Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

A oitava carta de Sêneca aborda a tensão entre a vida contemplativa e a ação social, uma questão central no estoicismo e na filosofia em geral. Sêneca defende um isolamento temporário não como um fim em si mesmo, mas como meio de melhor servir à sociedade, refletindo sobre o valor da introspecção e do estudo intenso.

Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar. “Fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade.

A carta de Sêneca encontra ressonância na modernidade, onde a busca por sucesso e bens materiais muitas vezes ofusca a busca por sabedoria e contentamento interior. A ideia de que a verdadeira liberdade vem da submissão à filosofia, ou a um sistema de valores elevados, é uma mensagem que ainda ressoa.

Uma frase forte da oitava carta de Sêneca a Lucílio, que resume muitos dos temas centrais da carta e do estoicismo em geral, é:
“Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia.”
Essa frase encapsula a ideia de que a verdadeira liberdade humana não vem da autonomia externa ou das posses materiais, mas da adesão a uma vida guiada pela razão e pela virtude, que é a essência da filosofia estoica. Ela sugere que a liberdade verdadeira é alcançada através da submissão à disciplina filosófica, que nos liberta das illusões e vicissitudes da fortuna e das paixões descontroladas.

(Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


VIII. Sobre o isolamento do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Uma objeção sua: “Você sugere que se evite a multidão, se retire do contato dos homens e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?”1 Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior.2 Nunca passo um dia em ociosidade, aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso. E quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechados, eu os mantenho em sua tarefa.

2. Tenho me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios. Estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para elas.3 Há certos conselhos sadios que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito, pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.

3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os presentes da fortuna, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação”. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados. Isso porque nós pensamos que nós as mantemos em nosso poder, mas são elas que nos prendem.

4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento, nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”. A fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.

5. Apegue-se pois, a esta regra sadia e sólida para a vida: que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande.

6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte ou carimbo meu selo sobre uma decisão ou presto ajuda ao senado ou por palavra ou ação presto meu apoio a um candidato qualquer? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas: eles estão lidando ao mesmo tempo com os planos humano e divino.

7. Mas devo parar e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade, pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”.4 O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da filosofia é a liberdade.

8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Publílio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços!5

9. Vou citar um versículo dele que diz respeito à filosofia e, particularmente, aquela frase sobre a qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:

Ainda é alheio o que você ganhou do acaso .

Alienum est omne, quicquid optando evenit.5

10. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: “O que a Fortuna fez não é seu”. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: “O bem que pode ser dado, pode ser removido.” Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo. Ao contrário dos epicuristas, que defendiam uma vida à margem das obrigações políticas e sociais, os estoicos aconselhavam a participação ativa do sábio nos assuntos do estado. Isto explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Sêneca. Ver George Stock, Estoicismo.

2 As condições sócio-políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como fez Sêneca a partir de 63 quando perdeu influência sobre Nero. Ver o tratado Sobre o Ócio em que Sêneca aprofunda o assunto.

3 Essas Cartas!

5 “excalceatis”, referência a comediantes ou mímicos.

6  Provérbios de Publílio Siro (Século 1 a.C.). Também conhecido como Publilio Sirio, ou como Publilius Syrius ou Publio Sirio. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

Carta 7: Sobre multidões

A sétima carta de Sêneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.

Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura  ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:

Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!‘ (VII, §4-5)”

Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. “(VII, §6)”

(imagem: Pollice Verso (polegar para baixo) – por Jean-Léon Gérôme )


VII. Sobre multidões

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado, alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.

2. Ligar-se à multidão é prejudicial. Não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar algum espetáculo, pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.

3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão, mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva.1 Eles estão expostos a golpes em todos os pontos e ninguém nunca desfere golpes em vão.

4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos, ao meio-dia, os jogam aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia para o intervalo.

5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo. Mas e você? Que crime você cometeu, pobre colega, que mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco de gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você2 não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender por si a ser cruel.

6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão: é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles. Tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultivemos nossas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.

7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância: o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta? Você deve imitar ou abominar o mundo.

8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau, simplesmente porque eles são muitos, nem deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo pois os homens aprendem enquanto ensinam.

9. O vão orgulho em divulgar suas habilidades não deve induzi-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adequasse a tal multidão; mas como ela é, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitem sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços. Foi por si mesmo que você aprendeu.

10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com você três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito3 diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão e uma multidão apenas tanto como um homem.

11. O seguinte também foi nobremente falado por ele ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor. Eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.4

12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens o louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro, seus autênticos bens são internos.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados eram frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceriam por toda a parte do dia.

2 A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

3 Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. – 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C. Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.

Carta 6: Sobre Compartilhar Conhecimento

Sêneca diz que nada é agradável de se possuir sem amigos para compartilhar.  Pede que Lucílio continue estudando, não só através de livros, mas principalmente através de exemplos, e, principalmente, que compartilhe com os outros o que tem aprendido.

