Carta 16: Filosofia, o Guia da Vida

Seria o estoicismo útil para religiosos? e para ateus e agnósticos? Sêneca diz que sim, e para todos. A ideia básica da carta 16 é deixada clara nas primeiras linhas. O estudo da filosofia é na verdade um amor à sabedoria, e não deve ser perseguido por questões triviais, como Sêneca deixa claro pouco depois: “não é um truque para fisgar o público; não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de fatos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão”(XVI, §3). Isso praticamente eliminaria quase toda filosofia acadêmica moderna.

No quinto parágrafo Sêneca apresenta um interessante argumento sobre por que a filosofia deveria ser nosso guia na vida, independentemente de nossas posições religiosas: “se a Fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente e a Fortuna desafiadoramente, ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a Fortuna.

Observe as três possibilidades consideradas: Destino inexorável, ou o que hoje chamaríamos de determinismo; Deus como o planejador de tudo o que acontece no universo, semelhante à ideia cristã da Providência; ou o Acaso, o caos epicurista que caracteriza um cosmos no qual Deus não desempenha nenhum papel ativo.

Isso não é nada diferente do afirmado por Marco Aurélio em suas Meditações:

Ou uma necessidade do destino e uma ordem inviolável, ou uma providência compassiva, ou um caos fortuito, sem direção. Se, pois, trata-se de uma necessidade inviolável, a que oferece resistência? E se uma providência que aceita ser compassiva, faça a ti mesmo merecedor do socorro divino. E se um caos sem guia, conforma- te, porque em meio de um fluxo de tal índole dispõe em seu interior de uma inteligência guia.” (Meditações XII, §14)

Sêneca, em seguida, puxa uma de suas citações positivas de Epicuro: “Isto também é um ditado de Epicuro: ‘Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.” (XVI, §7)

A carta conclui com esse contraste agradável e instrutivo, que leva a uma verdade profunda: “Suponha que a Fortuna leve você muito além dos limites de um rendimento privado, cubra-o com ouro, roupas em púrpura e traga-lhe a tal grau de luxo e riqueza que você possa cobrir a terra sob seus pés de mármore, que você possa não só possuir, mas andar sobre riquezas.; você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais… O falso não tem limites. ”(XVI, §8 e 9)

A carta de Sêneca serve como um lembrete de que a filosofia não é apenas um campo de estudo, mas um modo de vida que proporciona equilíbrio, sabedoria, e uma perspectiva sobre o que realmente importa na vida. Ele encoraja a prática contínua e a autoavaliação, além de alertar sobre os perigos dos desejos infundados pela sociedade.


XVI. Sobre filosofia, o guia da vida

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Tenho certeza que está claro para você, Lucílio, que nenhum homem pode viver uma vida feliz, ou mesmo uma vida suportável, sem o estudo da filosofia; você sabe também que uma vida feliz é alcançada quando a nossa sabedoria é levada ao auge, mas que a vida é pelo menos suportável, mesmo quando a nossa sabedoria apenas começa. Essa ideia, no entanto, embora clara, deve ser fortalecida e implantada mais profundamente pela reflexão diária. É mais importante para você manter as resoluções que já fez do que ir e fazer novas. Você deve perseverar, deve desenvolver uma nova força através do estudo contínuo, até que o que era apenas uma boa disposição se torne um propósito bem estabelecido.

2. Por essa razão você não precisa mais vir a mim com muita conversa e declarações solenes; sei que você fez grandes progressos. Eu entendo os sentimentos que originam suas palavras, não são palavras fingidas ou enganosas. No entanto, vou dizer-lhe o que penso, que no momento tenho esperanças para você, mas ainda não perfeita confiança. E gostaria que você adotasse a mesma atitude em relação a si mesmo. Não há nenhuma razão porque você deva colocar muita confiança em si mesmo rapidamente e sem grande esforço. Examine-se, investigue-se e observe-se de várias maneiras, mas antes de tudo diga se é na filosofia ou meramente na própria vida que você fez progresso.68

3. Filosofia não é um truque para fisgar o público, não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de atos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão antes que seja extenuado, ou que nosso ócio possa ser aliviado de um tédio que nos irrita. Molda e constrói a alma, ordena nossa vida, guia nossa conduta, nos mostra o que devemos fazer e o que devemos deixar por fazer, ela senta ao leme e dirige o nosso curso enquanto nós titubeamos em meio a incertezas. Sem ela, ninguém pode viver intrepidamente ou em paz de espírito. Inúmeras coisas que acontecem a cada hora pedem conselhos e esses conselhos devem ser buscados na filosofia.

