“Oh, Fortuna, deusa cega e negligente, estou preso à sua roda –não me esmague entre suas trevas. Eleve-me bem alto, ó deusa!” — arrotou Ignatius.
Apesar de estudar e traduzir filosofia estoica, meu interesse pela A Consolação da Filosofia surgiu da leitura do incrível romance “Uma Confraria de Tolos” de John Kennedy Toole, onde o texto de Boécio, bem como as deusas Fortuna e Filosofia, são protagonistas centrais.
O personagem principal do romance, Ignatius Reilly, é um trintão obeso, glutão, flatulento e mal-humorado, que mora com a mãe e vive amaldiçoando o mundo moderno. Ignatius é um anti-herói, deslocado do mundo e nascido na época errada, que se considera sempre perseguido por uma “confraria de tolos”. Trata-se de um misto de Dom Quixote gordo com Tomás de Aquino teimoso, que tem como Boécio seu conselheiro e companheiro de sofrimento.
Toole resume de forma concisa e precisa a obra de Boécio:
Ignatius acreditava na roda da Fortuna, o conceito central de De consolatione philosophiae, tratado filosófico que lançou os fundamentos do pensamento medieval. Boécio, que nos estertores do Império Romano escrevera a Consolatione durante sua injusta passagem pela prisão a mando do imperador, dissera que uma divindade cega nos prega a uma roda, e que nossa sorte obedece a ciclos. … O livro nos ensina a aceitar o que não podemos mudar. Descreve a luta do homem honesto numa sociedade desonesta. É a base do pensamento medieval.
Vamos então à nossa análise.
A Consolação da Filosofia foi escrita na prisão por um condenado à morte. A admiração que esse texto suscitou deve muito pouco às circunstâncias trágicas de sua composição. Trata-se de uma obra-prima da literatura e do pensamento europeu; ela se basta, e teria o mesmo valor se ignorássemos tudo a respeito daquele que a concebeu entre duas sessões de tortura, à espera de sua execução. Contudo, a história pessoal do autor é bem conhecida. Ele foi um homem cuja fortuna se elevou ao mais alto nível possível; mas que experimentou o colapso total dessa fortuna, ficando conhecido por ter se mantido firme na prisão até mesmo sob tortura.
Filho de uma das mais nobres famílias senatoriais romanas, teve sucesso ascendente e ininterrupto. Adotado pelo ilustre Símaco acabou casando-se com a filha de seu pai adotivo, Rusticiana. Aos 25 anos de idade entrou para o senado e com menos de 30 anos foi eleito cônsul. Durante o reinado de Teodorico, Boécio ocupou muitos cargos importantes, na Consolação, ele próprio afirma que sua maior realização foi ter, no mesmo ano, ambos os filhos feitos cônsules, um representando o leste e outro o oeste. Em 522, no mesmo ano em que seus dois filhos foram nomeados cônsules conjuntos, Boécio aceitou a nomeação para o cargo de Mestre dos Ofícios (magister officiorum), chefe de todos os serviços do governo e da corte.
Talvez o que de fato tenha arruinado a vida política de Boécio tenha sido a defesa do senador Albino, por ele realizada. Albino havia sido acusado de estabelecer correspondências com algumas pessoas próximas de Justino, Imperador de Constantinopla, traindo assim, Teodorico. Boécio foi requisitado à apreciação do caso do senador e acabou por defendê-lo e, consequentemente, foi envolvido na delação. Assim, dentro desse contexto de acusações e traições, o autor foi condenado à morte e ao confisco de todos os seus bens. Privado do direito de apresentar sua defesa, Boécio acabou sendo executado no ano de 524.
