de Élis, tendo sido capturado em guerra e vendido como escravo. Veio posteriormente a entrar em contato com Sócrates em Atenas, tendo este o libertado da escravatura. Mais tarde, regressou a Élis, fundando uma escola filosófica, a Escola de Élis.
[9] Sentença oracular, como as citadas anteriormente.
[12] Esse problema, a saber, se a parenética, ou preceptística, é por si só suficiente para a formação do sábio, está discutido na carta XCV, a próxima.
Chegamos a primeira carta do volume III das Cartas de Sêneca. E começa com uma carta fantástica, uma das mais citadas e comentadas de toda obra senequiana.
Mais uma vez o tema é o medo da morte e sua irracionalidade. Começa nos alertando de que não devemos amaldiçoar os deuses e aceitar a decisão divina. Para os estoicos Deus e Natureza eram equivalentes:
“você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente” (XCIII, 2)
O principal argumento de Sêneca é que devemos nos preocupar com a qualidade, não com a duração da vida. Uma vida plena é uma vida de virtude, não uma longa: “vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade” (XCIII, 4)
A carta termina, como de costume, com uma analogia fantástica com gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:
“Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário do que no anfiteatro?” (XCIII, 12)
1. Ao ler a carta em que você estava lamentando a morte do filósofo Metronax – como se ele pudesse e de fato, devesse ter vivido mais – senti falta do espírito de justiça que abunda em todas as suas discussões sobre homens e coisas, mas falta a você quando se aproxima de um assunto falho a todos nós. Em outras palavras, eu vi muitos que lidam justamente com seus semelhantes, mas nenhum que lida de maneira justa com os deuses. Nós criticamos todos os dias a Fortuna, dizendo: “Por que A foi levado no meio de sua carreira? Por que B não é levado? E aquele? Por que prolongar sua velhice, que é um fardo para si mesmo, bem como para outros?”
2. Mas diga-me, por favor, você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente; para alcançar uma vida longa, você só precisa do destino, mas para viver corretamente você precisa da alma. Uma vida é muito longa se for uma vida plena; mas a plenitude não é alcançada até que a alma tenha fornecido a si mesmo o bem próprio, isto é, até assumir o controle sobre si mesmo.
3. Qual o benefício que este homem mais velho obtém dos oitenta anos em que passou em ociosidade? Uma pessoa como ele não viveu; ele se atrasou na vida. Nem ele morreu tarde na vida; ele simplesmente morreu por muito tempo. “Ele viveu oitenta anos?” Isso depende da data a partir da qual você considera sua morte! Seu outro amigo, no entanto, partiu na floração de sua masculinidade.
4. Mas ele cumpriu todos os deveres de um bom cidadão, um bom amigo, um bom filho; em nenhum caso, ele deixou a desejar. Sua idade pode ter sido incompleta, mas sua vida foi completa. O outro homem viveu oitenta anos? Não, ele existiu oitenta anos, a não ser que, por acaso, você quis dizer com “ele viveu” o que queremos dizer quando dizemos que uma árvore “vive”. Por favor, vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade. Deixe-nos medi-la pelo desempenho dela, não pela duração dela. Você saberia onde está a diferença entre este homem robusto que, desprezando a Fortuna, serviu através de cada batalha da vida e alcançou o Bem Supremo da vida, e aquela outra pessoa sobre cuja cabeça passaram muitos anos? O primeiro existe mesmo depois da morte dele; o último estava morto antes mesmo de morrer.
5. Devemos, portanto, louvar, e considerar em companhia do bem-aventurado, aquele homem que investiu bem sua parcela do tempo, por menor que tenha sido atribuída a ele; pois essa pessoa viu a verdadeira luz. Ela não foi um entre a multidão comum. Ela não só viveu, mas também floresceu. Às vezes, ela desfrutava de céus limpos; às vezes, como muitas vezes acontece, era apenas através das nuvens que via o resplendor da poderosa estrela[1]. Por que você pergunta: “Quanto tempo ele viveu?” Ele ainda vive! Em um passo ele atravessou para a posteridade e se entregou à guarda da memória.
6. E, no entanto, eu não negaria a mim alguns anos adicionais; embora, se o espaço da minha vida for encurtado, não direi que tenha faltado qualquer coisa que seja essencial para uma vida feliz. Pois não planejei viver até o último dia prometido pelas minhas esperanças gananciosas; não, eu olhei todos os dias como se fossem o meu último. Por que pedir a data do meu nascimento, ou se eu ainda estou inscrito na lista dos homens mais jovens[2]? O que eu tenho é meu.
7. Assim como alguém de pequena estatura pode ser um homem perfeito, da mesma forma uma vida curta pode ser uma vida perfeita. Idade se classifica entre as coisas externas. Quanto tempo eu vou existir não é minha decisão, mas quanto tempo eu vou continuar a existir no meu jeito atual está sob meu controle. Esta é a única coisa que você tem o direito de exigir de mim, – que eu deixe de medir anos sem glória, como se estivessem na escuridão, e que me dedique a viver em vez de ser carregado ao longo da vida.
8. E qual, você pergunta, é o máximo da envergadura da vida? É viver até você possuir sabedoria. Aquele que alcançou a sabedoria alcançou, não o mais longínquo, mas o mais importante objetivo. Tal pessoa pode realmente exultar com ousadia e dar graças aos deuses – sim e a si mesmo também – e ela pode considerar-se credora da natureza por ter vivido. Ela certamente terá o direito de fazê-lo, pois ela lhe retribuiu com uma vida melhor do que recebeu. Ela estabeleceu o padrão de um homem bom, mostrando a qualidade e a grandeza de um homem bom. Tivesse mais um ano adicionado, seria apenas como o passado.
9. E ainda quanto tempo devemos continuar vivendo? Tivemos a alegria de aprender a verdade sobre o universo. Sabemos de que origens a natureza surge; como ela regula o curso dos céus; por mudanças sucessivas que ela invoca o ano; como ela acabou com todas as coisas que já existiram e estabeleceu-se como o único fim de seu próprio ser. Sabemos que as estrelas se movem por sua própria direção, e que nada, exceto a terra, permanece imóvel, enquanto todos os outros corpos correm com rapidez ininterrupta[3]. Sabemos como a lua ultrapassa o sol; por que é que, o mais lento, deixa o mais rápido atrás; de que maneira ela recebe a luz, ou a perde de novo; o que traz a noite e o que traz de volta o dia. Para esse lugar você deve ir para que tenha uma visão mais próxima de todas essas coisas.
10. “E, no entanto,” diz o sábio: “Eu não partirei mais valentemente por causa dessa esperança – porque julgo que está claro diante de mim o caminho para meus próprios deuses. Certamente, ganhei a admissão à presença deles e, de fato, já estive em suas companhias, eu enviei minha alma para eles como eles já tinham enviado a deles para mim. Mas suponha que eu seja totalmente aniquilado, e que, após a morte, não subsista nada mortal, não tenho menos coragem, mesmo que quando eu parta, meu curso leve a nenhum lugar. Mas”, você diz, “ele não viveu tantos anos quanto poderia ter vivido”.
11. Existem livros que contêm poucas linhas, admiráveis e úteis, apesar do tamanho deles; e também existem os Anais de Tanúsio[4] – você sabe o volume do livro e o que os homens dizem dele. Este é o caso da longa vida de certas pessoas, um estado que se assemelha aos Anais de Tanúsio!
12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário[5] do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[2] Referência ao comitia centuriata, Assembleia das centúrias, dividida em Juniores homens com idade entre 17 e 46 e Seniores com idade entre 46 e 65.
[3] A tese do geocentrismo era uma ideia contestada também na época de Sêneca como pode ser visto no seu livro Questões Naturais no livro VII em que discute o movimento dos cometas.
[4]Tanúsio Geminus foi um historiador. Chegou a ser mencionado por Suetônio em Diuus Julius, IX. A expressão de Sêneca (“que os homens dizem dele”) é uma reminiscência de cacata carta do poema de Catulo.
[5]Espoliário na m Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.
Sêneca escreveu sobre este tópico em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”. Essa carta é um excelente resumo de suas ideias sobre o que torna uma vida feliz: Viver segundo a natureza, em virtude.
Após dezenas de citações elogiosas a Epicuro, Sêneca bate pesado nos epicuristas ao categoricamente afirmar que prazeres e sua busca são ineficazes (e muita vezes contrários) a uma vida feliz:
“A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.” (XCII, 8)
Sêneca, como de costume, usa excelentes analogias para defender suas tesas. Para os estoicos, questões sensoriais (dor, doença, prazer, etc) não tem capacidade de influenciar a felicidade (positiva ou negativamente) e são como uma nuvem que encobrem o sol:
“Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.” (XCII, 18)
O segredo para a felicidade então é uma vida virtuosa, e uma busca a se tornar semelhantes aos deuses. Sêneca acreditava que nossa alma vinha de Deus, e com a morte, retornaria a Deus:
“Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. (…) A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.” (XCII,31)
1. Você e eu concordaremos, penso eu, que as coisas externas são buscadas para a satisfação do corpo, que o corpo é apreciado por respeito à alma, e que na alma existem certas partes que nos auxiliam, permitindo-nos a mover e manter a vida, concedida a nós apenas para o proveito da nossa parte principal[2]. Nesta parte primária, há algo irracional e algo racional. A primeira obedece a última, esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. Pois a razão divina também está em comando supremo de todas as coisas, e não está sujeita a nada; e até mesmo a razão que possuímos é assim, porque é derivada da razão divina.
