Carta 20: Sobre praticar o que se prega

A carta de Sêneca a Lucílio é um tratado filosófico sobre integridade, consistência entre o que se fala e o que se faz, e a busca por sabedoria. Sêneca exorta Lucílio a viver de acordo com seus princípios, criticando a hipocrisia de pregar simplicidade enquanto vive no luxo.

É um lembrete gritante de que o estoicismo é uma filosofia prática, destinada a ser implantada diariamente durante a vida, e não simplesmente contemplada quando podemos ler por lazer.

Essa linha de raciocínio leva Sêneca a sugerir  o exercício da autodeprivação moderada. Os exercícios de privação, então, têm múltiplas funções: eles testam nossa resistência, eles nos preparam para possíveis adversidades, eles nos lembram que muitas coisas que achamos que precisamos não são realmente necessárias, e eles reajustam nosso ciclo hedônico, fazendo-nos apreciar o que nós já temos.

Sêneca conclui com uma mensagem de força e bem-estar, reforçando a ideia de que a riqueza verdadeira e a felicidade derivam da liberdade interna alcançada através da virtude, não da posse material.  Em resumo, oferece uma visão profunda sobre como a filosofia deve ser uma prática vivida, que transforma não apenas o pensamento, mas a vida e o caráter do indivíduo.

XX. Sobre praticar o que se prega

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Se você está em boa saúde e se você se considera digno de finalmente se tornar seu próprio mestre, estou contente. Pois será minha a glória se eu puder salvá-lo das inundações de golpes sem esperança de fim. Porém, meu caro Lucílio, peço e suplico, por sua parte, que deixe a sabedoria penetrar em sua alma e teste seu progresso, não por mero discurso ou escrita, mas por força de coração e redução do desejo. Prove suas palavras por suas ações.

2. Diferente do propósito daqueles que discursam e tentam ganhar a aprovação de uma multidão de ouvintes, é o propósito daqueles que seduzem os ouvidos dos jovens e dos ociosos por meio de argumentação fluente. A filosofia nos ensina a agir, não a falar; exige de cada homem que viva de acordo com o seu próprio padrão, que a sua vida não esteja em desacordo com as suas palavras e que, além disso, sua vida interior não seja destoante, mas em harmonia com todas as suas atividades. Isto, eu digo, é o mais alto dever e a mais alta prova de sabedoria, que ações e palavras estejam em acordo, que um homem deva ser sempre o mesmo sob todas as condições. “Mas,” você responde, “quem pode manter este nível?” Muito poucos, com certeza, mas há alguns. É de fato um empreendimento árduo e não digo que o filósofo possa sempre manter o mesmo ritmo. Mas ele sempre pode seguir o mesmo caminho.

3. Observe-se então, e veja se suas vestes e sua casa são inconsistentes, se você se trata generosamente, mas sua família mal, se você come frugalmente, mas ainda constrói casas luxuosas. Você deve aplicar, de uma vez por todas, um único padrão de vida e deve regular toda a sua vida de acordo com este padrão. Alguns homens se restringem em casa mas andam empertigados diante do público. Tal discordância é uma falha e indica uma mente vacilante que ainda não pode manter seu equilíbrio.

4. E eu posso dizer-lhe, ainda, de onde surge esta instabilidade e este desacordo de ação e propósito: é porque nenhum homem decide o que deseja, e mesmo que o tenha feito, não persiste nisso, desiste, não só vacila, mas volta para a conduta que abandonou e repudiou.

5. Portanto, omitindo as antigas definições de sabedoria e incluindo todo o modo de vida humana, posso ficar satisfeito com o seguinte: “O que é sabedoria? Sempre desejar as mesmas coisas e sempre recusar as mesmas coisas”.88 Você pode acrescentar uma pequena condição, que o que se deseja, seja o certo, já que nenhum homem pode sempre estar satisfeito com a mesma coisa, a menos que esta seja a coisa certa.

6. Por isso os homens não sabem o que desejam, a não ser no momento em que desejam; nenhum homem decidiu de uma vez por todas desejar ou recusar. O julgamento varia de dia para dia e muda para o oposto, fazendo com que muitos homens passem a vida em uma espécie de jogo. Prossiga, portanto, como você começou; talvez você seja levado à perfeição, ou a um ponto no qual só você considere aquém da perfeição.

