Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la, dessa vez ilustrando seus ensinamentos com o caso real de Aufidius Bassus historiador romano contemporâneo de seu pai (Sêneca, o Velho).
Bassus está muito idoso e fraco, porém lúcido e corajoso frente a morte: “A filosofia nos concede essa dádiva; faz-nos alegres na própria visão da morte, fortes e corajosos embora o corpo nos falhe” (XXX, 2)
Na sequência Sêneca defende a ordem natural: “é tão tolo temer a morte quanto temer a velhice; pois a morte segue a velhice exatamente como a velhice segue a juventude. Aquele que não deseja morrer não pode ter desejado viver. Pois a vida nos é concedida com a condição de que morreremos” (XXX,10)
Termina a carta com seu frequente bom humor e final marcante:
“Mas o que eu realmente deveria temer é que você odeie esta longa carta mais do que a própria morte; então eu vou concluir. Você, entretanto, sempre pense na morte para que nunca precise temê-la.” (XXX, 18)
(imagem, Sarcófago de Junius Bassus, Museu do Tesouro de São Pedro, Vaticano)
XXX. Sobre Conquistar o Conquistador (a morte)
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- Eu vi Aufidio Baso[1], aquele homem nobre, com saúde aquebrantada e lutando com seus anos. Mas eles já pesam tanto sobre ele que não pode se levantar; a velhice se assentou sobre ele, – sim, com todo o seu peso. Você sabe que seu corpo sempre foi delicado e sem vigor. Por muito tempo ele manteve a saúde na mão, ou, para falar mais corretamente, equilibrou-a; de repente, desmoronou.
- Assim como em um navio que faz água, você sempre pode parar a primeira ou a segunda fissura, mas quando muitos buracos começam a abrir e deixar entrar a água, o casco decrépito não pode ser salvo; da mesma forma, no corpo de um velho, há um certo limite até o qual você pode sustentar e escorar sua fraqueza. Mas quando começa a se assemelhar a um edifício em ruinas, quando cada articulação começa a espanar e enquanto uma está sendo reparada outra cai, – então é hora de um homem olhar em volta e considerar como pode sair.
- Mas a mente de nosso amigo Baso é ativa. A filosofia nos concede essa dádiva; faz-nos alegres na própria visão da morte, fortes e corajosos embora o corpo nos falhe. Um grande piloto pode navegar mesmo quando sua vela é rasgada; se seu navio for desmantelado, ele ainda pode arrumar o que resta do seu casco e segurá-lo ao seu curso. É isso que o nosso amigo Baso está fazendo; e ele contempla seu próprio fim com a coragem e a compostura que você consideraria apatia indevida em um homem que assim contemplasse o outro.
- Este é um grande feito, Lucílio, e um que necessita longa prática para se aprender, – partir calmamente quando a hora inevitável chega. Outros tipos de morte contêm um ingrediente de esperança: uma doença chega ao fim; um fogo é extinguido; as casas em ruina depositaram em segurança aqueles que pareciam certos de serem esmagados; O mar devolveu ilesos a costa aqueles a quem tinha engolido, com a mesma força pela qual os dragou; O soldado retraiu sua espada do pescoço de seu inimigo condenado. Mas aqueles a quem a velhice está levando para a morte não têm nada a esperar; a velhice por si só não concede nenhuma prorrogação. Nenhum final, é claro, é mais indolor; mas não há nenhum mais persistente.
- Nosso amigo Baso me pareceu assistir a seu próprio funeral, e ter seu próprio corpo para o enterro, e vivendo quase como se tivesse sobrevivido a sua própria morte, e suportando com resignação sábia seu pesar por sua própria partida. Pois ele fala livremente sobre a morte, tentando persuadir-nos de que, se este processo contém qualquer elemento de desconforto ou de medo, é culpa do moribundo, e não da própria morte; também, que não há mais aborrecimento no momento atual do que existe depois que acabou.
- “E é tão insano”, acrescenta, “para um homem temer o que não lhe acontecerá, como temer o que ele não sentirá se acontecer”. Ou será que alguém imagina que é possível que o agente pelo qual o sentimento é removido possa ser sentido? “Portanto,” diz Baso, “a morte está tão além de todo o mal que está além de todo o medo do mal.”
- Sei que tudo isso tem sido dito muitas vezes e deverá ser repetido muitas vezes ainda; mas nem quando os liam eram tais preceitos tão eficazes, nem quando os ouvia dos lábios daqueles que estavam a uma distância segura do medo das coisas que eles declaravam não deveriam ser temidas. Mas esse velho homem teve o maior impacto em mim quando falou da morte e a morte estava próxima.
- Pois devo dizer-lhe o que penso: Eu sustento que alguém é mais corajoso no próprio momento da morte do que quando se aproxima da morte. Pois a morte, quando está perto de nós, dá até aos homens inexperientes a coragem de não procurar evitar o inevitável. Assim, o gladiador, que, não importa o quão covarde foi durante toda a luta, oferece a sua garganta ao seu adversário e direciona a lâmina vacilante para o local vital. Mas um fim que está próximo, e que está prestes a vir, requer coragem obstinada da alma; isto é uma coisa mais rara, e ninguém, a não ser o homem sábio, pode manifestar.