2. Agora, se concordarmos neste ponto, é natural que também possamos concordar com o seguinte: a vida feliz depende disso e só disso: da obtenção da razão perfeita. Pois não é nada além disso, que impede a alma de se rebaixar, que luta firme contra a fortuna; seja qual for a condição de seus negócios, ela mantém os homens sem problemas. E ela sozinha é um bem que nunca está sujeito a deficiências. Esse homem, eu declaro, é feliz, já que nada o faz menos forte; ele se mantém nas alturas, não se apoiando em ninguém senão em si mesmo; pois quem se sustenta por qualquer suporte pode cair. Se o caso for contrário, então as coisas que não dizem respeito a nós começarão a ter uma grande influência sobre nós. Mas quem deseja que a fortuna tenha vantagem, ou que homem sensato se orgulha do que não é dele próprio?
3. O que é a vida feliz? É paz de espírito e tranquilidade duradoura. Isto será seu se você possuir grandeza de alma; será seu se você possuir a firmeza que se apega resolutamente a um bom julgamento recém atingido. Como um homem atinge essa condição? Ao obter uma visão completa da verdade, mantendo, em tudo o que faz, ordem, medida, aptidão e vontade que é inofensiva e gentil, que é atenta a razão e nunca se afasta dela, que conduz ao mesmo tempo ao amor e à admiração. Em suma, para lhe dar o princípio resumidamente, a alma do sábio deve ser tal como seria apropriada a um deus.
4. O que mais pode desejar alguém que possua todas as coisas honrosas? Pois, se coisas desonestas podem contribuir para um maior patrimônio, então haverá a possibilidade de uma vida feliz em condições que não incluam uma vida digna. E o que é mais vil ou tolo do que conectar o bem de uma alma racional com coisas irracionais?
5. Contudo, existem certos filósofos que afirmam que o Bem Supremo admite aumento, porque não está completo quando as dádivas da fortuna são adversas. Mesmo Antípatro, um dos grandes líderes da nossa escola, admite que atribui alguma influência aos extrínsecos, embora apenas uma influência muito pequena. Você vê, no entanto, que absurdo é em não se contentar com a luz do dia, a menos que seja aumentada por um pequeno fogo. Qual a importância de uma faísca no meio desta luz solar intensa?
6. Se você não está satisfeito com o que é honrado, terá forçosamente de lhe pôr ao lado ou o sossego como dizem os gregos(aokhlêsia), ou o prazer. Mas o primeiro pode ser alcançado em qualquer caso. Pois a mente está livre de distúrbios quando é totalmente livre para contemplar o universo, e nada a distrai da contemplação da natureza. O segundo, o prazer, é simplesmente o bem dos animais. Nós somos apenas o adicionado do irracional ao racional, o desonroso ao honrado. Uma sensação física agradável afeta essa nossa vida;
7. Por que, portanto, você hesita em dizer que tudo está bem com um homem, só porque tudo está bem com seu apetite? E você classifica, não vou dizer entre os heróis, mas entre os homens, a pessoa cujo Bem Supremo é uma questão de sabores, cores e sons? Não, deixe-o retirar-se destas fileiras, da classe mais nobre de seres vivos, segunda apenas aos deuses; deixe-o viver em rebanho com as bestas – um animal cujo prazer está na forragem!
8. A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.
9. Eles ordenaram a razão a servir esta última; eles fizeram o Bem Supremo da vida mais nobre ser um assunto abjeto e mesquinho, e um híbrido monstruoso, também, composto de vários membros que harmonizam, mas estão doentes. Pois, como nosso Virgílio, descrevendo Cila,[3] diz:
“tem forma humana o seu corpo, donzela de peito formoso até à cinta, depois torna-se monstro gigantesco unindo caudas de golfinho ao ventre eriçado de lobos!”
Prima hominis facies et pulchro pectore virgoPube tenus, postrema inmani corpore pistrixDelphinum caudas utero commissa luporum.[4]
Eneida, de Virgílio.
E ainda assim, esta Cila é alinhavada nas formas de animais selvagens, terrível e rápida; mas a partir de que formas monstruosas esses pedantes epicuristas compuseram sabedoria!
10. A arte principal do homem é a própria virtude; há, unida a ela uma carne inútil e fugaz, apta apenas para a recepção de alimentos, como observa Posidônio. Esta virtude divina termina em impureza, e nas partes superiores, que são adoráveis e celestiais, está preso um animal lento e flácido. Quanto ao segundo desiderato, calmo, embora, de fato, não seja de si mesmo benéfico para a alma, mas aliviaria a alma dos obstáculos; prazer, pelo contrário, realmente destrói a alma e afrouxa todo o seu vigor. Quais elementos tão desarmoniosos como estes podem ser encontrados unidos? Aquilo que é mais vigoroso é unido ao que é mais lento, ao que é austero o que está longe de ser sério, ao que é mais sagrado com o que é destemperado até o ponto da impureza por incesto.
11. “O que, então”, vem a réplica, “se a boa saúde, o descanso e a imunidade à dor não prejudicam a virtude, você não deve procurar tudo isso?” É claro que eu os procurarei, mas não porque sejam bens, eu os procurarei porque estão de acordo com a natureza e porque serão adquiridos por meio do exercício do bom juízo de minha parte. O que, então, será bom neles? Só isso – é bom escolhe-los. Pois, quando eu coloco um vestuário adequado, ou ando como devo, ou janto como devo jantar, não é o meu jantar, nem a minha caminhada, nem o meu traje que são bens, mas a escolha deliberada que mostro em relação a eles, como observo, em cada coisa que faço, um meio que está em conformidade com a razão.
12. Permita-me também acrescentar que a escolha de roupas limpas é um objeto apropriado dos esforços de um homem; pois o homem é, por natureza, um animal elegante e bem preparado. Daí a escolha de um traje limpo, e não um traje elegante em si mesmo, é um bem; uma vez que o bem não está no item selecionado, mas na qualidade da seleção. A moralidade está na nossa forma de agir, mas não as coisas reais que fazemos.
13. E você pode assumir que o que eu disse sobre vestes se aplica também ao corpo. Pois a natureza cercou nossa alma com o corpo como com uma espécie de roupa; o corpo é o seu manto. Mas quem computa o valor das roupas pelo guarda-roupa que as contem? A bainha não faz a espada boa ou ruim. Portanto, no que diz respeito ao corpo, devolver-lhe-ei a mesma resposta, se eu escolher, escolherei saúde e força, mas o bem envolvido será o meu juízo sobre essas coisas, e não as próprias coisas.
14. Outra réplica é: “Admitindo que o sábio é feliz, no entanto, ele não alcança o bem supremo que definimos, a não ser que os meios que a natureza oferece para a sua realização estiverem a seu alcance. Então, quem possui a virtude não pode ser infeliz, mas não se pode ser perfeitamente feliz quem não possui as dádivas naturais como a saúde ou a integridade dos membros”.
15. Mas, ao dizer isso, você epicurista admite a alternativa que parece mais difícil de acreditar – que o homem que está em meio a uma dor incessante e extrema não é miserável, ou melhor, é feliz; E você nega o que é muito menos crítico, – que ele é completamente feliz. E, no entanto, se a virtude pode evitar que um homem seja miserável, será uma tarefa mais fácil para ela torná-lo completamente feliz. Pois a diferença entre felicidade e felicidade completa é menor do que entre miséria e felicidade. Pode ser possível que uma coisa que seja tão poderosa que retire um homem do desastre e o coloque entre os felizes, também não possa realizar o que falta e torná-lo extremamente feliz? A sua força falha no fim da subida?
16. Há coisas da vida que são vantajosas e desvantajosas, ambas além do nosso controle. Se um bom homem, apesar de ser castigado por todos os tipos de desvantagens, não é miserável, como não é extremamente feliz, não importa se não possui certas vantagens? Pois, como não é levado à miséria por seu fardo de desvantagens, então não é afastado da suprema felicidade por falta de vantagens; não, ele é tão supremamente feliz sem as vantagens, assim como ele está isento da miséria, apesar da carga de suas desvantagens. Caso contrário, se o seu bem pode ser reduzido, pode também ser retirado completamente.
17. Num trecho acima, observei que um pequeno fogo não aumenta a luz do sol. Pois, devido ao brilho do sol, qualquer outra luz que não seja a luz solar é apagada. “Mas,” pode-se dizer, “há certos objetos que bloqueiam o caminho mesmo da luz solar”. O sol, no entanto, não é prejudicado mesmo em meio a obstáculos, e, embora um objeto possa intervir e cortar nossa visão, o sol adere-se ao seu trabalho e segue seu curso. Sempre que ele brilha de entre as nuvens, não é menor, nem menos pontual, do que quando está livre de nuvens; uma vez que faz uma grande diferença se existe apenas algo no caminho de sua luz ou algo que interfira com o seu brilho.
18. Da mesma forma, os obstáculos não retiram nada da virtude; não fica menor, mas simplesmente brilha com menos esplendor. Em nossos olhos, talvez seja menos visível e menos luminosa do que antes; mas, no que se refere a si mesma, é inalterada e, assim como o sol quando está eclipsado, ainda continua produzindo sua força, embora em segredo. Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.
19. Encontramos com uma pessoa que sustenta que um homem sábio que se encontre com infortúnio corporal não é nem miserável nem feliz. Mas ele também está errado, pois está colocando os resultados do acaso em uma paridade com as virtudes e atribui a mesma influência tanto a coisas que são honrosas quanto a coisas desprovidas de honra. Mas o que é mais detestável e mais indigno do que colocar coisas desprezíveis na mesma classe de coisas dignas de reverência! Pois reverência é devida à justiça, dever, lealdade, bravura e prudência; pelo contrário, esses atributos são inúteis pois homens mais desprezíveis são muitas vezes abençoados com os quais em maior medida, como uma perna robusta, ombros fortes, bons dentes e músculos saudáveis e sólidos.
20. Novamente, se um homem sábio de corpo enfermo não for considerado nem miserável nem feliz, mas deixado em uma espécie de posição a meio caminho, sua vida também não será desejável nem indesejável. Mas o que é tão tolo quanto dizer que a vida do homem sábio não é desejável? E o que está tão além dos limites da credibilidade quanto a opinião de que qualquer vida não é desejável nem indesejável? Novamente, se os males corporais não tornam um homem miserável, eles, consequentemente, permitem que ele seja feliz. Pois coisas que não têm poder para mudar sua condição para pior, também não têm o poder de perturbar essa condição quando está no seu auge.
