Carta 25: Sobre a Mudança

Na Carta 25 Sêneca fala sobre  mudança e do árduo trabalho que esta sempre requer. Discute com  Lucílio sobre dois amigos em comum – um velho, um jovem, ambos precisando de alguma correção para colocar suas vidas de volta nos trilhos.   Podemos ou devemos tentar mudar outra pessoa?

Sêneca diz que depende – o contexto é tudo e a mesma abordagem não vai funcionar em todo os casos. Então, quais são os contextos mais importantes a considerar, e quando é o momento certo para forçar uma mudança ao invés de esperar?

Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a não ter fé”. (XXV.2)

Essa é uma daquelas frases que descrevem ou melhor moldam o estoicismo e seu modo de viver. É mais importante ter fé e esforçar-se em direção ao seu objetivo do que realmente alcançá-lo.

No texto Sêneca retorna ao tema de se afastar da multidão das cartas 7 e 11 onde ele menciona que é ruim estar sozinho se você não for virtuoso o suficiente. Nesta carta ele esclarece as coisas.

O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão.” Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontrolado; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um patife. (XXV.7)

(imagem,  Muro da Reformação, Genebra)


XXV. Sobre a Mudança

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Em relação a estes dois amigos nossos, devemos avançar em linhas diferentes; as falhas de um devem ser corrigidas, as do outro devem ser esmagadas. Tomarei toda liberdade; porque eu não amo uma pessoa se eu não estou disposto a ferir seus sentimentos. “O quê”, você diz, “você espera manter alguém de quarenta anos sob sua tutela? Considere sua idade, quão calejado ele é agora, impossível de ser modificado!
  2. Tal homem não pode ser remodelado, somente mentes jovens são moldadas. Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a não ter fé. Você não precisa se desesperar a curar homens doentes, mesmo quando a doença é crônica, se você apenas manter-se firme contra o excesso e forçá-los a fazer e submeter-se a coisas contra a vontade deles. Quanto ao nosso outro amigo, também não estou suficientemente confiante, exceto pelo fato de que ele ainda tem um sentimento de vergonha suficiente para ruborizar-se por seus pecados. Essa modéstia deve ser fomentada; enquanto persistir em sua alma, haverá espaço para a esperança. Mas quanto a este seu veterano, acho que devemos tratar com mais cuidado com ele, para que ele não fique desesperado.
  3. Não há melhor momento para se aproximar dele do que agora, quando ele tem um intervalo de descanso e parece que corrigiu suas falhas. Outros foram enganados por essa intermitência virtuosa de sua parte, mas ele não me engana. Tenho a certeza de que essas falhas voltarão, por assim dizer, com juros compostos, pois estou certo de que estão em suspensão, mas não ausentes. Vou dedicar algum tempo ao assunto e tentar ver se algo pode ou não ser feito.
  4. Mas você, como de fato está fazendo, mostra que é corajoso; alivia sua bagagem para a marcha. Nenhuma de nossas posses é essencial. Voltemos à lei da natureza; de acordo com ela, as riquezas são disponibilizadas para nós. As coisas que realmente precisamos são gratuitas para todos, ou então baratas; a natureza almeja apenas pão e água. Ninguém é pobre de acordo com este padrão; quando um homem limita seus desejos dentro destas fronteiras, pode desafiar a felicidade do próprio Júpiter, como diz Epicuro. Devo inserir nesta carta um ou mais de seus ditos:
  5. “Faça tudo como se Epicuro estivesse observando você.” Não há nenhuma dúvida real de que é bom para alguém ter designado um guardião sobre si mesmo, e ter alguém que você pode olhar para cima, alguém que você possa considerar como uma testemunha de seus pensamentos. É, de fato, mais nobre viver como você viveria sob os olhos de algum homem bom, sempre ao seu lado; mas, no entanto, estou satisfeito se você apenas agir, em tudo o que fizer, como você agiria se alguém tudo estivesse olhando; porque a solidão nos induz a todos os tipos de mal.
  6. E quando você tiver progredido tanto que tenha respeito por si mesmo, você pode dispensar seu assistente; mas até então, defina como um guardião sobre si mesmo a autoridade de algum homem, seja o grande Catão ou Cipião, ou Lélio, ou qualquer homem em cuja presença até mesmo patifes desgraçados reprimiriam seus maus impulsos. Enquanto isso, você deve se empenhar em fazer de si mesmo o tipo de pessoa em cuja companhia você não ousaria pecar. Quando este objetivo estiver cumprido e você começar a nutrir por si próprio alguma estima, gradualmente permitirei que você faça o que Epicuro, em outra passagem, sugere: “O momento em que você mais deveria se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar entre a multidão.”
  7. Você deve se fazer de um naipe diferente da multidão. Portanto, embora ainda não seja seguro retirar-se para a solidão, procure certos indivíduos; pois qualquer um é melhor em companhia de alguém, – não importa quem, – do que só em sua própria companhia. “O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão.” Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontido; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um patife.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

 

Carta 24: Sobre o desprezo pela morte

6 de junho comemora-se o Dia-D quando mais de 150.000 soldados das forças aliadas desembarcaram na Normandia para enfrentar os nazistas, sofrendo baixas superiores  a 4000 homens.

A carta 24 de Sêneca aborda esse tema.  É um grande auxilio para as pessoas que precisam fazer o que deve ser feito, mesmo sob risco pessoal.

Sêneca aponta algo paradoxal no início de sua carta: Sêneca: “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro“(XXIV.1)

Mas o futuro nunca chega e, portanto, você nunca pode ser totalmente infeliz.  Não devemos nos aborrecer com problemas futuros, tornando-os um problema do presente. Não se preocupe com as coisas antes do tempo.

Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! ‘Eu morrerei’, você diz; você queria dizer: ‘Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte’“(XXIV.17).

Esta é uma linha interessante, porque se olhamos para a morte a partir deste ponto de vista, não parece tão ruim, você só tem que começar a se preocupar com a morte se você pensar sobre o que vai acontecer depois.

(foto: desembarque de  tropas da companhia E na praia de Omaha.  Durante o desembarque inicial, dois terços da companhia foram mortos.  foto por Robert F. Sargent)


 