4. Talvez alguém diga: Como pode a filosofia me ajudar, frente a existência da Fortuna? De que serve a filosofia, se Deus governa o universo? De que vale, se a Fortuna governa tudo? Não só é impossível mudar as coisas que são determinadas, mas também é impossível planejar de antemão contra o que é indeterminado; ou Deus já antecipou meus planos e decidiu o que devo fazer ou então a Fortuna não dá liberdade aos meus planos”.

5. Se a verdade, Lucílio, está em uma ou em todas estas perspectivas, nós devemos ser filósofos, se a Fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente e a Fortuna desafiadoramente, ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a Fortuna.

6. Mas não é meu propósito agora ser levado a uma discussão sobre o que está sob nosso próprio controle, se a presciência é suprema ou se uma cadeia de eventos fatais nos arrasta em suas garras ou se o repentino e o inesperado nos dominam. Volto agora ao meu aviso e à minha exortação, que não permita que o impulso do seu espírito se enfraqueça e fique frio. Mantenha-se firme nele e estabeleça-o firmemente, a fim de que o que é agora ímpeto, possa tornar-se um hábito da mente.

7. Se eu lhe conheço bem, você já está tentando descobrir desde o início da minha carta a pequena contribuição que ela traz para você. Peneire a carta e você a encontrará. Você não precisa se maravilhar com nenhum gênio meu porque, ainda assim, eu sou pródigo apenas com a propriedade de outros homens. Mas por que eu disse “outros homens”? O que quer de bom que seja dito por alguém é meu. Este é também um dito de Epicuro: “Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.”69

8. Os desejos da natureza são leves, as exigências da opinião são ilimitadas. Suponha que a propriedade de muitos milionários seja entregue em sua posse. Suponha que a Fortuna leve você muito além dos limites de um rendimento privado, cubra-o com ouro, roupas em púrpura e traga-lhe a tal grau de luxo e riqueza que você possa cobrir a terra sob seus pés de mármore, que você possa não só possuir, mas andar sobre riquezas. Adicione estátuas, pinturas e tudo o que a arte tem concebido para o luxo, você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais.

9. Os desejos naturais são limitados, mas aqueles que brotam da falsa opinião não tem ponto de parada. O falso não tem limites. Quando você está viajando em uma estrada, deve haver um fim, mas quando perdido, suas andanças são ilimitadas. Desista, portanto, de coisas inúteis, e quando você quiser saber se o que procura é baseado em um desejo natural ou em um desejo enganoso, considere se ele pode parar em algum ponto definido. Se você perceber, depois de ter viajado muito, que há um objetivo mais distante sempre em vista, você pode ter certeza que esta situação é contrária à natureza.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


68 Ou seja, apenas avançou em idade.


Carta 15: Sobre força bruta e cérebros

A carta 15  oferece uma análise profunda sobre o que significa verdadeiramente estar saudável, destacando a supremacia do desenvolvimento intelectual sobre o físico. Recomenda que  encontremos um equilíbrio entre treinamento físico e treinamento mental. Também que sejamos gratos pelas coisas que já se possui e não enfatizemos demais as coisas que desejamos, porque tudo parece melhor quando você não a tem. Devemos manter nossos esforços no crescimento mental. Porque ainda hoje há uma grande ênfase em um corpo melhor, um corpo mais muscular e belo, mas esquecemos a importância de uma mente bonita e forte.

Mas não se preocupe, de acordo com Sêneca, você ainda deveria ir à academia, porém não gastar 4 horas por dia lá.  Na carta Sêneca inclusive recomenda exercícios físicos que estão na moda hoje!

A carta termina com uma reflexão sobre a vida e a ambição, citando um provérbio grego sobre a futilidade das preocupações dos tolos. Ele incentiva Lucílio a valorizar o que já foi alcançado e a não se deixar levar pela ambição incessante.


