Carta 28: Sobre viajar como cura para o descontentamento

Na carta 28 Sêneca retoma o ensinamento de Sócrates de que viajar ou mudar de ambiente não é solução para nossos problemas, isso porque:

“Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.” (XXVIII.2)

Porém uma vez que a paz interior é atingida, qualquer lugar ou ambiente será agradável:

“você não ficara surpreso em não obter benefício dos cenários novos aos quais você busca através da exaustão das cenas antigas. Pois o primeiro lhe teria agradado de toda forma, se você o tivesse entendido como sendo inteiramente seu. Como é, no entanto, você não está viajando; você está à deriva e sendo conduzido, apenas trocando um lugar por outro, embora o que você procura, – viver bem, – pode ser encontrado em toda parte”. (XXVIII.6)

Na conclusão Sêneca diz “Mas o que importa quantos mestres um homem tem? “Escravidão” não tem plural; e quem a despreza é livre“.

(imagem Mercúrio e Argos por Velazquez, Mercúrio era o deus protetor dos viajantes)


XXVIII. Sobre Viajar como cura para o descontentamento

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você acha que só você teve essa experiência? Você está surpreso, como se fosse uma novidade, que depois de tão longa viagem e tantas mudanças de cena você não tenha sido capaz de se livrar da tristeza e do peso de sua mente? Você precisa de uma mudança de alma, em vez de uma mudança de clima. Embora você possa atravessar vastos espaços de mar, e embora, como nosso Virgílio observa:  As terras e as cidades são deixadas para trás, Suas falhas o seguirão a qualquer lugar que você viaje. [1]
  2. Sócrates fez a mesma observação a alguém que se queixou; ele disse: “Por que você se admira que viajar o globo não o ajuda, visto que você sempre se leva consigo? A razão que o colocou a vagar está sempre em seu calcanhar.” Que prazer há em ver novas terras? Ou na inspeção de cidades e pontos de interesse? Toda a sua agitação é inútil. Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.
  3. Reflita que seu comportamento presente é como o da profetisa que Virgílio descreve: ela está excitada e incitada pela fúria e contém dentro de si muita inspiração que não é sua: A sacerdotisa entra em frenesi, se por acaso pode agitar o grande deus do seu coração.[2]
  4. Você perambula para cá e para acolá, para livrar-se do fardo que pesa sobre você, embora este se torne mais problemático por causa de sua própria inquietação, assim como em um navio a carga quando estacionária não traz nenhum problema, mas quando se desloca para os lados, faz o navio inclinar-se lateralmente na direção onde se estabeleceu. Qualquer coisa que você faz diz respeito a você, e você se machuca por sua própria agitação; porque você está agitando um homem doente.
  5. Uma vez esse problema removido, toda mudança de cena se tornará agradável; embora você possa ser levado às extremidades da terra, a qualquer canto de uma terra selvagem que você possa se encontrar, esse lugar, por mais difícil que seja, será uma morada hospitaleira. A pessoa que você é importa mais do que o lugar para o qual você vai; por isso não devemos fazer da mente um fiador para um só lugar. Viva essa crença: “Não nasci para nenhum canto do universo, todo este mundo é meu lar”.
  6. Se você entender este fato claramente, você não ficara surpreso em não obter benefício dos cenários novos aos quais você busca através da exaustão das cenas antigas. Pois o primeiro lhe teria agradado de toda forma, se você o tivesse entendido como sendo inteiramente seu. Como é, no entanto, você não está viajando; você está à deriva e sendo conduzido, apenas trocando um lugar por outro, embora o que você procura, – viver bem, – pode ser encontrado em toda parte.
  7. Pode existir algum lugar tão cheio de confusão como o Fórum? No entanto, você pode viver em silêncio até mesmo lá, se necessário. Naturalmente, se alguém tivesse permissão para fazer os próprios arranjos, deveria fugir da própria vista e vizinhança do Fórum. Pois, assim como os lugares pestilentos atacam até mesmo a constituição mais forte, há também alguns lugares que são prejudiciais para uma mente saudável que ainda não é bastante sólida, pois está se recuperando de sua doença.
  8. Eu discordo daqueles que se atiram nas ondas e, dando boas-vindas a uma existência tempestuosa, lutam diariamente contra os problemas da vida. O sábio suportará tudo isso, mas não o escolherá; ele prefere estar em paz em vez de em guerra. É muito pouco ter eliminado suas próprias falhas, se você deve brigar com as dos outros.
  9. Dizem: “Havia trinta tiranos em torno de Sócrates, e, contudo, eles não podiam quebrar seu espírito”; Mas o que importa quantos mestres um homem tem? “Escravidão” não tem plural; e quem a despreza é livre, – não importa quão grande seja a multidão de senhores que enfrente.
  10. É hora de parar, mas não antes de eu ter pago minha obrigação. “O conhecimento do pecado é o começo da salvação”. Este ditado de Epicuro parece-me ser um nobre. Pois quem não sabe que pecou, não deseja correção; você deve descobrir-se em erro antes que você possa se reformar.
  11. Alguns se vangloriam de suas falhas. Você acha que um homem tem alguma intenção de consertar seus caminhos se considera seus vícios como se virtudes fossem? Portanto, na medida do possível, prove-se culpado, procure acusações contra si mesmo; desempenhe o papel, primeiro de acusador, depois de juiz, por último de executor. Às vezes seja duro com você mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Eneida de Virgílio.
Terraeque urbesque recedant, sequentur te, quocumque perveneris

[2] Trecho de Eneida de Virgílio.
Bacchatur vates, magnum si pectore possit Excussisse deum.

Carta 27: Sobre o Bem que Permanece

Na carta 27 Sêneca fala dos problemas que prazeres passageiros causam e da incômoda culpa que deixam muito depois do prazer acabar.

“Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. ” (XXVII.2)

Sempre atual, Sêneca fala do pouco valor dado a sabedoria: “Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.” (XXVII.8)

Conclui a carta com mais um dito de Epicuro: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” (XXVII.9)

(Imagem, Denário de prata de Metelo Cipião, exemplo de conduta estoica segundo Sêneca)