Cleantes não poderia ter sido a imagem expressa de Zenão se ele tivesse apenas ouvido suas palestras; não, ele compartilhou sua vida, viu em seus propósitos ocultos e observou-o para ver se ele vivia de acordo com suas próprias regras. Platão, Aristóteles e toda a multidão de sábios que estavam destinados a seguir cada um o seu caminho diferente, tiraram mais proveito do caráter do que das palavras de Sócrates. Não era a sala de aula de Epicuro, mas viver juntos sob o mesmo teto, que fez grandes homens de Metrodoro, Hermarco e Polieno.” (Carta VI, §6)

(imagem: Escola de Atenas – por Raphael )


VI. Sobre compartilhar conhecimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Sinto, meu caro Lucílio, que não só estou me corrigindo; além disso, me estou transfigurando. Entretanto, ainda não me asseguro, nem concedo a esperança de que não haja em mim elementos que precisem ser mudados. Claro que há muitos que devem ser feitos mais consistentes ou mais afiados ou serem conduzidos a maior destaque. E, realmente, esse mesmo fato é prova de que meu espírito está transformado em algo melhor, que ele pode ver suas próprias falhas, das quais antes era ignorante. Em certos casos, os doentes são parabenizados apenas porque eles perceberam que estão doentes.

2. Desejo, portanto, comunicar-lhe esta repentina mudança em mim: eu deveria então começar a depositar uma confiança mais segura em nossa amizade, a verdadeira amizade que a esperança, o medo e o interesse próprio não podem romper, a amizade em que e para a qual os homens podem encontrar a morte.

3. Eu posso mostrar-lhe muitos a quem têm faltado não um amigo, mas uma amizade; isso, no entanto, não pode acontecer quando as almas são unidas por inclinações idênticas em uma aliança de desejos honestos. E por que não pode acontecer? Porque em tais casos os homens sabem que têm todas as coisas em comum, especialmente suas aflições. Você não pode conceber o nítido progresso que eu percebo que cada dia me traz.

4. E quando diz: “Dá-me também uma parte destes dons que acha tão úteis”, respondo que estou ansioso para empilhar todos estes privilégios sobre você e que estou feliz em aprender para que eu possa ensinar. Nada me agradará, não importa o quão excelente ou benéfico, se eu dever manter tal conhecimento exclusivo para mim. E se a sabedoria me for dada, sob a condição expressa de que ela deva ser mantida escondida e não pronunciada, eu deveria recusá-la. Nenhuma coisa boa é agradável de possuir sem amigos para compartilhá-la.

5. Vou, portanto, enviar-lhe os livros que utilizei e, para que não perca tempo procurando aqui e ali por tópicos proveitosos, vou marcar certas passagens, para que você possa voltar-se imediatamente para aquelas que eu aprovo e admiro. Naturalmente, porém, a voz viva e a intimidade de uma vida comum ajudarão você mais do que a palavra escrita. Você deve ir para o cenário da ação, primeiro, porque os homens colocam mais fé em seus olhos do que em seus ouvidos e segundo, porque o caminho é longo se alguém segue conselhos, mas curto e útil, se segue exemplos.

6. Cleantes1 não poderia ter sido a imagem expressa de Zenão se ele tivesse apenas ouvido suas palestras; não, ele compartilhou sua vida, viu em seus propósitos ocultos e observou-o para ver se ele vivia de acordo com suas próprias regras. Platão, Aristóteles e toda a multidão de sábios que estavam destinados a seguir cada um o seu caminho diferente, tiraram mais proveito do caráter do que das palavras de Sócrates. Não era a sala de aula de Epicuro, mas viver juntos sob o mesmo teto, que fez grandes homens de Metrodoro, Hermarco e Polieno. Portanto, eu lhe insisto, não apenas para que aufira benefícios, mas para que conceda benefícios, pois podemos auxiliar-nos mutuamente.

7. Entrementes, estou em dívida da minha pequena contribuição diária; direi o que me agradou hoje nos escritos de Hecato. São estas palavras: “que progresso, você pergunta, eu fiz? Eu comecei a ser um amigo de mim próprio.” Isso foi realmente um grande auxílio! Tal pessoa nunca pode estar sozinha. Você pode ter certeza de que esse homem é amigo de toda a humanidade, toda a gente o pode ter.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 NT: Cleantes de Assos (ca. 330 a.C. – ca. 230 a.C.), foi um filósofo estoico, discípulo e continuador de Zenão de Cítio. Tendo iniciado o estudo da filosofia aos 50 anos de idade, depois de ter sido atleta e apesar de viver na pobreza, seguiu as lições de Zenão e após a morte deste, no ano 262 a.C., assumiu a liderança da escola, cargo que manteria por 32 anos, preservando e aprofundando as doutrinas do seu mestre e antecessor.

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Na carta 5 Sêneca explica o significado do lema estoico  “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado:

…Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.” (Carta 5, §7-8)

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

V. Sobre a virtude do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar, eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, a não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre suas vestes ou seu estilo geral de vida.

2. Devem ser evitados trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo. E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.

3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova de uma vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário, caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.

4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o senso comum, a humanidade, o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza”,1 mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, tomar comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.

5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado razoavelmente sem grande dispêndio. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio que eu sanciono. Nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral, todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.

6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e eles todos?” Sim, distinção muito grande. Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.

7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato2 que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes estão, contudo, realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, também a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; à esperança segue sempre o medo.

8. Não me surpreende que procedam dessa maneira. Ambos conceitos pertencem a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a capacidade de prever, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.

9. Animais evitam os perigos que veem e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça, pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a previsão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Lema da escola estoica.

2 NT: Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes. Não se conhecem outros detalhes da sua vida, mas era um filósofo eminente entre os estoicos deste período. Era um escritor prolífico, ainda que não tenha chegado nenhum escrito até aos nossos dias. Diógenes Laércio menciona seis tratados de sua autoria.

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.

Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia:  “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


IV. Sobre os terrores da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.

2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.

3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.

4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.

5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.

6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.

7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.

8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?

9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.

10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5] Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.