XXIV. Sobre o desprezo pela morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você escreve-me que você está ansioso pelo resultado de um processo judicial, com o qual um oponente colérico está lhe ameaçando; e você espera que eu lhe aconselhe a vislumbrar um desenlace feliz, e a descansar em meio aos encantos da esperança. Por que seria necessário conjurar problemas, que devem ser resolvidos de uma vez tão logo que cheguem, ou antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro.
  2. Mas conduzi-lo-ei à paz de espírito por uma outra rota: se você desencorajar toda a preocupação, supor que o que você teme poder acontecer certamente acontecerá; Qualquer que seja o problema, meça-o em sua própria mente, e estime a quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é insignificante ou de curta duração.
  3. E você não precisa gastar muito tempo em coletar ilustrações que o fortalecerão; cada época as produziu. Deixe seus pensamentos viajar em qualquer época da história romana ou estrangeira, e haverá múltiplos exemplos notáveis de feitos heróicos ou de intensa diligência. Se perder este julgamento, pode acontecer algo mais grave do que você ser enviado ao exílio ou levado à prisão? Existe um pior destino que qualquer homem possa temer do que ser queimado ou ser morto? Nomeie essas punições uma a uma, e mencione os homens que as desprezaram; não é preciso saia à caça por eles, – é simplesmente uma questão de coletânea.
  4. Sentença de condenação foi suportada por Rutílio[1] como se a injustiça da decisão fosse a única coisa que o aborrecesse. O exílio foi suportado por Metelo com coragem, por Rutílio até mesmo com alegria; pois o primeiro só consentiu em voltar porque seu país o chamava; este se recusou a voltar quando Sula o convocou, – e ninguém naqueles dias disse “Não” a Sula! Sócrates na prisão discursou e recusou-se a fugir quando certas pessoas lhe deram a oportunidade; ele permaneceu lá, a fim de libertar a humanidade do medo das duas coisas mais graves, a morte e prisão.
  5. Múcio[2] colocou a mão no fogo. É doloroso ser queimado; mas quão mais doloroso é infligir tal sofrimento a si mesmo! Aqui estava um homem sem instrução, não preparado para enfrentar a morte e a dor por qualquer palavra de sabedoria, e equipado apenas com a coragem de um soldado, que se puniu por sua ousadia infrutífera; Ele ficou de pé e observou sua própria mão direita caindo aos poucos sobre o braseiro do inimigo, nem retirou o membro dissolvente, com os seus ossos descobertos, até que seu inimigo removeu o fogo. Ele poderia ter conseguido algo mais bem-sucedido naquele campo, mas nunca algo mais corajoso. Veja quão mais corajoso é um homem valente ao se assenhorar do perigo do que um homem cruel é para infringi-lo: Porsena estava mais pronto para perdoar Múcio por querer matá-lo do que Múcio para se perdoar por não ter matado Porsena!
  6. “Oh”, diz você, “essas histórias foram repetidas à exaustão em todas as escolas, muito em breve, quando você chegar ao tema “Desprezo pela Morte”, você vai me falar sobre Catão. Mas por que não lhe contar sobre Catão, como ele leu o livro de Platão naquela última noite gloriosa, com uma espada pousada sob o travesseiro? Ele tinha provido essas duas condições para seus últimos momentos, – primeiro, que ele poderia ter a vontade de morrer, e segundo, que ele poderia ter os meios. Assim ele regularizou seus negócios – assim como se pode ordenar o que está arruinado e perto de seu fim – e pensou que deveria fazer para que ninguém tivesse o poder de mata-lo ou a boa fortuna de salva-lo.
  7. Desembaiando a espada, que tinha mantido sem mancha mesmo após todo derramamento de sangue, ele gritou: “Fortuna, você não conseguiu nada, resistindo a todos meus esforços. Eu tenho lutado, até agora, pela liberdade do meu país e não por mim mesmo, não me esforcei tão obstinadamente para ser livre, mas apenas para viver entre os livres. Agora, já que os assuntos da humanidade estão além da esperança, que Catão seja retirado para a segurança.”
  8. Assim dizendo, ele infligiu uma ferida mortal sobre seu corpo. Depois que os médicos o cauterizaram, Catão tinha menos sangue e menos forças, mas não menos coragem; enfurecido agora não só contra César, mas também consigo mesmo, reuniu suas mãos desarmadas contra sua ferida e expulsou, em vez de liberar, aquela nobre alma que tinha sido tão desafiadora de todo poder mundano.
  9. Eu não estou agora a amontoar estas ilustrações com o propósito de exercitar meu espírito, mas com o propósito de encorajá-lo a enfrentar o que é considerado ser o mais terrível. E vou encorajá-lo com mais facilidade, mostrando que não só homens resolutos desprezaram aquele momento em que a alma expira por último, mas que certas pessoas, que eram covardes em outros aspectos, se igualaram à coragem dos mais corajosos. Tomemos, por exemplo, Cipião, o sogro de Cneu Pompeu: ele foi atirado sobre a costa africana por um vento de proa e viu seu navio no poder do inimigo. Ele, portanto, perfurou seu corpo com uma espada; e quando perguntaram onde estava o comandante, ele respondeu: “Tudo está bem com o comandante”.
  10. Estas palavras o elevaram ao nível de seus antepassados e não macularam a glória que o destino deu aos Cipiãos na África. Foi uma grande ação conquistar Cartago, mas uma ação maior vencer a morte. “Tudo está bem com o comandante!” Deveria morrer um general senão, especialmente um dos generais de Catão?
  11. Não remetê-lo-ei à história, nem colecionarei exemplos daqueles homens que ao longo dos séculos desprezaram a morte; pois são muitos. Considere essa nossa época, cuja prostração e o excesso de refinamento provocam queixas; contudo incluirão homens de toda categoria, de toda fortuna na vida, e de todas as épocas, que interromperam suas desgraças com a morte. Acredite em mim, Lucílio; A morte é tão pouco a temer que, através de seus bons ofícios nada é temível.
  12. Portanto, quando seu inimigo ameaçar, ouça despreocupadamente. Embora sua consciência o faça confiante, contudo, já que muitas coisas estão fora de seu controle, ambos esperam o que é absolutamente justo, e se preparam contra o que é totalmente injusto. Lembre-se, no entanto, antes de tudo, de despir as coisas de tudo o que perturba e confunde, e ver o que cada uma é no fundo; então você compreenderá que elas não contêm nada temível, com exceção do medo em si.
  13. O que você vê acontecendo com meninos acontece também a nós mesmos, que somos apenas meninos ligeiramente maiores: quando aqueles que eles amam, com quem eles se associam diariamente, com quem eles brincam, aparecem com máscaras, os meninos ficam assustados sem necessidade. Devemos tirar a máscara, não só dos homens, mas das coisas, e restaurar a cada objeto seu próprio aspecto.
  14. Por que são levantadas diante dos meus olhos espadas, fogueiras e uma multidão de verdugos que andam furiosos em torno de mim? Remova toda essa vã demonstração, por trás da qual você se esconde e se engana! Não é senão a morte, a qual ontem mesmo um servo meu desprezou, por que eclode e alastra diante de mim, com toda essa grande ostentação, o chicote e o pelourinho? Por que preparam esses instrumentos de tortura, um para cada parte do corpo e todas essas outras máquinas inumeráveis para rasgar um homem um bocado de cada vez? Fora com todas essas coisas, que nos deixa entorpecidos de terror! E você, silencie os gemidos, e ignore os gritos amargos da vítima que está na roda de tortura, pois não é outra coisa senão a dor, desprezada por aquele desgraçado atormentado pela gota, tolerada por um dispéptico, suportada corajosamente pela mulher em trabalho de parto. Menospreze você tal ofício! “
  15. Reflita sobre estas palavras que muitas vezes você ouviu e frequentemente proferiu. Além disso, prove pelo resultado se o que você ouviu e proferiu é verdade. Pois há uma acusação muito vergonhosa muitas vezes trazida contra a nossa escola, – que lidamos com as palavras, e não com as ações, da filosofia. Que, você só neste momento aprende que a morte está pendente sobre sua cabeça, neste momento de dor? Você nasceu para esses riscos. Pensemos em tudo o que pode acontecer como algo que acontecerá.
  16. Eu sei que você realmente fez o que eu aconselho a fazer; eu agora lhe advirto que não afogue a sua alma nestas suas pequenas angústias; se você fizer isso, a alma será entorpecida e terá muito pouco vigor disponível quando chegar a hora de levantar-se. Afaste seu pensamento de seu caso para o caso dos homens em geral. Diga a si mesmo que nossos pequenos corpos são mortais e frágeis; A dor pode alcançá-los de outras formas do que pelo poder do mais forte. Nossos próprios prazeres tornam-se tormentos; Banquetes trazem indigestão, Bacanais trazem paralisia dos músculos e marasmo, hábitos libidinosos afetam os pés, as mãos e cada articulação do corpo.
  17. Eu posso tornar-me um homem pobre; eu serei então um entre muitos. Posso ser exilado; considerar-me-ei então nascido no lugar para o qual serei enviado. Eles podem me colocar em cadeias. E então? Estou livre de obrigações agora? Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! “Eu morrerei”, você diz; você queria dizer: “Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte”.
  18. Não sou tão tolo para percorrer neste momento os argumentos que Epicuro caçava e dizer que os terrores deste mundo são inúteis, que Íxion[3] não gira em torno de sua roda, que Sísifo[4] não arca com o peso de sua pedra, que as entranhas de um homem não podem ser restauradas e devoradas todos os dias; ninguém é tão infantil como para temer Cérbero[5], ou as sombras, ou o traje espectral daqueles que são unidos por nada senão por seus ossos expostos. A morte nos aniquila ou nos desnuda. Se nós somos liberados então, lá permanece a melhor parte, depois que a tormenta é retirada; se somos aniquilados, nada permanece; tanto o que é bom quanto o que é mau são igualmente removidos.
  19. Permita-me neste momento citar um versículo seu, primeiro insinuando que, quando você o escreveu, você quis dizer isso para si mesmo, não menos do que para os outros. É ignóbil dizer uma coisa e acreditar em outra; e quão mais ignóbil é escrever uma coisa e acreditar em outra! Lembro-me de um dia que você estava lidando com o conhecido, – que não caímos mortos de repente, mas que avançamos para ela em passos lentos; morremos todos os dias.
  20. Porque cada dia um pouco de nossa vida nos é tirada; mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. Contando até ontem, todo o tempo passado é tempo perdido; O próprio dia que passamos agora é compartilhado entre nós e a morte. Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu; da mesma forma, a hora final em que deixamos de existir não provoca por si só a morte; ela apenas completa o processo de morte. Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.
  21. Ao descrever essa situação, você disse em seu estilo costumeiro (pois você é sempre impressionante, mas nunca tão cáustico como quando está colocando a verdade em palavras apropriadas). Não é única morte que vem; a morte que nos tira tudo é o fim de tudo. Eu prefiro que você leia suas próprias palavras em vez de minha carta; pois então ficará claro para você que esta morte, da qual temos medo, é a última, mas não a única morte.
  22. Vejo o que você está procurando; você está perguntando o que eu empacotei em minha carta, qual dizer estimulante de algum mestre, qual preceito útil. Assim, vou enviar-lhe algo que trata deste assunto em discussão. Epicuro censura aqueles que desejam, tanto quanto aqueles que se esquivam da morte: “É absurdo, diz ele, correr para a morte porque você está cansado da vida, quando é a sua maneira de viver que o fez correr para morte.”
  23. E em outra passagem: “O que é tão absurdo quanto buscar a morte, quando é por medo da morte que você roubou a paz da sua vida?” E você pode acrescentar uma terceira declaração, do mesmo cunho: “Os homens são tão irrefletidos, não, tão loucos, que alguns, por medo da morte, se obrigam a morrer”.
  24. Qualquer dessas ideias que você ponderar, você irá tonificar sua mente para a resistência tanto à morte quanto à vida. Pois precisamos ser admoestados e fortalecidos em ambos os sentidos, não amar ou odiar a vida em demasia; mesmo quando a razão nos aconselha a acabar com ela, tal impulso não deve ser adotado sem reflexão ou precipitadamente.
  25. O homem sóbrio e sábio não deve bater em retirada da vida; ele deve fazer uma saída conveniente. E acima de tudo, ele deve evitar a fraqueza que tomou posse de tantos, – o desejo da morte. Pois assim como há uma tendência irrefletida da mente para com outras coisas, assim, meu caro Lucílio, há uma tendência irrefletida para a morte; Isso muitas vezes se apodera dos homens mais nobres e espirituosos, assim como dos covardes e dos abjetos. Os primeiros desprezam a vida; os últimos acham-na fastidiosa.
  26. Outros também são movidos por uma saciedade de fazer e ver as mesmas coisas, e não tanto por um ódio à vida como por estarem enfastiados com ela. Deslizamos para essa condição, enquanto a própria filosofia nos empurra e dizemos: “Quanto tempo devo suportar as mesmas coisas?” Eu continuarei a acordar e dormir, estar com fome e ser saciado, ter calafrios e transpirar? Não há fim para nada, todas as coisas estão ligadas em uma espécie de círculo, elas fogem e elas são perseguidas. A noite está próxima aos calcanhares do dia, o dia aos calcanhares da noite, o verão termina no outono, o inverno apressa-se depois do outono, e o inverno se suaviza na primavera, toda a natureza assim passa, só para voltar. Eu não vejo nada de novo, mais cedo ou mais tarde, o homem enjoa disto também. ” Há muitos que pensam que viver não é doloroso, mas supérfluo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Públio Rutílio Rufo despertou o ódio dos ordem equestre, à qual pertencia a maior parte dos publicanos. Em 92 a.C., foi acusado de extorsão justamente por estes provincianos que havia tentado proteger e, apesar de a acusação ser amplamente tida como falsa, o júri, composto quase que inteiramente de equestres, o condenou. Rufo aceitou o veredito resignado, um comportamento estoico esperado para um discípulo de Panécio. Cícero, Lívio, Veleio Patérculo e Valério Máximo concordam em que era um homem honrado e íntegro e a sua condenação foi resultado de uma conspiração.

