Na Carta 97 Sêneca aborda um tema recorrente em todas as eras: pessoas maduras tendem a acreditar que o passado era melhor e mais íntegro, e que os jovens estão degenerados e equivocados. Mas Sêneca diz que não é nada disso pois essa negligência aos bons costumes são “vícios da humanidade e não dos tempos“.
Ele narra o caso de um político corrupto, Públio Cloto, que escapou da punição subornando e chantageando juízes com dinheiro e sexo, isso na presença de Catão, símbolo moral para Sêneca. Comparando com a política recente teremos mais uma prova da degeneração ser uma característica da humanidade, não dos tempos.
A carta é interessante também pois narra os rituais da Bona Dea (“Boa Deusa”) e da Floralia, em honra à deusa Flora. Cita máximas de Epicuro, concordando em pontos e discordando de alguns detalhes: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer“.
A conclusão é que o criminoso, mesmo que escape da lei, jamais poderá escapar da própria consciência, e saber que cometeu crime será punição suficiente devido a culpa e a ansiedade de ser pego:
“Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.” (XCVII, 16)
Imagem: O império da Flora por Giovanni Battista Tiepolo.
XCVII. Sobre a Degeneração da Época
Saudações de Sêneca a Lucílio.
1. Você está enganado, meu querido Lucílio, se você acha que o luxo, a negligência aos bons costumes e outros vícios são especialmente característicos de nossa época. Não, são os vícios da humanidade e não dos tempos. Nenhuma era na história esteve isenta de culpa. Além disso, se você começar a levar em conta as irregularidades típicas a qualquer época particular, você encontrará – para a vergonha do homem – que o pecado nunca foi mais explícito do que na própria presença de Catão.
2. Alguém acreditaria que dinheiro mudou de mão no julgamento quando Clódio[1] foi acusado de adultério com a esposa de César, quando ele violou o mistério ritual[2] daquele sacrifício que se é oferecido em nome do povo, quando todos os homens são tão rigorosamente removidos do recinto, tanto que até imagens de todas as criaturas masculinas estão cobertas? E, no entanto, o dinheiro foi dado ao júri e, mais vil do que essa pechincha, crimes sexuais foram exigidos de mulheres casadas e jovens rapazes como uma espécie de contribuição adicional.
3. O crime denunciado envolveu menos pecado do que sua absolvição, pois o réu por adultério parcelou os adultérios e não tinha certeza de sua própria absolvição até ter feito dos jurados criminosos como ele. Tudo isso foi feito no julgamento em que Catão deu testemunho, embora essa fosse sua única participação. Vou citar as reais palavras de Cicero, porque os fatos são tão ruins quanto inacreditáveis:
4. “Ele distribuiu cargos, promessas, súplicas e presentes. E mais do que isso (Céus misericordiosos, que estado de coisas abandonado!) a vários jurados, para completar sua recompensa ele concedeu o gozo de certas mulheres e encontros com jovens nobres”.[3]
5. É supérfluo ficar chocado com o suborno pois as adições ao suborno foram piores. “Você tem interesse na esposa desse indivíduo austero, A.? Muito bom. Ou de B., o milionário? Eu garantirei que você possa se deitar com ela. Se você não cometeu adultério, condene Clódio. Essa beldade que você deseja deve visitá-lo. Garanto-lhe uma noite em companhia dessa mulher sem demora, minha promessa deve ser realizada fielmente dentro do prazo legal de pagamento”. É mais grave distribuir esses crimes do que os cometer; significa chantagear matronas dignas.
6. Estes jurados no julgamento de Clódio pediram ao Senado uma guarda – um favor que só seria necessário para um júri prestes a condenar o acusado; e seu pedido foi concedido. Daí a observação espirituosa de Cátulo depois que o réu ter sido absolvido: “Por que nos pediram a guarda? Tiveram medo de ter seu dinheiro roubado?” E, no entanto, em meio a gracejos como estes, ele ficou impune, ele que antes do julgamento era um adúltero, durante o julgamento, um gigolô e que escapou da condenação mais vilmente do que merecia.
7. Você acredita que qualquer coisa poderia ser mais vergonhosa do que esses padrões morais – quando a luxúria não pode se manter afastada nem do culto religioso, nem dos tribunais? No próprio inquérito realizado em sessão especial por ordem do Senado mais crimes foram cometidos do que investigados. A questão em debate era se alguém poderia estar seguro depois de cometer adultério, foi demonstrado que não se poderia estar seguro sem cometer adultério!
8. Toda essa negociata ocorreu na presença de Pompeu e César, de Cícero e Catão, sim, esse próprio Catão cuja presença, segundo dizia, fazia com que as pessoas se abstivessem de exigir as provocações e caprichos usuais de atrizes nuas na Florália,[4] – se você puder acreditar que os homens eram mais rigorosos em sua conduta em um carnaval do que em um tribunal! Tais coisas serão feitas no futuro, como já foram feitas no passado; e a licenciosidade das cidades às vezes diminuirá através da disciplina e do medo, nunca por si mesma.