11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1]  A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.

[2] Nome de Calígula.

[3] Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.

[4] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[5] O Jardim de Epicuro.

[6] Ver Epicuro, Cartas e Princípios. A mesma citação é repetida na carta 27, neste volume, e também na carta 119. Ver Cartas de um Estoico, Volume III.

Carta 3: Sobre a verdadeira e falsa amizade

Sobre a amizade real.

Seneca adverte Lucílio contra fazer um homem em um amigo antes de conhecer o caráter deste homem. Contudo, uma vez que alguém se tornou um amigo, devemos confiar e compartilhar as ansiedades deste. (Veja também a carta 9 sobre as amizades do homem sábio.)

Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos e se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda, a mais segura.” (Carta II, §5)

(imagem: A Ceia em Emaús  por Caravaggio)

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Carta 1: Sobre aproveitar o tempo

Na primeira carta Sêneca fala o que considera o mais importante, aproveitar bem nosso tempo.  Faz um alerta para não deixarmos tudo para o fim da vida, quanto “é demasiado tarde para gastarmos quando chegarmos à raspa do tacho. Daquilo que permanece no fundo, a quantidade é pouca e a qualidade é vil.

(Imagem: La persistencia de la memoria por  Salvador Dalí)


Carta 1: Sobre aproveitar o tempo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Continue a agir assim, meu querido Lucílio: liberte-se por conta própria; poupe e aproveite seu tempo, que até recentemente tem sido retirado a força de você ou furtado ou simplesmente escapado de suas mãos. Faça-se acreditar na verdade de minhas palavras: que certos momentos são arrancados de nós, que alguns são removidos suavemente e que outros fogem além de nosso alcance. O tipo mais desgraçado de perda, no entanto, é aquele devido ao descuido. Ademais, se você prestar atenção ao problema, você verá que a maior parte de nossa vida passa enquanto estamos fazendo coisas desagradáveis, uma boa parte enquanto não estamos fazendo nada e tudo isso enquanto estamos fazendo o que não deveríamos fazer.

2. Qual homem você pode me mostrar que coloca algum valor em seu tempo, que dá o devido valor a cada dia, que entende que está morrendo diariamente? Pois estamos equivocados quando pensamos que a morte é coisa do futuro; a maior parte da morte já passou. Quaisquer anos atrás de nós já estão nas mãos da morte. Portanto, Lucílio, faça como você me escreve que você está fazendo: mantenha cada hora ao seu alcance. Agarre a tarefa de hoje e você não precisará depender tanto do amanhã. Enquanto estamos postergando, a vida corre.

3. Nada, Lucílio, é nosso, exceto o tempo. A natureza nos deu o privilégio desta única coisa, tão fugaz e escorregadia que qualquer um pode esbulhar tal posse. Que tolos esses mortais são! Eles permitem que as coisas mais baratas e inúteis, que podem ser facilmente substituídas, sejam contabilizadas depois de terem sido adquiridas; mas nunca se consideram em dívida quando recebem parte dessa preciosa mercadoria, o tempo! E, no entanto, o tempo é o único empréstimo que nem o mais agradecido destinatário pode pagar.

4. Você pode desejar saber como eu, que prego a você, estou praticando. Confesso francamente: meu saldo em conta corrente é como o esperado de alguém generoso mas cuidadoso. Não posso vangloriar-me de não desperdiçar nada, mas pelo menos posso lhe dizer o que estou desperdiçando, a causa e a maneira de desperdício; posso lhe dar as razões pelas quais sou um homem pobre. Minha situação, no entanto, é a mesma de muitos que são reduzidos à miséria sem culpa própria: todos os perdoam, mas ninguém vem em seu socorro.

5. Qual é o estado das coisas, então? É isto: eu não considero um homem como pobre, se o pouco que lhe resta o é suficiente. Contudo, aconselho-o a preservar o que é realmente seu; e nunca é cedo demais para começar. Pois, como acreditavam os nossos antepassados, é demasiado tarde para gastarmos quando chegarmos à raspa do tacho. Daquilo que permanece no fundo, a quantidade é pouca e a qualidade é vil.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 105: Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Na carta 105 Sêneca lista as causas de insegurança e como evitá-las. Segundo ele, as coisas que levam os homens a se atacarem são inveja, o ódio, o medo e o desprezo. Ele então aprofunda cada uma das causas, mas faz um alerta, pois “algumas pessoas se sentem ofendidas sem terem tido razões para tal”.

O conselho final é para a paz mental é nunca fazer o mal:

O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. … Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. … Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso. (CV, 7-8)

(Imagem: Giovani Battista Pittoni, Crasso saqueia o templo de Jerusalém)


CV. Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Devo dizer-lhe certas coisas às quais deve prestar atenção para viver com mais segurança, sem sobressaltos. No entanto escute meus preceitos como se eu estivesse aconselhando você a manter sua saúde em seu território em Ardea. Reflita sobre as coisas que levam o homem a destruir o homem: você descobrirá que elas são a esperança, a inveja, o ódio, o medo e o desprezo.

2. Agora, de tudo isso, o desprezo é o menos nocivo, tanto assim que muitos haviam se escondido atrás dele como uma espécie de cura. Quando um homem lhe despreza, ele o fere, com certeza, mas ele prossegue; e ninguém persistentemente ou com propósito determinado machuca uma pessoa que despreza. Mesmo na batalha, os soldados prostrados são negligenciados: os homens lutam com aqueles que se mantêm firmes.