O conteúdo da Consolação está disposto em cinco livros, compostos por versos e prosas que se apresentam de forma intercalada. No primeiro livro Boécio apresenta sua condição de profunda tristeza e indignação com o infortúnio que lhe abate por encontrar-se na prisão; e é neste momento que ele recebe a visita de sua musa consoladora, a Filosofia, que ao se personificar busca, através do diálogo, mostrar ao prisioneiro o que o mesmo parece ter esquecido: qual é a natureza humana e qual o verdadeiro objetivo dos homens. No segundo livro, a Filosofia visa demonstrar a Boécio qual é a verdadeira natureza da Fortuna. No terceiro livro temos que todos os homens buscam naturalmente a Felicidade. Assim, inicia-se este livro com a apresentação dos presentes da Fortuna com o intuito de demonstrar porque estes não podem dar ao homem a verdadeira felicidade tão almejada. Aponta como conclusão que a verdadeira felicidade encontra-se no Bem Supremo que é uno: Deus. No quarto livro, é tratada a questão do mal no mundo e apresenta-se a distinção entre Providência e destino. No quinto e último livro, discorre-se sobre o problema, aparentemente incompatível, que surge da discussão da onisciência divina e do livre arbítrio humano.
A incompatibilidade do sofrimento dos homens bons, a impunidade e o sucesso dos homens maus, com o governo do mundo por um Deus bom, tem sido um tema de reflexão entre os homens desde que a religião e as questões abstratas têm ocupado os pensamentos da humanidade. Os livros poéticos da Bíblia estão cheios dela, particularmente o livro de Jó, que é um poema dramático inteiramente dedicado ao assunto. O Novo Testamento contém muito material doutrinário sobre a mesma questão. Já os gregos em suas tragédias e também os filósofos posteriores, se encantaram em resolver esta incompatibilidade. Mas do sexto ao décimo sétimo século de nossa era a Consolação de Boécio, em seu latim original e em muitas traduções, esteve nas mãos de quase todas as pessoas cultas do mundo.
É uma obra que atraiu tanto pagãos quanto cristãos. Não há nenhuma doutrina cristã na qual se baseie toda a obra, mas também não há nada que possa estar em conflito com o cristianismo. Mesmo a personificação da Filosofia, embora na forma de uma deusa pagã, é precisamente como a “Sabedoria” de Salomão na bíblia e a “Palavra de Deus” usada pelos judeus. Portanto, se não há nada distinto ou dogmaticamente cristão no texto, também não há nada que possa ser condenado como pagão, apesar da forte influência da filosofia pagã, com a qual Boécio era íntimo.
Contudo, sua ligação com a Igreja é inquestionável. O Papa Leão XIII aprovou o culto a Boécio pela Diocese de Pavia, que guarda os seus restos mortais na basílica de San Pietro in Ciel d’Oro, que também é o lugar de descanso de Santo Agostinho. Foi posteriormente canonizado pela Igreja Católica. Ele é “São Severino” que deriva do seu nome completo, Severinus Boethius. Dante faz São Tomás de Aquino apontar o espírito de Boécio na Divina Comédia, Paraíso, X, 124-132.
A Consolação da Filosofia não é a primeira obra filosófica na qual a Filosofia personifica-se como uma dama. Esta ideia já fora sugerida por filósofos anteriores tais como: Platão, Cícero e Sêneca. Boécio considera-se um eclético e acredita que as escolas filosóficas da antiguidade eram incompletas, cada uma contendo apenas “uma parte” da filosofia (sinônimo da sabedoria). Nas palavras da própria Lady Filosofia.
“Também em sua vida, Sócrates, seu mestre, venceu com minha ajuda a vitória de uma morte injusta. E quando, um após outro, o grupo epicurista, os estoicos, e os demais, cada um deles até onde estavam, foram tomar a herança que ele deixou, e me arrastaram para fora protestando e resistindo, como seu espólio, rasgaram em pedaços a roupa que eu havia tecido com minhas próprias mãos, e, agarrando os pedaços rasgados, partiram, acreditando que a totalidade de mim havia passado para a posse deles. (…) Talvez você não saiba do banimento de Anaxágoras, do veneno de Sócrates, nem da tortura de Zenão, porque estas coisas aconteceram em um país distante; mas talvez você tenha conhecido o destino de Cano, de Sêneca, de Sorano, cujas histórias não são antigas nem desconhecidas. Estes homens foram levados à destruição por nenhuma outra razão que não seja a de que, estabelecidos como estavam em meus princípios, suas vidas eram um manifesto contraste com os caminhos dos ímpios.” (Livro I, VI.)