21. “Mas”, alguém vai dizer, “sabemos o que é frio e o que é quente, uma temperatura morna se encontra no meio. Da mesma forma, A é feliz e B é miserável, e C não é nem feliz nem miserável”. Desejo examinar esta ilustração, que é colocada em jogo contra nós. Se eu adicionar a sua água morna uma quantidade maior de água fria, o resultado será água fria. Mas se derramar uma quantidade maior de água quente, a água finalmente ficará quente. No caso, no entanto, do seu homem que não é miserável nem feliz, não importa o quanto eu adicione aos seus problemas, ele não será infeliz, de acordo com sua argumentação; daí que sua ilustração não oferece analogia.
22. Mais uma vez, suponha que eu coloque diante de você um homem que não é miserável nem feliz. Eu acrescento cegueira a seus infortúnios; ele não está ficando infeliz. Eu o mutilo; ele não está ficando infeliz. Eu acrescento aflições que são incessantes e severas; ele não está ficando infeliz. Portanto, aquele cuja vida não se torna miserável por todos esses males também não é arrastado da vida feliz por eles.
23. Então, se, como você diz, o sábio não pode cair da felicidade para a miséria, ele não pode cair na falta de felicidade. Pois, alguém que começou a escorregar, consegue parar em qualquer lugar particular? O que o impede de escorregar para o fundo, o mantém em pé. Por que, você insiste, uma vida feliz não pode ser destruída? Nem sequer pode ser desarticulada; e por isso a própria virtude é suficiente para a vida feliz.
24. “Mas”, é dito, “o homem sábio não é mais feliz se viver mais tempo sem ser importunado por qualquer dor, do que alguém que sempre foi obrigado a lidar com a má fortuna?” Me responda agora, este é melhor ou mais honrado? Se não é, então também não é feliz. Para viver mais felizmente, ele deve viver com mais justiça; se não pode fazer isso, então também não pode viver mais feliz. A virtude não pode ser mais forte e, portanto, assim também a vida feliz, que depende da virtude. Pois a virtude é um bem tão forte que não é afetada por assaltos tão insignificantes como a vida curta, a dor e as várias vexações corporais. Pois o prazer não é coisa para que a virtude se digne sequer olhar.
25. Agora, qual a coisa principal na virtude? É a qualidade de não precisar de um único dia além do presente, e de não contar os dias que são nossos; no menor momento possível, a virtude completa uma eternidade de bem. Esses bens nos parecem incríveis e transcendem a natureza do homem; pois medimos sua grandeza pelo padrão de nossa própria fraqueza, e chamamos nossos vícios pelo nome da virtude. Além disso, não parece tão incrível que qualquer homem em meio ao sofrimento extremo possa dizer: “Eu estou feliz!”? E, no entanto, essa expressão foi ouvida no próprio laboratório do prazer[5], quando Epicuro disse: “Este é o meu dia mais feliz, o meu último dia, também!” Embora em um caso ele fosse torturado estrangúria[6] e, no outro, pela dor incurável de um estômago ulcerado.
26. Por que, então, os bens que a virtude nos concede são incríveis à nossa vista, que cultivamos a virtude, quando são encontrados mesmo naqueles que reconhecem o prazer como sua amante? Estes também, ignóbeis e rasteiros, como são, declaram que, mesmo no meio de dor excessiva e infortúnio, o sábio não será nem miserável nem feliz. E, no entanto, isso também é incrível, o que é ainda mais incrível do que o outro caso. Pois não entendo como, se a virtude cai de suas alturas, ela pode impedir de ser levada até o fundo. Ela deve ou preservar alguém na felicidade, ou, se expulsa dessa posição, não conseguirá impedir que nos tornemos infelizes. Se a virtude se mantem firme, ela não pode ser expulsa do campo; ela deve conquistar ou ser conquistada.
27. Mas alguns dizem: “Somente para os deuses imortais é dada virtude e a vida feliz, podemos alcançar apenas a sombra e a semelhança de bens como os deles. Nós nos aproximamos deles, mas nunca os alcançamos”. A razão, no entanto, é um atributo comum de deuses e homens; nos deuses já está aperfeiçoada, em nós é capaz de ser aperfeiçoada.
28. Mas são os nossos vícios que nos deixam desesperados; pois a segunda classe dos seres racionais, o homem, é de ordem inferior – um guardião, por assim dizer, que é muito instável para manter o que é melhor, seu julgamento ainda é vacilante e incerto. Ele pode exigir as faculdades de visão e audição, boa saúde, um exterior corporal que não seja repugnante e, além disso, maior duração de dias ungidos de saúde intacta.
29. Embora, por meio da razão, possa levar uma vida que não traga arrependimentos, ainda reside nesta criatura imperfeita, o homem, um certo poder que faz mal, porque ele possui uma mente que se move facilmente para a perversidade. Suponha, no entanto, que a maldade que está em plena visão, seja removida; o homem ainda não é um bom homem, mas ele está sendo moldado para o bem. Alguém, no entanto, em quem falte qualquer qualidade que traga a bondade, é mau.
30. Mas
Aquele em cujo corpo a virtude está presente em corpo e espírito,
SedSi cui virtus animusque in corpore praesens,[7]
Eneida, de Virgílio.
é igual aos deuses; consciente de sua origem, ele se esforça para voltar para lá. Nenhum homem erra ao tentar recuperar as alturas das quais ele desceu. E por que você não deve acreditar que existe algo de divino em alguém que faz parte de Deus? Todo esse universo que nos engloba é um, e é Deus; somos associados de Deus; nós somos seus membros. Nossa alma tem capacidades e é transportada para lá, se os vícios não a impedem. Assim como a natureza dos nossos corpos é se manter ereto e olhar para o céu, então a alma, que pode alcançar o máximo que desejar, foi moldada pela natureza para esse fim, que desejasse a igualdade com os deuses. E se faz uso de seus poderes e se estende a cima em sua própria região, não é por nenhum caminho desconhecido que luta em direção às alturas.
31. Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. Quando uma vez encontra a estrada, ela marcha com audácia, desdenhosa de todas as coisas. Ela se lança, sem olhar para a riqueza; ouro e prata – coisas que são totalmente dignas da escuridão de onde saíram – não valem pelo brilho que ferem os olhos dos ignorantes, mas pela lama dos dias passados, de onde a nossa ganância primeiro os destacou e cavou. A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.
32. É a alma que os homens podem colocar em domínio de todas as coisas, e podem empossar como dona do universo, para que eles limitem suas riquezas somente pelos limites do Oriente e do Ocidente e, como os deuses, possam possuir todas coisas; e que, com seus próprios recursos vastos, olhe para os ricos, nenhum dos quais se alegra tanto em sua própria riqueza como se ressente da riqueza de outro.
33. Quando a alma se transporta para este alto sublime, também considera o corpo, uma vez que é um fardo que deve ser suportado, não como algo para amar, mas como uma coisa para supervisionar; nem é subserviente àquilo sobre o qual está configurado em seu domínio. Pois nenhum homem é livre, se é escravo do seu corpo. Na verdade, excluindo todos os outros mestres que são trazidos devido ao cuidado excessivo pelo corpo, o poder que o próprio corpo exerce é capcioso e enfadonho.
34. Por este corpo, a alma emerge, agora com espírito imperturbável, agora com exultação, e, uma vez que surgiu, não pergunta qual será o fim do dia desperto. Não; assim como não pensamos nas aparas de cabelo e da barba, da mesma forma que a alma divina, quando está a ponto de emergir do homem mortal, considera o destino de seu vaso terrestre – quer seja consumido pelo fogo, ou fechado por uma pedra, ou enterrado na terra, ou rasgado por bestas selvagens – como não sendo mais preocupante para si mesmo do que as secundinas[8] para uma criança que nasceu. E se este corpo deve ser jogado fora e picado em pedaços por pássaros, ou devorado quando
35. Nem mesmo quando está entre os vivos, a alma não teme nada que possa acontecer ao corpo após a morte; pois, embora tais coisas possam ter sido ameaças, não foram suficientes para aterrorizar a alma antes do momento da morte. Ela diz; “Não estou assustada com a espada do carrasco, nem com a mutilação revoltante do cadáver que estará exposto ao desprezo daqueles que testemunharão o espetáculo. Não peço a nenhum homem que realize os últimos ritos para mim, confio meus restos mortais a ninguém. A natureza providenciou para que ninguém fosse deixado sem um enterro. O tempo vai consumir aquele corpo que a crueldade gerou”. Estas foram palavras eloquentes que Mecenas[10] pronunciou:
Eu não quero tumba; Pois a natureza irá prover,
Nec tumulum curo. Sepelit natura relictos.
Eneida, de Virgílio
Você imaginaria que este foi o ditado de um homem de princípios rígidos e pronto para a luta[11]. Ele era realmente um homem de nobres e robustos dons, mas em prosperidade ele comprometeu esses dons por permissividade[12].
[2]ou seja, a alma. Veja Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1. 13: “É afirmado que a alma tem duas partes, uma irracional e outra dotada de razão.” Aristóteles subdivide a parte irracional em (1) o que faz crescer e aumentar, e (2) desejo (que irá, no entanto, obedecer a razão). Nesta passagem, Sêneca usa “alma” em seu sentido mais amplo.
[3] Cila (em grego: Σκύλλα, transl.: Skýlla), na mitologia grega, conforme Homero e Ovídio, era uma bela ninfa que se transformou em um monstro marinho.
[11] Literalmente. “um homem que tem o cinto bem apertado’” de modo a erguer as roupas e facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (alte cinctum).