3. E você pode evitar as esperanças invejosas dos ímpios, desde que você não tenha nada que possa agitar os maus desejos dos outros e enquanto não possuir nada de notável. Pois as pessoas anseiam mesmo coisas pequenas, se estas capturarem a atenção ou forem de ocorrência rara. Você escapará da inveja se você não se expuser à visão pública, se você não se vangloriar de suas posses, se você entender como desfrutar das coisas de forma privada. O ódio ocorre ao entrar em conflito com outros e isso pode ser evitado ao nunca provocar ninguém; ou então, às vezes, não é motivado por nada e o senso comum irá mantê-lo a salvo dele. No entanto, essa espécie de ódio tem sido perigosa para muitos; algumas pessoas foram odiadas sem terem tido razões para inimizade pessoal.

4. Quanto a não ser temido, uma Fortuna moderada e uma disposição fácil garantirão isso; os homens devem saber que você é o tipo de pessoa que pode ser ofendida sem perigo e sua reconciliação deve ser fácil e segura. Além disso, é tão problemático ser temido em casa como no exterior; é tão ruim ser temido por um escravo quanto por um homem livre. Pois cada um tem força o suficiente para causar algum dano. Além disso, aquele que é temido teme também. Ninguém conseguiu despertar o terror e viver em paz.

5. O desprezo continua a ser discutido. Aquele que fez dessa qualidade um complemento de sua própria personalidade, que é desprezado porque deseja ser desprezado e não porque deve ser desprezado, tem a medida do desprezo sob seu controle. Qualquer inconveniente a este respeito pode ser dissipado por ocupações honrosas e por amizades com homens que tenham influência com uma pessoa influente; com estes homens, lhe será útil ter contato, mas não se enredar, para que a proteção não custe mais do que o próprio risco.

6. Nada, no entanto, irá ajudá-lo tanto quanto manter-se quieto – falando muito pouco com os outros, e tanto quanto queira consigo mesmo. Pois há uma espécie de encanto sobre a conversa, algo muito sutil e persuasivo que, como a embriaguez ou o amor, extrai segredos de nós. Ninguém mantém segredo do que ouve. Ninguém dirá a outro apenas o quanto ouviu. E aquele que conta histórias também contará nomes. Todo mundo tem alguém a quem confia tudo o que lhe foi confiado. Embora controle sua própria tagarelice e se contente com um ouvinte, irá trazer sobre ele uma multidão, se o que recentemente era um segredo, se tornar uma conversa comum.

7. O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. Aqueles que não têm autocontrole conduzem vidas perturbadas e tumultuadas, seus crimes são equilibrados por seus medos e eles nunca estão tranquilos. Pois eles tremem após a ação e ficam envergonhados; suas consciências não permitem que eles se ocupem de outros assuntos e continuamente requerem atenção, numa ansiedade constante. Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele.

8. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. Seu sono é perturbado quando ele fala sobre o crime de outro homem, ele reflete sobre o dele, que nunca lhe parece estar suficientemente escurecido nem suficientemente escondido da visão. Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 104: Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

O Estoico retorna de férias e abre o ano com uma excelente carta, muito apropriada para essa época de pandemia, e pior ainda, polarização ideológica.

A carta apresenta uma visão do casamento do Seneca. Sua esposa Paulina se mostra preocupada com a saúde de Sêneca, que então decide se cuidar para tirar preocupação da esposa.

Uma faceta que sobressai desta carta é a reciprocidade entre Sêneca e Paulina – porque ela se preocupa com o bem-estar dele, ele se vê mais preocupado consigo mesmo como resultado. Este é um reforço cíclico do carinho; o carinho gera mais carinho. A relação conjugal cria um tipo de intimidade e proximidade que permite o desenvolvimento de um cuidado real. O princípio subjacente aqui é que é tarefa de um sábio lembrar que não vive apenas para si mesmo, mas também para os outros – daí o desprezo de Sêneca por aqueles que optam pelo suicídio sem levar em conta o impacto sobre aqueles que os cercam.

Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita. A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.” (CIV, 3)

Após a interessante passagem sobre seu casamento, Sêneca explica porque viajar ou mudar para outro lugar não é solução para os problemas pois “o homem que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares”. O motivo da perturbação é o próprio homem já que “Viaja o tempo todo em sua própria companhia!

A solução é enfrentar sem medo nossos problemas:

Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.” (CIV, 26)

Conclui a carta com exemplos de personalidades estoicas, em especial Marco Catão. Hoje a polarização ideológica sugere que precisamos escolher um lado, entre duas péssimas opções. Isso é falso. Catão passou por isso, e não escolheu César nem Pompeu:

Quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república. ..- E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva?” (CIV, 31-33)

Sempre existe mais do que duas opções, cuidado com as falsas dicotomias.

(imagem: O Casamento Romano por Emilio Vasarri)


CIV. Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu fugi para minha casa em Nomento, por que propósito, você acha? Para escapar da cidade? Não; para livrar-me de uma febre que seguramente estava a caminho do meu sistema. Já se apoderava de mim. Meu médico continuou insistindo que, quando a circulação está irregular, perturbando o equilíbrio natural, a doença está a caminho. Eu, portanto, ordenei que minha carruagem fosse preparada de imediato e insisti em partir, apesar dos esforços de minha esposa Paulina para me impedir; pois me lembrei das palavras do meu estimado Gálio,[1] quando ele começou a desenvolver uma febre em Acaia e pegou o navio imediatamente, insistindo que a doença não era do corpo, mas do lugar.

