Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna

Na carta 98 Sêneca mais uma vez alerta contra a busca por felicidade e sobre a excessiva confiança na Fortuna, ou seja, não prever que eventos prejudiciais acontecerão conosco.

Devemos ter em mente que tudo que acreditamos possuir, desde bens materiais aos amigos e família, são apenas empréstimos temporários, que um dia deixaremos de ter:

Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

(XCVIII, 2)

Sêneca apresenta exemplos que homens de virtude e diz que devemos segui-los sem medo: “As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio, crucificação por Régulo, veneno por Sócrates, exílio por Rutílio e espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”. (XCVIII,12)

(imagem Matthias Stomer, Múcio na presença de Lars Porsena)


XCVIII. Sobre a inconstância da fortuna

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você nunca deve acreditar que qualquer pessoa que dependa da felicidade esteja feliz! É um apoio frágil esse prazer em coisas forasteiras, a alegria que veio de fora partirá algum dia. Mas essa alegria que brota completamente de si próprio é leal e sólida, aumenta e nos atende até o fim enquanto todas as outras coisas que provocam a admiração da multidão são apenas bens temporários. Você pode responder: “O que você quer dizer? Não seria possível que essas coisas sirvam tanto para utilidade quanto para trazer satisfação?” Claro. Mas somente se elas dependerem de nós, e não nós delas.

2. Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

3. Um homem ruim torna tudo ruim, mesmo coisas que vieram com a aparência do melhor. Mas o homem reto e honesto corrige os erros da Fortuna e suaviza dificuldades e amarguras porque sabe como suportá-las, ele também aceita prosperidade com apreciação e moderação e enfrenta problemas com firmeza e coragem. Embora um homem seja prudente, embora ele conduza todos os seus interesses com um julgamento bem equilibrado, embora ele não tente nada além de suas forças, ele não alcançará o bem, que está livre e fora do alcance das ameaças, a menos que tenha certeza de lidar com habilidade com aquilo que é incerto.

4. Se você prefere observar outros homens – pois é mais fácil chegar a uma conclusão ao julgar os assuntos dos outros – ou se você se observa, com todo o preconceito deixado de lado, você perceberá e reconhecerá que não há utilidade em todas essas coisas desejáveis e amadas a menos que você se equipe em oposição à inconstância do acaso e suas consequências e a menos que você repita com frequência e com indiferença, em cada transtorno, as palavras: “Os deuses decretaram o contrário”.[1]

5. Não, em vez disso, adote uma frase que seja mais corajosa e mais próxima da verdade – uma sobre a qual você possa suportar com segurança seu espírito. Diga a si mesmo, sempre que as coisas se revelem contrárias à sua expectativa: “Os deuses decretaram o melhor!” Se você estiver com essa disposição de espírito, nada irá afetá-lo. Esta disposição você conseguirá se refletir sobre os possíveis altos e baixos nos assuntos humanos antes de testar a força da Fortuna, se vier a considerar filhos ou esposa ou propriedade com a ideia de que não os possuirá necessariamente para sempre e que não será mais miserável apenas porque os tenha deixado de possuir.

6. É trágico que a alma esteja apreensiva pelo futuro e miserável em antecipação à miséria, consumada com um ansioso desejo de que os objetos que dão prazer permaneçam em sua posse até o fim. Pois tal alma nunca estará em repouso. Na espera do futuro, perderá as bênçãos presentes que poderia já desfrutar. E não há diferença entre o sofrimento por algo perdido e o medo de perdê-lo.

7. Mas, por isso, não aconselho você a ser indiferente. Em vez disso, se afaste do que pode causar medo. Certifique-se de prever tudo o que possa ser previsto no planejamento. Observe e evite, muito antes de acontecer, qualquer coisa que seja susceptível de causar prejuízo. Para realizar isso, sua melhor assistência será um espírito confiante e uma mente fortemente decidida a suportar todas as coisas. Aquele que pode suportar a Fortuna, também pode se precaver contra a Fortuna. De qualquer forma, não há turbilhão de ondas quando o mar está calmo. E não há nada mais miserável ou tolo do que o medo prematuro. Que loucura é antecipar os problemas!

8. Muito bem, para expressar meus pensamentos em passo rápido e retratar em uma frase aqueles homens intrometidos e autotorturadores que estão tão descontrolados em meio a seus problemas como estão antes dos problemas: “Sofre mais do que é necessário, quem sofre antes que seja necessário”. Tais homens não pesam a quantidade de seus sofrimentos, por causa da mesma deficiência que os impede de estarem prontos para isso e com a mesma falta de restrição imaginam ingenuamente que sua Fortuna durará para sempre e imaginam ingenuamente que seus ganhos devem aumentar, assim como simplesmente continuar. Eles esquecem esse trampolim sobre o qual as coisas mortais são jogadas e eles acreditam garantir a si mesmos uma continuação infinita das dádivas da chance.

9. Por esta razão, considero excelente a frase de Metrodoro,[2] em uma carta de consolo à sua irmã pela perda de seu filho, um menino de grande promessa: “Todo o bem relativo aos mortais é mortal”.[3] Ele está se referindo aos bens para os quais os homens se atiram em cardumes. Pois o bem real não perece, é certo e duradouro e consiste em sabedoria e virtude –  é a única coisa imortal que é concedida aos mortais.