XV. Sobre força bruta e cérebros

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Os antigos romanos tinham um costume que sobreviveu até a minha época. Eles acrescentariam às primeiras palavras de uma carta: “Se você está bem, tanto melhor, eu estou bem.” Pessoas como nós fariam bem em dizer. “Se você está estudando filosofia, está bem.” Pois isso é exatamente o que significa “estar bem”. Sem filosofia a mente é enferma, e o corpo, embora possa ser muito poderoso, é forte apenas como o de um louco é forte, é a saúde própria dos dementes, dos estúpidos.61

2. Este então, é o tipo de saúde que você deve cultivar em primeiro lugar; o outro tipo de saúde vem em segundo lugar e envolverá pouco esforço, se você deseja estar bem fisicamente. É loucura, meu caro Lucílio, e muito impróprio para um homem culto trabalhar duro para desenvolver os músculos e alargar os ombros e fortalecer os pulmões. Pois embora a alimentação pesada produza bons resultados e seus tendões cresçam sólidos, você nunca poderá se sobressair, seja em força ou em peso, quando comparado com um touro. Além disso, ao sobrecarregar o corpo com comida você estrangula a alma e a torna menos ativa. Assim, limite o corpo, tanto quanto possível, e permita total liberdade ao espírito.

3. Muitos contratempos acossam aqueles que se dedicam a tais objetivos. Em primeiro lugar, eles precisam de seus exercícios, nos quais devem trabalhar e desperdiçar sua força vital tornando-a menos apta a suportar os estudos mais severos. Em segundo lugar, seu gume é cegado por comer demasiadamente. Além disso, eles precisam receber ordens de escravos do mais vil cunho, homens que alternam entre o frasco de óleo e a jarra,62 cujo dia passa satisfatoriamente se tiveram uma boa transpiração e beberam grandes tragos para compensar o que eles perderam em suor, garrafas enormes de licor que sorverão profundamente por causa de seu jejum. Beber e suar: é a vida de um dispéptico!

4. Agora, existem exercícios curtos e simples que cansam o corpo rapidamente e assim economizam nosso tempo. E o tempo é algo do qual devemos manter estrita conta. Estes exercícios são correr, levantar pesos e saltar, saltos altos ou saltos largos, ou o tipo que eu posso chamar, “a dança dos sálios”63, ou, em termos ligeiros, “o salto dos tintureiros”.64 Selecione para praticar qualquer um destes e você vai perceber ser simples e fácil.

5. Mas o que quer que você faça, volte logo do corpo à mente. A mente deve ser exercitada dia e noite, pois é alimentada pelo trabalho moderado. E esta forma de exercício não precisa ser atrapalhada pelo tempo frio ou quente, ou mesmo pela velhice. Cultive esse bem que melhora com os anos.

6. É claro que eu não ordeno que você esteja sempre curvado sobre seus livros e materiais de escrita. A mente necessita de variedade, mas uma variedade de tal natureza que não é irritante, mas simplesmente branda. Montar em uma liteira65 sacode o corpo, mas não interfere com o estudo: pode-se ler, ditar, conversar ou ouvir alguém. A caminhada também não impede qualquer dessas coisas.

7. Você não deve desprezar o treino da voz, mas eu o proíbo de praticar levantar e abaixar sua voz por escalas e entonações específicas. Senão pode ser que você queira seguir aulas de marchar! Se você consultar o tipo de pessoa para quem a fome ensinou novos truques, você terá alguém para ajustar seus passos, vigiar cada bocado que você come, e chegar a tais extremos que você mesmo, por suportar e acreditar nele, terá encorajado seu desaforo. O quê, então? Você vai perguntar, “devo começar gritando e esticar os pulmões ao máximo?” Não, o natural é que seja despertado para tal passo por etapas fáceis, assim como as pessoas que estão discutindo começam com tons conversacionais comuns e em seguida, passam a gritar no topo de seus pulmões. Nenhum orador grita: “ajuda-me, Quirites66 no princípio de seu discurso.

8. Portanto, sempre que o instinto de seu espírito o induzir, crie um tumulto, alternando tons mais altos e mais suaves, de acordo com sua voz, assim como seu espírito, sugerir-lhe-á. Então segure sua voz e a chame de volta à terra, desça suavemente, não colapse. Ela deve rastejar em tons a meio caminho entre alto e baixo e não deve abruptamente cair de seu frenesi na maneira rude dos compatriotas. Pois nosso propósito não é dar o exercício à voz, mas fazê-la nos dar exercício.

