Na carta 33 Sêneca aborda nossa responsabilidade sobre o legado que devemos deixar. Prescreve estudar com profundidade a sabedoria dos antepassados ilustres:
“Por esta razão, desista de acreditar que possa desnatar, por meio de resumos, a sabedoria de homens ilustres. Olhe para a sua sabedoria como um todo; estude-a como um todo… Examine as partes separadas, se quiser, desde que você as examine como partes do próprio homem. Uma bela mulher não é aquela cujo tornozelo ou braço é elogiado, mas cuja aparência geral faz você esquecer de admirar atributos únicos.” (XXXIII,5)
Contudo, após certo ponto, devemos nós mesmo criar novos ensinamentos, usando como alicerce o conhecimento adquirido com mestres reconhecidos:
“Mas qual é a sua opinião? Por quanto tempo marchará sob as ordens de outro homem? Tome o comando, e proferira alguma palavra que a posteridade possa se lembrar. Coloque algo de seu próprio estoque.“(XXXIII,7)
Gosto muito do último parágrafo, que representa a síntese do conservadorismo, ou seja, devemos ampliar e melhorar a sociedade sempre conservando as tradições de base:
“O que então? Não seguirei os passos de meus predecessores? Devo realmente usar a estrada velha, mas se encontrar um atalho que seja mais suave para viajar, devo abrir a nova estrada[8]. Os homens que fizeram essas descobertas antes de nós não são nossos mestres, mas nossos guias. A verdade está aberta para todos; ainda não foi monopolizada. E ainda há muito dela para a posteridade descobrir.” (XXXIII,11)
(imagem: La Tache noire por Albert Bettannier)
XXXIII. Sobre a Futilidade de aprender axiomas
Saudações de Sêneca a Lucílio.
1. Você deseja que eu conclua essa carta assim como eu encerrei minhas cartas anteriores, com certas declarações tomadas dos chefes de nossa escola. Mas eles não se interessavam em resumos escolhidos; Toda a textura de seus trabalhos está cheia de força. Há volatilidade, você sabe, quando alguns objetos se erguem acima de outros. Uma única árvore não é notável se toda a floresta sobe à mesma altura.
2. A poesia está repleta de declarações desse tipo, assim como a história. Por esta razão, eu não quero que pense que essas expressões pertençam a Epicuro. Elas são propriedade comum e enfaticamente nossas[1]. São, no entanto, mais notáveis em Epicuro, porque aparecem em intervalos infrequentes e quando se não espera por elas, e porque é surpreendente que palavras valentes possam ser faladas a qualquer momento por um homem afeminado. Pois é isso que a maioria das pessoas sustenta. Na minha opinião, no entanto, Epicuro é realmente um homem corajoso, mesmo que use vestes compridas. Força moral, energia e prontidão para a batalha são encontradas entre os persas[2], tanto quanto entre os homens que zombam de si mesmos.
3. Portanto, você não precisa recorrer a trechos e citações; pensamentos que se podem extrair aqui e ali nas obras de outros filósofos percorrem todo o corpo de nossos escritos. Portanto, não temos bens de mostruário, nem enganamos o comprador de tal maneira que, se ele entrar na nossa loja, não encontrará nada, exceto o que é exibido na janela. Nós permitimos que os próprios compradores retirem suas amostras de qualquer lugar que desejem.
4. Suponha que desejemos separar cada mote do estoque geral; a quem devemos dar-lhes crédito? A Zenão, Cleantes, Crisipo, Panécio ou Posidônio[3]? Nós estoicos não somos súditos de um déspota: cada um de nós reivindica sua própria liberdade. Com eles[4], por outro lado, o que Hermarco diz ou Metrodoro diz, é atribuído a uma única fonte. Naquela fraternidade, tudo o que qualquer homem diz é creditado a liderança e autoridade de um só[5]. Nós não podemos, eu defendo, não importa como, selecionar um item bom de uma multidão de coisas igualmente boas.
Só o pobre conta o seu rebanho. | Pauperis est numerare pecus.[6] |
Onde quer que você dirija seu olhar, você encontrará algo que pode se destacar do resto, se o contexto em que o lê não for igualmente notável.
5. Por esta razão, desista de acreditar que possa desnatar, por meio de resumos, a sabedoria de homens ilustres. Olhe para a sua sabedoria como um todo; estude-a como um todo. Ela elabora um plano coesamente tecido, linha a linha, uma obra-prima, da qual nada pode ser tirado sem ferir o todo. Examine as partes separadas, se quiser, desde que você as examine como partes do próprio homem. Uma bela mulher não é aquela cujo tornozelo ou braço é elogiado, mas cuja aparência geral faz você esquecer de admirar atributos únicos.