10. Mas os homens são tão instáveis e tão esquecidos do seu objetivo e do ponto para onde todos os dias os empurram, que ficam surpresos com a perda de qualquer coisa, embora algum dia eles sejam obrigados a perder tudo. Qualquer coisa de que você tenha o título de proprietário está em sua posse, mas não é sua, pois não há força naquilo que é fraco, nem qualquer coisa duradoura e invencível naquilo que é frágil. Devemos perder nossas vidas tão seguramente quanto perderemos nossa propriedade e isso, se compreendemos a verdade, é em si mesmo um consolo. Perca então com serenidade, pois você deve perder sua vida também.

11. Que recurso encontramos, então, diante dessas perdas? Simplesmente isso: manter em memória as coisas que perdemos e não sofrer pela perda do gozo que derivamos delas. Pois “ter” pode ser tirado de nós, “ter tido”, nunca. Um homem é ingrato no mais alto grau se, depois de perder algo, ele não sinta nenhum agradecimento por tê-lo recebido. A Fortuna nos rouba a coisa, mas nos deixou a utilidade e prazer que tiramos dela – e perdemos isso se somos tão injustos a ponto de nos arrepender de tê-la tido ao mesmo tempo que exigimos continuar a possuí-la.

12. Apenas diga a si mesmo: “de todas essas experiências que parecem tão assustadoras, nenhuma delas é insuperável. As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio[4], crucificação por Régulo, [5] veneno por Sócrates, exílio por Rutílio[6] e uma morte infligida pela espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”.

13. Novamente, aqueles objetos que atraem a multidão sob a aparência de beleza e felicidade, foram desprezados por muitos homens e em muitas ocasiões. Fabrício, [7] quando era general, recusou riquezas e quando foi censor as marcava com desaprovação. Túbero considerou a pobreza digna de si mesmo e da divindade no Capitólio quando, ao usar pratos de barro em um festival público, mostrou que o homem deveria estar satisfeito com o que os deuses ainda podiam usar. O ancião Séxtio rejeitou as honras do cargo, ele nasceu com a obrigação de participar de assuntos públicos e, no entanto, não aceitou a faixa larga[8] mesmo quando o divino Júlio lhe ofereceu. Pois ele entendia que o que pode ser dado também pode ser retirado. Deixe-nos também, portanto, realizar algum ato corajoso por nossa própria iniciativa, deixe-nos ser incluídos entre os tipos ideais da história.

14. Por que ficamos negligentes? Por que desanimamos? O que poderia ser feito, pode ser feito se apenas purificarmos nossas almas e seguirmos a natureza; pois quando se afasta da natureza, se é obrigado a desejar e temer e ser escravo das coisas do acaso. Podemos retornar ao caminho verdadeiro, podemos ser restaurados ao nosso estado adequado. Deixe-nos então ser assim, para que possamos suportar a dor, sob qualquer forma que atacar nossos corpos, e dizer à Fortuna: “Você está lidando com um homem, procure alguém a quem você possa conquistar!”Ä [9]

15. Por essas palavras e palavras de um tipo semelhante, a malignidade da úlcera é acalmada; e espero que possa ser reduzida, e seja curada ou interrompida, e envelheça junto com o próprio paciente. No entanto, estou confortável em relação a ele. O que agora estamos discutindo é a nossa própria perda: a partida de um excelente homem velho. Pois ele viveu uma vida plena e qualquer coisa adicional pode ser desejada por ele, não por sua própria causa, mas por causa daqueles que precisam de seus serviços.

16. Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si mesmo, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. Outra pessoa poderia ter acabado com esses sofrimentos, mas o nosso amigo considera não menos vil fugir da morte do que fugir para a morte. “Mas”, vem a resposta, “se as circunstâncias justificarem, ele não tomará a partida?” Claro, se ele não pode mais ser útil a ninguém, se todo o seu negócio passar a ser lidar com a dor.

17. Isto, meu querido Lucílio, é o que queremos dizer ao estudar filosofia enquanto a aplicamos, praticando-a na verdade – anote a coragem que um homem prudente possui contra a morte e contra a dor quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra. O que devemos fazer deve ser aprendido com quem faz.

18. Até agora, lidamos com argumentos – se alguém pode resistir à dor, ou se a aproximação da morte pode abater até grandes almas. Por que discutir isso ainda mais? Aqui há um fato imediato para nós enfrentarmos – a morte não torna nosso amigo mais valioso para enfrentar a dor nem a dor para enfrentar a morte. Em vez disso, ele confia em si mesmo diante de ambas. Ele não sofre com resignação porque espera a morte, nem morre com prazer porque está cansado de sofrer. À dor ele resiste, a morte ele espera.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Ver Virgílio, Eneida, II, 428

[2] Metrodoro de Lâmpsaco foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro principais defensores do epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem.

[3] Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Ver outras referências a Múcio nas epístolas XXIV e LXVI.

[5]NT: Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos

[6]NT: Públio Rutílio Rufo foi um político da gente Rutília da República Romana eleito cônsul em 104 a.C.

[7] NT: Caio Fabrício Luscino, dito Monocular, foi eleito cônsul por duas vezes, em 283 e 278 a.C. As histórias sobre Fabrício são os padrões de austeridade e incorruptibilidade, muito parecidas com as contadas sobre Cúrio Dentato.

[8] A faixa larga (de púrpura) ornava a toga dos senadores, por oposição à faixa estreita que decorava a toga dos equestres. Séxtio, portanto, recusou a oferta de ter seu nome na lista dos membros da classe senatorial. “Divino Júlio” é referência a Júlio Cesar.

[9] NT: Os filólogos estão de acordo em haver uma lacuna. Ao final do parágrafo 14. Hense defende que a carta 98 termina no §14 e que o texto a partir do §15 seria outra, cujo inicio se perdeu. Ignora-se quem seria este “excelente homem velho” referido a seguir.