A Carta XVII de Sêneca a Lucílio é uma reflexão profunda sobre a relação entre a riqueza, a pobreza, e a sabedoria, enfatizando a importância da filosofia para alcançar uma vida plena e livre de preocupações materiais. Mais uma vez Sêneca aborda a questão da pouca importância do dinheiro para a felicidade e nos exalta a colocar o estudo da filosofia em primeiro plano, deixando a acumulação de riquezas em segundo.
Tal conselho, vindo de um dos mais ricos homens de Roma pode parecer hipócrita, e o próprio Sêneca era alvo de seus críticos, que perguntavam: “Por que você fala muito melhor do que vive?” Sêneca em seus escritos discorre sobre a possibilidade de alguém ser rico, até mesmo extremamente rico, e manter a integridade ética. Existem três critérios principais para isso, Sêneca nos diz.
- O rico virtuoso deve manter a atitude correta, alheia e não-escrava em relação à sua riqueza, possuindo-a sem obrigação e disposto a desistir de tudo quando necessário: “Ele é um grande homem que usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa a prata como se fosse barro“. (Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna)
- Em segundo lugar, ele deve adquirir riquezas de maneira moralmente legítima, para que seu dinheiro não seja “manchado de sangue ”.
- Em terceiro lugar, ele deve usar suas riquezas generosamente, para beneficiar os menos favorecidos do que ele – uma disposição que convida à comparação com o trabalho de caridade praticado por filantropos ricos em nosso próprio tempo.
Conciliar a riqueza com os ensinamentos de Sêneca pode ser visto como um desafio de viver segundo os princípios da filosofia enquanto se navega pelas realidades do mundo. Ele não defende a rejeição total da riqueza, mas sim um uso judicioso e virtuoso dela, sempre com a mente voltada para a virtude e o bem comum. A riqueza, para Sêneca, deve ser um instrumento para a prática da filosofia, não um fim em si mesmo, e ele mesmo tentou demonstrar isso através de sua vida e ensinamentos, embora nem sempre tenha sido visto como consistente em sua prática.
XVII. Sobre filosofia e riquezas
Saudações de Sêneca a Lucílio.
1. Elimine todas as coisas desse tipo se você é sábio. Ou melhor, para que seja sábio! Objetive uma mente sã, rápida e com toda a sua força. Se qualquer vínculo o retém, desfaça-o ou corte-o. “Mas”, diz você, “minha propriedade me atrasa, desejo fazer tal arranjo, que me sustente quando não puder mais trabalhar, para que a pobreza não seja um fardo para mim, ou eu mesmo um fardo para os outros.”
2. Você não parece, ao dizer isto, conhecer a força e o poder desse bem que você está considerando. De fato, você compreende tudo o que é importante, o grande benefício que a filosofia confere, mas você ainda não discerne com precisão suas várias funções, nem sabe quão grande é a ajuda que recebemos da filosofia em tudo. Para usar a linguagem de Cícero, “ela corre em nosso auxílio”,70 ela não só nos ajuda nas maiores questões, mas também desde a menor. Siga meu conselho, chame a sabedoria em consulta, ela irá aconselhá-lo a não sentar para sempre em seu livro-razão.
3. Sem dúvida, seu objetivo, que você deseja alcançar com tal adiamento de seus estudos, é que a pobreza não lhe aterrorize. Mas e se ela for algo a se desejar? As riquezas têm impedido muitos homens de alcançarem a sabedoria, a pobreza é desembaraçada e livre de cuidados. Quando a trombeta soa, o homem pobre sabe que não está sendo atacado, quando há um grito de “fogo”, ele só procura uma maneira de escapar e não se pergunta o que pode salvar; se o homem pobre deve ir para o mar, o porto não ressoa, nem os cais são abalados com o séquito de um indivíduo. Nenhuma multidão de escravos envolve o homem pobre, escravos para cujas bocas o mestre deve cobiçar as plantações férteis de seus vizinhos.
4. É fácil preencher poucos estômagos, quando eles são bem treinados e anseiam nada mais, a não ser serem preenchidos. A fome custa pouco. O escrúpulo custa muito. A pobreza está satisfeita com o preenchimento de necessidades urgentes. Por que, então, você deve rejeitar a Filosofia como uma amiga?
