Sêneca inicia a carta 60 com alegorias jurídicas, dizendo que em geral oramos aos deuses pedindo coisas irrelevantes e até mesmo prejudiciais.
Segue afirmando que fazemos pedidos como se fossemos crianças incapazes querendo coisas supérfluas:
“Até quando continuaremos a encher de trigo os mercados de nossas grandes cidades? Por quanto tempo as pessoas devem juntá-lo para nós? Por quanto tempo muitos navios trarão coisas necessárias para uma única refeição, trazendo-os de inúmeros mares? O touro é satisfeito quando se alimenta por alguns acres; e uma floresta é grande o suficiente para um rebanho de elefantes. O homem, entretanto, arranca seu sustento tanto da terra como do mar.” (LX,2)
Aplica o estoicismo ao defender que devemos seguir nossa natureza, que se satisfaz com pouco: “Não é a fome natural de nossas barrigas que nos custa caro, mas nossos desejos vorazes”. (LX,3)
Suas ideias e ensinamentos se mantêm atuais e relevantes num momento em que voltamos a discutir sustentabilidade e defesa do meio ambiente.
(Imagem detalhe da escultura David, por Michelangelo)
LX. Sobre Orações Prejudiciais
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- Eu protocolo uma queixa, eu inicio um processo, eu estou com raiva. Você ainda deseja o que seu mentor, seu guardião[1] ou sua mãe, orem em seu favor? Você ainda não entende por qual mal eles oram? Infelizmente, quão hostis para nós são os desejos dos nossos próprios amigos! E são tanto mais hostis quanto mais plenamente se cumprem. Não é surpresa para mim, na minha idade, que nada mais do que o mal nos assiste desde a nossa juventude; pois crescemos entre as maldições invocadas por nossos pais. E que os deuses deem ouvidos ao nosso clamor também, proferido em nosso próprio interesse, – um que não peça favores!
- Quanto tempo continuaremos a fazer exigências aos deuses, como se ainda não pudéssemos nos sustentar? Até quando continuaremos a encher de trigo os mercados de nossas grandes cidades? Por quanto tempo as pessoas devem juntá-lo para nós? Por quanto tempo muitos navios trarão coisas necessárias para uma única refeição, trazendo-os de inúmeros mares? O touro é satisfeito quando se alimenta por alguns acres; e uma floresta é grande o suficiente para um rebanho de elefantes. O homem, entretanto, arranca seu sustento tanto da terra como do mar.
- O que, então? Será que a natureza nos deu barrigas tão insaciáveis, quando nos deu esses corpos insignificantes, que devemos superar os animais mais vorazes em ganância? De modo nenhum. Quão pequena é a quantidade que vai satisfazer a natureza? Um pouco vai mandá-la embora satisfeita. Não é a fome natural de nossas barrigas que nos custa caro, mas nossos desejos vorazes.
- Portanto, aqueles que, como diz Salústio, “ouvem suas barrigas[2]“, devem ser contados entre os animais, e não entre os homens; e certos homens, na verdade, devem ser contados, nem mesmo entre os animais, mas entre os mortos. Realmente vive quem é usado por muitos; realmente vive quem faz uso de si mesmo. Esses homens, entretanto, que se arrastam para um buraco e ficam torpes não são melhores em suas casas do que se estivessem em seus túmulos. Ali mesmo, na fachada de mármore da casa de tal homem, você pode inscrever seu nome, pois ele morreu antes de ter morrido.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Sêneca usa o termo paedagogus, o escravo incumbido de acompanhar crianças à escola
[2] Caio Salústio Crispo descreve os romanos como escravos da gula em Catilina.