XXVII. Sobre o Bem que permanece

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. “O que?”, diz você, “Está me dando conselhos?” De fato, você já se aconselhou, já corrigiu suas próprias falhas? É esta a razão por que você tem tempo livre para reformar outros homens? Não, não sou desavergonhado ao ponto de pretender curar meus semelhantes quando estou doente. Estou, no entanto, discutindo com você problemas que afetam a nos dois, e compartilhando o remédio com você, como se estivéssemos padecendo no mesmo hospital. Ouça-me, portanto, como faria se eu estivesse falando sozinho. Eu estou confessando a você meus pensamentos mais íntimos, e estou discutindo comigo mesmo, usando-o apenas como pretexto.
  2. Eu continuo gritando para mim mesmo: “Conte seus anos, e você terá vergonha de desejar e perseguir as mesmas coisas que você desejou em seus dias de juventude. Certifique-se desta única coisa antes de morrer, – deixe suas falhas perecerem antes. Afaste-se daqueles prazeres desordenados, que devem ser pagos regiamente, não são apenas os que estão para vir que me prejudicam, mas também aqueles que vieram e foram. Assim como os crimes, mesmo que não tenham sido detectados ao serem cometidos, não permitem que a ansiedade acabe com eles, da mesma forma são os prazeres mundanos, o arrependimento permanece mesmo depois que os prazeres terminaram. Eles não são substanciais, eles não são confiáveis, mesmo se eles não nos prejudicam, eles são passageiros.
  3. Procure ao invés bens que permanecem. Mas não há tal bem, a não ser aquele descoberto pela alma por si mesma: só a virtude proporciona uma alegria eterna e tranquilizadora, mesmo que surja algum obstáculo, mas como uma nuvem passageira, que se interpõe frente ao sol, mas nunca prevalece contra ele. “
  4. Quando será sua vez de alcançar esta alegria? Até agora, você realmente não foi lerdo, mas você deve acelerar o seu ritmo. Resta muito trabalho; para enfrentá-lo, você deve usar todas suas horas de vigília, e todos seus esforços, se você deseja o resultado realizado. Este assunto não pode ser delegado a outra pessoa.
  5. O outro tipo de atividade intelectual admite assistência externa. Em nossa época havia um certo homem rico chamado Calvísio Sabino; ele tinha a conta bancária e o cérebro de um escravo liberto. Nunca vi um homem cuja boa fortuna tenha sido uma ofensa maior a sua propriedade. Sua memória era tão falha que ele às vezes esqueceria o nome de Ulisses, ou Aquiles, ou Príamo, nomes que conhecemos tão bem quanto conhecemos os de nossos próprios assistentes. Nenhum idoso senil, que não pode dar a homens seus nomes próprios, mas é compelido a inventar nomes para eles, – nenhum homem, eu digo, clama os nomes dos membros de sua tribo de forma tão atroz como Sabino costumava chamar os heróis de Troia e Aqueus. Mas, no entanto, ele desejava parecer erudito.
  6. Assim ele inventou este atalho para aprender: ele pagou preços fabulosos por escravos, – um para conhece Homero de cor e outro para Hesíodo; ele também delegou um escravo especial para cada um dos nove poetas líricos[1]. Você não precisa se admirar que ele tenha pago altos preços por esses escravos; se ele não os encontrava prontos à mão ele encomendava um a ser feito sob medida. Depois de recolher este séquito, ele começou a aborrecer seus convidados; Ele mantinha esses ajudantes ao pé de seu sofá, e pedia de vez em quando os versos para que ele os repetisse, que, muitas vezes, eram quebrados no meio de uma palavra.
  7. Satelio Quadrato, um instigador e, consequentemente, um puxa-saco de milionários fúteis, e também (pois esta qualidade vai com as outras duas) um zombador deles, sugeriu a Sabino que ele deveria ter filólogos para reunir os pedaços. Sabino observou que cada escravo havia lhe custado cem mil sestércios; Satelio respondeu: “Você poderia ter comprado tantas quantas estantes de livros por uma quantia menor.” Mas Sabino sustentou que o que qualquer membro de sua casa sabe, ele mesmo também sabe.
  8. Este mesmo Satelio começou a aconselhar Sabino a tomar lições de luta, mesmo doentio, pálido e magro como era, Sabino respondeu: “Como posso? Eu mal posso ficar vivo agora.” – “Não diga isso, eu lhe suplico” – replicou o outro -, “considere quantos escravos perfeitamente saudáveis você tem!” Nenhum homem é capaz de emprestar ou comprar uma mente sã; na verdade, como me parece, mesmo que mentes sãs estivessem à venda, não encontrariam compradores. No entanto, as mentes depravadas são compradas e vendidas todos os dias.
  9. Mas deixe-me pagar a minha dívida e dizer adeus: “A riqueza real é a pobreza ajustada à lei da natureza.” Epicuro repete este dizer de várias maneiras e contextos; mas nunca pode ser repetido em excesso, já que nunca é compreendido muito bem. Pois para algumas pessoas o remédio deve ser meramente prescrito; no caso de outras, deve ser forçado goela abaixo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Troia e Aqueus: a Ilíada era a leitura de matéria-prima dos estudantes romanos de elite, mas Calvísio, nem conseguia lembrar seus heróis homéricos. (Os assistentes pessoais atendiam os políticos fornecendo os nomes de quem eles encontravam no fórum.) Hesíodo era muito favorecido por suas máximas morais, mas os nove poetas líricos são muito menos propensos a fazer parte do repertório romano e a compra de nove escravos, um por cada poeta, certamente foi adicionado por Sêneca para animar a história.

Carta 26: Sobre a velhice e a morte

Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la.

Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de suicídio imposta por Nero. Ainda assim, ele é grato por sua mente ainda estar afiada, mesmo que seu corpo estivesse em decadência, como convém a um estoico que dá valor à sua faculdade mental e considera o corpo um indiferente preferido.

você diz,  é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.”(XXVI.4)

Uma morte rápida e súbita é fácil e preferível, mas a realidade é que a maioria de nós vai decair lentamente, perdendo tanto a nossa força física quanto a mental no processo. Esse é o difícil desafio de se aproximar do fim, e é por isso que a forma como nos aproximamos da morte é o teste final de nosso caráter. Como vamos reagir à nossa crescente dependência dos outros? É melhor ficar por aqui até o último minuto, ou caminhar pela porta aberta, como Epiteto diz, enquanto ainda estamos no controle? (

É uma boa prática perguntar a nós mesmos a mesma questão, não apenas sobre a morte, mas sobre como nos comportamos todos os dias: estamos realmente tentando, ainda que imperfeitamente, viver a vida estoica, ou é apenas conversa? Sêneca atribui valor limitado ao aprendizado teórico. A prova está na prática:

Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.”(XXVI.7)

Este é um ponto crucial, e tão comumente subestimado. Muitas vezes falamos de alguém morrendo “prematuramente”. Mas nós baseamos isso em expectativas estatísticas. Do ponto de vista do Logos, a teia cósmica de causa e efeito, não existe algo muito cedo ou muito tarde. As coisas acontecem quando acontecem. E esse conhecimento teórico tem o potencial de ser de enorme interesse prático, não perca tempo, pela simples razão de que você não saber quanto tempo tem no banco.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