9. Você vê, eu o aliviei de uma preocupação grave e vou lançar lhe um pequeno presente complementar, também grego. Aqui está o provérbio, é excelente: “A vida do tolo está vazia de gratidão e cheia de medos, seu curso está totalmente voltado para o futuro”. Você questiona quem pronunciou estas palavras? O mesmo escritor que mencionei antes. E que tipo de vida você acha que significa a vida do tolo? A de Baba e Isio?67 Não, ela significa a nossa própria, pois estamos mergulhados em nossos desejos cegos em empreendimentos que nos prejudicarão, mas certamente nunca nos satisfarão, pois se pudéssemos estar satisfeitos com qualquer coisa, teríamos sido satisfeitos há muito tempo. Também não refletimos o quão agradável é exigir nada, quão nobre é estar contente e não depender da Fortuna.

10. Portanto, lembre-se continuamente, Lucílio, quantas ambições você alcançou. Quando você vê muitos à frente de você, pense quantos estão atrás! Se você quiser agradecer aos deuses e se mostrar grato por sua vida passada, você deve contemplar quantos homens você superou. Mas o que você tem a ver com os outros? Você superou a si mesmo.

11. Fixe um limite que você não vai sequer desejar ultrapassar, se tivesse a capacidade. Finalmente, então, livre-se de todos estes bens traiçoeiros! Eles parecem melhores para aqueles que esperam por eles do que para aqueles que os alcançaram. Se houvesse algo substancial neles, mais cedo ou mais tarde eles o satisfariam; como são, eles apenas despertam a sede dos sedentos, quanto mais os saboreamos mais lhes sentimos a sede. Fora com trastes que apenas servem para exibição! Quanto ao que o futuro incerto tem reservado, por que eu exigiria da Fortuna que ela me dê ao invés de exigir de mim mesmo que eu não deseje? E por que eu deveria desejar? Devo acumular meus ganhos e esquecer que o destino do homem é imaterial? Para que fim devo labutar? Eis que hoje é o último dia, se acaso não for, está perto do último. Meu fim já não está distante.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


61 Sêneca repete ao longo das cartas a oposição entre os adeptos da filosofia, isto é, aqueles que tentam aproximar-se do ideal do “sábio estoico”, e a grande massa de stulti, chamando esses de “insensatos, estúpidos, incultos, dementes’’. Precisamos entender que ao usar o adjetivo stultus (“estúpido”) não está avaliando a inteligência do visado, mas tão somente afirmando seu afastamento do modelo ideal.

62 O óleo com que os atletas untavam o corpo antes dos exercícios físicos, especialmente nas lutas.

63 Sálio (em latim: Salius; pl. Salii), na religião da Roma Antiga, era um “sacerdote saltador” (do verbo salio, “pular”) que realizava cultos a Marte Gradivo. Esse grupo realizava anualmente no mês de março uma procissão pelas ruas de Roma batendo em escudos sagrados, dançando um ritual e entoando em honra do deus hinos cujo texto, segundo Quintiliano, nem os próprios celebrantes compreendiam.

64 pisoteador ou arrumador, lavava as roupas pisando e pulando sobre elas em uma tina.

65 Liteira é uma cadeira portátil, aberta ou fechada, suportada por duas varas laterais, carregada por escravos.

66 Quirites eram cidadãos romanos com plenitude de direitos civis. A captatio beneuolentiae (o apelo à benevolência dos cidadãos) ocorria, por procedimento, ao final do discurso, quando o orador, depois de ter exposto sua argumentação, recorria à emoção. Ver Cícero, Diálogo sobre as divisões da oratória.

67 Bobos famosos em Roma no período. Sêneca faz alusão a eles em outras obras. Ver Sêneca, A Apocoloquintose do divino Cláudio.

Carta 14: Sobre as razões para se retirar do mundo

Sêneca escreve esta carta durante um período de turbulência política e social em Roma, provavelmente refletindo sobre as suas próprias experiências e observações sobre os perigos da vida pública. A carta é estruturada em torno de conselhos práticos sobre como evitar os males que ameaçam a paz e segurança pessoal. É  a primeira carta na qual Sêneca explicitamente coloca orientação política em seus ensinamentos e diz a Lucílio que muitas vezes devemos considerar um governante tirano da mesma forma que uma tempestade: um capitão prudente desvia seu curso e não tenta mudar aquilo que sabe ser muito mais forte.

O estoicismo, em oposição ao epicurismo, defende participação na política e sociedade civil. Nesta carta Sêneca alerta para os limites de tal estratégia usando o exemplo de Catão que durante a guerra civil do fim da república combateu tanto Júlio Cesar como Pompeu.