[2] Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola). Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a ameaça etrusca representada por Lar Porsena. Depois de rechaçar um primeiro ataque, o romanos se refugiaram atrás das muralhas da cidade e Porsena iniciou um cerco. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso e disse: “Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!”. Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse libertado.

[3] Íxion foi amarrado a uma roda em chamas. No lugar das cordas, os deuses utilizaram serpentes. Íxion foi condenado a girar eternamente no calor do inferno.

[4] Sísifo foi obrigado a empurrar uma pedra até o topo de uma das montanhas do submundo, sendo que toda vez que estava chegando ao cume, a rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando, assim, o labor de Sísifo uma punição eterna.

[5] Cérbero era um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.

Carta 23: Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

A carta 23 discorre sobre a distinção entre a alegria falsa e a verdadeira. Sêneca começa contando a Lucílio que deseja escrever-lhe sobre as coisas que importam, sem perder tempo falando do tempo ou outras trivialidades das quais as pessoas falam quando não têm nada a dizer. Ele então vai direto ao ponto:

Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. ” (XXIII.1-2)

Essa, é claro, é uma versão da dicotomia estoica do controle: não controlamos os externos, por isso é tolice depositar nossa felicidade neles. A frase de Sêneca, “Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo.“, na verdade destaca a idéia de que encontrar alegria na solidez dos próprios julgamentos, em oposição à aquisição de coisas externas, é um objetivo importante do treinamento estoico e, de fato, o auge a ser alcançado.

Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria.” (XXIII.3)

Normalmente, não precisaríamos aprender a sentir alegria, é uma emoção humana natural. O fato de termos que “aprender” como sentir alegria, entretanto, está perfeitamente de acordo com o princípio estoico de que os sentimentos básicos têm valor neutro e devem ser avaliados por nossa faculdade de julgamento, que tem o poder de dar ou retirar consentimento a tais sentimentos.  Isso parece bastante severo, Sêneca admite que o prazer é uma coisa boa (no sentido de ser um indiferente preferido, obviamente), mas também está advertindo de que o prazer tem uma tendência a assumir o controle, distraindo-nos de atividades mais importantes. O que buscar, exatamente? Vem a resposta:

Você me pergunta qual é o verdadeiro bem, e de onde deriva? Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo dos presentes da fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho. ”(XXIII.7)

O problema é que muitos de nós levam muito tempo para perceber isso, e alguns de nós nunca percebem isso. É por isso que Seneca conclui a carta com estas palavras memoráveis:

Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver… alguns homens deixam de viver antes de começarem. ”(XXIII.11)

(imagem Antoine-François Callet (1741 – 1823) interpretação barroca da  Saturnalia – 1783)