XXVI. Sobre a velhice e a morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Eu estava ultimamente dizendo que estava à vista da velhice[1]. Agora estou com medo de ter deixado a velhice atrás de mim. Pois alguma outra palavra se aplicaria agora a meus anos, ou de qualquer maneira a meu corpo; uma vez que a velhice significa um tempo da vida que se está cansado, em vez de esmagado. Você pode me classificar na classe desgastada, – daqueles que estão chegando ao fim.
  2. No entanto, eu agradeço a mim mesmo, com você como testemunha; porque eu sinto que a idade não causou nenhum dano a minha mente, embora eu sinta seus efeitos em minha constituição. Somente meus vícios, e as ajudas exteriores a esses vícios, chegaram à senilidade; minha mente é forte e se regozija por ter apenas ligeira conexão com o corpo. Ela deixou de lado a maior parte de sua carga. Está alerta; ela rejeita o tema da velhice; declara que a velhice é seu tempo de florescimento.
  3. Deixe-me levá-la em consideração, e deixá-la aproveitar as vantagens que possui. A mente me pede que pense um pouco e considere o quanto dessa paz de espírito e moderação de caráter devo à sabedoria e quanto a meu tempo de vida; me convida a distinguir cuidadosamente o que não posso fazer e o que não quero fazer… pois por que alguém deve queixar-se ou considerar uma desvantagem, se as forças que deveriam chegar a um fim falharam?
  4. “Mas,” você diz, “é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.” Mas há algum melhor fim para tudo isso do que planar para seu próprio refúgio, quando a natureza se vai? Não que haja algo doloroso em um choque e uma partida repentina da existência; é apenas porque este outro modo de partida é fácil, – uma retirada gradual. Eu, de qualquer modo, como se o teste estivesse à mão e chegasse o dia de pronunciar sua decisão sobre todos os anos da minha vida, vigio-me e comungo assim comigo:
  5. “A demonstração que fizemos até o presente, em palavra ou em ação, não vale nada. Tudo isso é apenas uma promessa insignificante e enganosa de nosso espírito, e está envolto em muito charlatanismo. Vou deixar a cargo da morte determinar o progresso que fiz. Portanto, sem timidez, estou preparando para o dia em que, deixando de lado todo o artifício de palco e maquiagem de ator, eu deverei me julgar, – se estou meramente declamando sentimentos corajosos, ou se realmente os sinto, se todas as ameaças arrojadas que eu proferi contra a fortuna eram fingimento e farsa.
  6. Deixe de lado a opinião do mundo, ela é sempre vacilante e sempre parcial. Deixe de lado os estudos que você tem perseguido durante toda a sua vida, a morte entregará o julgamento final em seu caso. Isto é o que quero dizer: seus debates e palestras, seus axiomas recolhidos a partir dos ensinamentos dos sábios, sua conversa culta, – tudo isso não oferece nenhuma prova da verdadeira força da sua alma. O homem mais tímido pode fazer um discurso ousado. O que você fez no passado será evidente apenas no momento em que você expirar seu último suspiro. Eu aceito as condições; eu não me acovardo frente a decisão. “
  7. Isto é o que eu digo a mim mesmo, mas gostaria que você pensasse que eu o digo a você também. Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.
  8. Eu estava apenas pretendendo parar, e minha mão estava se preparando para a frase de encerramento; mas os ritos ainda devem ser realizados e as despesas de viagem para a carta desembolsadas. E apenas suponha que eu não direi de quem eu pretendo emprestar a soma necessária; você sabe de cujos cofres dependo. Espere só mais um momento, e eu pagarei de minha conta; Entretanto, Epicuro me favorece com estas palavras: “Pense na morte”, ou melhor, se preferir a frase, pense na “migração para o céu”.
  9. O significado é claro, – é uma coisa maravilhosa aprender minuciosamente como morrer. Você pode considerar que é supérfluo aprender um texto que pode ser usado apenas uma vez; mas essa é exatamente a razão pela qual devemos pensar em uma coisa. Quando nunca podemos provar se realmente sabemos alguma coisa, devemos sempre estar aprendendo.
  10. “Pense na morte”. Ao dizer isso, ele nos pede para pensar na liberdade. Aquele que aprendeu a morrer desaprendeu a escravidão; está acima de qualquer poder externo, ou, pelo menos, está além disso. Que terrores tem prisões e correntes e grades para ele? A sua saída é clara. Existe apenas uma cadeia que nos liga à vida, e essa é o amor pela vida. A corrente não pode ser desprezada, mas pode ser enganada, de modo que, quando a necessidade exigir, nada pode retardar ou impedir que estejamos prontos para fazer de uma só vez o que em algum momento seremos obrigados a fazer.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Veja a carta XII. Sêneca tinha por este tempo, pelo menos, sessenta e cinco anos. Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de Nero para cometer suicídio.

Carta 25: Sobre a Mudança

Na Carta 25 Sêneca fala sobre  mudança e do árduo trabalho que esta sempre requer. Discute com  Lucílio sobre dois amigos em comum – um velho, um jovem, ambos precisando de alguma correção para colocar suas vidas de volta nos trilhos.   Podemos ou devemos tentar mudar outra pessoa?

Sêneca diz que depende – o contexto é tudo e a mesma abordagem não vai funcionar em todo os casos. Então, quais são os contextos mais importantes a considerar, e quando é o momento certo para forçar uma mudança ao invés de esperar?

Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a não ter fé”. (XXV.2)

Essa é uma daquelas frases que descrevem ou melhor moldam o estoicismo e seu modo de viver. É mais importante ter fé e esforçar-se em direção ao seu objetivo do que realmente alcançá-lo.

No texto Sêneca retorna ao tema de se afastar da multidão das cartas 7 e 11 onde ele menciona que é ruim estar sozinho se você não for virtuoso o suficiente. Nesta carta ele esclarece as coisas.

O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão.” Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontrolado; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um patife. (XXV.7)

(imagem,  Muro da Reformação, Genebra)


