Carta 3: Sobre a verdadeira e falsa amizade

Sobre a amizade real.

Seneca adverte Lucílio contra fazer um homem em um amigo antes de conhecer o caráter deste homem. Contudo, uma vez que alguém se tornou um amigo, devemos confiar e compartilhar as ansiedades deste. (Veja também a carta 9 sobre as amizades do homem sábio.)

Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos e se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda, a mais segura.” (Carta II, §5)

(imagem: A Ceia em Emaús  por Caravaggio)

Carta III: Sobre a verdadeira e falsa amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você enviou uma carta para mim através de um “amigo nosso”, como você o chama. E na frase seguinte você me adverte para não discutir com ele todos os assuntos que lhe dizem respeito, dizendo que você mesmo não está acostumado a fazer isto; em outras palavras, você, na mesma carta afirmou e negou que ele seja seu amigo.

2. Agora, se você usou esta palavra no sentido popular e o chamou de “amigo” da mesma maneira que chamamos todos os candidatos nas eleições de “senhores honoráveis” ou que saudamos como “meu caro senhor” a todos os homens que encontramos casualmente e cujos nomes nos faltam por um momento, assim seja. Mas se você considera qualquer homem em quem você não confia como você confia em si mesmo como sendo um amigo, você está muito enganado e você não entende o suficiente o que significa verdadeira amizade. Na verdade, gostaria que discutisse tudo com um amigo, mas antes de tudo discuta o próprio homem. Quando a amizade é estabelecida, você deve confiar; antes que a amizade seja formada, você deve julgar. Essas pessoas, de fato, invertem essa ordem e confundem seus deveres, pois, violando as regras de Teofrasto,[♦] julgam um homem depois de terem feito dele seu amigo, em vez de torná-lo seu amigo depois de o julgarem. Pondere por muito tempo se você deve admitir uma pessoa ao seu círculo de amizade; mas quando você decide admiti-la, acolha-a com todo o seu coração e alma. Fale tão abertamente com ela quanto com você mesmo.

3. Quanto a você mesmo, embora você deva viver de tal maneira que confie a si mesmo todos assuntos, uma vez que certas questões convencionalmente são mantidas secretas, você deve compartilhar com um amigo pelo menos todas suas preocupações e reflexões. Considere-o como leal e você o fará leal. Alguns, por exemplo, temendo ser enganados, ensinaram os homens a enganar. Por suas suspeitas deram a seu amigo o direito de suspeitar. Por que preciso reter alguma palavra na presença do meu amigo? Por que não me considerar sozinho quando em sua companhia?

4. Há uma classe de homens que comunicam, a quem eles encontram, assuntos que devem ser revelados aos amigos apenas e descarregam sobre o ouvinte tudo o que os aborrece. Outros, mais uma vez, temem confiar em seus mais íntimos amigos e se fosse possível, não confiariam nem sequer em si próprios, enterrando seus segredos no fundo de seus corações. Mas não devemos fazer nem uma coisa nem outra. É igualmente falho confiar em todos e não confiar em ninguém. No entanto, a primeira falha é, eu diria, a mais ingênua, a segunda, a mais segura.

5. Do mesmo modo, você deveria repreender estes dois tipos de homens, tanto os que sempre carecem de repouso, como os que estão sempre em repouso. Porque o amor ao agito não é diligência, é apenas a inquietação de uma alma sobrexcitada. E a verdadeira tranquilidade não consiste em condenar todo o movimento como mero aborrecimento, esse tipo de conforto é preguiça e inércia.

6. Portanto, você deve observar o seguinte ditado, tirado da minha leitura de Pompônio:[♦]alguns homens se refugiam na escuridão com a ideia de que tudo quanto está em plena luz é marcado pela confusão.” Não, os homens devem combinar estas tendências e quem descansa deve agir e quem age deve descansar. Discuta o problema com a natureza: ela lhe dirá que criou dia e noite.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[♦]Teofrasto (372 a.C. – 287 a.C.) foi um filósofo da Grécia Antiga, sucessor de Aristóteles na escola peripatética. Aristóteles, em seu testamento, nomeou-o como tutor dos filhos, legando-lhe a biblioteca e os originais dos trabalhos e designando-o como sucessor no Liceu.

[♦] Possivelmente Pompônio Segundo, um general e poeta trágico romano que viveu durante o reinado de Tibério, Calígula e Cláudio.