XXIII. Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você acha que eu vou escrever-lhe como a temporada de inverno tem nos tratado com gentileza – uma estação curta e suave – ou que primavera desagradável estamos tendo – tempo frio fora de época – e todos as outras trivialidades que as pessoas escrevem quando estão sem assunto? Não; vou transmitir algo que pode ajudar tanto a você como a mim. E o que deve ser esse “algo”, senão uma exortação à solidez da mente? Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo.
  2. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. O homem que é incitado pela esperança de qualquer coisa, embora a tenha ao alcance, embora esteja a fácil acesso, e embora suas ambições nunca o tenha enganado, é perturbado e inseguro de si mesmo.
  3. Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria. Você acha que agora estou roubando-lhe muitos prazeres quando eu tento acabar com os presentes da fortuna, quando eu aconselho a evitar a esperança, a coisa mais doce que alegra nossos corações? Pelo contrário; eu não desejo nunca que você seja privado de alegria. Eu a teria inata em sua casa; e ela nascerá lá, apenas se estiver dentro de você. Outros objetos de conforto não enchem o peito de um homem; eles apenas suavizam a testa e são inconstantes, a menos que você acredite que aquele que ri tem alegria. A própria alma deve ser feliz e confiante, elevada acima de todas as circunstâncias.
  4. Alegria real, acredite, é uma questão severa. Pode alguém, você acha, menosprezar a morte com um semblante despreocupado, ou com uma expressão “jovial e alegre”, como nossos jovens janotas estão acostumados a dizer? Ou, então, pode-se abrir a porta para a pobreza, ou restringir seus prazeres, ou contemplar a tolerância da dor? Aquele que pondera estas coisas em seu coração está realmente cheio de alegria; mas não é uma alegria bem disposta. É apenas essa alegria, porém, da qual eu gostaria que você se tornasse o dono; pois nunca o falhará quando encontrar sua fonte.
  5. O rendimento das minas medíocres fica na superfície; aquelas que são realmente ricas as veias emboscam-se profundamente, e elas trarão retornos mais generosos para aquele que mergulha continuamente. Assim também são bugigangas que deleitam a multidão comum pois proporcionam apenas um prazer superficial, colocado somente como um revestimento, e o mesmo é com a alegria banhada, a qual falta base real. Mas a alegria de que falo, aquela a que estou me esforçando para conduzi-lo, é algo sólido, revelando-se mais plenamente à medida que você nela penetra.
  6. Portanto, peço-lhe, meu querido Lucílio, faça a única coisa que pode tornar-lhe realmente feliz: despreze todas as coisas que brilham exteriormente e que são oferecidas a você ou a qualquer outro; olhe para o verdadeiro bem, e alegre-se apenas naquilo que vem de seu depósito. E o que quero dizer com “seu depósito”? Eu quero dizer de seu próprio eu, que é a melhor parte de você. O corpo frágil também, embora não consigamos fazer nada sem ele, deve ser considerado apenas necessário, e não tão importante; envolve-nos em prazeres fúteis, de curta duração, e logo a serem lamentados, a menos que sejam controlados por um extremo autocontrole, tais prazeres serão transformados em antagônicos. Isso é o que quero dizer: o prazer, a menos que tenha sido mantido dentro dos limites, tende a nos precipitar no abismo da tristeza. Mas é difícil manter limites dentro daquilo que você acredita ser bom. O verdadeiro bem pode ser cobiçado com segurança.
  7. Você me pergunta qual é o verdadeiro bem, e de onde deriva? Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo dos presentes da fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho. Para os homens que saltam de um propósito para outro, ou não sequer pulam, mas são carregados por uma espécie de aventura, – como podem essas pessoas vacilantes e instáveis possuirem qualquer bem que é fixo e duradouro?
  8. Existem poucos que controlam a si mesmos e seus negócios por um propósito direcionado; O restante não prossegue; eles são simplesmente varridos, como objetos flutuando em um rio. E desses objetos, alguns são retidos por águas lentas e são transportados suavemente; outros são despedaçados por uma corrente mais violenta; alguns, que estão mais próximos da margem, são deixados lá onde a correnteza afrouxa; e outros são levados para o mar pelo avanço da correnteza. Portanto, devemos decidir o que desejamos, e respeitar a decisão.
  9. Agora é a hora de pagar minha dívida. Eu posso dar-lhe um provérbio de seu amigo Epicuro e assim livrar esta carta de sua obrigação. “É incômodo sempre estar começando a vida.” Ou outra, que talvez expressará melhor o significado: “Vivem doentes aqueles que estão sempre começando a viver“.
  10. Você está certo em perguntar por que; o ditado certamente precisa de um comentário. É porque a vida dessas pessoas é sempre incompleta. Mas um homem não pode estar preparado para a aproximação da morte se ele acaba de começar a viver. Precisamos tornar nosso objetivo já ter vivido o suficiente. Ninguém pensa que tenha feito isso, se está sempre na etapa de planejar sua vida.
  11. Você não precisa pensar que há poucos deste tipo; praticamente todos são de tal cunho. Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver. E se isso lhe parece surpreendente, acrescento o que mais o surpreenderá: alguns homens deixam de viver antes de começarem.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 22: Sobre a Futilidade de Meias Medidas

A carta começa com Sêneca se desculpando  por não poder lhe dar conselhos exatos além dos princípios gerais. Com o que Lucílio está preocupado? Aparentemente, com a versão romana antiga de uma corrida de ratos, e como sair dela. A análise de Sêneca começa com as desculpas típicas das pessoas  em busca de riqueza:

A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo.” Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima;” (XXII.4)

Observe um ponto sutil aqui: Sêneca não está dizendo que a prosperidade não vale a pena prosseguir. É, afinal, um preferido indiferente. Lucílio estava preocupado com suas próprias ocupações. É por isso que seu amigo lembra que ele não tem nenhuma obrigação de viver freneticamente.

Sêneca então acrescenta: “Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão na minha recepção? Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância; eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.” (XXII.9)

Este é um belo parágrafo, vale a pena meditar. Comece com o fim: as pessoas amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as próprias dificuldades. De fato, e o que realmente é gratificante na vida é a experiência em si, não tanto o resultado final. Você já esteve em uma caminhada? Claro, há satisfação quando você chega ao cume e pode olhar para a vista. Mas é todo o processo, bolhas e tudo, que vale a pena.

“Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter; você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão.” (XXII.10-11)

Novamente, que bela frase, especialmente no final: a pior escravidão é aquela a quem nos condenamos, mesmo sem perceber.  A carta termina com uma contemplação mais geral da morte, que Sêneca diz ser o teste final de nossa virtude e nossa filosofia:

Mas o que é mais vil do que se preocupar no próprio limiar da paz?” (XXII.16)

No entanto, muitos simplesmente não conseguem, ou talvez não desejem ouvir, a mensagem, e é por isso que Sêneca conclui com esse sentimento: “Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem a viver nobremente, mas é impossível a qualquer homem viver por muito tempo” (XXII.17).

