Suspensão de juízo no estoicismo

No artigo “Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?” Aldo Dinucci explica o que é “suspensão de juízo” e como conciliar ensinamentos aparentemente contraditórios de Epicteto e Marco Aurélio.

Suspensão de juízo é em resumo entender antes de adjetivar, só dar nossa opinião sobre fatos ou atos depois de entender profundamente seus motivos. Muito relevante nessa época de cancelamentos sumários.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas.

Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 29 de outubro de 2021.


Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?

Aldo Dinucci

Danilo Gavião, que conheci em um grupo de estudos de estoicismo dirigido por Donato Ferrara, me fez uma pergunta relacionada àquela que me foi feita recentemente por Selmo Gliksman, meu colega dos tempos de pós na PUC/RJ, e que respondi em um post anterior

Danilo indaga: Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações: 

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial.  (Tradução: Aldo Dinucci)

Isso parece se contrapôr ao que Epicteto diz no Manual:

Epicteto, Manual, XLV: Alguém se banha de modo apressado: não digas que ele se banha de modo ruim, mas de modo apressado. Alguém bebe muito vinho: não digas que ele bebe de modo ruim, mas muito. Pois, antes que compreendas a opinião [dele], por que pensas que ele o faz de modo ruim? Assim, não te acontecerá, <ao> apreenderes as impressões compreensivas de algumas coisas, dares assentimento a outras. (IN: Epicteto, Manual Edição original de 2007,  Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci) 

Epicteto nos ensina que não devemos qualificar pessoas e suas ações como boas ou más sem sabermos por qual razão agem assim. Isso lembra o que Jesus Cristo teria dito sobre não julgarmos para não sermos julgados, mas em Epicteto o sentido é outro. O que Epicteto está dizendo é que estas palavras ‘bem’ ou ‘mal’ são usadas de forma inapropriada e acabam nos impedindo acesso à realidade (a ‘impressão compreensiva’ que podemos ter das coisas), pois seu uso nos faz crer possuir um conhecimento que efetivamente não temos sobre ações e pessoas.

Assim, o ‘banho ruim’ de alguém pode ser sido feito por uma série de razões que nos escapam e que fariam do banho rápido um ato adequado. Da mesma forma, o ‘beber mal’ pode estar associado da mesma forma a estados mentais de um indivíduo que podem tornar compreensível e justificável o seu modo de beber.

Epicteto está dizendo que usar essas palavras não nos confere nenhum conhecimento sobre a realidade, só evidenciando, de fato, nossa ignorância sobre a ação e a pessoa. Assim, ao invés de usarmos adjetivos tais como ‘bom, ótimo, excelente, péssimo, ruim’ etc, devemos procurar entender o que está acontecendo, descrevendo da melhor forma possível a ação e a pessoa e, ao mesmo tempo, estabelecendo os limites de nosso conhecimento do caso, suspendendo o juízo sobre o que não sabemos. Exemplos:

Fulano banhou-se rápido e saiu. Não compreendo por qual razão ele agiu assim. É possível que estivesse apressado para outro compromisso. 

Fulano bebeu muito na festa de ontem. Estará ele comemorando alguma vitória? Estará ele triste com algum fato? Não sei a razão pela qual ele agiu assim. No momento, só posso fazer conjecturas.  

Isso pode ser aplicado também ao modo como falamos aos nossos alunos sobre seus trabalhos e provas. Ao invés de um mero ‘excelente’, devemos descrever o trabalho e suas qualidades. Exemplo:

Seu trabalho foi escrito de acordo com as normas ortográficas e de forma escorreita, demonstrando conhecimento da linguagem culta. Você tratou o tema com precisão e senso crítico etc.

E o mesmo vale para os defeitos dos trabalhos. Voltemo-nos agora à passagem de Marco, que é um exemplo de praemeditatio malorum, do que falamos no outro post. Marco começa a passagem adjetivando um série de indivíduos que encontraria pela frente durante o seu dia. No entanto, na linha seguinte, ele mesmo rechaça essas adjetivações, afirmando uma causa comum para agirem de modo inadequado:

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial. Todas essas coisas lhes ocorrem pela ignorância dos bens e dos males. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco, mais à frente, na mesma citação, afirma um preceito básico do estoicismo e do socratismo: a ação inadequada é fruto da ignorância. Para Sócrates e para os estoicos, não há algo como pessoas naturalmente malignas. O que há são pessoas ignorantes ou mentalmente enfermas (os limites entre a loucura epistêmica e a psíquica são, para estoicos, imprecisos, e muitas vezes uma implica a outra):   

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Mas eu teorizei a natureza do bem e do mal… e que a natureza do que erra é da minha mesma estirpe, não segundo o sangue ou o mesmo esperma, mas que partilho o mesmo espírito e a mesma porção divina… Nascemos, pois, para agir conjuntamente como os pés, como as mãos, como as pálpebras… estarmos em conflito uns contra os outros é contra a natureza: entrar em conflito e irritar-se é, portanto,  opôr~se <à natureza>. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco Aurélio, portanto, substitui os adjetivos que usara no princípio de sua reflexão pela compreensão de que tais pessoas agem inadequadamente por ignorância. E acrescenta que, na verdade, os que erram são de nossa mesma estirpe, razão pela qual devemos não nos opor a eles, mas tentar colaborar com eles apesar dos defeitos que venham a ter.

O movimento, aqui, é essencialmente o mesmo que vemos no Manual de Epicteto: partimos de adjetivações que pretendem descrever a realidade, mas que só escondem nossa incompreensão dos fatos, das ações e das pessoas, nos afastando e nos pondo em oposição a elas, e rumamos para uma compreensão real das pessoas e de seus possíveis erros, não mais nos opondo ou julgando, mas, através de uma atitude verdadeiramente compreensiva, buscando agir conjuntamente com elas.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas. Pois se os compreendêssemos realmente, jamais o seríamos.

Aldo Dinucci

Foto de Anastasia Zhenina no Pexels

* * *