[12] A mesma imagem, literalmente: “lhe tivesse desapertado o cinto” deixando, portanto, que as vestes soltas o incapacitassem de lutar.
Após quase três semanas de férias, o Estoico volta às cartas de Sêneca.
Na carta 91 Sêneca aborda um tema frequentemente esquecido por nós: Precisamos estar preparados não só para “o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer.” Ele usa como alegoria um incêndio que destruiu completamente Lião, capital da província romana da Gália.
Assim como a queda das torres gêmeas em 2001 ou a atual pandemia, o incêndio de tal capital veio inesperado e com resultado catastrófico:
“…apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse. … pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer”. (XC, 2-4)
Sêneca, ensinando sobre o exercício estoico de praticar o infortúnio (premeditatio malorum) diz que, “devemos refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades: Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso.”
Quanto a tragédia em si, o conselho é manter a calma e tranquilidade, geralmente a realidade é menos severa que o imaginado à primeira notícia. Sêneca dá exemplo anedótico de um historiador da época:
“Timágenes , que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.
E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa!” (XC, 13-14)
O que era verdade antes, continua verdade hoje. Em Nova Iorque as Torres Gêmeas foram substituídas por uma mais alta. Lião continua uma cidade próspera, a terceira maior da França. Logo o Covid será apenas mais um caso na história.
1. Nosso amigo Liberal está agora abatido; pois ele acabou de ouvir do fogo que eliminou a colônia de Lião[1]. Tal calamidade pode chatear qualquer um, para não falar de um homem que ama muito seu país. Mas este incidente serviu para fazê-lo se perguntar sobre a força de seu próprio caráter, que ele treinou, suponho, apenas para encontrar situações que concebia como possíveis. Não me pergunto, no entanto, se ele estava preparado para o embate com um mal tão inesperado e praticamente inaudito como este, já que é sem precedentes. Pois o fogo já danificou muitas cidades, mas não aniquilou nenhuma. Mesmo quando o fogo é lançado contra os muros pela mão de um inimigo, a chama morre em muitos lugares, e embora continuamente renovada, raramente devora tão completamente que não deixa nada para a espada. Mesmo um terremoto quase nunca é tão violento e destrutivo que derrube cidades inteiras. Finalmente, nenhuma conflagração já resplandeceu tão selvagemente sobre uma cidade que nada tenha sobrado para uma segunda chance.
2. Tantos edifícios bonitos, um único dos quais faria uma cidade famosa, foram destruídos em uma noite. Em tempo de paz tão profunda, ocorreu um evento pior do que os homens poderiam temer mesmo em tempo de guerra. Quem pode acreditar? Quando as armas estão em repouso e quando a paz prevalece em todo o mundo, Lião, o orgulho da Gália, está desaparecida! A fortuna geralmente concede que todos os homens, quando os assalta coletivamente, tenham um pressentimento do que estavam destinados a sofrer. Toda grande criação concede um período de indulto antes da sua queda; mas neste caso, apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse.
3. Tudo isso afetou nosso amigo Liberal, dobrando sua vontade, que geralmente é tão firme e ereta em face de suas próprias provações. E não sem razão foi abalado; pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa.
4. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer. Pois o que há no mundo que a fortuna, quando ela quer, não derruba do alto da sua prosperidade? E o que é que ela não ataca mais violentamente quão mais brilhante é? O que é laborioso ou difícil para ela?
5. Ela nem sempre ataca da mesma maneira nem com a mesma força; as vezes, ela convoca nossas próprias mãos contra nós; em outro momento, contente com seus próprios poderes, ela não faz uso de nenhum agente para inventar perigos para nós. Nenhuma época está isenta; no meio de nossos próprios prazeres, brotam as causas do sofrimento. A guerra surge no meio da paz, e aquilo em que dependemos para proteção é transformado em causa de medo; O amigo se torna inimigo, o aliado se torna inimigo, a calma do verão é agitada por tempestades repentinas, mais selvagens do que as tempestades do inverno. Sem inimigos à vista, somos vítimas de destinos como os infligidos pelos inimigos, e se outras causas de desastre falham, a boa sorte excessiva os encontra por si só. Os mais comedidos são assolados pela doença, o mais forte por devastadora doença, o mais inocente pelo suplício, o mais isolado pela multidão barulhenta. A fortuna escolhe uma nova arma para levar sua força contra nós, principalmente quando esquecemos dela.
6. Qualquer que seja a estrutura criada por uma longa sequência de anos, ao custo do grande trabalho e pela grande bondade dos deuses, é espalhada e dispersa por um único dia. Não, aquele, que disse “um dia”, concedeu um adiamento muito longo ao infortúnio rápido; uma hora, um instante de tempo, basta para a derrubada dos impérios! Seria um consolo para a debilidade de nós mesmos e nossas obras, se todas as coisas perecessem tão devagar quanto demoram para surgir; mas, como é, os ganhos são de crescimento lento, mas o caminho para a ruína é rápido.
7. Nada, seja público ou privado, é estável; os destinos dos homens, nada menos que os das cidades, estão em um redemoinho. Em meio a maior calmaria o terror surge, e apesar de nenhuma agente externo agitar a baderna, ainda assim os males brotam de fontes de onde eram menos esperados. Os tronos que suportaram o choque de guerras civis e estrangeiras caíram ao chão, embora ninguém os tivessem feitos instáveis. Quão poucas cidades levaram a boa fortuna até o fim! Devemos, portanto, refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades.
8. Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso. O acaso pode retirá-lo de seu país ou seu país de você, ou pode exilá-lo ao deserto; este mesmo lugar, onde as multidões são sufocantes, pode se tornar um deserto. Posicionemos diante de nossos olhos em sua totalidade a natureza da fortuna do homem, e se não estivéssemos sobrecarregados, nem mesmo aturdidos, por esses males inusitados, como se fossem novos, convoquemos nossa mente de antemão, não um mal tão grande com às vezes acontece, mas o maior mal que possivelmente pode acontecer. Devemos refletir sobre a fortuna integralmente e completamente.
9. Com que frequência as cidades da Ásia Menor[2] ou na Acaia[3], cidades foram destruídas por um único choque de terremoto! Quantas cidades na Síria, quantas na Macedônia, foram engolidas! Quantas vezes esse tipo de devastação colocou Chipre em ruínas! Quantas vezes Pafos[4] entrou em colapso! Não raramente, as notícias nos são trazidas da destruição total de cidades inteiras; contudo, quão pequena parte do mundo somos, a quem essas novidades costumam vir! Levantemo-nos, portanto, para enfrentar as operações da Fortuna, e o que quer que aconteça, tenha a certeza de que não é tão grave como o rumor anuncia que seja.
10. Uma cidade rica foi posta em cinzas, a joia das províncias, contada como uma delas e ainda não incluída com elas; por mais rica que fosse, no entanto, estava situado em uma única colina, e essa não era muito grande. Mas de todas essas cidades, de cuja magnificência e grandeza você ouve hoje, os próprios vestígios serão apagados pelo tempo. Você não vê, na Acaia, que as fundações das cidades mais famosas já se desapareceram, de modo que não há nenhum indício para mostrar que elas um dia existiram?
11. Não só o que foi feito pelas mãos cai ao chão, não é só o que foi estabelecido pela arte e os esforços do homem que é derrubado pelos dias que passaram; Além deles, os picos das montanhas se dissolvem, áreas inteiras cedem e lugares que antes estavam longe da vista do mar estão agora cobertos pelas ondas. O poderoso poder das chamas comeu as colinas através de flancos resplandecentes, e aterrou picos que eram mais elevados – o consolo do marinheiro e seu farol. As próprias obras da própria natureza são acossadas; Portanto, devemos suportar com espírito tranquilo a destruição das cidades.
12. Elas estão em pé apenas para cair! Esta desgraça as espera, uma e todas; ou porque a força do ar violentamente comprimido no interior da terra, sob a pressão, faça um dia ir pelos ares o terreno que o comprime; ou porque uma torrente rebenta impetuosa do subsolo destruindo tudo o que encontra; ou porque a violência das chamas provoca largas fendas no solo; ou que a veemência das chamas estourará a armação da crosta terrestre; ou que o tempo, do qual nada está protegido, as reduzirá pouco a pouco; ou que um clima pestilento afaste seus habitantes e o bolor corroa seus muros desertos. Seria tedioso contar todas as maneiras pelas quais o destino pode vir; mas esta é uma coisa que eu sei: todas as obras do homem mortal são condenadas à mortalidade, e no meio das coisas que estão destinadas a morrer, nós vivemos!
13. Daí são pensamentos como esses, e desse tipo, que estou oferecendo como consolo para o nosso amigo Liberal, que queima com um amor por sua província que é incrível. Talvez a destruição tenha acontecido apenas para que possa ser levantada novamente a um destino melhor. Muitas vezes, um revés abre espaço para um futuro mais próspero. Muitas estruturas caíram apenas para subir mais alto. Timágenes[5], que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.
14. E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa[6]! Este é, de fato, o centésimo ano desde que essa colônia foi fundada – nem mesmo o limite da vida de um homem. Instituida por Planco, as vantagens naturais de seu sítio tornaram-se fortes e atingiram os números que contém hoje; E ainda quantas calamidades da maior severidade sofreram no espaço da vida de um velho.
15. Portanto, mantenha a mente disciplinada para entender e suportar seu próprio destino, e deixar que ela tenha conhecimento de que não existe nada que a fortuna não se atreva – que ela tem a mesma jurisdição sobre os impérios que sobre os imperadores, o mesmo poder sobre as cidades quanto aos cidadãos que habitam nelas. Não devemos chorar em nenhuma dessas calamidades. Em tal mundo, entramos, e sob tais leis vivemos. Se você gosta, obedeça; se não, vá embora, se quiser. Grite com raiva se forem tomadas medidas injustas contra você individualmente; mas se essa lei inevitável é vinculativa do mais alto ao mais baixo, entre em harmonia com o destino, pelo qual todas as coisas são dissolvidas.
