Carta 14: Sobre as razões para se retirar do mundo

Sêneca escreve esta carta durante um período de turbulência política e social em Roma, provavelmente refletindo sobre as suas próprias experiências e observações sobre os perigos da vida pública. A carta é estruturada em torno de conselhos práticos sobre como evitar os males que ameaçam a paz e segurança pessoal. É  a primeira carta na qual Sêneca explicitamente coloca orientação política em seus ensinamentos e diz a Lucílio que muitas vezes devemos considerar um governante tirano da mesma forma que uma tempestade: um capitão prudente desvia seu curso e não tenta mudar aquilo que sabe ser muito mais forte.

O estoicismo, em oposição ao epicurismo, defende participação na política e sociedade civil. Nesta carta Sêneca alerta para os limites de tal estratégia usando o exemplo de Catão que durante a guerra civil do fim da república combateu tanto Júlio Cesar como Pompeu.

A Carta 14 é uma rica fonte de conselhos sobre como viver de acordo com a virtude em tempos turbulentos. Sêneca não apenas discorre sobre a teoria estoica, mas oferece orientações práticas para viver uma vida que evite as armadilhas da ambição, do medo e da violência, promovendo uma filosofia de vida que valoriza a tranquilidade interior e a moderação.
Esta carta serve tanto como um guia para a conduta pessoal quanto como um reflexo sobre as complexidades da participação política e social, temas que continuam relevantes para o debate filosófico contemporâneo sobre ética e política.
 

Sêneca termina com um alerta sobre os riscos da busca por riquezas: “Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.” (XIV, §17)

XIV. Sobre as razões para se retirar do mundo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Confesso que todos temos um afeto inato por nosso corpo, admito que somos responsáveis por sua proteção, por cuidar bem dele. Eu não defendo que o corpo não deva ser saciado em tudo, mas mantenho que não devemos ser escravos dele. Será escravo de muitos aquele que faz de seu corpo seu mestre, que teme demasiadamente por ele, que julga tudo de acordo com o corpo.

2. Devemos nos conduzir não como se devêssemos viver para o corpo, mas como se não pudéssemos viver sem ele. Nosso grande amor por ele nos deixa inquietos de medo, nos sobrecarrega de cuidados e nos expõe a ofensas. A virtude é considerada inferior pelo homem que considera seu corpo muito importante. Devemos cuidar do corpo com o maior cuidado, mas também devemos estar preparados para quando a razão, o amor-próprio e o dever exigirem o sacrifício, entregá-lo às chamas.

3. Contudo, na medida do possível, evitemos tanto os desconfortos como os perigos e retiremo-nos a um terreno seguro, pensando continuamente em como repelir todos os objetos do medo. Se não me engano, há três classes principais: temos medo da carestia, tememos a doença e tememos os problemas que resultam da violência dos mais fortes.

4. E de tudo isso, o que mais nos assusta é o pavor que paira sobre nós da violência de nosso vizinho, pois é acompanhada por grande clamor e tumulto. Mas os males naturais que eu mencionei, carestia e doença, nos furtam silenciosamente sem terror aos olhos ou aos ouvidos. O outro tipo de mal vem, por assim dizer, sob a forma de grande desfile militar. Em torno dele há um séquito de espadas, fogo, correntes e uma multidão de animais para ser solta sobre as entranhas evisceradas dos homens.

5. Imagine-se submetido à prisão, à cruz, à tortura, aos ganchos,57 à forca e à empalação. Pense nos membros humanos rasgados por cavalos movidos em direções opostas, da camisa terrivelmente besuntada com materiais inflamáveis, e de todos os outros aparelhos inventados pela crueldade, além daqueles que eu mencionei! Não é de admirar, então, se nosso maior terror é de tal sorte, porque ele vem em muitas formas e sua parafernália é aterrorizante. Pois, assim como o torturador conquista mais por conta da quantidade de instrumentos que exibe – de fato, o espetáculo vence aqueles que teriam pacientemente resistido ao sofrimento – similarmente, de todos os agentes que coagem e dominam nossas mentes, os mais eficazes são aqueles ostensivos. Esses outros problemas não são, evidentemente, menos graves. Quero dizer fome, sede, úlceras do estômago e febre engolem nossas entranhas. Eles são, no entanto, secretos, eles não vociferam e se anunciam, mas os outros, com formidáveis vestimentas de guerra, prevalecem em virtude de sua ostentação e aparelhagem.