(imagem Boulanger Gustave, o mercado de escravos)


 

XXII. Sobre a Futilidade de Meias Medidas

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você entende, a este ponto, que deve retirar-se daquelas buscas exibicionistas e depravadas; mas você ainda deseja saber como isso pode ser realizado. Há certas coisas que só podem ser apontadas por alguém que está presente. O médico não pode receitar por carta o tempo adequado para comer ou tomar banho; ele deve sentir o pulso. Há um velho ditado sobre gladiadores, – que eles planejam sua luta no ringue; a medida que observam atentamente, algo no olhar do adversário, algum movimento de sua mão, até mesmo algum detalhe de seu corpo passa uma dica.
  2. Podemos formular regras gerais e coloca-las por escrito, quanto ao que geralmente é feito ou deveria ser feito; tal conselho pode ser dado, não somente a nossos amigos ausentes, mas também às gerações seguintes. No que diz respeito, no entanto, a esta segunda questão, – quando ou como o seu plano deve ser realizado, – ninguém vai aconselhar a distância; temos de nos aconselhar na presença da situação real.
  3. Você deve estar não somente presente em corpo, mas vigilante na mente, se você quiser aproveitar de oportunidade fugaz. Consequentemente, olhe ao redor por uma oportunidade; se você a vê, agarre-a, e com toda sua energia e com toda sua força dedique-se a esta tarefa – livre-se daqueles outros afazeres. Agora ouça atentamente o alvitre que vou oferecer; é minha opinião que você deve retirar-se desse tipo de existência, ou então da existência completamente. Mas eu também defendo que você deva tomar um caminho suave, para que você possa desatar, em vez de cortar o nó que você tem se empenhando tanto em amarrar, apenas se não houver outra maneira de soltá-lo, então poderá cortá-lo. Nenhum homem é tão covarde que prefira pendurar-se em suspense para sempre do que soltar-se de uma vez por todas.
  4. Enquanto isso, – e isso é de primeira importância, – não se prejudique; esteja satisfeito com o negócio ao qual você se dedicou, ou, como prefere que as pessoas pensem, o negócio que lhe foi imposto. Não há nenhuma razão pela qual você deva estar lutando para mais; se o fizer, perderá toda a credibilidade, e os homens verão que não foi uma imposição. A explicação usual que os homens oferecem é errada: “Eu fui compelido a fazê-lo, suponho que era contra minha vontade, eu tinha que fazê-lo.” Mas ninguém é obrigado a perseguir a prosperidade à velocidade máxima; significa algo uma parada – mesmo que não ofereça resistência – em vez de pedir ansiosamente por mais favores da fortuna.
  5. Você deveria me expulsar, se eu não só lhe aconselhar, mas não chamar outros para aconselhá-lo – cabeças mais sábias do que as minhas, homens diante dos quais eu vou colocar qualquer problema sobre o qual estou ponderando. Leia a carta de Epicuro sobre esta matéria; é dirigida a Idomeneu. O escritor pede que se apresse o mais rápido que puder, a bater em retirada antes que alguma influência mais forte se apresente e retire dele a liberdade de fugir.
  6. Mas ele também acrescenta que ninguém deve tentar nada, exceto no momento em que possa ser feito de forma adequada e oportuna. Então, quando a ocasião procurada chegar, esteja pronto. Epicuro nos proíbe de cochilar quando estamos planejando fugir; ele nos oferece a esperança de uma liberação das provações mais duras, desde que não tenhamos pressa demais antes do tempo, nem que sejamos muito lentos quando chegar o momento.
  7. Agora, eu suponho, você também está procurando um lema estoico. Não há realmente nenhuma razão pela qual alguém deva criticar essa escola para você em razão de sua dureza; de fato, sua prudência é maior do que sua coragem. Talvez você esteja esperando que a seita diga palavras como estas: “É vil recuar diante de uma tarefa. Lute pelas obrigações que você uma vez aceitou.” Nenhum homem é corajoso e sério se ele evita o perigo, se seu espírito se fortalece com a própria dificuldade de sua incumbência.”
  8. Ser-lhe-ão faladas palavras como estas, se a sua perseverança tiver um objeto que valha a pena, se você não tiver que fazer ou sofrer algo indigno de um bom homem; além disso, um bom homem não se desperdiçará com o trabalho desprezível e desacreditado, nem estará ocupado apenas por estar ocupado. Nem ele, como você imagina, se tornará tão envolvido em esquemas ambiciosos que terá que suportar continuamente o seu fluxo e refluxo. Não, quando ele vê os perigos, incertezas e riscos em que foi anteriormente jogado, ele vai se retirar, não virando as costas para o inimigo, mas retrocedendo pouco a pouco para uma posição segura.
  9. Dos negócios, no entanto, meu caro Lucílio, é fácil escapar, basta você desprezar suas recompensas. Nós somos retidos e impedidos de escapar por pensamentos como estes: “O que, então? Deixarei para trás estas grandes oportunidades? Devo partir no momento da colheita? Não terei escravos ao meu lado? Nenhum empregado para minha prole? Nenhuma multidão na minha recepção? Assim, os homens deixam tais vantagens com relutância; eles amam a recompensa de suas dificuldades, mas amaldiçoam as dificuldades em si.
  10. Os homens se queixam de suas ambições da mesma forma que se queixam de suas amantes; em outras palavras, se você penetrar seus sentimentos reais, você vai encontrar, não ódio, mas implicância. Procure na mente daqueles que lamentam o que já desejaram, que falam em fugir de coisas que não podem deixar de ter; você vai compreender que eles estão se demorando por vontade própria em uma situação que eles declaram achar difícil e miserável de suportar.
  11. É assim, meu caro Lucílio; existem alguns homens que a escravidão mantém presos, mas há muitos mais que se apegam à escravidão. Se, no entanto, você pretende se livrar dessa escravidão; se a liberdade é genuinamente agradável aos seus olhos; e se você procurar apoio para este propósito único, – que você possa ter a fortuna de realizar este propósito sem perpétua irritação, – como pode toda a escola de pensadores estoicos não aprovar a sua conduta? Zenão, Crisipo, e todos de seu grupo dar-lhe-ão conselho que é moderado, honrável e apropriado.
  12. Mas se você se virar e olhar ao redor, a fim de ver o quanto pode levar com você, e quanto dinheiro você pode manter para equipar-se para a vida de lazer, você nunca vai encontrar uma saída. Nenhum homem pode nadar até a terra e levar sua bagagem com ele. Ascenda-se à uma vida superior, com a benevolência dos deuses; mas que não seja benevolência do tipo que os deuses dão aos homens quando com rostos gentis e amáveis outorgam males magníficos, justificando que coisas que irritam e torturam são concedidas em resposta à oração.
  13. Eu estava colocando o selo nesta carta; mas deve ser aberta outra vez, a fim de que possa entregar a você a contribuição usual, levando com ela alguma palavra nobre. E eis uma coisa que me ocorre; eu não sei o que é maior, sua verdade ou sua nobreza de enunciação. “Falado por quem?” Você pergunta. Por Epicuro; pois ainda estou me apropriando dos pertences de outros homens.
  14. As palavras são: “Todo mundo sai da vida como se tivesse acabado de entrar nela.” Tome alguém de sua relação, jovem, velho ou de meia-idade; você verá que todos têm igualmente medo da morte, e são igualmente ignorantes sobre a vida. Ninguém tem nada terminado, porque mantivemos adiando para o futuro todos os nossos empreendimentos. Nenhum pensamento na citação dada acima me agrada mais do que isso, que insulta velhos como sendo bebês.
  15. “Ninguém”, diz ele, “deixa este mundo de maneira diferente daquele que acaba de nascer”. Isso não é verdade; porque somos piores quando morremos do que quando nascemos; mas é nossa culpa, e não a da natureza. A natureza deveria repreender-nos, dizendo: “O que é isso? Eu lhe trouxe ao mundo sem desejos ou medos, livre da superstição, da traição e das outras maldições. Saiam como eram quando entraram!”
  16. Um homem capturou a mensagem da sabedoria, se ele puder morrer despreocupado como era ao nascer; mas a realidade é que estamos todos tremulantes na aproximação do temido final. Nossa coragem nos falha, nossas bochechas empalidecem; nossas lágrimas caem, embora sejam inúteis. Mas o que é mais vil do que se preocupar no próprio limiar da paz?
  17. A razão, entretanto, é que somos despojados de todos os nossos bens, abandonamos a carga de nossa vida e estamos em perigo; pois nenhuma parte da mesma foi acondicionada no porão; tudo foi lançado ao mar e se afastou. Os homens não se importam quão nobremente vivem, mas só por quanto tempo, embora esteja ao alcance de cada homem a viver nobremente, mas é impossível a qualquer homem viver por muito tempo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 21: Sobre o reconhecimento que meus escritos o trarão

A vigésima primeira carta de Seneca é muito peculiar. Enquanto estoicos não procuram fama, Sêneca promete a Lucílio manter seu nome conhecido após sua morte. Ele parece até se gabar do alcance e da importância de seus próprios escritos. Isso faz com que seja uma carta bastante “não-estoica”. (Contudo a promessa foi integralmente cumprida!)