16. Você não deve estimar nosso valor por nossas tumbas fúnebres ou por esses monumentos de tamanho desigual que alinham na estrada; suas cinzas nivelam todos os homens! Somos desiguais no nascimento, mas somos iguais na morte. O que eu digo sobre cidades é o que eu também digo sobre seus habitantes. Árdea[7] foi capturada e também Roma. O grande criador da condição humana não fez distinções entre nós com base em linhagens altas ou de nomes ilustres, exceto enquanto vivemos. Quando, no entanto, chegamos ao fim que espera aos mortais, ele diz: “Saia, ambição! Pois sobre todas as criaturas que sobrecarregam a terra, aplique uma mesma lei”. Para suportar todas as coisas, somos iguais; ninguém é mais frágil do que outro, ninguém está mais seguro de sua própria vida no dia seguinte.
17. Alexandre, rei da Macedônia, começou a estudar a geometria; homem pequeno, porque ele assim saberia quão insignificante era aquela terra a qual ele havia capturado, apenas uma fração! Homem pequeno, repito, porque ele foi obrigado a entender que tinha um título falso. Pois quem pode ser Grande naquilo que é insignificante? As lições que lhe foram ensinadas eram intrincadas e só podiam ser aprendidas por dedicação assídua; elas não eram do tipo a ser entendidas por um tolo, que deixasse seus pensamentos ir além do oceano. “Ensina-me algo fácil!” Ele chora; mas seu professor responde: “Essas coisas são as mesmas para todos, tão difíceis para um quanto para outro”.
18. Imagine que a natureza está nos dizendo: “As coisas de que você reclama são as mesmas para todos. Não posso dar nada de mais fácil a nenhum homem, mas quem assim o desejar, vai facilitar as coisas para si mesmo”. De que maneira? Pela tranquilidade. Você deve sofrer dor, sede, fome e velhice, se uma longa permanência entre os homens lhe for concedida; você deve ficar doente, e você deve sofrer perda e morte.
19. No entanto, você não deve acreditar naqueles cujos clamores ruidosos o rodeiam; nenhuma dessas coisas é um mal, nada está além do seu poder de suportar. É apenas por opinião comum que existe algo formidável nelas. Seu medo da morte é, portanto, como seu medo da fofoca. Mas o que é mais tolo do que um homem com medo de palavras? Nosso amigo Demétrio costuma colocar com habilidade quando ele dizia: “Para mim, a conversa de homens ignorantes é como os ruídos que surgem da barriga”, pois, ele acrescenta, “que diferença me faz saber se tais rumores são provenientes de cima ou de baixo?”
20. Que loucura é ter medo de descrédito no julgamento por pessoas desprezíveis! Assim como você não tem nenhuma razão para se encolher de terror com a conversa dos homens, você também não tem nenhuma causa para se encolher dessas coisas, que você nunca teria medo se sua conversa não tivesse forçado o medo sobre você. Será que há prejuízo a um bom homem ser manchado por fofocas injustas?
21. Então, não deixe esse tipo de coisa danificar a morte, também, em nossa estima a morte também está com mau cheiro. Mas ninguém daqueles que maldizem a morte a provou. Enquanto isso, é imprudente condenar o que você ignora. Esta única coisa, no entanto, você sabe – que a morte é útil para muitos, que ela livra muitos de torturas, doenças, sofrimentos e cansaço. Nós não estamos sob poder de nada quando temos a morte em nosso próprio poder!Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Lião, colônia romana na Gália, lá teria nascido o Imperador Cláudio.
[2]Ásia Menor é conhecida hoje como península da Anatólia, situada entre o mar Negro e o mar Mediterrâneo, e que corresponde aproximadamente ao território da Turquia, Arménia e Curdistão. Na Antiguidade era designada por Ásia Menor, mas durante o Baixo Império começou a ser apelidada de Anatólia pelos Bizantinos e pelos Turcos.
[3] Acaia é uma região da Grécia, na costa norte do Peloponeso. Foi também a denominação de uma antiga província romana.
[4] Pafos (ou Paphos) é uma cidade portuária no sudoeste da ilha de Chipre.
[5]Timágenes de Alexandria, foi um historiador grego do primeiro século A.D. Ele foi levado para Roma como prisioneiro em 55 D.C., compôs uma História da Gália e uma História dos Reis, que se perderam.
[6] Mais uma vez Sêneca se prova visionário, a cidade de Lião existe até hoje, Lyon, em francês, é a terceira maior cidade da França.
[7]Ardea é uma das cidades mais antigas da Europa ocidental, fundada durante o século VIII a.C. Segundo a tradição, era a capital dos Rútulos, e é descrita como tal na Eneida de Virgílio.
Na intrigante carta 90, Sêneca aborda as origens da humanidade e o papel da filosofia no progresso humano. Vemos que, em sua visão, a humanidade regrediu ao valorizar o luxo e conforto corporal deixando para trás o desenvolvimento espiritual intelectual.
Expõe suas divergências com o filósofo Posidônio e defende o princípio estoico viver de acordo com a natureza, onde explica detalhadamente o significado deste conceito e afirmando que nos primórdios da humanidade isso era praticado:
Sêneca diz:
os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios. (XC,3)
Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo. (XC, 40)
Estaria Sêneca defendendo o socialismo?
Sêneca está sugerindo que o capitalismo é maligno e que todos deveriam adotar o socialismo? Eu diria “não“. Sêneca reconheceu que esta idílica “Era de Ouro” existiu até que a ganância tomou conta. Ele afirma que porque a ganância entrou na civilização com tanta força, nunca poderemos voltar a como as coisas eram.
Em teoria, a maioria dos sistemas econômicos parecem ser grandes “soluções” para os problemas da sociedade – mas o problema é que a ganância humana acaba corrompendo qualquer um desses sistemas, de modo que eles nunca se revelam tão bons na prática como no papel. Sêneca parece até mesmo dizer que é uma causa perdida tentar voltar a esse modo de vida original:
“… por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. … Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.” (XC, 44)
O luxo não está realmente ajudando muito nosso mundo físico, mas parece estar prejudicando nossas mentes e nosso senso de moral mais do que imaginamos.
1. Quem pode duvidar, meu querido Lucílio, que a vida é a dádiva dos deuses imortais, mas que viver bem é a dádiva da filosofia? Daí a ideia de que nossa dívida com a filosofia é maior do que a nossa dívida com os deuses, na medida em que uma boa vida é mais benéfica do que a mera vida, não fosse a própria filosofia é uma benção que os deuses nos deram. Eles não deram seu conhecimento a ninguém, mas a faculdade de adquiri-lo foi dada a todos.
2. Pois, se tivessem feito a filosofia também um bem geral, e se nós tivéssemos o conhecimento desde nosso nascimento, a sabedoria perderia seu melhor atributo: não ser um dos presentes da Fortuna. Pois, a característica preciosa e nobre da sabedoria é que ela não tenta nos encontrar, que cada um precisa se endividar por ela, e que não a buscamos nas mãos dos outros. O que haveria de digno na filosofia, se ela fosse uma coisa que viesse por doação?
3. Sua única tarefa é descobrir a verdade sobre coisas divinas e coisas humanas. Do seu lado, a religião nunca se afasta, nem o dever, nem a justiça, nem toda a companhia de virtudes que se apegam em comunhão. A filosofia nos ensinou a adorar o que é divino, a amar o que é humano; ela nos disse que com os deuses há autoridade e entre os homens, a camaradagem. Esta camaradagem permaneceu intocada por um longo tempo, até que a avareza rasgou a comunidade e se tornou a causa da pobreza, mesmo no caso daqueles que ela mesma havia enriquecido. Pois os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios.
4. Mas os primeiros humanos e aqueles que surgiram deles, ainda intactos, seguiram a natureza, tendo um homem como seu líder e sua lei, confiando-se ao controle de alguém melhor do que eles. Pois a natureza tem o hábito de sujeitar os mais fracos ao mais forte. Mesmo entre os animais brutos, aqueles que são maiores ou mais ferozes dominam. Não é um touro fraco que lidera o rebanho; é aquele que venceu os outros machos por seu poder e músculos. No caso dos elefantes, o mais alto é o primeiro; entre os homens, o melhor é considerado o superior. É por isso que é pela mente que um governante é designado; e por essa razão a maior felicidade recai sobre aqueles povos entre os quais um homem não pode ser o mais poderoso, a menos que seja o melhor. Pois este homem pode cumprir com segurança o que ele quer, já que pensa que não pode fazer nada exceto o que deva fazer.
5. Por conseguinte, naquela idade que é considerada como a idade de ouro, Posidônio sustenta que o governo estava sob a jurisdição do sábio. Eles mantiveram suas mãos sob controle e protegiam o mais fraco do mais forte. Eles deram conselhos, tanto para fazer quanto para não fazer; eles mostraram o que era útil e o que era inútil. Sua previdência, que a seus súditos nada faltasse; sua bravura afastou os perigos; sua bondade enriqueceu e adornou seus súditos. Pois o governo deles era um serviço, não um exercício de realeza. Nenhum governante pôs à prova seu poder contra aqueles a quem devia o início de seu poder; e ninguém tinha a inclinação, ou a desculpa, para fazer o mal, já que o governante governava bem e o súdito obedecia bem, e o rei não poderia proferir nenhuma ameaça maior contra um súdito desobediente do que seu banimento do reino.
6. Mas, uma vez que o vício foi introduzido e os reinados se transformaram em tiranias, surgiu a necessidade de leis e essas mesmas leis foram, por sua vez, moldadas pelos sábios. Sólon[1], que estabeleceu Atenas em bases firmes por leis justas, foi um dos sete homens[2] reconhecidos por sua sabedoria. Se Licurgo[3] vivesse no mesmo período, um oitavo teria sido adicionado a esse sagrado número sete. As leis de Zaleuco[4] e Carondas são louvadas; não estava no fórum ou nos escritórios de conselheiros qualificados, mas no silencioso e santo retiro de Pitágoras, que esses dois homens aprenderam os princípios de justiça que deveriam estabelecer na Sicília (que na época era próspera) e ao longo de toda Itália grega.