9. Portanto, você não precisa acreditar que somos nós quem mais nos entregamos para a luxúria e menos para a lei. Pois os homens jovens de hoje vivem vidas muito mais simples do que as de uma época em que um réu se declararia não culpado de uma acusação de adultério perante os juízes, e os juízes confessariam perante o arguido. Época quando foi praticada a devassidão para garantir um veredicto, e quando Clódio, favorecido pelos próprios vícios dos quais ele era culpado, fez o papel de gigolô durante a audiência do caso. Poderíamos acreditar nisso? Aquele a quem um adultério levou a um inquérito foi absolvido por causa de muitos.
10. Todas as eras produzirão homens como Clódio, mas nem todas as eras, homens como Catão. Degeneramos facilmente porque não nos falta mentores nem associados em nossa maldade, e a perversidade continua por si mesma, mesmo sem mentores ou associados. O caminho para o vício não é apenas morro abaixo, mas em declive acentuado. Muitos homens são tornados incorrigíveis pelo fato de que enquanto que em todos os erros no artesanato trazem vergonha aos bons artesãos e causam vergonha para aqueles que se desviaram, os erros da vida são uma fonte positiva de prazer.
11. O piloto não está contente quando seu navio emborca; o médico não está contente quando enterra seu paciente; o advogado não está contente quando o réu perde um caso por sua culpa; mas, por outro lado, cada homem goza de seus próprios crimes. A. se deleita em uma intriga, pois era a dificuldade que o atraía a ela. B. Delicia-se em falsificação e roubo e só está descontente com o pecado quando seu pecado não atinge o alvo. E tudo isso é o resultado de hábitos pervertidos.
12. Por outro lado, no entanto, para que você possa saber que há uma ideia de boa conduta presente subconscientemente em almas que foram conduzidas até mesmo nas formas mais depravadas e que os homens não são ignorantes do que o mal é, mas indiferentes, eu digo que todos os homens escondem seus pecados e mesmo que o caso seja bem-sucedido aproveita os resultados enquanto esconde os próprios pecados. Uma boa consciência, no entanto, deseja sair e ser vista pelos homens, já a maldade teme a própria sombra.
13. Por isso, considero Epicuro o mais adequado: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer”,[5] ou, se você acha que o significado pode ser mais claro desta forma: “A razão pela qual não é nenhuma vantagem para os transgressores permanecerem ocultos é que, embora tenham a fortuna, eles não têm a certeza de permanecer em segurança”. É o que quero dizer: os crimes podem ser bem guardados, estar livre da ansiedade, não é possível.
14. Esta visão, eu mantenho, não está em desacordo com os princípios da nossa escola, se assim for explicado. E porque? Porque a primeira e a pior penalidade do pecador é ter cometido o pecado. E o crime, embora a Fortuna se divirta com seus favores, embora ela o proteja e o tome sob sua guarda, nunca pode ficar impune, uma vez que a punição do crime reside no próprio crime. Mas, no entanto, essas segundas penalidades seguem de perto as primeiras: medo constante, terror constante e desconfiança na própria segurança. Por que, então, eu deveria colocar a perversidade livre de tal punição? Porque não hei-de deixá-la sempre em suspenso?
15. Deixe-nos discordar de Epicuro em um único ponto, quando ele declara que não existe uma justiça natural e que o crime deve ser evitado porque não se pode escapar do medo que resulta dele; deixe-nos concordar com ele do outro ponto, que as más ações são açoitadas pelo chicote da consciência e essa consciência é torturada em maior grau porque a ansiedade interminável a impulsiona e chicoteia, e não pode confiar nos fiadores de sua própria paz mental. Por isso, Epicuro é a própria prova de que somos, por natureza, relutantes em cometer crimes, porque mesmo em circunstâncias de segurança, não há quem não sinta medo.
16. Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] NT: Públio Clódio Pulcro (Publius Clodius Pulcher), mais conhecido apenas como Clódio, foi um político da República Romana conhecido por suas táticas populistas.
[2] NT: Os ritos de Bona Dea (“Boa Deusa”) eram realizados em dezembro na casa de um importante magistrados de Roma. Em 62 a.C., a cerimônia seria realizada na residência oficial de Júlio César, o pontífice máximo, em Régia. As anfitriãs foram sua esposa, Pompeia, e sua mãe, Aurélia, com a supervisão das virgens vestais. Este era um culto do qual os homens não tinham permissão para falar ou mesmo de saber o nome da deusa, que era chamada de “Boa Deusa”. Clódio se intrometeu nos ritos disfarçado de mulher, supostamente com o objetivo de seduzir Pompeia, mas foi descoberto. O crime de Clódio era, portanto, duplamente grave: adultério e violação religiosa
[3] Ver Cícero, Cartas a Ático.
[4] A Floralia era um festival romano, em honra à deusa Flora, ocorrido no mês de maio e ligado ao ciclo agrário com objetivo de consagrar as florações da primavera. Haviam representações teatrais, solturas de animais associados à fertilidade e divertimentos realizados no Circo Máximo.
[5] Ver Epicuro, Cartas e Princípios.