“Eu encontrarei benevolência entre gerações posteriores; posso levar comigo nomes que durarão tanto quanto o meu. (XXI.5)”

Curiosamente, o que é mais valioso desta carta não é ensinado diretamente por Sêneca, mas o repetido de Epicuro: se você busca a felicidade, não tente aumentá-la, mas tente diminuir seu desejo. E é o mesmo com tudo que você luta: não corra atrás, mas controle o seu desejo.

“Se você quiser, enriquecer Pitão, não adicione dinheiro, mas subtraia seus desejos.” Esta ideia é muito clara para necessitar maior explicação, e muito inteligente para precisar de reforço. No entanto, há um ponto sobre o qual eu gostaria de alertá-lo – não considere que esta afirmação se aplica apenas às riquezas; seu valor será o mesmo, não importa como você aplique-a. “Se você quiser fazer Pitão honroso, não adicione às suas honras, mas subtraia de seus desejos”; “Se você desejar que Pitão tenha prazer para sempre, não adicione a seus prazeres, mas subtraia de seus desejos”…  (XXI.7-8)”

Enquanto a escola epicurista e a escola estoica estão em desacordo em muitos pontos, há também um grande terreno comum. Muitas vezes pensamos nos estoicos como seres sem emoção, racionais e nos epicuristas como hedonistas buscadores de prazer. A verdade é, como sempre, tem mais nuances. Talvez seja isso que se possa aprender com essa carta.

(imagem Alexandre, o grande no templo de Jerusalém por Sebastiano Conca)


XXI. Sobre o reconhecimento que meus escritos o trarão

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você conclui que está tendo dificuldades com aqueles homens sobre quem me escreveu? Sua maior dificuldade é com você mesmo; pois você é seu próprio obstáculo. Você não sabe o que quer. Você é melhor em escolher o curso correto do que em segui-lo. Você vê aonde está a verdadeira felicidade, mas não tem coragem de alcançá-la. Deixe-me dizer-lhe o que lhe impede, visto que você não o percebe.
  2. Você acha que este cargo, que você deseja abandonar, é de importância, e depois de decidir por aquele estado ideal de calma que você espera atingir, você é retido pelo brilho de sua vida presente, a qual tem intenção de abandonar, como se estivesse prestes a cair em um estado de trevas e imoralidade. Isso é um erro, Lucílio; passar de sua vida presente para outra é uma promoção. Há a mesma diferença entre essas duas vidas, como existe entre o mero reflexo e a luz real; a última tem uma fonte definida dentro de si, a outra empresta seu brilho; uma é suscitada por uma claridade que vem do exterior, e qualquer um que se coloque entre a fonte e o objeto transforma imediatamente este último em uma densa sombra; mas a outra tem um brilho que vem de dentro. São seus próprios estudos que farão você brilhar e torná-lo eminente, permita-me mencionar o caso de Epicuro.
  3. Ele estava escrevendo a Idomeneu[1] e tentando leva-lo de uma existência exibicionista para uma reputação segura e firme. Idomeneu era naquele tempo um ministro do estado que exercia uma autoridade severa e tinha assuntos importantes à mão. “Se”, disse Epicuro, “você é atraído pela fama, minhas cartas o farão mais famoso do que todas as coisas que você estima e que o fazem estimado.”
  4. Epicuro falou perfidamente? Quem hoje conheceria Idomeneu, se não tivesse o filósofo gravado seu nome nessas suas cartas? Todos os grandes senhores e sátrapas[2], até mesmo o próprio rei, que foi peticionado ao cargo que Idomeneu procurava, estão imersos em profundo esquecimento. As cartas de Cícero evitaram o perecimento do nome de Ático. De nada teria aproveitado Ático ter Agripa como genro, Tibério como marido de sua neta, e um Druso César como bisneto; mesmo estando rodeado desses poderosos nomes nunca se falaria seu nome, se Cícero não o tivesse associando-o a si mesmo.
  5. A força inexpugnável do tempo rolará sobre nós; alguns poucos grandes homens elevarão suas cabeças acima dele, e, embora destinados derradeiramente aos mesmos reinos do silêncio, batalharão contra o esquecimento e manterão seu terreno por muito tempo. O que Epicuro podia prometer a seu amigo, o mesmo lhe prometo, Lucílio. Eu encontrarei benevolência entre gerações posteriores; posso levar comigo nomes que durarão tanto quanto o meu. Nosso poeta Virgílio prometeu um nome eterno a dois heróis, e está mantendo sua promessa:
    Bem-aventurado par de heróis! Se minha canção tem poder, O registro de seus nomes nunca será apagado do livro do Tempo, enquanto aindaA tribo de Enéias manter o Capitólio, Aquela rocha impassível, e a majestade Romana
    O império se manterá.
    Fortunati ambo! Siquid mea carmina possunt,Nulla dies umquam memori vos eximet aevo,
    Dum domus Aeneae Capitoli immobile saxum
    Accolet imperiumque pater Romanus habebit.[3]
  6. Sempre que os homens são empurrados para a frente pela fortuna, sempre que eles se tornam parte integrante da influência de outrem, eles encontram abundante favor, suas casas são providas, apenas enquanto eles próprios mantêm sua posição; quando eles a deixam, eles desaparecem imediatamente da memória dos homens. Mas no caso da habilidade inata, o respeito por ela aumenta, e não só a honra se acumula no próprio homem, mas em tudo o que tem a sua memória é transmitido de um para outro.
  7. A fim de que Idomeneu não seja introduzido gratuitamente na minha carta, ele deve compensar o endividamento de sua própria conta. Foi a ele quem Epicuro dirigiu o conhecido ditado que o incitava a enriquecer Pitão, mas não rico do jeito vulgar e equivocado. “Se você quiser,” disse ele, “enriquecer Pitão, não adicione dinheiro, mas subtraia seus desejos.”
  8. Esta ideia é muito clara para necessitar maior explicação, e muito inteligente para precisar de reforço. No entanto, há um ponto sobre o qual eu gostaria de alertá-lo – não considere que esta afirmação se aplica apenas às riquezas; seu valor será o mesmo, não importa como você aplique-a. “Se você quiser fazer Pitão honroso, não adicione às suas honras, mas subtraia de seus desejos”; “Se você desejar que Pitão tenha prazer para sempre, não adicione a seus prazeres, mas subtraia de seus desejos”; “Se você deseja fazer Pitão um homem velho, enchendo sua vida ao máximo, não adicione a seus anos, mas subtraia de seus desejos.”
  9. Não há razão para que você considere que essas palavras pertencem somente a Epicuro; elas são propriedade pública. Penso que devemos fazer em filosofia como costumam fazer no Senado: quando alguém faz uma moção, da qual eu aprovo até certo ponto, peço-lhe que faça sua moção em duas partes, e eu voto pela parte que eu aprovo. Assim, fico ainda mais contente de repetir as ilustres palavras de Epicuro, para que eu possa provar àqueles que recorrem a ele por um mau motivo, pensando que terão uma tela para seus próprios vícios, que devem viver honrosamente, não importa qual escola sigam.
  10. Vá ao jardim dele e leia o lema esculpido lá:
    “Estranho, aqui você fará bem em se demorar, aqui nosso bem mais elevado é prazer.”Hospes, hic bene manebis, hic summum bonum voluptas est.