Dessa forma, a musa consoladora demonstra ao prisioneiro que ele pertence a um grupo de homens capazes de compreender as adversidades da vida sob um outro enfoque, considerando que este grupo possui uma diferenciação de ordem moral, certamente incutida pela própria Filosofia. Ressaltando que os homens que se deixam conduzir pelos caprichos da Fortuna não possuem algo maior que os possa guiar e permanecem na ignorância.
Ou seja, Boécio é muito próximo da doutrina estoica. Isso fica claro quando a personagem Filosofia, ao colocar-se como médica e fazer uso de metáforas médicas, está resgatando a prática estoica. Para curar o prisioneiro a Filosofia o lembra que o mundo não é governado pelo acaso, mas sim, por uma razão superior, a Natureza. Compreender que o mundo é governado por uma razão divina e que o homem possui uma natureza racional, a qual deve guiar as ações humanas, justifica que a virtude da sabedoria é exatamente isso: viver em conformidade com sua própria natureza. Natureza esta que não deve se deixar abalar pelas turbulentas paixões humanas, pois elas impedem a progressão da virtude. Assim, a virtude da sabedoria consiste em não se deixar ludibriar pelos impulsos excessivos e sim, deixar-se conduzir pela racionalidade que é própria do ser humano. Conforme aponta a Filosofia:
“… a Sabedoria consiste em avaliar a finalidade de todas as coisas, e esta mesma mutabilidade, com seus dois aspectos, torna as ameaças da Fortuna vazias de terror, e suas carícias pouco desejáveis.“
Logo, para saber avaliar corretamente qual é o fim de todas as coisas, faz-se necessário reconhecer-se como um ser racional e fazer uso dessa natureza. Desta forma, podemos compreender que a noção de virtude no sistema boeciano aproxima-se muito da concepção dos estoicos. Boécio perdeu as riquezas, as honras, o poder e os prazeres que constituem a felicidade dos homens? O que são esses bens que, se possuem o brilho do vidro, também têm sua fragilidade?
O conceito de Felicidade, ou eudaimonia, de Boécio é totalmente estoico:
“E para que possa ver que a felicidade não pode consistir nessas coisas que são o esporte do acaso, reflita que, se a felicidade é o maior bem de uma criatura vivendo de acordo com a razão, e se uma coisa pode de alguma forma ser tirada não é o maior bem, já que aquilo que não pode ser tirado é melhor do que isso, é claro que a Fortuna não pode aspirar a dar felicidade em razão de sua instabilidade. E, além disso, um homem carregado por essa felicidade transitória deve conhecer ou não a sua instabilidade. Se ele não a conhece, quão pobre é uma felicidade que depende da cegueira por ignorância! Se ele sabe, ele deve temer perder uma felicidade cuja perda ele acredita ser possível.” (Livro II, VII)
Nos dois últimos livros, o ambiente filosófico muda: do estoicismo, apropriado à cura pessoal, Boécio passa à uma discussão mais abstrata, a da teodiceia de inspiração platônica, isto é, a existência de Deus a partir do problema da existência do mal e de sua relação com um Deus bondoso onisciente e onipotente.
Neste ponto, o prisioneiro, voltando a ser um filósofo, já se libertou da opressão subjetiva da infelicidade que pesava sobre seus sentidos. É preciso agora libertar-se do peso de uma dúvida de gravidade diferente que atormenta sua razão: Como pode Deus, a própria Bondade, a Ideia do Bem, permitir uma desordem tal que os inocentes sejam oprimidos e os criminosos recompensados?
O último livro é focado em conciliar a liberdade humana, isto é, o livre-arbítrio, com a onipotência providencial de Deus. A Filosofia faz Boécio entender que a presciência divina não é um determinismo, mas que, por isso mesmo, ela não abandona a alma que escolheu o Bem aos caprichos cegos da Fortuna. O livre-arbítrio não é uma ilusão, mesmo que a escolha do mal busque para si desculpas na Fortuna.
Quinze séculos após ter sido escrito, A Consolação da Filosofia parece dirigido à nossa realidade, o que só confirma que o progresso técnico em nada muda as leis da biologia ou nossas carências espirituais e filosóficas.
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