7. “Mas o que,” você diz, “se tornará a minha casa cheia de gente sem uma renda?” Se você parar de apoiar essa gente, ela se sustentará, ou talvez vá aprender graças à pobreza o que não pode aprender por conta própria. A pobreza manterá com você seus amigos verdadeiros e provados, você será livrado dos homens que não o procuraram por você mesmo, mas por algo que você tem. Não é certo, no entanto, que você ame a pobreza, ainda que apenas por essa única razão, para mostrar por quem você é amado? Ou quando chegará esse ponto, quando ninguém disser mentiras para congratulá-lo!

8. Assim, deixe que seus pensamentos, seus esforços, seus desejos, ajudem a torná-lo satisfeito com seu próprio eu e com os bens que brotam de si mesmo e empenhe todas as orações à divindade! Que felicidade poderia se aproximar de você? Traga-se a uma posição humilde, da qual você não pode ser expulso e na qual você possa estar com maior espontaneidade, a contribuição contida nesta carta irá se referir a esse assunto; eu a concederei imediatamente.

9. Embora você possa olhar com desconfiança, Epicuro, mais uma vez, ficará contente em liquidar meu endividamento: “Acredite! Suas palavras serão mais imponentes se você dormir em uma cama estreita e usar trapos, pois nesse caso você não estará simplesmente dizendo, você estará demonstrando sua verdade.89 De qualquer modo, escuto com um espírito diferente as palavras de nosso amigo Demétrio, depois que o vi recostado sem sequer um manto para cobri-lo, e, mais do que isso, sem tapetes para deitar. Ele não é apenas um mestre da verdade, mas uma testemunha da verdade.

10. “Não pode um homem, no entanto, desprezar a riqueza quando ela está em seu próprio bolso?” Claro, também é de grande alma, quem vê riquezas amontoadas em torno de si e, depois de se perguntar longa e profundamente porque elas chegaram em sua posse, sorri e vê, em vez de sentir, que elas são suas. Significa muito não ser estragado pela intimidade com as riquezas e é verdadeiramente grande quem é pobre em meio às riquezas.

11. “Sim, mas eu não sei”, vem a objeção, “como o homem de quem você fala sofrerá a pobreza, se cair nela de repente?”. Nem eu, Epicuro, sei se o pobre de quem você fala vai desprezar as riquezas, se a pobreza, de repente, chegar a ele; portanto, no caso de ambos, é a mente que deve ser avaliada e devemos investigar se o seu homem está satisfeito com a sua pobreza e se o meu homem está descontente com suas riquezas. A cama estreita e os trapos são uma prova fraca de suas boas intenções se não for deixado claro que a pessoa referida sofre essas provações não por necessidade, mas por escolha.

12. É, contudo, a marca de um espírito nobre não se precipitar em tais coisas por serem melhores, mas pô-las em prática, porque são desse modo fáceis de suportar. E são fáceis de suportar, Lucílio. Quando, no entanto, você chegar a elas depois de uma longa prova, elas são ainda agradáveis, pois contêm uma sensação de liberdade, sem a qual nada é agradável.

13. Considero, conforme já lhe disse em outra carta,90 essencial fazer o que os grandes homens fazem com frequência: reservar alguns dias para nos prepararmos para a pobreza real por meio da pobreza simulada. Há mais razão para fazer isso, porque estamos impregnados de luxo e consideramos todos os deveres árduos e onerosos. Em vez disso, deixe a alma ser despertada de seu sono, ser estimulada e ser lembrada de que a natureza prescreveu muito pouco para nós. Nenhum homem nasce rico. Todo homem, quando vê pela primeira vez a luz, é condenado a se contentar com leite e trapos. Tal é o nosso começo e ainda assim chegamos a pensar que os reinos todos são muito pequenos para nós!91

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


88 Sêneca aplica à sabedoria a mesma definição de amizade de Salústio, “ idem velle atque idem nolle, ea demui firma amicitia est”.

90 Ver neste volume, Carta XVIII, 5.

91 Adaptado do epigrama sobre Alexandre o Grande, “hic est quem non capit orbis” em Plutarco.

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