- Portanto, eu escutei Baso com o mais profundo prazer; ele estava lançando seu voto sobre a morte e apontando sua natureza quando observada, por assim dizer, mais próximo à mão. Suponho que um homem teria a sua confiança em um grau maior, e teria mais credibilidade, se ele tivesse voltado à vida e pudesse declarar de experiência própria que não há mal na morte; e assim, com respeito à aproximação da morte, estes dirão com maior propriedade qual inquietação traz quem esteve em seu caminho, que a viram vindo e a receberam.
- O Baso pode ser incluído entre estes homens; e ele não quer nos enganar. Ele diz que é tão tolo temer a morte quanto temer a velhice; pois a morte segue a velhice exatamente como a velhice segue a juventude. Aquele que não deseja morrer não pode ter desejado viver. Pois a vida nos é concedida com a condição de que morreremos; para este fim nos leva nosso caminho. Portanto, quão tolo é temê-la, já que os homens simplesmente esperam o que é certo, mas temem apenas o que é incerto!
- A morte tem sua regra fixa, – equitativa e inevitável. Quem pode reclamar quando é governado por cláusulas que válidas a todos? A parte principal da equidade, entretanto, é igualdade. Mas é supérfluo neste momento presente defender a causa da Natureza; pois deseja que nossas leis sejam idênticas às suas; ela decide o que ela compôs, e compõe novamente o que ela decidiu.
- Além disso, se um homem tiver a sorte de ser colocado suavemente à deriva pela velhice, – e não subitamente arrancado da vida, mas retirado pouco a pouco, oh, em verdade, ele deve agradecer aos deuses, um e todos, porque, depois de ter tido a sua plenitude, ele é levado a um descanso estabelecido para a humanidade, um descanso que é bem-vindo ao cansado. Você pode observar certos homens que anseiam pela morte ainda mais fervorosamente do que outros costumam mendigar por vida. E não sei qual destes homens nos dá maior coragem, aqueles que exigem a morte ou aqueles que a encontram alegre e tranquilamente, pois a primeira atitude é às vezes inspirada pela loucura e pela repentina raiva; a segunda é a calma que resulta de julgamento firme. Antigamente homens encontravam-se com a morte com um ataque de raiva; mas quando a morte vem ao seu encontro, ninguém a recebe com alegria, exceto o homem que há muito tempo se preparou para a morte.
- Admito, portanto, que visitei com mais frequência esse meu querido amigo com muitos pretextos, mas com o propósito de saber se eu o encontraria sempre o mesmo, e se sua força mental talvez estivesse diminuindo em paralelo as competências de seu corpo. Mas estava aumentando, assim como a alegria do jóquei costuma mostrar-se mais claramente quando está na sétima rodada da prova, e se aproxima do prêmio.
- De fato, ele dizia com frequência, em harmonia com os conselhos de Epicuro: “Espero, antes de tudo, que não haja dor no momento em que um homem expira, mas se houver, encontrar-se-á um elemento de conforto em sua própria brevidade, pois nenhuma grande dor dura por muito tempo e, em todo caso, um homem encontrará alívio no momento em que alma e corpo estão sendo separados, mesmo que o processo seja acompanhado de dor terrível, no pensamento de que depois que a dor acabar, não pode sentir mais dor. Mas tenho certeza de que a alma de um velho está em seus lábios e que só é necessária uma pequena força para desprendê-la do corpo. Fogo que tenha capturado uma construção que o sustente precisa de água para ser apagado, ou, às vezes, a destruição do próprio edifício, mas o fogo em que falta sustento de combustível morre de si mesmo.”
- Fico feliz em ouvir essas palavras, meu caro Lucílio, não tão novas para mim, mas como me levando à presença de um fato real. E o que então? Não vi muitos homens romperem o fio da vida? Eu realmente vi esses homens; mas aqueles que têm mais influência em mim se aproximam da morte sem qualquer ódio pela vida, dando passagem à morte, por assim dizer, e não a puxando para eles.
- Baso sempre dizia: “É por nossa própria culpa que sentimos essa tortura, porque nos tememos pela morte somente quando acreditamos que nosso fim está próximo”. Mas quem não está perto da morte? Ela está pronta para nós em todos os lugares e em todos os momentos. “Consideremos”, continuou ele, “quando algum agente da morte parece iminente, quão mais próximos estão outras variedades de morrer do que aquelas temidas por nós”.
- Um homem é ameaçado por um inimigo, mas esta forma de morte é antecipada por um ataque de indigestão. E se estamos dispostos a examinar criticamente as várias causas do nosso medo, descobriremos que algumas existem, e outras só parecem existir. Não temamos a morte; temamos o pensamento da morte. Pois a morte está sempre a mesma distância de nós; portanto, se é para ser temida absolutamente, é para ser temida sempre. Pois qual estação de nossa vida é isenta da morte?
- Mas o que eu realmente deveria temer é que você odeie esta longa carta mais do que a própria morte; então eu vou concluir. Você, entretanto, sempre pense na morte para que nunca precise temê-la.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Aufidius Bassus foi um historiador romano que viveu no reinado de Tibério. Sua obra, foi continuada por Plínio. Sêneca, o Velho, (pai do nosso Sêneca) fala muito de Bassus como historiador.