XXV. Sobre a Mudança

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Em relação a estes dois amigos nossos, devemos avançar em linhas diferentes; as falhas de um devem ser corrigidas, as do outro devem ser esmagadas. Tomarei toda liberdade; porque eu não amo uma pessoa se eu não estou disposto a ferir seus sentimentos. “O quê”, você diz, “você espera manter alguém de quarenta anos sob sua tutela? Considere sua idade, quão calejado ele é agora, impossível de ser modificado!
  2. Tal homem não pode ser remodelado, somente mentes jovens são moldadas. Não sei se farei progressos; mas prefiro não ter êxito a não ter fé. Você não precisa se desesperar a curar homens doentes, mesmo quando a doença é crônica, se você apenas manter-se firme contra o excesso e forçá-los a fazer e submeter-se a coisas contra a vontade deles. Quanto ao nosso outro amigo, também não estou suficientemente confiante, exceto pelo fato de que ele ainda tem um sentimento de vergonha suficiente para ruborizar-se por seus pecados. Essa modéstia deve ser fomentada; enquanto persistir em sua alma, haverá espaço para a esperança. Mas quanto a este seu veterano, acho que devemos tratar com mais cuidado com ele, para que ele não fique desesperado.
  3. Não há melhor momento para se aproximar dele do que agora, quando ele tem um intervalo de descanso e parece que corrigiu suas falhas. Outros foram enganados por essa intermitência virtuosa de sua parte, mas ele não me engana. Tenho a certeza de que essas falhas voltarão, por assim dizer, com juros compostos, pois estou certo de que estão em suspensão, mas não ausentes. Vou dedicar algum tempo ao assunto e tentar ver se algo pode ou não ser feito.
  4. Mas você, como de fato está fazendo, mostra que é corajoso; alivia sua bagagem para a marcha. Nenhuma de nossas posses é essencial. Voltemos à lei da natureza; de acordo com ela, as riquezas são disponibilizadas para nós. As coisas que realmente precisamos são gratuitas para todos, ou então baratas; a natureza almeja apenas pão e água. Ninguém é pobre de acordo com este padrão; quando um homem limita seus desejos dentro destas fronteiras, pode desafiar a felicidade do próprio Júpiter, como diz Epicuro. Devo inserir nesta carta um ou mais de seus ditos:
  5. “Faça tudo como se Epicuro estivesse observando você.” Não há nenhuma dúvida real de que é bom para alguém ter designado um guardião sobre si mesmo, e ter alguém que você pode olhar para cima, alguém que você possa considerar como uma testemunha de seus pensamentos. É, de fato, mais nobre viver como você viveria sob os olhos de algum homem bom, sempre ao seu lado; mas, no entanto, estou satisfeito se você apenas agir, em tudo o que fizer, como você agiria se alguém tudo estivesse olhando; porque a solidão nos induz a todos os tipos de mal.
  6. E quando você tiver progredido tanto que tenha respeito por si mesmo, você pode dispensar seu assistente; mas até então, defina como um guardião sobre si mesmo a autoridade de algum homem, seja o grande Catão ou Cipião, ou Lélio, ou qualquer homem em cuja presença até mesmo patifes desgraçados reprimiriam seus maus impulsos. Enquanto isso, você deve se empenhar em fazer de si mesmo o tipo de pessoa em cuja companhia você não ousaria pecar. Quando este objetivo estiver cumprido e você começar a nutrir por si próprio alguma estima, gradualmente permitirei que você faça o que Epicuro, em outra passagem, sugere: “O momento em que você mais deveria se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar entre a multidão.”
  7. Você deve se fazer de um naipe diferente da multidão. Portanto, embora ainda não seja seguro retirar-se para a solidão, procure certos indivíduos; pois qualquer um é melhor em companhia de alguém, – não importa quem, – do que só em sua própria companhia. “O momento em que você deve antes de mais nada se retirar em si mesmo é quando você é forçado a estar em multidão.” Sim, desde que você seja um homem bom, tranquilo e autocontido; caso contrário, é melhor você se retirar em uma multidão a fim de ficar longe de si mesmo. Sozinho, você está muito perto de um patife.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

 

Carta 24: Sobre o desprezo pela morte

6 de junho comemora-se o Dia-D quando mais de 150.000 soldados das forças aliadas desembarcaram na Normandia para enfrentar os nazistas, sofrendo baixas superiores  a 4000 homens.

A carta 24 de Sêneca aborda esse tema.  É um grande auxilio para as pessoas que precisam fazer o que deve ser feito, mesmo sob risco pessoal.

Sêneca aponta algo paradoxal no início de sua carta: Sêneca: “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro“(XXIV.1)

Mas o futuro nunca chega e, portanto, você nunca pode ser totalmente infeliz.  Não devemos nos aborrecer com problemas futuros, tornando-os um problema do presente. Não se preocupe com as coisas antes do tempo.

Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! ‘Eu morrerei’, você diz; você queria dizer: ‘Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte’“(XXIV.17).

Esta é uma linha interessante, porque se olhamos para a morte a partir deste ponto de vista, não parece tão ruim, você só tem que começar a se preocupar com a morte se você pensar sobre o que vai acontecer depois.

(foto: desembarque de  tropas da companhia E na praia de Omaha.  Durante o desembarque inicial, dois terços da companhia foram mortos.  foto por Robert F. Sargent)


 