2. Foi o que observei para minha querida Paulina, que sempre pede para que cuide de minha saúde. Eu sei que seu próprio sopro de vida vai e vem com o meu e eu estou começando, em minha solicitude por ela, a ser solícito comigo. E, embora a velhice tenha me deixado corajoso para suportar muitas coisas, gradualmente estou perdendo essa benção que a idade avançada confere. Pois vem à minha mente que neste velho homem há também um jovem e a juventude precisa de ternura. Portanto, como não posso prevalecer sobre ela para que me ame com mais coragem, ela prevalece sobre mim para me estimular a ser mais cuidadoso.

3. Pois é preciso se entregar a emoções genuínas; às vezes, mesmo apesar de fortes razões, o sopro da vida deve ser chamado de volta e mantido em nossos próprios lábios, mesmo ao preço de grande sofrimento, por causa daqueles que consideramos queridos; porque o homem de bem não deve viver tanto quanto queira, mas o tanto quanto deve. Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita.[2] A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.

4. Dá prova de um grande coração ao voltar à vida por causa dos outros. E homens nobres muitas vezes fizeram isso. Mas esse procedimento também, acredito, indica o maior tipo de bondade: que, embora a maior vantagem da velhice seja a oportunidade de ser mais negligente em relação à autopreservação e a usar a vida de forma mais aventurada, deve-se cuidar da velhice com ainda maior cuidado se alguém entender que essa ação é agradável, útil ou desejável aos olhos de uma pessoa amada.

5. Isso também não é uma fonte de alegria mesquinha ou lucro; pois o que é mais encantador do que ser tão valorizado pela esposa que a própria existência se torna mais valiosa para si mesmo por esse motivo? Daí minha querida Paulina é capaz de me tornar responsável, não só por seus medos, mas também pelo meus.

6. Então você tem curiosidade em saber o resultado desta prescrição de viagem? Assim que escapei da atmosfera opressiva da cidade e daquele horrível odor de cozinhas que, quando em uso, derramam uma ruína de vapor e fuligem pestilentos, percebi imediatamente que minha saúde estava se reparando. E quão mais forte você acha que me senti quando cheguei às minhas vinhas! Sendo, por assim dizer, deixado sair para pastar, eu regularmente andei até minhas refeições! Então eu sou o meu “eu antigo” novamente, não sentindo agora nenhum langor no meu sistema ou qualquer letargia em meu cérebro. Estou começando a trabalhar com toda minha energia.

7. Mas o mero lugar ajuda pouco neste propósito, a menos que a mente seja totalmente mestre de si mesma, e possa, a seu gosto, encontrar retiro mesmo em meio a negócios. O homem, no entanto, que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares. Sócrates respondeu, quando uma certa pessoa se queixou de não ter recebido nenhum benefício de suas viagens: “Isso serve bem a você!  Viajou o tempo todo em sua própria companhia![3]

8. Oh que bênção seria para alguns homens se afastarem de si mesmos! Como são, eles causam a sim próprios aborrecimento, preocupação, desmoralização e medo! Que lucro há em cruzar o mar e em ir de uma cidade para outra? Se você quer escapar de seus problemas, não precisa de outro lugar, mas de outra personalidade. Talvez você tenha chegado a Atenas, ou talvez a Rodes; escolha qualquer país que você goste, qual a importância de seu caráter? Que importância têm os costumes dessa nova cidade se você leva os seus próprios para lá?

9. Suponha que você acredite que a riqueza seja um bem: a pobreza então irá angustiá-lo e, o que é mais lamentável, será uma pobreza imaginária. Pois você pode ser rico e no entanto, porque seu vizinho é mais rico, você se considerará pobre na mesma quantidade em que você fica atrás do seu vizinho. Você pode considerar sua posição social como boa; você ficará irritado com a nomeação de outra pessoa ao consulado; você ficará com ciúmes sempre que ler um nome várias vezes nos registros do estado. Sua ambição será tão frenética que se considerará o último na corrida se houver alguém na sua frente.

10. Ou você pode considerar a morte como o pior dos males, embora não haja nenhum mal lá, exceto o que precede a chegada da morte – o medo. Você ficará assustado, não só pelo real, mas por perigos imaginados e será lançado para sempre ao mar da ilusão. Que benefício será então

ter passado por tantas cidades,
Argos em seu vôo pelo meio do inimigo?

evasisse tot urbes
Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostis?[4]

Pois a própria paz proporcionará uma maior apreensão. Mesmo em meio a segurança, você não terá confiança se a sua mente já tiver recebido um choque; uma vez que tenha adquirido o hábito de pânico cego é incapaz de fornecer mesmo a sua própria segurança. Pois não evita o perigo, mas foge dele. No entanto, estamos mais expostos ao perigo quando viramos as costas.

11. Você pode julgar como o mais grave dos males perder qualquer um dos que você ama; enquanto tudo isso não seria menos insensato do que chorar porque as árvores que atraem seus olhos e adornam sua casa perdem sua folhagem. Considere tudo o que lhe agrada como se fosse uma planta florescente. Aproveite ao máximo enquanto está em folha, pois diferentes plantas em diferentes estações devem cair e morrer. Mas assim como a perda de folhas é uma coisa leve, pois elas nascem de novo, assim também é com a perda daqueles a quem você ama e considera o deleite da sua vida, pois podem ser substituídos mesmo que não possam nascer de novo.