6. Vamos, portanto, cuidar para que nos abstenhamos de ofender. Às vezes é o povo que devemos temer; às vezes um grupo de oligarcas influentes no Senado, se o método de governar o Estado é tal que a maior parte do negócio é feita por esse grupo; e às vezes indivíduos equipados com poder pelo povo e contra o povo. É oneroso manter a amizade de todas essas pessoas, basta não fazer deles inimigos. Assim o sábio nunca provocará a ira daqueles que estão no poder, mais que isso, o sábio vai mesmo mudar seu curso, exatamente como iria desviar-se de uma tempestade se estivesse conduzindo um navio.

7. Quando você viajou para a Sicília, você precisou atravessar o estreito. Seu capitão foi imprudente e desdenhou o violento vento sul – vento que encrespa o mar siciliano e cria correntes poderosas – ou ele procurou a costa à esquerda? A praia pedregosa, de onde Caríbdis58 agita os mares em confusão. Seu capitão mais cuidadoso, entretanto, questiona aqueles que conhecem a localidade quanto às marés e ao significado das nuvens. Ele mantém seu curso longe daquela região notória por suas águas agitadas. Nosso sábio faz o mesmo, foge de um homem forte que pode ser nocivo a ele, fazendo questão de não parecer evitá-lo, porque uma parte importante de sua segurança reside em não buscar segurança abertamente; porque aquilo que se evita, se condena.

8. Portanto, devemos olhar ao redor e verificar como podemos nos proteger da multidão. E antes de tudo, não devemos ter ânsias como as dela, pois a rivalidade resulta em conflitos. Novamente, não possuamos nada que possa ser arrebatado de nós para o grande lucro de um inimigo conspirador. Permita que haja o menor espólio possível na sua pessoa. Ninguém se propõe a derramar o sangue de seus semelhantes por causa do sangue em si, ou de qualquer maneira, apenas muito poucos. Mais assassinos especulam sobre seus lucros do que em dar vazão ao próprio ódio. Se você está de mãos vazias, o salteador da estrada passa por você. Mesmo ao longo de uma estrada infestada, os pobres podem viajar em paz.

9. Em seguida, devemos seguir o velho ditado e evitar três coisas com especial cuidado: ódio, ciúme e desdém. E só a sabedoria pode mostrar-lhe como isso pode ser feito. É difícil seguir o meio termo, devemos ser cuidadosos para não deixar que o medo do ciúme nos leve a tornarnos desdenhosos, para que, quando escolhemos não menosprezar os outros, não deixemos que eles pensem que podem nos menosprezar. O poder de inspirar medo tem levado muitos homens a terem medo. Afastemo-nos de todas as maneiras, pois é tão nocivo ser desprezado quanto ser admirado.

10. Você deve, portanto, refugiar-se na filosofia. Essa busca, não só aos olhos dos homens bons, mas também aos olhos dos que são mesmo moderadamente maus, é uma espécie de emblema protetor. Pois o discurso no tribunal, ou qualquer outra busca por atenção popular, traz inimigos para um homem, mas a filosofia é pacífica e foca-se em seu próprio negócio. Os homens não podem desprezá-la, ela é honrada por cada profissão, até mesmo a mais vil entre elas. O mal nunca pode crescer tão forte e a nobreza de caráter nunca pode ser tão conspirada, que o nome da filosofia deixe de ser digno e sagrado. Filosofia em si, no entanto, deve ser praticada com calma e moderação.