7. Até este ponto, concordo com Posidônio; mas que essa filosofia descobriu as artes úteis à vida em sua ronda diária eu me recuso a admitir. Também não atribuo a ela uma glória de artesão. Posidônio diz: “Quando os homens estavam espalhados pela terra, protegidos pelas cavernas ou pelo abrigo escavado em um penhasco ou pelo tronco de uma árvore oca, foi a filosofia que os ensinou a construir casas”. Mas eu, por minha parte, não considero que essa filosofia concebeu essas habitações astutamente inventadas que se levantam a andar sobre andar, onde as multidões da cidade se apinham, não mais do que tenha inventado as conservas de peixe, que são preparadas com o propósito de poupar a gula dos homens de ter que correr o risco de tempestades, e para que, por mais que o mar esteja furioso, o luxo possa ter seus portos seguros para engordar raças extravagantes de peixe.
8. O que! Foi filosofia que ensinou o uso de chaves e fechaduras? Não, o que foi, exceto dar uma dica para a avareza? Foi a filosofia que construiu todos esses edifícios altos, tão perigosos para as pessoas que habitam neles? Não seria suficiente para o homem proporcionar-se um teto de qualquer possibilidade de cobertura e inventar para si algum retiro natural sem a ajuda da arte e sem problemas? Acredite, essa era uma época feliz, antes dos dias dos arquitetos, antes dos dias dos construtores!
9. Todo esse tipo de coisa nasceu quando o luxo nasceu – essa questão de cortar madeira e criar uma viga com mão inflexível enquanto a serra passa pela linha marcada.
O homem primitivo com cunhas dividiu sua madeira branda.
Porque eles não estavam preparando um telhado para um futuro salão de banquete; nem para tal uso, eles carregavam os pinheiros ou os abetos ao longo das ruas trêmulas com uma longa fileira de carroças – apenas para pendurar sobre eles tetos com painéis pesados de ouro.
10. Os mastros bifurcados erguidos em ambas as extremidades apoiam suas casas. Com ramos fechados e com folhas amontoadas e inclinadas, eles conseguiam uma drenagem para as chuvas mais pesadas. Sob essas moradias, moravam, mas moravam em paz. Um telhado de palha cobria um homem livre; sob o mármore e o ouro habita a escravidão.
11. Em outro ponto também eu discordo de Posidônio, quando ele sustenta que ferramentas mecânicas são a invenção dos homens sábios. Pois nessa base, pode-se sustentar que esses eram sábios que ensinavam as artes:
de colocação de armadilhas para caça e galhos de arapuca para os pássaros, e encerrando de matilhas os vales.
Tunc laqueis captare feras et fallere viscoInventum et magnos canibus circumdare saltus.[6]
Foi a engenhosidade do homem, não sua sabedoria, que descobriu todos esses dispositivos.
12. E eu também me distancio dele quando diz que homens sábios descobriram nossas minas de ferro e cobre, “quando a terra, queimada por incêndios florestais, derreteuas veias de minério que se encontravam perto da superfície e provocavam o jorro do metal.” Não, o tipo de homem que descobre essas coisas é o tipo de homem que está ocupado com elas.
13. Também não considero essa questão tão sutil quanto Posidônio pensa, ou seja, se o martelo ou a tenaz foi a primeira a entrar em uso. Ambos foram inventados por algum homem cuja mente era ágil e afiada, mas não grande ou elevada; e o mesmo vale para qualquer outra descoberta que só pode ser feita por meio de um corpo curvado e de uma mente cujo olhar está no chão. O homem sábio era simples em sua maneira de viver. E porque não? Mesmo em nossos tempos, ele prefere ser o mais desimpedido possível.
14. Como, pergunto, você pode admirar tanto Diógenes[7] quanto Dédalo[8]? Qual desses dois parece ser um homem sábio – aquele que inventou a serra, ou aquele que, ao ver um menino beber água do oco de sua mão, imediatamente tirou o copo da carteira e quebrou-o, repreendendo-se com estas palavras: “Louco que eu sou, ter transportado bagagem supérflua todo esse tempo!” E então enrolou-se em seu barril e deitou-se para dormir?
15. Nestes nossos tempos, qual homem, lhe pergunto, julga o mais sábio – aquele que inventa um processo para pulverizar perfumes de açafrão a uma altura tremenda por tubos escondidos, que preenche ou esvazia canais por uma súbita onda de águas, quem constrói tão habilmente uma sala de jantar com um teto de painéis móveis que apresenta um padrão após o outro, o telhado mudando tão frequentemente quanto os pratos, ou aquele que prova aos outros, bem como a si mesmo, que a natureza colocou sobre nós nenhuma lei severa e difícil quando ela nos diz que podemos viver sem o cortador de mármore e o engenheiro, que podemos nos vestir sem o uso de tecidos de seda, que podemos ter tudo o que é indispensável para o nosso uso, desde que nós apenas estejamos contentes com o que a Terra colocou em sua superfície? Se a humanidade estivesse disposta a ouvir esse sábio, ela saberia que o cozinheiro é tão supérfluo quanto o soldado.
16. Aqueles eram sábios, ou pelo menos como os sábios, que descobriram que o cuidado do corpo um problema fácil de resolver. As coisas indispensáveis não exigem esforços elaborados para a aquisição; são apenas os luxos que exigem trabalho. Siga a natureza, e você não precisará de artesãos qualificados. A natureza não queria que fôssemos “especialistas”. Pois para tudo o que coagiu contra nós, ela nos equipou. “Mas o frio não pode ser suportado pelo corpo nu”. O que então? Não há peles de feras selvagens e outros animais, que podem nos proteger bem o suficiente, e mais do que o suficiente, do frio? Muitas tribos não cobrem seus corpos com a casca de árvores? Não são as penas de pássaros costuradas para servir roupas? Mesmo hoje, não existe uma grande porção da tribo Cítia em peles de raposas e camundongos, macia ao toque e impermeável aos ventos?
17. “Por tudo isso, os homens devem ter uma proteção mais espessa do que a pele, para evitar o calor do sol no verão”. O que então? A antiguidade não produziu muitos refúgios que, criados pela erosão pelo tempo ou por qualquer outra ocorrência, abriu em cavernas? O que então? Os antigos não pegaram galhos e os teceram à mão em tapetes de vime, esfregando-os com lama comum e, em seguida, com restolho e outras gramas selvagens construíram um telhado, e assim passavam seus invernos seguros, as chuvas escoadas por meio de espigões inclinados? O que então? Os povos que estão à beira do golfo de Sirte não habitam em casas escavadas e, de fato, todas as tribos que, por causa do brilho feroz do sol, não possuem proteção suficiente para evitar o calor, exceto o próprio solo ressequido?
18. A natureza não foi tão hostil ao homem que, quando deu a todos os outros animais um papel fácil na vida, tornou impossível para ele sozinho viver sem todos esses artifícios. Nada disso foi imposto por ela; nenhum deles deve ser buscado com dificuldade para que nossas vidas pudessem ser prolongadas. Todas as coisas estão prontas para nós no nosso nascimento; somos nós que tornamos tudo difícil para nós mesmos, através do nosso desdém pelo que é fácil. Casas, abrigo, conforto material, comida e tudo o que agora se tornou a fonte de grandes problemas, estavam prontos, livres de tudo e alcançáveis por pequeno esforço. Pois o limite em todos os lugares corresponde à necessidade; somos nós que fizemos todas essas coisas valiosas, nós que as fizemos admiráveis, nós que as fizemos ser procuradas por dispositivos extensivos e múltiplos.
19. A natureza é suficiente para o que exige. O luxo virou as costas para a natureza; cada dia ele se expande, em todas as épocas ele vem acumulando força e por sua sagacidade promovendo os vícios. No início, o luxo começou a cobiçar o que a natureza considerava supérfluo, então, o que era contrário à natureza; E, finalmente, fez da alma um fiador ao corpo, e pediu que fosse uma escrava total das luxúrias do corpo. Todas essas astúcias pelas quais a cidade é patrulhada – ou devo dizer mantida em tumulto – estão envolvidas no negócio do corpo; há tempo todas as coisas eram oferecidas ao corpo tanto quanto a um escravo, mas agora elas são preparadas para o corpo como para um soberano. Consequentemente, daí vieram as oficinas das tecelãs e dos carpinteiros; daí o saboroso cheiro dos cozinheiros profissionais; daí a despreocupação daqueles que ensinam danças sensuais e cantos lascivos e afetados. Pois essa moderação que a natureza prescreve, que limita nossos desejos por recursos restritos a nossas necessidades, abandonou o campo; agora chegou a isso – querer apenas o que é suficiente é um sinal de grosseria e de absoluta pobreza.
20. É difícil de acreditar, meu querido Lucílio, com que facilidade o encanto da eloquência cativa, mesmo grandes homens, para longe da verdade. Tomemos, por exemplo, Posidônio – que, na minha opinião, é do time daqueles que mais contribuíram para a filosofia – quando deseja descrever a arte de tecer. Ele diz como, primeiro, alguns fios são torcidos e alguns tirados da suave e frouxa massa de lã; Em seguida, como a urdidura[9] vertical mantém os fios esticados por meio de pesos pendurados; Então, como a linha inserida da estrutura, que suaviza a textura dura da teia que a segura de cada lado, é forçada pelo batente para fazer uma união compacta com a urdidura. Ele sustenta que mesmo a arte do tecelão foi descoberta por homens sábios, esquecendo que a arte mais complicada que ele descreveu foi inventada nos últimos dias – a arte em que
A trama é presa a moldura; distante agoraO pente separa a urdidura. Entre as fibrasé atirada a textura pelas lançadeiras carregadas;Os dentes bem entalhados do pente largo, em seguida conduzem.