A Carta 14 é uma rica fonte de conselhos sobre como viver de acordo com a virtude em tempos turbulentos. Sêneca não apenas discorre sobre a teoria estoica, mas oferece orientações práticas para viver uma vida que evite as armadilhas da ambição, do medo e da violência, promovendo uma filosofia de vida que valoriza a tranquilidade interior e a moderação.
Esta carta serve tanto como um guia para a conduta pessoal quanto como um reflexo sobre as complexidades da participação política e social, temas que continuam relevantes para o debate filosófico contemporâneo sobre ética e política.
 

Sêneca termina com um alerta sobre os riscos da busca por riquezas: “Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade; ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seu livro-razão, – em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um mordomo.” (XIV, §17)

XIV. Sobre as razões para se retirar do mundo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Confesso que todos temos um afeto inato por nosso corpo, admito que somos responsáveis por sua proteção, por cuidar bem dele. Eu não defendo que o corpo não deva ser saciado em tudo, mas mantenho que não devemos ser escravos dele. Será escravo de muitos aquele que faz de seu corpo seu mestre, que teme demasiadamente por ele, que julga tudo de acordo com o corpo.

2. Devemos nos conduzir não como se devêssemos viver para o corpo, mas como se não pudéssemos viver sem ele. Nosso grande amor por ele nos deixa inquietos de medo, nos sobrecarrega de cuidados e nos expõe a ofensas. A virtude é considerada inferior pelo homem que considera seu corpo muito importante. Devemos cuidar do corpo com o maior cuidado, mas também devemos estar preparados para quando a razão, o amor-próprio e o dever exigirem o sacrifício, entregá-lo às chamas.

3. Contudo, na medida do possível, evitemos tanto os desconfortos como os perigos e retiremo-nos a um terreno seguro, pensando continuamente em como repelir todos os objetos do medo. Se não me engano, há três classes principais: temos medo da carestia, tememos a doença e tememos os problemas que resultam da violência dos mais fortes.

4. E de tudo isso, o que mais nos assusta é o pavor que paira sobre nós da violência de nosso vizinho, pois é acompanhada por grande clamor e tumulto. Mas os males naturais que eu mencionei, carestia e doença, nos furtam silenciosamente sem terror aos olhos ou aos ouvidos. O outro tipo de mal vem, por assim dizer, sob a forma de grande desfile militar. Em torno dele há um séquito de espadas, fogo, correntes e uma multidão de animais para ser solta sobre as entranhas evisceradas dos homens.

5. Imagine-se submetido à prisão, à cruz, à tortura, aos ganchos,57 à forca e à empalação. Pense nos membros humanos rasgados por cavalos movidos em direções opostas, da camisa terrivelmente besuntada com materiais inflamáveis, e de todos os outros aparelhos inventados pela crueldade, além daqueles que eu mencionei! Não é de admirar, então, se nosso maior terror é de tal sorte, porque ele vem em muitas formas e sua parafernália é aterrorizante. Pois, assim como o torturador conquista mais por conta da quantidade de instrumentos que exibe – de fato, o espetáculo vence aqueles que teriam pacientemente resistido ao sofrimento – similarmente, de todos os agentes que coagem e dominam nossas mentes, os mais eficazes são aqueles ostensivos. Esses outros problemas não são, evidentemente, menos graves. Quero dizer fome, sede, úlceras do estômago e febre engolem nossas entranhas. Eles são, no entanto, secretos, eles não vociferam e se anunciam, mas os outros, com formidáveis vestimentas de guerra, prevalecem em virtude de sua ostentação e aparelhagem.

6. Vamos, portanto, cuidar para que nos abstenhamos de ofender. Às vezes é o povo que devemos temer; às vezes um grupo de oligarcas influentes no Senado, se o método de governar o Estado é tal que a maior parte do negócio é feita por esse grupo; e às vezes indivíduos equipados com poder pelo povo e contra o povo. É oneroso manter a amizade de todas essas pessoas, basta não fazer deles inimigos. Assim o sábio nunca provocará a ira daqueles que estão no poder, mais que isso, o sábio vai mesmo mudar seu curso, exatamente como iria desviar-se de uma tempestade se estivesse conduzindo um navio.