11. “Muito bem, então,” você responde, “você considera a filosofia de Marco Catão como moderada?” A voz de Catão se esforçou para reprimir uma guerra civil. Catão segurou as espadas de chefes de clãs enlouquecidos. Quando alguns pereceram, vítimas de Pompeu e outros de César, Catão desafiou as duas facções ao mesmo tempo!

12. Não obstante, alguém pode muito bem questionar se, naqueles dias, um sábio deveria ter tomado alguma parte nos assuntos públicos e perguntado: “O que você quer dizer, Marco Catão? Não é agora uma questão de liberdade, há muito tempo a liberdade foi desmoronada e arruinada. A questão é se César ou Pompeu controlam o Estado. Por que, Catão, você deve tomar partido nessa disputa? Não é assunto seu, um tirano está sendo escolhido. O melhor pode vencer, mas o vencedor será condenado a ser o pior homem.” Refiro-me ao papel final de Catão. Mas mesmo nos anos anteriores o homem sábio não foi autorizado a intervir em tal pilhagem do Estado pois o que poderia fazer Catão senão erguer a voz e pronunciar palavras em vão? Em certa ocasião ele foi levado pelas mãos pela multidão, foi cuspido e forçosamente removido do foro e assinalado para o exílio, em outra, foi levado direto do senado para a prisão.

13. Contudo, consideraremos mais tarde59 se o sábio deve dar atenção à política, entretanto, peço-lhe que considere aqueles estoicos que, afastados da vida pública, se retiraram para a privacidade com o propósito de melhorar a existência dos homens e elaborar leis para a raça humana sem incorrer no descontentamento daqueles que estão no poder. O homem sábio não perturbará os costumes do povo, nem atrairá a atenção da população por quaisquer modos de vida novos.

14. “O que, então? Pode alguém que seguir este plano estar sempre seguro?” Não posso garantir-lhe isto mais do que posso garantir uma boa saúde no caso de um homem que observe a moderação embora, de fato, boa saúde resulte de tal moderação. Às vezes um navio afunda no porto, mas o que você acha que acontece em mar aberto? E quão mais cercado de perigo estaria um homem, que mesmo em seu retiro não está seguro, se ele estiver ocupado trabalhando em muitas coisas! As pessoas inocentes às vezes perecem, quem negaria isso? Mas os culpados perecem com mais frequência. A habilidade de um soldado não é julgada se ele recebe o golpe de morte através de sua armadura.

15. E, finalmente, o homem sábio considera a razão de todas as suas ações, mas não os resultados. O começo está em nosso próprio poder, a Fortuna decide o assunto, mas eu não permito que ela passe sentença sobre mim mesmo. Você pode dizer: “Mas ela pode infligir uma medida de sofrimento e de problemas.” Um bandido de estrada pode matar-me; condenar-me, isso jamais!

16. Agora você estende sua mão para o presente diário. Áureo, de fato, será o presente com o qual eu o agraciarei; e, na medida em que mencionamos o ouro, deixe-me dizer-lhe como o seu uso e gozo pode trazer-lhe maior prazer. “Aquele que menos precisa de riquezas, desfruta mais das riquezas”. “Nome do autor, por favor!”, você diz. Agora, para mostrar o quão generoso eu sou, é minha intenção elogiar os ditos de outras escolas. A frase pertence a Epicuro, ou Metrodoro, ou alguém daquela escola de pensamento particular.60

17. Mas que diferença faz quem disse as palavras? Elas foram proferidas ao mundo. Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade. Ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seus registros de juros, em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um guarda-livros.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


57 Os ganchos referidos eram usados para arrastar corpos de condenados até junto das “gemoniae scalae”, isto é, “ escadas dos gemidos”, de onde eram lançados ao rio Tibre.

58 Caríbdis (em grego: Χάρυβδις), na mitologia grega, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon.

59 Ver carta XXII neste volume.

60 Frase de Epicuro. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro X.

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