Na carta 48 Sêneca pela primeira vez critica contundentemente o epicurismo, filosofia antagonista do estoicismo. O ponte central da crítica é a relação com amigos: Sêneca diz que para o estoico, os termos “amigo” e “homem” são coextensivos, pois ele é o amigo de todos, e seu motivo de amizade é ser útil; Já o epicurista restringe a definição de “amigo” e considera-o meramente como um instrumento para sua própria felicidade:
“ninguém pode viver feliz se só pensa em si próprio e transforma tudo em questão de sua própria utilidade; você deve viver para o seu vizinho, se você quiser viver para si mesmo.“(XLVIII, 2)
“Por esse lado, “homem” é o equivalente de “amigo”; no outro lado, “amigo” não é o equivalente de “homem”. Um quer um amigo para sua própria vantagem; o outro quer fazer-se uma vantagem para seu amigo.”
(XLVIII, 4)
Na sequencia explica qual a função da filosofia, e ataca o exercício de sofismo praticado pelos epicuristas da época:
” Você realmente saberia o que a filosofia oferece à humanidade? A filosofia oferece conselhos. “(XLVIII, 7)
“Devo julgar seus jogos de lógica como sendo de algum proveito para aliviar os fardos dos homens, se você puder me mostrar primeiro que parte desses fardos aliviarão. O que entre esses jogos afasta a luxúria? Ou a controla? Gostaria que eu pudesse dizer que eles são meramente ineficazes! Eles são positivamente prejudiciais. “(XLVIII, 9)
Sêneca conclui a carta exortando Lucílio a focar no principal e abandonar os trocadilhos e coisas supérfluas:
“Sinceridade, e simplicidade mostram verdadeira bondade. Mesmo se houvesse muitos anos para você, você teria que gastá-los frugalmente para ter o suficiente para as coisas necessárias; mas como é, quando seu tempo é tão escasso, que estupidez é aprender coisas supérfluas!” (XLVIII, 12)
imagem: datalhe de Fuga da Decepção por Francesco Queirolo (1704–1762) Cappella Sansevero em Nápoles
XLVIII. Sobre trocadilhos como Indigno ao Filósofo
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- Em resposta à carta que me escreveu durante a viagem, – uma carta tão longa quanto a viagem em si, – vou responder mais tarde. Eu devo me retirar, e considerar que tipo de conselho que eu posso lhe dar. Porque você mesmo, que me consulta, também refletiu por um longo tempo; quanto mais, então, devo eu mesmo refletir, já que mais deliberação é necessária para responder do que para propor um problema! E isso é particularmente verdadeiro quando uma coisa é vantajosa para você e outra para mim. Estou falando de novo sob a máscara de um epicurista[1]?
- Mas o fato é que a mesma coisa é vantajosa para mim e é vantajosa para você; porque não sou seu amigo, a menos que o que seja importante para você também seja minha preocupação. A amizade produz entre nós uma parceria em todos os nossos interesses. Não há tal coisa como boa ou má fortuna para um de nós; nós vivemos em comum. E ninguém pode viver feliz se só pensa em si próprio e transforma tudo em questão de sua própria utilidade; você deve viver para o seu vizinho, se você quiser viver para si mesmo.
- Esta comunhão, mantida com escrupuloso cuidado, que nos faz misturarmo-nos como homens com nossos semelhantes e sustenta que a raça humana tem certos direitos em comum, é também de grande ajuda em nutrir a comunhão mais íntima que se baseia na amizade, sobre a qual eu comecei a falar acima. Pois quem tem muito em comum com um semelhante terá todas as coisas em comum com um amigo.
- E sobre este ponto, meu excelente Lucílio, gostaria que esses sutis dialéticos me aconselhem como devo ajudar um amigo, ou como um homem, ao invés de me dizer de quantas maneiras a palavra “amigo” é usada, e quantos significados a palavra “homem” possui. Sabedoria e Estupidez tomam lados opostos[2]. A qual devo me juntar? Qual partido você gostaria que eu seguisse? Por esse lado, “homem” é o equivalente de “amigo”; no outro lado, “amigo” não é o equivalente de “homem”. Um quer um amigo para sua própria vantagem; o outro quer fazer-se uma vantagem para seu amigo. O que você tem a me oferecer não é nada além de distorção de palavras e divisão de sílabas.
- É claro que, a menos que eu possa imaginar algumas premissas muito difíceis e por falsas deduções aderir a elas uma falácia que nasce da verdade, não serei capaz de distinguir entre o que é desejável e o que deve ser evitado! Estou envergonhado! Homens velhos como nós somos, lidando com um problema tão sério, e fazemos dele um jogo!
- “Rato é uma palavra, agora um rato come queijo, portanto, uma palavra come queijo.” Suponha agora que não consiga resolver este problema; Veja que perigo pende sobre minha cabeça como resultado de tal ignorância! Que situação crítica vou estar! Sem dúvida, devo ter cuidado, ou algum dia eu vou pegar palavras em uma ratoeira, ou, se eu ficar descuidado, um livro pode devorar meu queijo! A menos que, talvez, o seguinte silogismo seja ainda mais perspicaz: “Rato é uma palavra, agora uma palavra não come queijo, por isso um rato não come queijo”[3].