5. Mesmo o homem rico segue seu caminho quando é sensato. Se você deseja ter tempo livre para sua mente, seja um pobre homem ou se assemelhe a um pobre homem. O estudo não pode ser útil a menos que você se esforce para viver simplesmente, e viver simplesmente é pobreza voluntária. Então, fora com todas as desculpas como: “Eu ainda não tenho o suficiente, quando eu ganhar a quantidade desejada, então vou me dedicar inteiramente à filosofia.” E, no entanto, este ideal, que você está adiando e colocando em segundo lugar, deve ser assegurado em primeiro lugar. Você deve começar com ele. Você retruca: “Eu desejo adquirir algo para viver.” Sim, mas aprenda enquanto você está adquirindo, pois se alguma coisa o impede de viver nobremente, nada pode impedi-lo de morrer nobremente.
6. Não há nenhuma razão pela qual a pobreza deva nos afastar da filosofia, não, nem mesmo a real carestia. Pois, quando se aprofunda na sabedoria, podemos suportar até a fome. Os homens suportaram a fome quando suas cidades foram sitiadas e que outra recompensa por sua resistência eles obtiveram a não ser não cair sob o poder do conquistador? Quão maior é a promessa de liberdade eterna e a certeza de que não precisamos temer nem aos deuses nem aos homens! Mesmo que nós morramos de fome, devemos alcançar essa meta.
7. Os exércitos suportam toda a maneira de carestia, vivem de raízes e resistem à fome com alimentos repugnantes demais para mencionar.71 Tudo isso eles têm sofrido para ganhar um reino e, o que é mais assombroso, ganhar um reino que será de outro. Será que algum homem hesitaria em suportar a pobreza a fim de libertar sua mente da loucura? Portanto, não se deve procurar primeiro acumular riquezas. Pode-se chegar na filosofia, mesmo sem dinheiro para a passagem.
8. É mesmo assim. Depois de ter possuído todas as outras coisas, também deseja possuir sabedoria? É a filosofia o último requisito da vida, uma espécie de suplemento? Não, seu plano deve ser este: ser um filósofo agora, quer você tenha alguma coisa, quer não. Se você já tem alguma coisa, como você sabe que já não tem muito? Mas se você não tem nada, procure o discernimento primeiro, antes de qualquer outra coisa.
9. “Mas,” você diz, “eu irei carecer das necessidades da vida.” Em primeiro lugar, você não pode carecer delas, porque a natureza exige pouco e o homem sábio adapta suas necessidades à natureza. Mas se maior necessidade chegar, o sábio rapidamente se despedirá da vida e deixará de ser um problema para si mesmo. Se, no entanto, seus meios de existência forem escassos e reduzidos, ele fará o melhor deles, sem se angustiar ou se preocupar com nada mais do que com as necessidades básicas. Fará justiça ao seu ventre e aos seus ombros com espírito livre e feliz, rir-se-á da agitação dos homens ricos e dos caminhos confusos daqueles que se abalam em busca da riqueza,
10. e dirá: “Por que, por sua própria vontade, adia a vida real para o futuro distante? Para que algum juro seja depositado, ou por algum dividendo futuro ou para um lugar no testamento de algum velho rico, quando você pode ser rico aqui e agora? A sabedoria oferece a riqueza à vista e paga em dobro àqueles em cujos olhos ela tornou a riqueza supérflua.” Estes comentários referem-se a outros homens; você está mais perto da classe rica. Mude a sua idade e você terá muito.72 Mas em todas as idades, o que é necessário permanece o mesmo.
11. Eu poderia encerrar minha carta neste momento se eu não o tivesse acostumando mal. Não se pode cumprimentar a realeza sem trazer um presente e no seu caso eu não posso dizer adeus sem pagar um preço. Mas o que será? Tomarei emprestado de Epicuro: “A aquisição de riquezas tem sido para muitos homens não um fim, mas uma mudança, de problemas”.73
12. Não me admiro. Pois a culpa não está na riqueza, mas na própria mente. Aquilo que fez da pobreza um fardo para nós, torna as riquezas também um fardo. Assim como pouco importa se você coloca um homem doente em uma cama de madeira ou sobre uma cama de ouro, pois onde quer que ele seja movido ele vai levar sua doença com ele, também não é preciso se importar se a mente doente é outorgada às riquezas ou à pobreza. O padecimento vai com o homem.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
70 Ver Cícero, Hortensius.
71 Ver ensaio Sobre a Ira III, XX, 2 onde Sêneca relata como os soldados de Cambises, devido à imprudência deste soberano, se viram forçados a comer as solas de seus sapatos cozidas ao fogo.
72 Isto é, imagine-se jovem. Outra intepretação é mude de época, verá que tem mais que seus antepassados.
73 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.