    O zelador daquela morada, amável anfitrião, estará pronto para você; ele o receberá com farinha de cevada e também servirá água em abundância, com estas palavras: “Você não está bem entretido?” “Este jardim, diz ele, não aguça o apetite, ele o apaga, nem o deixa mais sedento com cada gole, ele abranda a sede por um remédio natural, um remédio que não exige nenhuma recompensa. Este é o “Prazer” em que eu tenho envelhecido

  11. Ao falar com você, no entanto, eu me refiro a esses desejos que recusam alívio, que carecem de suborno para cessar. Pois em relação aos desejos excepcionais, que podem ser adiados, que podem ser corrigidos e controlados, eu tenho este pensamento para compartilhar com você: um prazer desse tipo é natural, mas não é necessário; não lhe devemos nada; tudo o que é gasto com ele é uma prenda gratuita. A barriga não ouve conselhos; faz exigências, importuna. E mesmo assim, não é uma credora problemática; você pode despacha-la a pequeno custo, desde que somente você lhe de o que você deve, não meramente tudo que você poderia dar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Idomeneu de Lampsaco, foi um amigo e discípulo de Epicuro.

[2] Sátrapa era o nome dado aos governadores das províncias, chamadas satrapias, nos antigos impérios Aquemênida e Sassânida da Pérsia. Cada satrapia era governada por um sátrapa, que era nomeado pelo rei.

[3] Trecho de Eneida de Virgílio.

Carta 18: Sobre Festivais e Jejum

As Cartas oferecem algo além da filosofia: você tem vislumbres ocasionais da vida privada de Sêneca, bem como da vida em Roma no auge do poder imperial. Esse é um ótimo bônus além do conhecimento filosófico!

Esta é uma de minhas cartas prediletas, onde Sêneca dá o conselho de não se abster de se divertir, mas simplesmente não exagerar:

Mostra-se muito mais coragem permanecendo abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando; mas mostra maior autocontrole recusar-se a se afastar e fazer o que a multidão faz, mas de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando um dentre as multidões. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.”(XVIII, §4)

É exatamente assim que me sinto no Carnaval,  no Natal e assim por diante. Claro que queremos nos divertir e compartilhar um momento agradável da vida com nossa família e amigos. Mas nós temos que ficar bêbados ou doentes por comer demais para fazer isso?

Sêneca então aproveita o tópico em questão para apresentar um ponto mais geral sobre um exercício estoico padrão, auto-privação moderada:

 “separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza….só aquele está em afinidade com Deus, que pode desprezar a riqueza.” (XVIII, 12-13)

A carta de Sêneca não apenas critica a decadência moral e o excesso, mas oferece um guia prático para a vida virtuosa. Ela sugere que a verdadeira liberdade e paz interior vêm da capacidade de viver bem com pouco, de controlar as emoções, e de se preparar para as adversidades da vida. Este é um exemplo clássico da filosofia estoica aplicada ao comportamento individual em um contexto social.


XVIII. Sobre Festivais e Jejum

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É quase dezembro e mesmo assim a cidade está neste momento em um mormaço. A licença é dada para a folia geral. Tudo ressoa com poderosos preparativos, como se as Saturnálias74 diferissem do dia-a-dia usual! Tão verdadeiro é que a diferença é nenhuma, que considero correta a observação do homem que disse: “Uma vez dezembro foi um mês, agora é um ano.”

2. Se eu tivesse você comigo, eu ficaria feliz em trocar ideias e descobrir o que você acha que deve ser feito, se não devemos mudar nada em nossa rotina diária, ou se, nem que por compaixão com os costumes populares, nós devamos jantar em uma maneira mais alegre e despir a toga. Tal como é, nós, os romanos, trocamos nossas roupas por causa do feriado,75 embora em tempos antigos isso acontecia somente quando o Estado estava perturbado e caíra em desgraça.

3. Tenho a certeza de que, se eu o conheço bem, desempenhando o papel de um árbitro, teria desejado que não fôssemos nem como a multidão libertina em todos os sentidos, nem diferentes dela em absolutamente todos os aspectos, a menos que, talvez, esta seja apenas a época em que devamos estabelecer lei à alma e pedir que seja a única a abster-se de prazeres quando a multidão inteira se deixa ir em prazeres, pois esta é a prova mais segura que um homem pode obter de sua própria constância, se ele não busca as coisas que são sedutoras e o tentam ao luxo, nem é levado para elas.

4. Mostra-se muito mais coragem permanecendo-se abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando, mas mostra-se maior autocontrole ficar na multidão e recusar-se a fazer o que ela faz, agindo de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando apenas um dentre a multidão. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.

5. Estou tão firmemente decidido, no entanto, a testar a constância de sua mente que, extraindo dos ensinamentos de grandes homens, eu também lhe darei uma lição: reserve um certo número de dias, durante os quais você se contentará com a alimentação mais barata e escassa, com vestes grosseiras e ásperas, dizendo a si mesmo: “É esta a situação que eu temia?

6. É precisamente em tempos despreocupados que a alma deve endurecer-se de antemão para ocasiões de maior estresse e é enquanto a Fortuna é amável que se deve fortalecer contra sua violência. Em dias de paz, o soldado executa manobras, lança obras de terraplenagem sem inimigo à vista e se exercita, a fim de se tornar indiferente à labuta inevitável. Se você não quer que um homem recue quando a crise chegar, treine-o antes que ela chegue. Tal é o curso que esses homens seguiram que, em sua imitação de pobreza, quase todos os meses chegavam quase à miséria, de forma que eles nunca recuarão do que ensaiaram com tanta frequência.

7. Você não precisa supor que eu quero dizer refeições como Tímon,76 ou “cabines de homem pobre”,77 ou qualquer outro dispositivo que luxuosos milionários usam para enganar o tédio de suas vidas. Deixe a cama de palha ser real e o manto, grosseiro; deixe o pão ser duro e sujo. Resistir a tudo isso por três ou quatro dias por vez, às vezes por mais, para que possa ser um teste de si mesmo em vez de um mero passatempo. Então, asseguro-lhe, meu querido Lucílio, que saltará de alegria quando obtiver um bocado de comida e compreenderá que a paz de espírito de um homem não depende da Fortuna, pois mesmo quando irritada ela concede o suficiente para as nossas necessidades.

8. Não há nenhuma razão entretanto para que você pense que está fazendo qualquer coisa grande; porque você estará apenas fazendo o que muitos milhares de escravos e muitos milhares de pobres estão fazendo todos os dias. Mas você pode beneficiar-se disso, pois você não vai fazê-lo sob coação e que será tão fácil para você suportá-lo permanentemente tanto como para fazer experiência de vez em quando. Vamos praticar nossos golpes no “boneco”; nos fazer íntimos com a pobreza, para que a Fortuna não nos pegue despreparados. Seremos ricos com mais conforto se uma vez descobrirmos que a pobreza está longe de ser um fardo.

9. Mesmo Epicuro, o grande mestre do prazer, costumava observar intervalos declarados, durante os quais ele satisfazia a sua fome de maneira sovina, desejava ver se, assim, ficava aquém da plena e completa felicidade e, se fosse assim, em que quantia ficava aquém, e se essa quantidade valia a pena comprar ao preço de um grande esforço.78 De qualquer forma, ele faz tal declaração na conhecida carta escrita a Polieno.79 Na verdade, ele se vangloria de que ele próprio viveu com menos de um asse (centavo),80 mas que Metrodoro, cujo progresso ainda não era tão grande, precisava de um asse inteiro.