12. “Novos amigos, no entanto, não serão os mesmos”. Não, nem você mesmo permanecerá o mesmo, você muda com todos os dias e a cada hora. Mas nos outros homens, você vê mais facilmente o que o tempo saqueia. Em seu próprio caso, a mudança está oculta, porque não ocorre visivelmente. Outros são arrebatados da vista, nós mesmos estamos sendo furtivamente afastados de nós mesmos. Você não pensará em nenhum desses problemas, nem aplicará remédios para essas feridas. Você, por sua própria vontade, estará semeando uma safra de problemas por alternância de esperança e desespero. Se você é sábio, misture esses dois elementos: não espere sem desespero, nem se desespere sem esperança.

13. Qual o benefício que a viagem em si mesma já conseguiu dar a qualquer um? Não restringiu o prazer, nem refreou o desejo, nem controlou o mau humor, nem aniquilou os assaltos selvagens da paixão, nem deu a oportunidade de livrar a alma do mal. Viajar não pode nos dar discernimento ou livrar-nos dos nossos erros, apenas mantém nossa atenção por um momento em uma certa novidade, enquanto as crianças param para se perguntar sobre algo que não é familiar.

14. Além disso, isso nos irrita, através da vacilação de uma mente que sofre de um agudo ataque de enjoo; o próprio movimento o torna mais agudo e inquieto. Daí os pontos que tínhamos procurado mais ansiosamente, deixamos ainda mais ansiosamente, os atravessamos voando corno aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram.

15. O que a viagem dará é familiaridade com outras nações: ela irá revelar-lhe montanhas de formas estranhas, ou estratos desconhecidos de planície, ou vales que são regados por riachos perenes, ou as características de algum rio que vem à nossa atenção. Observamos como o Nilo sobe e incha no verão, ou como o Tigre desaparece, correndo no subsolo através de espaços escondidos e depois aparece com grande amplidão. Ou como o rio Meandro,[5] esse assunto repetido e brinquedo de poetas, gira em curvas frequentes e muitas vezes em sinuosas torsões se aproxima de seu próprio canal antes de continuar seu curso. Mas esse tipo de informação não vai fazer de nós homens melhores ou mais saudáveis.

16. Devemos passar nosso tempo no aprendizado e cultivar aqueles que são mestres da sabedoria, estudando algo que foi investigado, mas não resolvido; com isso, a mente pode ser livrada da mais miserável servidão e conquistar sua liberdade. Na verdade, enquanto você ignorar o que deveria evitar ou procurar, ou o que é necessário ou supérfluo, ou o que é certo ou errado, você não estará viajando, mas simplesmente vagando.

17. Não haverá benefício para você nesta corrida de um lado para outro; pois você estará viajando com suas emoções e será seguido por suas aflições. Seguido não! Na realidade, você as está carregando e não as conduzindo. Daí elas pressionam você por todos os lados, continuamente lhe irritando e desgastando. É por remédio, e não paisagem, o que o doente deve procurar.

18. Suponha que alguém quebrou uma perna ou deslocou uma articulação, ele não embarca para outras regiões, mas ele chama o médico para arrumar o membro fraturado ou para movê-lo de volta ao seu lugar apropriado nas articulações. O que então? Quando o espírito está quebrado ou arruinado, você acha que essa mudança de lugar pode curá-lo? A enfermidade é muito profunda para ser curada por uma viagem.

19. Viajar não faz um médico ou um orador, nenhuma arte é aprendida simplesmente vivendo em um determinado lugar. Onde está a verdade, então? A sabedoria, a maior de todas as artes, pode ser obtida em uma viagem? Eu asseguro-lhe, viaje quanto quiser, nunca poderá estabelecer-se além do alcance do desejo, além do alcance do mau humor ou do alcance do medo; se fosse assim, a raça humana teria se reunido e peregrinado a tal local. Tais males, contanto que carregue com você suas causas, o sobrecarregarão e o preocuparão em suas perambulações sobre terra e mar.

20. Você duvida que não adianta fugir deles? É disso que você está fugindo, daquilo que tem dentro de si. Consequentemente, reforme a si mesmo, tire o peso de seus próprios ombros e mantenha dentro de limites seguros os desejos que devem ser removidos. Limpe sua alma. Se você quiser aproveitar as suas viagens, faça com que o companheiro de suas viagens seja saudável. Enquanto esse companheiro é avaro e significante, a ganância irá controlar você; e enquanto você se junta a um homem arrogante, suas maneiras autoritárias também estarão próximas. Viva com um carrasco e você nunca se livrará da sua crueldade. Se um adúltero é seu companheiro, ele irá acender as paixões mais vulgares.

21. Se você quer ser despojado de suas falhas, deixe para trás os exemplos de falhas. O avarento, o trapaceiro, o valentão, o sádico, que lhe farão muito mal por estar perto de você, estão dentro de você. Mude, portanto, para melhores associações: viva com os Catãos, com Lélios, com Tuberão. Ou, se você gosta de viver com os gregos também, passe seu tempo com Sócrates e com Zenão: o primeiro irá mostrar-lhe como morrer se for necessário; o último como morrer antes que a necessidade o imponha.

22. Viva com Crisipo, com Posidônio:[6] eles farão você conhecer as coisas terrenas e as coisas celestiais, eles irão lhe oferecer trabalho duro sobre algo mais do que certos rebusques de linguagem e frases para o entretenimento dos ouvintes, eles irão lhe oferecer coragem e como crescer frente ameaças. O único porto protegido das tempestades da sua vida é o desprezo pelo futuro, uma posição firme, uma prontidão para receber os ataques da Fortuna direto no peito, sem se esconder nem virar as costas.