7. Quando você viajou para a Sicília, você precisou atravessar o estreito. Seu capitão foi imprudente e desdenhou o violento vento sul – vento que encrespa o mar siciliano e cria correntes poderosas – ou ele procurou a costa à esquerda? A praia pedregosa, de onde Caríbdis58 agita os mares em confusão. Seu capitão mais cuidadoso, entretanto, questiona aqueles que conhecem a localidade quanto às marés e ao significado das nuvens. Ele mantém seu curso longe daquela região notória por suas águas agitadas. Nosso sábio faz o mesmo, foge de um homem forte que pode ser nocivo a ele, fazendo questão de não parecer evitá-lo, porque uma parte importante de sua segurança reside em não buscar segurança abertamente; porque aquilo que se evita, se condena.

8. Portanto, devemos olhar ao redor e verificar como podemos nos proteger da multidão. E antes de tudo, não devemos ter ânsias como as dela, pois a rivalidade resulta em conflitos. Novamente, não possuamos nada que possa ser arrebatado de nós para o grande lucro de um inimigo conspirador. Permita que haja o menor espólio possível na sua pessoa. Ninguém se propõe a derramar o sangue de seus semelhantes por causa do sangue em si, ou de qualquer maneira, apenas muito poucos. Mais assassinos especulam sobre seus lucros do que em dar vazão ao próprio ódio. Se você está de mãos vazias, o salteador da estrada passa por você. Mesmo ao longo de uma estrada infestada, os pobres podem viajar em paz.

9. Em seguida, devemos seguir o velho ditado e evitar três coisas com especial cuidado: ódio, ciúme e desdém. E só a sabedoria pode mostrar-lhe como isso pode ser feito. É difícil seguir o meio termo, devemos ser cuidadosos para não deixar que o medo do ciúme nos leve a tornarnos desdenhosos, para que, quando escolhemos não menosprezar os outros, não deixemos que eles pensem que podem nos menosprezar. O poder de inspirar medo tem levado muitos homens a terem medo. Afastemo-nos de todas as maneiras, pois é tão nocivo ser desprezado quanto ser admirado.

10. Você deve, portanto, refugiar-se na filosofia. Essa busca, não só aos olhos dos homens bons, mas também aos olhos dos que são mesmo moderadamente maus, é uma espécie de emblema protetor. Pois o discurso no tribunal, ou qualquer outra busca por atenção popular, traz inimigos para um homem, mas a filosofia é pacífica e foca-se em seu próprio negócio. Os homens não podem desprezá-la, ela é honrada por cada profissão, até mesmo a mais vil entre elas. O mal nunca pode crescer tão forte e a nobreza de caráter nunca pode ser tão conspirada, que o nome da filosofia deixe de ser digno e sagrado. Filosofia em si, no entanto, deve ser praticada com calma e moderação.

11. “Muito bem, então,” você responde, “você considera a filosofia de Marco Catão como moderada?” A voz de Catão se esforçou para reprimir uma guerra civil. Catão segurou as espadas de chefes de clãs enlouquecidos. Quando alguns pereceram, vítimas de Pompeu e outros de César, Catão desafiou as duas facções ao mesmo tempo!

12. Não obstante, alguém pode muito bem questionar se, naqueles dias, um sábio deveria ter tomado alguma parte nos assuntos públicos e perguntado: “O que você quer dizer, Marco Catão? Não é agora uma questão de liberdade, há muito tempo a liberdade foi desmoronada e arruinada. A questão é se César ou Pompeu controlam o Estado. Por que, Catão, você deve tomar partido nessa disputa? Não é assunto seu, um tirano está sendo escolhido. O melhor pode vencer, mas o vencedor será condenado a ser o pior homem.” Refiro-me ao papel final de Catão. Mas mesmo nos anos anteriores o homem sábio não foi autorizado a intervir em tal pilhagem do Estado pois o que poderia fazer Catão senão erguer a voz e pronunciar palavras em vão? Em certa ocasião ele foi levado pelas mãos pela multidão, foi cuspido e forçosamente removido do foro e assinalado para o exílio, em outra, foi levado direto do senado para a prisão.

13. Contudo, consideraremos mais tarde59 se o sábio deve dar atenção à política, entretanto, peço-lhe que considere aqueles estoicos que, afastados da vida pública, se retiraram para a privacidade com o propósito de melhorar a existência dos homens e elaborar leis para a raça humana sem incorrer no descontentamento daqueles que estão no poder. O homem sábio não perturbará os costumes do povo, nem atrairá a atenção da população por quaisquer modos de vida novos.