10. Você acha que pode haver plenitude em tal alimentação? Sim e há prazer também, não aquele prazer falso e fugaz que precisa de um estímulo de vez em quando, mas um prazer que é firme e seguro. Pois, embora a água, a farinha de cevada e as crostas de pão de cevada não sejam uma dieta alegre, no entanto, é o tipo mais elevado de prazer poder obter alegria deste tipo de alimento e ter reduzido suas necessidades a esse mínimo que nenhuma injustiça da Fortuna pode arrebatar.

11. Mesmo comida das prisões é mais generosa e aqueles que foram condenados à pena de morte não são tão mal alimentados pelo homem que deve executá-los. Portanto, que alma nobre se deve ter, para descer de próprio arbítrio a uma dieta que mesmo aqueles que foram condenados à morte receariam! Isso é de fato prevenir-se das lanças da má Fortuna.

12. Comece então, meu caro Lucílio, a seguir o costume destes homens, e separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza: “Desafie, ó amigo meu, desprezar o ponto de vista da riqueza e molde-se com afinidade com seu Deus.”81

13. Pois só aquele que está em afinidade com Deus, pode desprezar a riqueza. É óbvio que não o proíbo de possuí-la, mas gostaria que chegasse ao ponto em que a possuísse intrepidamente. Isso só pode ser realizado persuadindo-se de que você pode viver feliz tanto sem ela, quanto com ela, mas sempre considerando que as riquezas podem possivelmente lhe iludir.

14. Mas agora devo começar a dobrar a minha carta. “Pague sua dívida primeiro!”, você clama. Aqui está um texto de Epicuro; ele vai pagar a conta: “Raiva desgovernada produz loucura.82 Você não pode evitar saber a verdade dessas palavras, já que você tem não só escravos, mas também inimigos.

15. Mas, de fato, esta emoção resplandece contra todas as espécies de pessoas, brota tanto do amor quanto do ódio e se mostra não menos em assuntos sérios do que em brincadeira e esporte. E não faz diferença a importância da provocação, mas em que tipo de alma ela penetra. Da mesma forma com o fogo: não importa quão grande é a chama, mas sobre o que ela cai. Pois madeiras sólidas têm repelido um fogo muito grande, por outro lado, matéria seca e facilmente inflamável nutre a menor chama em um incêndio. Assim é com a raiva, meu caro Lucílio: o resultado de uma raiva poderosa é a loucura, e, portanto, a raiva deve ser evitada, não apenas para que possamos escapar do excesso, mas para que possamos ter uma mente saudável.83

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


74 Saturnália era um festival da Antiga Roma em honra ao deus Saturno, se estendendo com festividades até 23 de dezembro. O feriado era celebrado com um sacrifício no Templo de Saturno, no Fórum Romano; um banquete público, seguido de troca de presentes em privado; festa contínua e uma atmosfera de carnaval que derrubava as normas sociais romanas. As Saturnálias mesclavam elementos que em parte correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a licenciosidade) se aproximam do Carnaval. Na sátira “A Apocoloquintose do divino Cláudio” Sêneca diz que Cláudio “qual príncipe de Carnaval, celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro” (8.2) e, mais para frente, após sua morte, “eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar sempre!” (12.2).

75 pilleus era usado por escravos recém-libertados e pela população romana em ocasiões festivas. Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra (“agitação”), ou por roupa de luto (“calamidades”). Ver Marcial.

76 Tímon de Fliunte, filho de Timarco, foi um filósofo cético grego, pupilo de Pirro de Élis, célebre autor de poemas satíricos.

77 Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples.

79 Polieno de Lâmpsaco foi anteriormente um matemático da Grécia Antiga e posteriormente um discípulo de Epicuro. Apesar de matemático, diz-se que convenceu Epicuro de que a geometria era um desperdício de tempo.

80 É, como esperado, impossível uma equivalência entre as moedas romanas e moedas atuais. De qualquer modo “um asse” é um valor mínimo, poderíamos expressar por “um tostão” ou “um centavo”.

81 Trecho de Eneida de Virgílio, VIII, 364.

83 Ver tratado “Sobre a Ira”.

Carta 2: Sobre a falta de foco no Estudo

 
 
Sêneca fala sobre a falta de foco, tanto no estudo e leitura como em viagens de forma indiscriminada.  Começa a série de citações de Epicuro, já que tenta trazer Lucílio do epicurismo para o estoicismo: “Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. … Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.
 
(imagem Godfrey Kneller, A Scholar in His Study, about 1668)
 
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II. Sobre a falta de foco na leitura

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Julgando pelo que você me escreve e pelo que eu ouço, eu estou formando uma boa opinião a respeito de seu futuro. Você não corre para cá e para lá e se distrai mudando sua morada; pois tal inquietação é o sinal de um espírito desordenado. A principal indicação, na minha opinião, de uma mente bem ordenada é a habilidade de um homem em permanecer em seu lugar e ficar bem em sua própria companhia.

2. Tenha cuidado, no entanto, porque esta leitura de muitos autores e livros de qualquer espécie tendem a torná-lo dispersivo e instável. Você deve permanecer entre um número limitado de mestres pensadores e digerir suas obras, para que construa ideias firmes em sua mente. Estar em todo lugar significa também estar em lugar nenhum. Quando uma pessoa gasta todo o seu tempo em viagens ao estrangeiro, ela termina por ter muitos conhecidos, mas nenhum amigo. E a mesma coisa deve ser válida para os homens que não procuram o conhecimento íntimo de um único autor, mas visitam todos de uma maneira precipitada e apressada.

3. O alimento não faz bem e não é assimilado pelo corpo se ele deixa o estômago assim que é comido; nada impede uma cura tanto quanto a mudança frequente de medicamento; nenhuma ferida cicatrizará quando for tentado um bálsamo após outro; uma planta que é movida frequentemente nunca pode crescer forte. Não há nada tão eficaz que possa ser útil enquanto está sendo deslocado. E na leitura de muitos livros há distração. Por conseguinte, uma vez que não é possível ler todos os livros que você pode possuir, é suficiente possuir apenas tantos livros quanto você pode ler.

4. “Mas”, você responde, “eu desejo mergulhar primeiramente em um livro e então em outro”. Eu lhe digo que é o sinal de gula brincar com muitos pratos; pois quando são múltiplos e variados, eles enfastiam, mas não alimentam. Então você deve sempre ler autores de qualidade; e quando você anseia por uma mudança, retroceda àqueles que você leu antes. Cada dia adquira algo que o fortaleça contra a pobreza, contra a morte e contra outros infortúnios; e depois de ter examinado muitos pensamentos, selecione um para ser completamente digerido naquele dia.

5. Esta é minha própria prática; das muitas coisas que eu li, eu reivindico uma parte para mim. A reflexão para hoje é uma que eu descobri em Epicuro. Isso porque eu sou acostumado a entrar até mesmo no campo do inimigo[♦], não como um desertor, mas como um batedor.

6. Ele diz: “É um bem desejável conservar a alegria em plena pobreza.” Na verdade, se estiver satisfeito, não é pobreza. Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. De que importa o que um homem tem guardado em seu cofre, ou em seu armazém, quão grandes são os seus rebanhos e quão gordos são os seus dividendos, se ele cobiça a propriedade do seu vizinho e não conta os seus ganhos passados, mas as suas esperanças de ganhos vindouros? Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[♦] Estoicismo em oposição ao Epicurismo.