23. A natureza nos trouxe braveza de espírito e, assim como ela implantou em certos animais um espírito de ferocidade, em outros astúcia, em outros terror, da mesma forma ela nos deu um espírito ambicioso e elevado, o que nos leva a buscar uma vida de grande honra, e não da maior segurança, que mais se assemelha à alma do universo, que segue e imita tanto quanto nossas medidas mortais permitem. Este espírito avança em frente, confiante do sucesso e consideração.

24. É superior a todos, monarca de tudo o que vê; assim não deve ser subordinado a nada, não encontrando nenhuma tarefa muito pesada e nada forte o suficiente para pesar seus ombros, vergar sua energia.

Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte;

Terribiles visu formae letumque labosque;[7]

Não são nem um pouco terríveis, se alguém pode olhá-las com um olhar implacável e pode perfurar as sombras. Muitas vistas aterrorizadoras na noite, tornam-se ridículas de dia. “Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte”, nosso Virgílio disse com excelência que essas formas são temíveis, não na realidade, mas apenas “de olhar” – em outras palavras, elas parecem terríveis, mas não são.

25. E nessas visões, o que há lá, eu pergunto, tão inspirador do medo que o rumor proclamou? Por que, meu querido Lucílio, um homem tem medo de trabalho pesado ou uma implacável morte? Inúmeros casos ocorrem na minha mente de homens que pensam que o que eles mesmos não conseguem fazer é impossível, que afirmam que pronunciamos palavras que são muito grandes para a natureza do homem.

26. Mas quanto mais eu estimo esses homens! Eles podem fazer essas coisas, mas recusam fazê-las. A quem que já tentou, essas tarefas se mostraram falsas? O que já fez o homem, que parecesse fácil de fazer? Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.

27. Se, no entanto, você deseja um modelo, tome de Sócrates, um ancião que sofreu muito tempo, que foi atacado por todas as dificuldades e ainda assim não foi derrotado pela pobreza (já que seus problemas domésticos se tornaram mais onerosos) e pelo trabalho, incluindo o trabalho árduo do serviço militar. Ele foi muito tentado em casa, se pensamos em sua esposa, uma mulher de maneiras ásperas e de língua rabugenta ou pelas crianças cuja irascibilidade se mostrou mais como da mãe do que do pai. E se você considerar os fatos, ele viveu em tempo de guerra, sob a tirania e sob democracia, que é mais cruel do que guerras e tiranos.

28. A guerra durou vinte e sete anos; findas as hostilidades o estado tornou-se vítima dos trinta tiranos, dos quais muitos eram inimigos pessoais.[8] Por último veio o clímax da condenação sob as mais graves acusações: acusaram-no de perturbar a religião do estado e de corromper a juventude, porque declararam ter influenciado a juventude a desafiar os deuses, desafiar o conselho e desafiar o Estado em geral. Em seguida, veio a prisão e o copo de veneno. Mas todas essas medidas mudaram a alma de Sócrates tão pouco que nem mudaram suas feições. Que distinção maravilhosa e rara! Ele manteve essa atitude até o fim e nenhum homem viu Sócrates eufórico ou deprimido. Em meio a todos os distúrbios da Fortuna, ele não estava perturbado.

29. Você deseja outro caso? Pegue o do Marco Catão, o jovem, a quem a Fortuna tratou de uma forma mais hostil e mais persistente. Mas ele resistiu, em todas as ocasiões, e em seus últimos momentos, no momento da morte, mostrou que um homem corajoso pode viver apesar da Fortuna, pode morrer apesar dela. Toda a sua vida foi passada em guerra civil, ou sob um regime político que logo criaria uma guerra civil. E você pode dizer que ele, tanto quanto Sócrates, declarou lealdade à liberdade em meio a escravidão – a menos que você pense que Pompeu, César e Crasso foram aliados da liberdade!

30. Ninguém jamais viu Catão mudar, não importa a frequência com que a república mudou: ele manteve-se o mesmo em todas as circunstâncias – como pretor, na derrota, sob acusação, na sua província, perante a assembleia, no exército, na morte. Além disso, quando a república estava em uma crise de terror, quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república.

31. Se você obtiver uma imagem mental desse período, você pode imaginar de um lado as pessoas e todo o proletariado ansioso pela revolução – do outro, os senadores e os cavaleiros, os homens escolhidos e honrados da comunidade; e havia entre eles – a República e Catão. Eu lhe digo, você ficará maravilhado quando você vir

O filho de Atreu e Príamo, e Aquiles, inimigo dos dois.

Atriden Priamumque et saevom ambobus Achillen.[9]

Seguindo Aquiles, Catão acusa um tanto quanto acusa o outro, procura que ambas facções deponham suas armas.

32. E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva? Então ele morreu por sua própria decisão.

33. Você vê que o homem pode suportar o trabalho: Catão, a pé, liderou um exército através dos desertos africanos. Você vê que a sede pode ser suportada: ele percorreu colinas cobertas de sol, arrastando os restos de um exército espancado e sem suprimentos, passando por falta de água e vestindo uma armadura pesada. Sempre foi o último a beber das poucas fontes que encontraram. Você vê que a honra e a desonra também podem ser desprezadas: pois relatam que no próprio dia em que Catão foi derrotado nas eleições para a pretura, ele jogou um jogo de bola. Você vê também que o homem pode ser livre do medo de superiores: porque Catão atacou César e Pompeu ao mesmo tempo, em um momento em que ninguém ousou entrar em conflito com um sem se esforçar para agradar o outro. Você vê que a morte pode ser desprezada, bem como o exílio: Catão infligiu o exílio sobre si mesmo e, finalmente, a morte. Entre um e outro, a guerra.