- Que disparate infantil! Será que nós devemos debater sobre este tipo de problema? Deixamos nossas barbas crescerem por muito tempo por essa razão? É este o assunto que ensinamos com rostos amargos e pálidos? Você realmente saberia o que a filosofia oferece à humanidade? A filosofia oferece conselhos. A morte chama um homem, e a pobreza desgasta outro; um terceiro está preocupado com a riqueza do seu vizinho ou com a sua. Fulano tem medo da má fortuna; outro deseja ficar longe de sua própria fortuna. Alguns são maltratados pelos homens, outros pelos deuses.
- Por que, então, você molda para mim jogos como esses? Não é ocasião de brincadeira; você é considerado como conselheiro para a humanidade infeliz. Você prometeu ajudar aqueles em perigo no mar, aqueles em cativeiro, doentes e necessitados, e aqueles cujas cabeças estão sob o machado levantado. Até que ponto onde você está se perdendo? O que você está fazendo? Este amigo, em cuja companhia você está brincando, está com medo. Ajude-o, e retire o laço de seu pescoço. Homens estão estendendo as mãos implorando para você em todos os lados; Vidas arruinadas e em perigo de ruína estão implorando por alguma ajuda; as esperanças dos homens, os recursos dos homens, dependem de você. Eles pedem que você os livre de toda a sua inquietação, que você revele a eles, dispersos e vagando como eles estão, a clara luz da verdade.
- Diga-lhes o que a natureza fez necessário, e o que supérfluo; diga-lhes como são simples as leis que ela estabeleceu, quão agradável e desimpedida a vida é para aqueles que seguem essas leis, mas quão amarga e perplexa é para aqueles que têm a sua confiança na opinião e não na natureza. Devo julgar seus jogos de lógica como sendo de algum proveito para aliviar os fardos dos homens, se você puder me mostrar primeiro que parte desses fardos aliviarão. O que entre esses jogos afasta a luxúria? Ou a controla? Gostaria que eu pudesse dizer que eles são meramente ineficazes! Eles são positivamente prejudiciais. Posso deixar bem claro para você quando quiser, que um espírito nobre quando envolvido em tais sutilezas é prejudicado e enfraquecido.
- Tenho vergonha de dizer quais armas fornecem aos homens que estão destinados a guerrear com a fortuna, e quão mal os equipam! É este o caminho para o maior bem? A filosofia deve prosseguir por tal artifício e trocadilho[4] que seria uma desonra e um opróbrio mesmo para os deturpadores da lei? Pois o que mais vocês estão fazendo, quando deliberadamente aprisionam a pessoa a quem estão fazendo perguntas, do que fazer parecer que o homem perdeu sua causa por um erro técnico? Mas assim como o juiz pode restabelecer aqueles que perderam um processo dessa maneira, a filosofia pode restabelecer estas vítimas de trocadilhos a sua condição anterior.
- Por que vocês, homens, abandonam suas promessas extremas e, depois de terem me assegurado em linguagem erudita que vocês não permitirão que o brilho do ouro ofusque minha visão não mais que o brilho da espada e que eu, com poderosa perseverança despreze tanto aquilo que todos os homens anseiam quanto aquilo que todos os homens temem, por que vocês descenderam ao ABC dos acadêmicos pedantes? Qual é sua resposta? É este o caminho para o céu? Pois é exatamente isso que a filosofia promete a mim, que eu serei feito igual a Deus. Para isso fui convocado, para este propósito eu vim. Filosofia, mantenha sua promessa!
- Portanto, meu caro Lucílio, retire-se o mais possível dessas exceções e objeções desses chamados filósofos. Sinceridade, e simplicidade mostram verdadeira bondade. Mesmo se houvesse muitos anos para você, você teria que gastá-los frugalmente para ter o suficiente para as coisas necessárias; mas como é, quando seu tempo é tão escasso, que estupidez é aprender coisas supérfluas!
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Os epicuristas, que reduziam todos os bens a “utilidades”, não podiam considerar a vantagem de um amigo como idêntica à própria vantagem. E, no entanto, colocavam grande peso na amizade como uma das principais fontes de prazer. Para uma tentativa de conciliar essas duas posições, veja Cicero, De Finibus. Sêneca usou uma frase que implica uma diferença entre os interesses de um amigo e o próprio. Isso o leva a reafirmar a visão estoica da amizade, que adotou como lema.
[2] Os lados são dados em ordem inversa nas duas cláusulas: para o estoico, os termos “amigo” e “homem” são coextensivos, pois ele é o amigo de todos, e seu motivo de amizade é ser útil; Já o Epicurista, no entanto, restringe a definição de “amigo” e considera-o meramente como um instrumento para sua própria felicidade.
[3] Neste parágrafo, Sêneca expõe a loucura de tentar provar uma verdade por meio de truques lógicos e oferece uma caricatura daqueles que estavam atuais entre os filósofos a quem ele ridiculariza.
[4] Sêneca usa a termo “sive nive”, literalmente, “ou se ou se não,” palavras constantemente empregadas pelos lógicos e nos instrumentos legais.