XXIV. Sobre o desprezo pela morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você escreve-me que você está ansioso pelo resultado de um processo judicial, com o qual um oponente colérico está lhe ameaçando; e você espera que eu lhe aconselhe a vislumbrar um desenlace feliz, e a descansar em meio aos encantos da esperança. Por que seria necessário conjurar problemas, que devem ser resolvidos de uma vez tão logo que cheguem, ou antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro.
  2. Mas conduzi-lo-ei à paz de espírito por uma outra rota: se você desencorajar toda a preocupação, supor que o que você teme poder acontecer certamente acontecerá; Qualquer que seja o problema, meça-o em sua própria mente, e estime a quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é insignificante ou de curta duração.
  3. E você não precisa gastar muito tempo em coletar ilustrações que o fortalecerão; cada época as produziu. Deixe seus pensamentos viajar em qualquer época da história romana ou estrangeira, e haverá múltiplos exemplos notáveis de feitos heróicos ou de intensa diligência. Se perder este julgamento, pode acontecer algo mais grave do que você ser enviado ao exílio ou levado à prisão? Existe um pior destino que qualquer homem possa temer do que ser queimado ou ser morto? Nomeie essas punições uma a uma, e mencione os homens que as desprezaram; não é preciso saia à caça por eles, – é simplesmente uma questão de coletânea.
  4. Sentença de condenação foi suportada por Rutílio[1] como se a injustiça da decisão fosse a única coisa que o aborrecesse. O exílio foi suportado por Metelo com coragem, por Rutílio até mesmo com alegria; pois o primeiro só consentiu em voltar porque seu país o chamava; este se recusou a voltar quando Sula o convocou, – e ninguém naqueles dias disse “Não” a Sula! Sócrates na prisão discursou e recusou-se a fugir quando certas pessoas lhe deram a oportunidade; ele permaneceu lá, a fim de libertar a humanidade do medo das duas coisas mais graves, a morte e prisão.
  5. Múcio[2] colocou a mão no fogo. É doloroso ser queimado; mas quão mais doloroso é infligir tal sofrimento a si mesmo! Aqui estava um homem sem instrução, não preparado para enfrentar a morte e a dor por qualquer palavra de sabedoria, e equipado apenas com a coragem de um soldado, que se puniu por sua ousadia infrutífera; Ele ficou de pé e observou sua própria mão direita caindo aos poucos sobre o braseiro do inimigo, nem retirou o membro dissolvente, com os seus ossos descobertos, até que seu inimigo removeu o fogo. Ele poderia ter conseguido algo mais bem-sucedido naquele campo, mas nunca algo mais corajoso. Veja quão mais corajoso é um homem valente ao se assenhorar do perigo do que um homem cruel é para infringi-lo: Porsena estava mais pronto para perdoar Múcio por querer matá-lo do que Múcio para se perdoar por não ter matado Porsena!
  6. “Oh”, diz você, “essas histórias foram repetidas à exaustão em todas as escolas, muito em breve, quando você chegar ao tema “Desprezo pela Morte”, você vai me falar sobre Catão. Mas por que não lhe contar sobre Catão, como ele leu o livro de Platão naquela última noite gloriosa, com uma espada pousada sob o travesseiro? Ele tinha provido essas duas condições para seus últimos momentos, – primeiro, que ele poderia ter a vontade de morrer, e segundo, que ele poderia ter os meios. Assim ele regularizou seus negócios – assim como se pode ordenar o que está arruinado e perto de seu fim – e pensou que deveria fazer para que ninguém tivesse o poder de mata-lo ou a boa fortuna de salva-lo.
  7. Desembaiando a espada, que tinha mantido sem mancha mesmo após todo derramamento de sangue, ele gritou: “Fortuna, você não conseguiu nada, resistindo a todos meus esforços. Eu tenho lutado, até agora, pela liberdade do meu país e não por mim mesmo, não me esforcei tão obstinadamente para ser livre, mas apenas para viver entre os livres. Agora, já que os assuntos da humanidade estão além da esperança, que Catão seja retirado para a segurança.”
  8. Assim dizendo, ele infligiu uma ferida mortal sobre seu corpo. Depois que os médicos o cauterizaram, Catão tinha menos sangue e menos forças, mas não menos coragem; enfurecido agora não só contra César, mas também consigo mesmo, reuniu suas mãos desarmadas contra sua ferida e expulsou, em vez de liberar, aquela nobre alma que tinha sido tão desafiadora de todo poder mundano.
  9. Eu não estou agora a amontoar estas ilustrações com o propósito de exercitar meu espírito, mas com o propósito de encorajá-lo a enfrentar o que é considerado ser o mais terrível. E vou encorajá-lo com mais facilidade, mostrando que não só homens resolutos desprezaram aquele momento em que a alma expira por último, mas que certas pessoas, que eram covardes em outros aspectos, se igualaram à coragem dos mais corajosos. Tomemos, por exemplo, Cipião, o sogro de Cneu Pompeu: ele foi atirado sobre a costa africana por um vento de proa e viu seu navio no poder do inimigo. Ele, portanto, perfurou seu corpo com uma espada; e quando perguntaram onde estava o comandante, ele respondeu: “Tudo está bem com o comandante”.
  10. Estas palavras o elevaram ao nível de seus antepassados e não macularam a glória que o destino deu aos Cipiãos na África. Foi uma grande ação conquistar Cartago, mas uma ação maior vencer a morte. “Tudo está bem com o comandante!” Deveria morrer um general senão, especialmente um dos generais de Catão?
  11. Não remetê-lo-ei à história, nem colecionarei exemplos daqueles homens que ao longo dos séculos desprezaram a morte; pois são muitos. Considere essa nossa época, cuja prostração e o excesso de refinamento provocam queixas; contudo incluirão homens de toda categoria, de toda fortuna na vida, e de todas as épocas, que interromperam suas desgraças com a morte. Acredite em mim, Lucílio; A morte é tão pouco a temer que, através de seus bons ofícios nada é temível.
  12. Portanto, quando seu inimigo ameaçar, ouça despreocupadamente. Embora sua consciência o faça confiante, contudo, já que muitas coisas estão fora de seu controle, ambos esperam o que é absolutamente justo, e se preparam contra o que é totalmente injusto. Lembre-se, no entanto, antes de tudo, de despir as coisas de tudo o que perturba e confunde, e ver o que cada uma é no fundo; então você compreenderá que elas não contêm nada temível, com exceção do medo em si.
  13. O que você vê acontecendo com meninos acontece também a nós mesmos, que somos apenas meninos ligeiramente maiores: quando aqueles que eles amam, com quem eles se associam diariamente, com quem eles brincam, aparecem com máscaras, os meninos ficam assustados sem necessidade. Devemos tirar a máscara, não só dos homens, mas das coisas, e restaurar a cada objeto seu próprio aspecto.
  14. Por que são levantadas diante dos meus olhos espadas, fogueiras e uma multidão de verdugos que andam furiosos em torno de mim? Remova toda essa vã demonstração, por trás da qual você se esconde e se engana! Não é senão a morte, a qual ontem mesmo um servo meu desprezou, por que eclode e alastra diante de mim, com toda essa grande ostentação, o chicote e o pelourinho? Por que preparam esses instrumentos de tortura, um para cada parte do corpo e todas essas outras máquinas inumeráveis para rasgar um homem um bocado de cada vez? Fora com todas essas coisas, que nos deixa entorpecidos de terror! E você, silencie os gemidos, e ignore os gritos amargos da vítima que está na roda de tortura, pois não é outra coisa senão a dor, desprezada por aquele desgraçado atormentado pela gota, tolerada por um dispéptico, suportada corajosamente pela mulher em trabalho de parto. Menospreze você tal ofício! “
  15. Reflita sobre estas palavras que muitas vezes você ouviu e frequentemente proferiu. Além disso, prove pelo resultado se o que você ouviu e proferiu é verdade. Pois há uma acusação muito vergonhosa muitas vezes trazida contra a nossa escola, – que lidamos com as palavras, e não com as ações, da filosofia. Que, você só neste momento aprende que a morte está pendente sobre sua cabeça, neste momento de dor? Você nasceu para esses riscos. Pensemos em tudo o que pode acontecer como algo que acontecerá.
  16. Eu sei que você realmente fez o que eu aconselho a fazer; eu agora lhe advirto que não afogue a sua alma nestas suas pequenas angústias; se você fizer isso, a alma será entorpecida e terá muito pouco vigor disponível quando chegar a hora de levantar-se. Afaste seu pensamento de seu caso para o caso dos homens em geral. Diga a si mesmo que nossos pequenos corpos são mortais e frágeis; A dor pode alcançá-los de outras formas do que pelo poder do mais forte. Nossos próprios prazeres tornam-se tormentos; Banquetes trazem indigestão, Bacanais trazem paralisia dos músculos e marasmo, hábitos libidinosos afetam os pés, as mãos e cada articulação do corpo.
  17. Eu posso tornar-me um homem pobre; eu serei então um entre muitos. Posso ser exilado; considerar-me-ei então nascido no lugar para o qual serei enviado. Eles podem me colocar em cadeias. E então? Estou livre de obrigações agora? Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! “Eu morrerei”, você diz; você queria dizer: “Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte”.
  18. Não sou tão tolo para percorrer neste momento os argumentos que Epicuro caçava e dizer que os terrores deste mundo são inúteis, que Íxion[3] não gira em torno de sua roda, que Sísifo[4] não arca com o peso de sua pedra, que as entranhas de um homem não podem ser restauradas e devoradas todos os dias; ninguém é tão infantil como para temer Cérbero[5], ou as sombras, ou o traje espectral daqueles que são unidos por nada senão por seus ossos expostos. A morte nos aniquila ou nos desnuda. Se nós somos liberados então, lá permanece a melhor parte, depois que a tormenta é retirada; se somos aniquilados, nada permanece; tanto o que é bom quanto o que é mau são igualmente removidos.
  19. Permita-me neste momento citar um versículo seu, primeiro insinuando que, quando você o escreveu, você quis dizer isso para si mesmo, não menos do que para os outros. É ignóbil dizer uma coisa e acreditar em outra; e quão mais ignóbil é escrever uma coisa e acreditar em outra! Lembro-me de um dia que você estava lidando com o conhecido, – que não caímos mortos de repente, mas que avançamos para ela em passos lentos; morremos todos os dias.
  20. Porque cada dia um pouco de nossa vida nos é tirada; mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. Contando até ontem, todo o tempo passado é tempo perdido; O próprio dia que passamos agora é compartilhado entre nós e a morte. Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu; da mesma forma, a hora final em que deixamos de existir não provoca por si só a morte; ela apenas completa o processo de morte. Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.
  21. Ao descrever essa situação, você disse em seu estilo costumeiro (pois você é sempre impressionante, mas nunca tão cáustico como quando está colocando a verdade em palavras apropriadas). Não é única morte que vem; a morte que nos tira tudo é o fim de tudo. Eu prefiro que você leia suas próprias palavras em vez de minha carta; pois então ficará claro para você que esta morte, da qual temos medo, é a última, mas não a única morte.
  22. Vejo o que você está procurando; você está perguntando o que eu empacotei em minha carta, qual dizer estimulante de algum mestre, qual preceito útil. Assim, vou enviar-lhe algo que trata deste assunto em discussão. Epicuro censura aqueles que desejam, tanto quanto aqueles que se esquivam da morte: “É absurdo, diz ele, correr para a morte porque você está cansado da vida, quando é a sua maneira de viver que o fez correr para morte.”
  23. E em outra passagem: “O que é tão absurdo quanto buscar a morte, quando é por medo da morte que você roubou a paz da sua vida?” E você pode acrescentar uma terceira declaração, do mesmo cunho: “Os homens são tão irrefletidos, não, tão loucos, que alguns, por medo da morte, se obrigam a morrer”.
  24. Qualquer dessas ideias que você ponderar, você irá tonificar sua mente para a resistência tanto à morte quanto à vida. Pois precisamos ser admoestados e fortalecidos em ambos os sentidos, não amar ou odiar a vida em demasia; mesmo quando a razão nos aconselha a acabar com ela, tal impulso não deve ser adotado sem reflexão ou precipitadamente.
  25. O homem sóbrio e sábio não deve bater em retirada da vida; ele deve fazer uma saída conveniente. E acima de tudo, ele deve evitar a fraqueza que tomou posse de tantos, – o desejo da morte. Pois assim como há uma tendência irrefletida da mente para com outras coisas, assim, meu caro Lucílio, há uma tendência irrefletida para a morte; Isso muitas vezes se apodera dos homens mais nobres e espirituosos, assim como dos covardes e dos abjetos. Os primeiros desprezam a vida; os últimos acham-na fastidiosa.
  26. Outros também são movidos por uma saciedade de fazer e ver as mesmas coisas, e não tanto por um ódio à vida como por estarem enfastiados com ela. Deslizamos para essa condição, enquanto a própria filosofia nos empurra e dizemos: “Quanto tempo devo suportar as mesmas coisas?” Eu continuarei a acordar e dormir, estar com fome e ser saciado, ter calafrios e transpirar? Não há fim para nada, todas as coisas estão ligadas em uma espécie de círculo, elas fogem e elas são perseguidas. A noite está próxima aos calcanhares do dia, o dia aos calcanhares da noite, o verão termina no outono, o inverno apressa-se depois do outono, e o inverno se suaviza na primavera, toda a natureza assim passa, só para voltar. Eu não vejo nada de novo, mais cedo ou mais tarde, o homem enjoa disto também. ” Há muitos que pensam que viver não é doloroso, mas supérfluo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Públio Rutílio Rufo despertou o ódio dos ordem equestre, à qual pertencia a maior parte dos publicanos. Em 92 a.C., foi acusado de extorsão justamente por estes provincianos que havia tentado proteger e, apesar de a acusação ser amplamente tida como falsa, o júri, composto quase que inteiramente de equestres, o condenou. Rufo aceitou o veredito resignado, um comportamento estoico esperado para um discípulo de Panécio. Cícero, Lívio, Veleio Patérculo e Valério Máximo concordam em que era um homem honrado e íntegro e a sua condenação foi resultado de uma conspiração.

