Sobre a amizade real. Seneca adverte Lucílio contra fazer um homem em um amigo antes de conhecer o caráter deste homem. Contudo, uma vez que alguém se tornou um amigo, devemos confiar e compartilhar as ansiedades deste. (Veja também a carta 9 sobre as amizades do homem sábio.)
Sobre a verdadeira e falsa amizade
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- Você enviou uma carta para mim através de um “amigo nosso”, como você o chama. E na frase seguinte você me adverte para não discutir com ele todos os assuntos que lhe dizem respeito, dizendo que você mesmo não está acostumado a fazer isto; em outras palavras, você, na mesma carta afirmou e negou que ele seja seu amigo.
- Agora, se você usou esta palavra no sentido popular, e o chamou de “amigo” da mesma maneira em que falamos de todos os candidatos nas eleições como “senhores honoráveis”, e como saudamos todos os homens que encontramos casualmente, se seus nomes nos faltam por um momento, com a saudação “meu caro senhor”, assim seja. Mas se você considera qualquer homem um amigo em quem você não confia como você confia em si mesmo, você está muito enganado e você não entende o suficiente o que significa verdadeira amizade. Na verdade, gostaria que discutisse tudo com um amigo; mas antes de tudo discuta o próprio homem. Quando a amizade é estabelecida, você deve confiar; antes que a amizade seja formada, você deve julgar. Essas pessoas, de fato, colocam as últimas em primeiro lugar e confundem seus deveres, que, violando as regras de Teofrasto[1], julgam um homem depois de terem feito dele seu amigo, em vez de torná-lo seu amigo depois que o julgarem. Pondere por muito tempo se você deve admitir uma pessoa ao seu círculo de amizade; mas quando você decide admiti-la, acolha-a com todo o seu coração e alma. Fale tão abertamente com ela quanto com você mesmo.
- Quanto a você mesmo, embora você deva viver de tal maneira que confie a si mesmo todos assuntos, uma vez que certas questões convencionalmente são mantidas secretas, você deve compartilhar com um amigo pelo menos todas suas preocupações e reflexões. Considere-o como leal, e você o fará leal. Alguns, por exemplo, temendo ser enganados, ensinaram os homens a enganar; por suas suspeitas deram a seu amigo o direito de suspeitar. Por que preciso reter alguma palavra na presença do meu amigo? Por que não me considerar sozinho quando em sua companhia?
- Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas, e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos; E se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda a mais segura.
- Do mesmo modo, você deveria repreender estes dois tipos de homens, tanto os que sempre carecem de repouso, como os que estão sempre em repouso. Porque o amor ao agito não é diligência, – é apenas a inquietação de uma mente assombrada. E a verdadeira tranquilidade não consiste em condenar todo o movimento como mero aborrecimento; esse tipo de conforto é preguiça e inércia.
- Portanto, você deve observar o seguinte ditado, tirado da minha leitura de Pompônio[2]: “Alguns homens se encolhem em cantos escuros, a tal ponto que eles veem de forma escura durante o dia.” Não, os homens devem combinar estas tendências, e quem descansa deve agir e quem age deve descansar. Discuta o problema com a Natureza; ela lhe dirá que criou dia e noite.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Teofrasto (372 a.C. — 287 a.C.) foi um filósofo da Grécia Antiga, sucessor de Aristóteles na escola peripatética. Aristóteles, em seu testamento, nomeou-o como tutor dos filhos, legando-lhe a biblioteca e os originais dos trabalhos e designando-o como sucessor no Liceu.
[2] Possivelmente Pompônio Segundo, um general e poeta trágico romano que viveu durante o reinado de Tibério, Calígula e Cláudio.