6. Se você insistir, no entanto, não serei mesquinho com você, mas pródigo; pois há uma enorme multidão dessas passagens; elas estão espalhadas em profusão, – elas não precisam ser arrebanhadas, mas apenas colhidas. Elas não gotejam ocasionalmente; elas fluem continuamente. Elas são ininterruptas e estão intimamente ligadas. Sem dúvida, seria muito benéfico para aqueles que ainda são principiantes; pois um axioma único é compreendido mais facilmente quando é marcado e delimitado como uma linha de verso.
7. É por isso que damos aos filhos um provérbio, ou o que os gregos chamam Chreia[7], para ser aprendido de cor, pois esse tipo de coisa pode ser compreendido pela mente jovem, que ainda não totalmente capaz. Para um homem, no entanto, cujo progresso é definitivo, perseguir os extratos escolhidos e escorar sua fraqueza pelos ditos mais conhecidos e mais breves e depender de sua memória, é vergonhoso; é hora de se apoiar em si mesmo. Um homem deveria criar tais máximas e não as memorizar. Pois é vergonhoso até para um ancião, ou alguém que tenha avistado a velhice, ter um conhecimento de livro de anotações. – Foi o que Zenão disse. Mas o que você mesmo disse? Esta é a opinião de Cleantes. Mas qual é a sua opinião? Por quanto tempo marchará sob as ordens de outro homem? Tome o comando, e proferira alguma palavra que a posteridade possa se lembrar. Coloque algo de seu próprio estoque.
8. Por isso, considero que não há nada de eminência em homens como estes, que nunca criam nada, mas sempre se escondem à sombra dos outros, desempenhando o papel de intérpretes, nunca ousando pôr em prática o que eles tanto estudam. Eles exercitam suas lembranças no material de outros homens. Mas uma coisa é lembrar, outra, saber. Lembrar é meramente salvaguardar algo confiado à memória; saber, no entanto, significa fazer tudo você mesmo; significa não depender da cópia e não precisar lançar o olhar todo o tempo para o mestre.
9. “Assim disse Zenão, assim disse Cleantes, de fato!” Que haja uma diferença entre você e seu livro! Quanto tempo você deve ser um aprendiz? De agora em diante, seja professor também! “Mas por que”, pergunta-se, “eu deveria continuar ouvindo palestras sobre o que eu posso ler?” “A voz viva”, responde o mestre, “é uma grande ajuda”. Talvez, mas não a voz que apenas se faz o porta-voz das palavras de outra pessoa, e só executa o dever de um repórter.
10. Considere também este fato. Aqueles que nunca alcançaram a sua independência mental começam, em primeiro lugar, seguindo o líder nos casos em que todos abandonaram o líder; depois, em segundo lugar, seguem-no em assuntos onde a verdade ainda está sendo investigada. No entanto, a verdade nunca será descoberta se descansarmos satisfeitos com as descobertas já feitas. Além disso, aquele que segue o outro não só não descobre nada, mas nem sequer está investigando.
11. O que então? Não seguirei os passos de meus predecessores? Devo realmente usar a estrada velha, mas se encontrar um atalho que seja mais suave para viajar, devo abrir a nova estrada[8]. Os homens que fizeram essas descobertas antes de nós não são nossos mestres, mas nossos guias. A verdade está aberta para todos; ainda não foi monopolizada. E ainda há muito dela para a posteridade descobrir.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Tanto estoica como epicurista.
[2] Que usavam mangas compridas.
[3] Zenão. . . Posidônio: os estoicos são citados por ordem de sucessão: primeiro os três chefes da escola, então os estoicos que trouxeram o conhecimento para Roma, Panécio e Posidônio, contemporâneo de Pompeu e Cicero. Embora Sêneca classifique Posidônio com os mestres, ele não mostrará um interesse próximo na ética ou antropologia de Posidônio até a letra LXXXIII, quando ele claramente começou a lê-lo como um estímulo para argumentação.
[4] Os epicuristas.
[5] Creditado a um homem: isto é, Epicuro, que se apropriou das sábias palavras de seus seguidores.
[6] Trecho de Metamorfose de Ovídio.
[7] Chreia, uma forma de educação gramatical consistida em fazer os alunos tomarem um axioma de um sábio escolhido e reformulá-lo em diferentes padrões sintáticos.
[8] Sêneca não se compara a um caminhante, mas a um construtor de estrada (o verbo é munire, construir uma estrada), que, portanto, criará caminhos para que os outros usem depois dele.
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