34. E, se apenas estivermos dispostos a retirar nossos pescoços do jugo, podemos manter um coração tão forte contra tantos terrores como esses. Mas antes de mais, devemos rejeitar os prazeres; eles nos tornam fracos e afeminados; eles nos fazem grandes demandas e, além disso, nos compelem a fazer grandes exigências da Fortuna. Em segundo lugar, devemos desprezar a riqueza: a riqueza é o diploma da escravidão. Abandone o ouro e a prata e qualquer outra coisa que seja um fardo sobre nossas casas ricamente mobiladas. A liberdade não pode ser obtida de mão beijada. Se você definir um alto valor para a liberdade, você deve definir um valor reduzido para todo o resto.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Lúcio Júnio Gálio Aneano, senador romano e irmão de Sêneca. É conhecido pelo julgamento de Paulo em Corinto relatado nos Atos dos Apóstolos.

[2] Relativo a, ou natural de Síbaris, antiga cidade grega do sul da Itália. Diz-se de, ou pessoa dada aos prazeres físicos, à voluptuosidade, à indolência.

[3] Para esse mesmo assunto, ver carta XXVIII – Sobre viajar como cura para o descontentamento. (Volume I)

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio, III, 282

[5] NT: O rio Büyük Menderes (cujo nome em latim é Maeander, também chamando Meandro) é um rio no sudoeste da Turquia. Nasce no centro-oeste da Turquia, perto de Dinar, correndo oeste para o mar Egeu, desaguando perto da antiga cidade de Mileto.

[6] Esses homens são padrões ou intérpretes das virtudes. Os primeiros nomes representam respectivamente coragem, justiça e autocontrole. Sócrates é o sábio ideal, Zenão, Crisipo e Posidônio são, por sua vez, o fundador, o organizador e o modernizador do estoicismo. Ver George Stock, Estoicismo.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio, VI, 277

[8] NT: Tirania dos Trinta vai de 431 a 404 B.C. (Guerra do Peloponeso).

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 103: Sobre os perigos da associação com nossos próximos

A carta 103 tem um tom mais amargo. Nela Sêneca nos alerta que o maior perigo que corremos não vem da natureza, acidentes ou doença, mas sim de outras pessoas, pois “o homem se delicia em arruinar o homem.” (CIII; §2)

Contra esse risco não temos certeza de proteção, contudo Sêneca recomenda sempre ajudar e nunca prejudicar nosso próximo:

Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.” (CIII; §2)

E a filosofia pode ser grande aliada, se a usarmos corretamente, ou seja, para corrigir nossos defeitos e não como ferramenta para apontar a falha dos outros.

Imagem: A Morte de Júlio César por Vincenzo Camuccini. César passou ileso por inúmeras conquistas militares e pela guerra civil, para acabar morto por seus colegas no senado.


CIII. Sobre os perigos da associação com nossos próximos[1]

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Por que você está procurando por problemas que talvez possam vir a seu encontro, mas que, de fato, podem não chegar a seu caminho? Quero dizer incêndios, edifícios caindo e outros acidentes do tipo que são meros eventos e não tramas contra nós, sem o propósito deliberado de nos causarem mal. Melhor faria em procurar evitar os perigos reais que nos espreitam na intenção de nos apanhar à traição. Os acidentes, embora possam ser sérios, são poucos e raros – como naufragar ou cair de uma carruagem. Mas é do próximo que vem o perigo cotidiano de um homem. Equipe-se contra isso, vigie isso com um olho atento. Não há nenhum mal mais frequente, nenhum mal mais persistente, nenhum mal mais insinuante.

2. Mesmo a tempestade, antes de se iniciar, dá um aviso; casas trincam antes de caírem; e a fumaça é o precursor do fogo. Mas o dano provocado pelo homem é instantâneo e de quanto mais próximo ele vem, mais cuidadosamente está escondido. Você está errado em confiar na fisionomia daqueles que encontra. Eles têm o aspecto de homens, mas almas de bestas. A única diferença é que os animais selvagens lhe causam dano ao primeiro encontro, aqueles que passaram por nós não voltam para nos perseguir. Pois nada os incita a causar dano, exceto quando a necessidade os obriga: é a fome ou o medo que os instiga a lutar. Mas o homem se delicia em arruinar o homem.

3. Você deve, no entanto, refletir o perigo que você corre na mão do homem, para que você possa deduzir qual é o seu dever enquanto homem. Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.

4. E o que você pode alcançar vivendo uma vida dessas? Não necessariamente a imunidade contra danos, mas pelo menos liberdade de engano; pelo menos consegue que não o tomem por tolo. Dessa forma, quando for capaz, refugie-se na filosofia: ela irá cuidar de você em seu seio e em seu santuário você estará seguro ou, pelo menos, mais seguro do que antes. As pessoas colidem apenas quando viajam pelo mesmo caminho.

5. Mas essa mesma filosofia nunca deve ser alardeada por você; pois a filosofia quando empregada com insolência e arrogância tem sido perigosa para muitos. Deixe-a retirar suas falhas, em vez de ajudá-lo a criticar as falhas dos outros. Não deixe que ela se afaste dos costumes da humanidade, nem faça com que ela condene o que ela mesma não faz. Um homem pode ser sábio sem alarde e sem provocar inimizade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Compare com a carta VII (Volume I).