[2] Caio Múcio Cévola (em latim: Gaius Mucius Scaevola). Logo depois da fundação da República Romana, Roma se viu rapidamente sob a ameaça etrusca representada por Lar Porsena. Depois de rechaçar um primeiro ataque, o romanos se refugiaram atrás das muralhas da cidade e Porsena iniciou um cerco. Conforme o cerco se prolongou, a fome começou a assolar a população romana e Múcio, um jovem patrício, decidiu se oferecer para invadir sorrateiramente o acampamento inimigo para assassinar Porsena. Disfarçado, Múcio invadiu o acampamento inimigo e se aproximou de uma multidão que se apinhava na frente do tribunal de Porsena. Porém, como ele nunca tinha visto o rei, ele se equivoca e assassina uma pessoa diferente. Imediatamente preso, foi levado perante o rei, que o interrogou. Longe de se intimidar, Múcio respondeu às perguntas e se identificou como um cidadão romano disposto a assassiná-lo. Para demonstrar seu propósito e castigar seu próprio erro, Múcio colocou sua mão direita no fogo de um braseiro aceso e disse: “Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!”. Surpreso e impressionado pela cena, o rei ordenou que Múcio fosse libertado.

[3] Íxion foi amarrado a uma roda em chamas. No lugar das cordas, os deuses utilizaram serpentes. Íxion foi condenado a girar eternamente no calor do inferno.

[4] Sísifo foi obrigado a empurrar uma pedra até o topo de uma das montanhas do submundo, sendo que toda vez que estava chegando ao cume, a rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando, assim, o labor de Sísifo uma punição eterna.

[5] Cérbero era um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.

Carta 18: Sobre Festivais e Jejum

As Cartas oferecem algo além da filosofia: você tem vislumbres ocasionais da vida privada de Sêneca, bem como da vida em Roma no auge do poder imperial. Esse é um ótimo bônus além do conhecimento filosófico!