Tela iugo vincta est, stamen secernit harundo,Inseritur medium radiis subtemen acutis,Quod lato paviunt insecti pectine dentes.[10]
Suponhamos ter tido a oportunidade de ver o tear do nosso próprio dia, o que produz as vestes que não esconderão nada, a roupa que proporciona – não vou dizer nenhuma proteção ao corpo, mas nem mesmo a modéstia!
21. Posidônio passa para o fazendeiro. Com menos eloquência, ele descreve o solo que é revolvido e cruzado novamente pelo arado, para que a terra, assim afrouxada, possa permitir um desenvolvimento mais livre das raízes; então a semente é espalhada, e as ervas daninhas arrancam à mão, para que nenhum crescimento casual ou planta selvagem desenvolva e estrague a cultura. Este ofício também, ele declara, é a criação do sábio – como se os cultivadores do solo não estivessem neste momento, descobrindo inúmeros novos métodos para aumentar a fertilidade do solo!
22. Além disso, não limitando sua atenção a essas artes, ele até degrada o homem sábio enviando-o para o moinho. Pois ele nos diz como o sábio, ao imitar os processos da natureza, começou a fazer pão. “O grão”, diz ele, “uma vez que é levado na boca, é esmagado pelos dentes íngremes, que se encontram em um encontro hostil, e qualquer que seja o grão que deslize na língua volta para os mesmos dentes. Então é misturado em uma massa, para que possa mais facilmente passar pela garganta escorregadia. Quando isso chega ao estômago, é digerido pelo calor uniforme do estômago, então, e só então, é assimilado pelo corpo”.
23. Seguindo esse padrão, ele continua, “alguém colocou duas pedras ásperas, uma sobre a outra, imitando os dentes, um dos quais está parado e aguarda o movimento do outro conjunto. Então, ao esfregar a pedra uma contra a outra, o grão é esmagado e trazido de volta uma e outra vez, até por fricção frequentemente é reduzido a pó. Então este homem polvilhou o repasto com água, e com a manipulação contínua subjugou a massa e moldou o pão. Esta lâmina foi, no início, cozida por cinzas quentes ou por um vaso de barro em brasa; mais tarde, fornos foram gradualmente descobertos e os outros dispositivos cujo calor presta obediência à vontade do sábio”. Posidônio chegou muito perto de declarar que mesmo o ofício do sapateiro era a descoberta do homem sábio.
24. A razão, de fato, inventou todas essas coisas, mas não era razão correta. Foi o homem, mas não o sábio, que as descobriu; Assim como eles inventaram navios, nos quais atravessamos rios e mares – navios equipados com velas com a finalidade de pegar a força dos ventos, navios com lemes adicionados na popa para girar o curso do navio em uma direção ou outra. O modelo seguido foi o peixe, que se dirige por sua cauda, e por seu menor movimento desse ou daquele lado desvia seu curso rapidamente.
25. “Mas”, diz Posidônio, “o homem sábio realmente descobriu todas essas coisas, mas elas eram muito insignificantes para que ele próprio lidasse, e ele as confiou a seus mais desprezíveis assistentes”. Não foi assim; estas invenções iniciais não foram pensadas por nenhuma outra classe de homens senão aqueles que as têm sob comando hoje. Sabemos que certos dispositivos surgiram apenas em nossa própria memória – como o uso de janelas que admitem a luz através de telhas transparentes e, como os banhos instalados em estufas, com canos em suas paredes para difundir o calor que mantém a uma temperatura uniforme seus mais baixos, bem como seus mais altos espaços. Por que preciso mencionar o mármore com o qual nossos templos e nossas casas particulares são resplandecentes? Ou as massas arredondadas e polidas de pedra pelo qual erguemos colunatas e edifícios espaçosos o suficiente para multidões? Ou nossos sinais para palavras inteiras[11], que nos permite anotar um discurso, por mais rapidamente pronunciado, combinando a velocidade da língua com a velocidade da mão? Todo esse tipo de coisa foi planejado pela mais vil categoria de escravos.
26. O lugar da sabedoria é mais alto; ela não treina as mãos, mas é a amante das nossas mentes. Você saberia o que a sabedoria trouxe à luz, o que ela realizou? Não são as poses graciosas do corpo, nem as variadas notas produzidas por corneta e flauta, por qual a respiração é recebida e, à medida que vaza ou passa, é transformada em voz. Não é sabedoria que inventa armas, erguer muralhas ou instrumentos úteis à guerra; a voz dela é para a paz, e ela convoca toda a humanidade para a concórdia.
27. Não é ela, eu mantenho, quem é a artesã de nossos instrumentos indispensáveis ao uso diário. Por que você atribui a ela coisas insignificantes? Você vê nela a especialista em artesanato da vida. As outras artes, é verdade, a sabedoria tem sob seu controle; pois aquele a quem vida serve é servido também pelas coisas que equipam a vida. Mas o curso da sabedoria é para o estado de felicidade; de lá ela nos guia, e abre o caminho para nós.
28. Ela nos mostra quais coisas são do mal e o que é aparentemente mau; ela tira nossas mentes de ilusão vã. Ela nos confere uma grandeza que é substancial, mas ela reprime a grandeza que é orgulhosa, e que é vistosa, mas cheia de vazio; e ela não nos permite ignorar a diferença entre o que é ótimo e o que é nada, senão inchado; além disso, ela nos entrega o conhecimento de toda a natureza e de sua própria natureza. Ela nos revela o que são os deuses e de que qualidade eles são; quais são os deuses inferiores, as divindades domésticas e os espíritos protetores; quais são as almas que foram dotadas de vida duradoura e foram admitidas na segunda classe de divindades, onde é a sua morada e quais são suas atividades, poderes e vontade. Tais são os ritos de iniciação da sabedoria, por meio dos quais é destrancado, não um santuário de aldeia, mas o vasto templo de todos os deuses – o próprio universo, cujas aparições verdadeiras e aspectos verdadeiros ela oferece ao olhar de nossas mentes, já que nossa visão não alcança um tão grandioso espetáculo!
29. Então ela volta ao começo das coisas, à razão eterna que foi transmitida ao todo, e à força que é inerente a todas as sementes das coisas, dando-lhes o poder de modelar cada coisa de acordo com seu tipo. Então a sabedoria começa a indagar sobre a alma, de onde ela vem, onde ela habita, quanto tempo ela permanece, quantas divisões ela tem. Finalmente, ela volta sua atenção do corpóreo para o incorpóreo, e examina de perto a verdade e as marcas pelas quais a verdade é conhecida, investigando o seguinte, como aquilo que é ambíguo pode ser distinguido da verdade, seja na vida ou na linguagem; pois ambos são elementos do falso misturado com o verdadeiro.
30. É minha opinião que o homem sábio não se retirou, como Posidônio pensa, das artes que estávamos discutindo, mas que ele nunca as tomou. Pois ele teria julgado que nada vale a pena descobrir que não julgasse valer a pena sempre usar. Ele não aceitaria hoje coisas que devessem ser descartadas amanhã.
31. “Mas Anacársis[12]“, diz Posidônio, “inventou a roda do oleiro, cujo turbilhão dá forma aos vasos”. Então, como a roda do oleiro é mencionada por Homero, as pessoas preferem acreditar que os versos de Homero são falsos e não a história de Posidônio! Mas eu sustento que Anacársis não foi o criador desta roda; e mesmo que ele fosse, embora fosse um homem sábio quando o inventou, ainda assim ele não inventou isso como “homem sábio” – assim como há muitas coisas que os homens sábios fazem como homens e não como homens sábios. Suponhamos, por exemplo, que um homem sábio seja muito rápido nos pés; ele superará todos os corredores da competição em virtude de ser ligeiro, não em virtude de sua sabedoria. Gostaria de mostrar a Posidônio um soprador de vidro que, por sua respiração, molda o copo em múltiplas formas que mal poderiam ser feitas pela mão mais hábil. Mais que isso, essas descobertas foram feitas desde que nós os homens deixamos de descobrir a sabedoria.
32. Mas Posidônio novamente observa. “Dizem que Demócrito descobriu o arco de abóboda[13], cujo efeito foi que a linha curva de pedras, que gradualmente se inclinam uma para a outra, é unida pela pedra angular”. Estou disposto a pronunciar esta declaração falsa. Pois deveria haver, antes de Demócrito, pontes e portais em que a curvatura não começou até o topo.
33. Parece ter fugido de sua memória que este mesmo Demócrito descobriu como o marfim poderia ser amolecido por fervura, como um calhau poderia ser transformado em esmeralda, – o mesmo processo usado até hoje para colorir pedras que são submissas a este tratamento! Pode ter sido um homem sábio que descobriu todas essas coisas, mas não as descobriu por ser sábio; pois ele fez muitas coisas que vemos feitas tão bem, ou mesmo com mais habilidade e destreza, por homens totalmente deficientes de sabedoria.
34. Você pergunta o que, então, o sábio descobriu e o que ele trouxe à luz? Antes de tudo, a verdade a respeito da natureza; e a natureza ele não seguiu como fazem os outros animais, com os olhos muito entorpecidos para perceber o divino nela. Em segundo lugar, existe a lei da vida e a vida que ele fez para se adequar aos princípios universais; e ele nos ensinou, não apenas a conhecer os deuses, mas a segui-los e a receber as dádivas do acaso exatamente como se fossem comandos divinos. Ele nos proibiu de prestar atenção a opiniões falsas e ponderou o valor de cada coisa por um verdadeiro padrão de avaliação. Ele condenou os prazeres com os quais o remorso se mistura e elogiou os bens que sempre satisfazem; E ele explicitou a verdade que é mais feliz aquele que não precisa de felicidade, e que é mais poderoso aquele que tem poder sobre si mesmo.