Esta é uma de minhas cartas prediletas, onde Sêneca dá o conselho de não se abster de se divertir, mas simplesmente não exagerar:

Mostra-se muito mais coragem permanecendo abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando; mas mostra maior autocontrole recusar-se a se afastar e fazer o que a multidão faz, mas de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando um dentre as multidões. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.”(XVIII, §4)

É exatamente assim que me sinto no Carnaval,  no Natal e assim por diante. Claro que queremos nos divertir e compartilhar um momento agradável da vida com nossa família e amigos. Mas nós temos que ficar bêbados ou doentes por comer demais para fazer isso?

Sêneca então aproveita o tópico em questão para apresentar um ponto mais geral sobre um exercício estoico padrão, auto-privação moderada:

 “separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza….só aquele está em afinidade com Deus, que pode desprezar a riqueza.” (XVIII, 12-13)

A carta de Sêneca não apenas critica a decadência moral e o excesso, mas oferece um guia prático para a vida virtuosa. Ela sugere que a verdadeira liberdade e paz interior vêm da capacidade de viver bem com pouco, de controlar as emoções, e de se preparar para as adversidades da vida. Este é um exemplo clássico da filosofia estoica aplicada ao comportamento individual em um contexto social.


XVIII. Sobre Festivais e Jejum

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É quase dezembro e mesmo assim a cidade está neste momento em um mormaço. A licença é dada para a folia geral. Tudo ressoa com poderosos preparativos, como se as Saturnálias74 diferissem do dia-a-dia usual! Tão verdadeiro é que a diferença é nenhuma, que considero correta a observação do homem que disse: “Uma vez dezembro foi um mês, agora é um ano.”

2. Se eu tivesse você comigo, eu ficaria feliz em trocar ideias e descobrir o que você acha que deve ser feito, se não devemos mudar nada em nossa rotina diária, ou se, nem que por compaixão com os costumes populares, nós devamos jantar em uma maneira mais alegre e despir a toga. Tal como é, nós, os romanos, trocamos nossas roupas por causa do feriado,75 embora em tempos antigos isso acontecia somente quando o Estado estava perturbado e caíra em desgraça.

3. Tenho a certeza de que, se eu o conheço bem, desempenhando o papel de um árbitro, teria desejado que não fôssemos nem como a multidão libertina em todos os sentidos, nem diferentes dela em absolutamente todos os aspectos, a menos que, talvez, esta seja apenas a época em que devamos estabelecer lei à alma e pedir que seja a única a abster-se de prazeres quando a multidão inteira se deixa ir em prazeres, pois esta é a prova mais segura que um homem pode obter de sua própria constância, se ele não busca as coisas que são sedutoras e o tentam ao luxo, nem é levado para elas.

4. Mostra-se muito mais coragem permanecendo-se abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando, mas mostra-se maior autocontrole ficar na multidão e recusar-se a fazer o que ela faz, agindo de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando apenas um dentre a multidão. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.

5. Estou tão firmemente decidido, no entanto, a testar a constância de sua mente que, extraindo dos ensinamentos de grandes homens, eu também lhe darei uma lição: reserve um certo número de dias, durante os quais você se contentará com a alimentação mais barata e escassa, com vestes grosseiras e ásperas, dizendo a si mesmo: “É esta a situação que eu temia?

6. É precisamente em tempos despreocupados que a alma deve endurecer-se de antemão para ocasiões de maior estresse e é enquanto a Fortuna é amável que se deve fortalecer contra sua violência. Em dias de paz, o soldado executa manobras, lança obras de terraplenagem sem inimigo à vista e se exercita, a fim de se tornar indiferente à labuta inevitável. Se você não quer que um homem recue quando a crise chegar, treine-o antes que ela chegue. Tal é o curso que esses homens seguiram que, em sua imitação de pobreza, quase todos os meses chegavam quase à miséria, de forma que eles nunca recuarão do que ensaiaram com tanta frequência.

7. Você não precisa supor que eu quero dizer refeições como Tímon,76 ou “cabines de homem pobre”,77 ou qualquer outro dispositivo que luxuosos milionários usam para enganar o tédio de suas vidas. Deixe a cama de palha ser real e o manto, grosseiro; deixe o pão ser duro e sujo. Resistir a tudo isso por três ou quatro dias por vez, às vezes por mais, para que possa ser um teste de si mesmo em vez de um mero passatempo. Então, asseguro-lhe, meu querido Lucílio, que saltará de alegria quando obtiver um bocado de comida e compreenderá que a paz de espírito de um homem não depende da Fortuna, pois mesmo quando irritada ela concede o suficiente para as nossas necessidades.

8. Não há nenhuma razão entretanto para que você pense que está fazendo qualquer coisa grande; porque você estará apenas fazendo o que muitos milhares de escravos e muitos milhares de pobres estão fazendo todos os dias. Mas você pode beneficiar-se disso, pois você não vai fazê-lo sob coação e que será tão fácil para você suportá-lo permanentemente tanto como para fazer experiência de vez em quando. Vamos praticar nossos golpes no “boneco”; nos fazer íntimos com a pobreza, para que a Fortuna não nos pegue despreparados. Seremos ricos com mais conforto se uma vez descobrirmos que a pobreza está longe de ser um fardo.

9. Mesmo Epicuro, o grande mestre do prazer, costumava observar intervalos declarados, durante os quais ele satisfazia a sua fome de maneira sovina, desejava ver se, assim, ficava aquém da plena e completa felicidade e, se fosse assim, em que quantia ficava aquém, e se essa quantidade valia a pena comprar ao preço de um grande esforço.78 De qualquer forma, ele faz tal declaração na conhecida carta escrita a Polieno.79 Na verdade, ele se vangloria de que ele próprio viveu com menos de um asse (centavo),80 mas que Metrodoro, cujo progresso ainda não era tão grande, precisava de um asse inteiro.

10. Você acha que pode haver plenitude em tal alimentação? Sim e há prazer também, não aquele prazer falso e fugaz que precisa de um estímulo de vez em quando, mas um prazer que é firme e seguro. Pois, embora a água, a farinha de cevada e as crostas de pão de cevada não sejam uma dieta alegre, no entanto, é o tipo mais elevado de prazer poder obter alegria deste tipo de alimento e ter reduzido suas necessidades a esse mínimo que nenhuma injustiça da Fortuna pode arrebatar.

11. Mesmo comida das prisões é mais generosa e aqueles que foram condenados à pena de morte não são tão mal alimentados pelo homem que deve executá-los. Portanto, que alma nobre se deve ter, para descer de próprio arbítrio a uma dieta que mesmo aqueles que foram condenados à morte receariam! Isso é de fato prevenir-se das lanças da má Fortuna.