35. Não falo dessa filosofia que coloca o cidadão fora de sua comunidade e os deuses fora do universo, e que aceita haver virtude no prazer[14], mas sim daquela filosofia que não dá valor a nada, exceto o que é honorável, uma que não pode ser persuadida pelos presentes, tanto do homem como da fortuna, uma cujo valor é que não pode ser comprada por qualquer valor[15]. Que esta filosofia tenha existido em uma época tão bruta, quando as artes e ofícios ainda eram desconhecidos e quando as coisas úteis só podiam ser aprendidas pela prática – isso eu me recuso a acreditar.
36. Em seguida, veio o período favorecido pela fortuna, quando as recompensas da natureza se abriram a todos, para o uso indiscriminado dos homens, antes que a avareza e o luxo quebrassem os laços que mantinham os mortais juntos, e eles, abandonando sua existência comunal, se separaram e se tornaram saqueadores. Os homens da segunda era não eram homens sábios, mesmo que fizessem o que os homens sábios deveriam fazer.
37. Na verdade, não há outra condição da raça humana que alguém considere mais altamente; e se Deus ordenasse a um homem para criar criaturas terrestres e conferir instituições aos povos, esse homem não aprovaria nenhum outro sistema que fosse distinto daquele dos homens dessa época, quando
Nenhum lavrador cultivou o solo,nem estava certo repartir ou delimitar a propriedade.Os homens compartilharam seus ganhos, e a Terra entregava mais livremente Suas riquezas para os filhos que não as procuravam.
Nulli subigebant arva coloni,Ne signare quidem aut partiri limite campumFas erat; in medium quaerebant, ipsaque tellusOmnia liberius nullo poscente ferebat.[16]
38. Que raça de homens foi mais bem-aventurada do que aquela raça? Eles gozavam de toda a natureza em parceria. A natureza era uma mãe para eles, agora a tutora, assim como antes era a mãe, de todos; e este seu presente consistia na posse garantida de cada homem dos recursos comuns. Por que eu não poderia chamar essa raça a mais rica entre os mortais, já que não conseguiria encontrar uma pessoa pobre entre eles? Mas a avareza invadiu uma situação tão felizmente organizada, e, por sua ânsia por tirar algo e transformá-lo em seu próprio uso privado, fez de tudo a propriedade dos outros e reduziu riquezas ilimitadas a uma carestia desmedida. Foi a avareza que introduziu a pobreza e, por desejar muito, perdeu tudo.
39. E, por isso, embora ela tente compensar a perda, embora ela adicione uma propriedade a outra, expulsando um vizinho tanto comprando-o ou prejudicando-o, embora ela estenda suas mansões ao tamanho das províncias e defina propriedade como significando uma extensa viagem através da própria propriedade, – apesar de todos esses esforços dela, nenhuma ampliação de nossas fronteiras nos trará de volta à condição de onde partimos.
40. O próprio solo era mais produtivo quando se não dividido e produzia mais do que o suficiente para os povos que se abstinham de despojar uns aos outros. Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo.
41. A armadura não era usada e a mão, não manchada pelo sangue humano, direcionava todo seu ódio contra animais selvagens. Os homens daquele dia, que haviam encontrado em uma proteção densa do bosque contra o sol, e a segurança contra o rigor do inverno ou da chuva em seus pobres esconderijos, passavam suas vidas sob os ramos das árvores e passavam noites tranquilas sem um suspiro. O luxo nos irrita em nossas vestes púrpuras, e nos afasta de nossas camas com as mais afiadas aguilhoadas; mas quão suave era o sono que a terra dura concedia aos homens daquele dia! Quando não há mais que possamos fazer, devemos possuir muito; mas antes nós possuíamos o mundo inteiro!
42. Nenhuma preocupação constante ou tetos luxuosos pendiam sobre eles, mas quando se deitavam debaixo do céu aberto, as estrelas deslizavam silenciosamente acima deles, e o firmamento, o nobre desfile noturno, marchava rapidamente, conduzindo sua poderosa tarefa em silêncio. Pois eles tinham, ao dia, assim como a noite, as visões desta morada mais gloriosa, livre e aberta. Era sua alegria observar as constelações enquanto se afundavam do meio do céu e outras, novamente, quando se levantavam de suas casas escondidas.
43. O que mais, além da alegria, poderia ser vagar entre as maravilhas que pontilhavam os céus em toda parte? Mas você, da época atual, estremece a cada som que sua casa faz, e enquanto se senta entre seus afrescos, o menor chiado o faz encolher de terror. Eles não tinham casas tão grandes quanto cidades. O ar, brisas soprando livremente através dos espaços abertos, a sombra flutuante do penhasco ou da árvore, água cristalinas e córregos não estragadas pelo trabalho do homem, seja por tubulações ou por qualquer confinamento, mas correndo à vontade, e prados lindos sem o uso da arte, – em meio a essas cenas estavam suas casas rudes, adornadas com mão rústica. Tal moradia estava em conformidade com a natureza; nesse lugar havia alegria de viver, sem temer a própria residência nem por sua segurança. Hoje, no entanto, nossas casas constituem uma grande parte do nosso medo.
44. Mas, por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. Ainda assim, eu não negaria que eles eram homens de espírito elevado e – eu posso usar a frase – recente entregue pelos deuses. Pois não há dúvida de que o mundo produziu uma descendência melhor antes de ser esgotado. No entanto, nem todos foram dotados de faculdades mentais de maior perfeição, embora em todos os casos seus poderes inatos fossem mais vigorosos do que os nossos e mais adequados para o trabalho. Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.
45. Eles, pelo menos, não procuraram na mais baixa escória da terra por ouro, nem ainda por prata ou pedras transparentes; e eles ainda eram misericordiosos mesmo com os animais brutos – tão longe era essa época do costume de matar o homem pelo homem, não com raiva ou com medo, mas apenas para fazer um show[17]! Ainda não tinham roupas bordadas nem teciam um pano de ouro; o ouro ainda não era minerado.
46. Qual é, então, a conclusão do assunto? Foi devido sua ignorância das coisas que os homens daqueles dias eram inocentes; e faz uma grande diferença se queremos pecar ou se não temos conhecimento para pecar. A justiça era desconhecida, a prudência desconhecida, desconhecidos também eram o autocontrole e a bravura; mas sua vida rude possuía certas qualidades parecidas com todas essas virtudes. A virtude não é concedida a uma alma, a menos que essa alma tenha sido treinada e ensinada, e pela prática incessante, trazida à perfeição. Para a obtenção desta benção, mas não na posse dela, nós nascemos; e mesmo no melhor dos homens, antes da iniciação filosófica, se pode haver matéria-prima para a virtude, não existe ainda a virtude.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1]Sólon (grego Σόλων, translit. Sólōn; (Atenas, 638 a.C. – 558 a.C.) foi um estadista, legislador e poeta grego antigo. Foi considerado pelos gregos como um dos sete sábios da Grécia antiga e, como poeta, compôs elegias morais-filosóficas. Em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica da pólis ateniense.
[2] No texto atribuído a Caio Higino, os sete sábios são: Pítaco de Mitilene, Periandro de Corinto, Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta, Cleóbulo de Lindos e Bias de Priene. Plutarco lista os sete sábios como Tales, Bias, Pítaco, Sólon, Quílon, Cleóbulo e Anacarses. Platão, no diálogo intitulado Protágoras, expõe a seguinte lista: Tales, Pítacos, Bias, Sólon, Cleóbulo, Mison e Quílon.
[3]Licurgo foi um lendário legislador da pólis de Esparta. Nada se sabe seguramente sobre a existência deste personagem. Heródoto fala dele em meados do século V a.C., mas a vida do legislador deve ter decorrido no século VIII a.C., mas a sua memória seria correntemente mencionada na Esparta do século V, pois os seus habitantes nessa época sentiam a necessidade de atribuir a organização estatal que os regia a um ser humano, e não ao acaso. A organização estatal atribuída a Licurgo se compunha de rígido regime de formação possuía um caráter de obrigação social e imposição estatal, com o objetivo primordial de treinar cidadãos masculinos à vida militar espartana.
[4]Zaleuco de Locros (Locros, Século VII a.C.), foi um legislador do Período Arcaico da Magna Grécia. Zaleuco, sendo o primeiro legislador conhecido, promulgou c.644 a.C. um código de leis, usualmente designado por Código de Zaleuco.
[6] Trecho de Geórgicas, v. I, 139-140 de Virgílio.
[7]Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um filósofo da Grécia Antiga.
[8] Dédalo, na mitologia grega, é um personagem natural de Atenas e descendente de Erecteu. Notável arquiteto e inventor, cuja obra mais famosa é o labirinto que construiu para o rei Minos, de Creta, aprisionar o Minotauro.
[9] Conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear por entre os quais se faz a trama.
[11] Suetônio nos diz que um certo Ênio, um gramático da era de Augusto, foi o primeiro a desenvolver a estenografia em uma base científica, e que Tiro, o escravo liberto de Cícero, inventou o processo. Ele também menciona Sêneca como a autoridade mais científica e enciclopédica no assunto.
[12]Anacársis foi um filósofo cita que viajou de sua terra natal na costa norte do Mar Negro até Atenas no início do século VI a.C. e causou grande impressão como um “bárbaro” franco, sincero, aparentemente um precursor dos cínicos, embora nenhum de seus trabalhos tenha sobrevivido.
[13] A abóbada é uma construção em forma de arco com a qual se cobrem espaços compreendidos entre muros, pilares ou colunas. Compõe-se de peças lavradas em pedra especialmente para este fim, denominadas aduelas, ou de tijolos apoiados sobre uma estrutura provisória de madeira, o cimbre. Embora de uso generalizado no Império Romano, a construção de abóbadas constituiu o principal problema arquitetônico da Idade Média europeia. O desafio de construí-las foi um dos fatores que impulsionaram a evolução da arquitetura ocidental.