12. Comece então, meu caro Lucílio, a seguir o costume destes homens, e separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza: “Desafie, ó amigo meu, desprezar o ponto de vista da riqueza e molde-se com afinidade com seu Deus.”81

13. Pois só aquele que está em afinidade com Deus, pode desprezar a riqueza. É óbvio que não o proíbo de possuí-la, mas gostaria que chegasse ao ponto em que a possuísse intrepidamente. Isso só pode ser realizado persuadindo-se de que você pode viver feliz tanto sem ela, quanto com ela, mas sempre considerando que as riquezas podem possivelmente lhe iludir.

14. Mas agora devo começar a dobrar a minha carta. “Pague sua dívida primeiro!”, você clama. Aqui está um texto de Epicuro; ele vai pagar a conta: “Raiva desgovernada produz loucura.82 Você não pode evitar saber a verdade dessas palavras, já que você tem não só escravos, mas também inimigos.

15. Mas, de fato, esta emoção resplandece contra todas as espécies de pessoas, brota tanto do amor quanto do ódio e se mostra não menos em assuntos sérios do que em brincadeira e esporte. E não faz diferença a importância da provocação, mas em que tipo de alma ela penetra. Da mesma forma com o fogo: não importa quão grande é a chama, mas sobre o que ela cai. Pois madeiras sólidas têm repelido um fogo muito grande, por outro lado, matéria seca e facilmente inflamável nutre a menor chama em um incêndio. Assim é com a raiva, meu caro Lucílio: o resultado de uma raiva poderosa é a loucura, e, portanto, a raiva deve ser evitada, não apenas para que possamos escapar do excesso, mas para que possamos ter uma mente saudável.83

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


74 Saturnália era um festival da Antiga Roma em honra ao deus Saturno, se estendendo com festividades até 23 de dezembro. O feriado era celebrado com um sacrifício no Templo de Saturno, no Fórum Romano; um banquete público, seguido de troca de presentes em privado; festa contínua e uma atmosfera de carnaval que derrubava as normas sociais romanas. As Saturnálias mesclavam elementos que em parte correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a licenciosidade) se aproximam do Carnaval. Na sátira “A Apocoloquintose do divino Cláudio” Sêneca diz que Cláudio “qual príncipe de Carnaval, celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro” (8.2) e, mais para frente, após sua morte, “eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar sempre!” (12.2).

75 pilleus era usado por escravos recém-libertados e pela população romana em ocasiões festivas. Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra (“agitação”), ou por roupa de luto (“calamidades”). Ver Marcial.

76 Tímon de Fliunte, filho de Timarco, foi um filósofo cético grego, pupilo de Pirro de Élis, célebre autor de poemas satíricos.

77 Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples.

79 Polieno de Lâmpsaco foi anteriormente um matemático da Grécia Antiga e posteriormente um discípulo de Epicuro. Apesar de matemático, diz-se que convenceu Epicuro de que a geometria era um desperdício de tempo.

80 É, como esperado, impossível uma equivalência entre as moedas romanas e moedas atuais. De qualquer modo “um asse” é um valor mínimo, poderíamos expressar por “um tostão” ou “um centavo”.

81 Trecho de Eneida de Virgílio, VIII, 364.

83 Ver tratado “Sobre a Ira”.

Carta 2: Sobre a falta de foco no Estudo

 
 
Sêneca fala sobre a falta de foco, tanto no estudo e leitura como em viagens de forma indiscriminada.  Começa a série de citações de Epicuro, já que tenta trazer Lucílio do epicurismo para o estoicismo: “Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. … Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.
 
(imagem Godfrey Kneller, A Scholar in His Study, about 1668)
 
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II. Sobre a falta de foco na leitura

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Julgando pelo que você me escreve e pelo que eu ouço, eu estou formando uma boa opinião a respeito de seu futuro. Você não corre para cá e para lá e se distrai mudando sua morada; pois tal inquietação é o sinal de um espírito desordenado. A principal indicação, na minha opinião, de uma mente bem ordenada é a habilidade de um homem em permanecer em seu lugar e ficar bem em sua própria companhia.

2. Tenha cuidado, no entanto, porque esta leitura de muitos autores e livros de qualquer espécie tendem a torná-lo dispersivo e instável. Você deve permanecer entre um número limitado de mestres pensadores e digerir suas obras, para que construa ideias firmes em sua mente. Estar em todo lugar significa também estar em lugar nenhum. Quando uma pessoa gasta todo o seu tempo em viagens ao estrangeiro, ela termina por ter muitos conhecidos, mas nenhum amigo. E a mesma coisa deve ser válida para os homens que não procuram o conhecimento íntimo de um único autor, mas visitam todos de uma maneira precipitada e apressada.

3. O alimento não faz bem e não é assimilado pelo corpo se ele deixa o estômago assim que é comido; nada impede uma cura tanto quanto a mudança frequente de medicamento; nenhuma ferida cicatrizará quando for tentado um bálsamo após outro; uma planta que é movida frequentemente nunca pode crescer forte. Não há nada tão eficaz que possa ser útil enquanto está sendo deslocado. E na leitura de muitos livros há distração. Por conseguinte, uma vez que não é possível ler todos os livros que você pode possuir, é suficiente possuir apenas tantos livros quanto você pode ler.

4. “Mas”, você responde, “eu desejo mergulhar primeiramente em um livro e então em outro”. Eu lhe digo que é o sinal de gula brincar com muitos pratos; pois quando são múltiplos e variados, eles enfastiam, mas não alimentam. Então você deve sempre ler autores de qualidade; e quando você anseia por uma mudança, retroceda àqueles que você leu antes. Cada dia adquira algo que o fortaleça contra a pobreza, contra a morte e contra outros infortúnios; e depois de ter examinado muitos pensamentos, selecione um para ser completamente digerido naquele dia.

5. Esta é minha própria prática; das muitas coisas que eu li, eu reivindico uma parte para mim. A reflexão para hoje é uma que eu descobri em Epicuro. Isso porque eu sou acostumado a entrar até mesmo no campo do inimigo[♦], não como um desertor, mas como um batedor.

6. Ele diz: “É um bem desejável conservar a alegria em plena pobreza.” Na verdade, se estiver satisfeito, não é pobreza. Não é o homem que tem pouco, mas o homem que anseia por mais, quem é pobre. De que importa o que um homem tem guardado em seu cofre, ou em seu armazém, quão grandes são os seus rebanhos e quão gordos são os seus dividendos, se ele cobiça a propriedade do seu vizinho e não conta os seus ganhos passados, mas as suas esperanças de ganhos vindouros? Você pergunta qual é o limite adequado para a riqueza? É, primeiro, ter o que é necessário e, segundo, ter o que é suficiente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[♦] Estoicismo em oposição ao Epicurismo.