14. “O que, então? Pode alguém que seguir este plano estar sempre seguro?” Não posso garantir-lhe isto mais do que posso garantir uma boa saúde no caso de um homem que observe a moderação embora, de fato, boa saúde resulte de tal moderação. Às vezes um navio afunda no porto, mas o que você acha que acontece em mar aberto? E quão mais cercado de perigo estaria um homem, que mesmo em seu retiro não está seguro, se ele estiver ocupado trabalhando em muitas coisas! As pessoas inocentes às vezes perecem, quem negaria isso? Mas os culpados perecem com mais frequência. A habilidade de um soldado não é julgada se ele recebe o golpe de morte através de sua armadura.

15. E, finalmente, o homem sábio considera a razão de todas as suas ações, mas não os resultados. O começo está em nosso próprio poder, a Fortuna decide o assunto, mas eu não permito que ela passe sentença sobre mim mesmo. Você pode dizer: “Mas ela pode infligir uma medida de sofrimento e de problemas.” Um bandido de estrada pode matar-me; condenar-me, isso jamais!

16. Agora você estende sua mão para o presente diário. Áureo, de fato, será o presente com o qual eu o agraciarei; e, na medida em que mencionamos o ouro, deixe-me dizer-lhe como o seu uso e gozo pode trazer-lhe maior prazer. “Aquele que menos precisa de riquezas, desfruta mais das riquezas”. “Nome do autor, por favor!”, você diz. Agora, para mostrar o quão generoso eu sou, é minha intenção elogiar os ditos de outras escolas. A frase pertence a Epicuro, ou Metrodoro, ou alguém daquela escola de pensamento particular.60

17. Mas que diferença faz quem disse as palavras? Elas foram proferidas ao mundo. Aquele que anseia riquezas sente medo por conta delas. Nenhum homem, no entanto, goza de uma bênção que traz ansiedade. Ele está sempre tentando adicionar um pouco mais. Enquanto ele se intrica em aumentar sua riqueza, ele se esquece de usá-la. Ele recolhe suas contas, desgasta o pavimento do fórum, ele revira seus registros de juros, em suma, ele deixa de ser mestre e torna-se um guarda-livros.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


57 Os ganchos referidos eram usados para arrastar corpos de condenados até junto das “gemoniae scalae”, isto é, “ escadas dos gemidos”, de onde eram lançados ao rio Tibre.

58 Caríbdis (em grego: Χάρυβδις), na mitologia grega, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon.

59 Ver carta XXII neste volume.

60 Frase de Epicuro. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro X.

Carta 13: Sobre Medos infundados

Esta é uma de minhas cartas preferidas. Sêneca aborda o principal fator atrapalha nosso desenvolvimento, o medo.

O que lhe impede de procurar seu trabalho dos sonhos, de fazer arte, de viajar pelo mundo, de se expor? É o Medo. É simples assim. Podemos dar a desculpa de estarmos ocupados ou em mal momento ou não ter talento ou recursos ou um milhão de outras coisas, mas na realidade muitas vezes é o medo que nos segura.

A 13° carta defende cinco pontos principais:

  1. Conhecer seu medo é derrotá-lo;
  2. As coisas são muitas vezes piores em sua mente;
  3. Não deixe que outros lhe assustem;
  4. Antecipar um fracasso não vale a pena;
  5. Explore o que poderia realmente dar errado;

Começa argumentando que temos que experimentar certas coisas para construir nosso caráter e desenvolver resistência contra elas:

Nenhum lutador pode ir com alta expectativa para a luta se ele nunca foi espancado, o único concorrente que pode entrar com confiança na luta é o homem que viu seu próprio sangue, que sentiu seus dentes chacoalharem sob o punho do seu adversário, que foi derrubado e sentiu toda a força da carga do seu adversário, que foi abatido não só no corpo, mas também em espírito, aquele que, quantas vezes cai, levanta-se novamente com maior teimosia do que nunca.“(XIII, §2)

Ele continua:

Existem mais coisas, Lucílio, susceptíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade… Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. “(XIII, §4)

Ambas as passagens mais tarde se tornaram no refrão principal de Epicteto: devemos nos distanciar de nossas primeiras impressões, considerá-las racionalmente e decidir se dar ou retirar aprovação a elas. De fato, sofremos com mais frequência na imaginação do que na realidade, porque a realidade é muitas vezes mais suportável do que nossos medos nos deixa acreditar.

Sêneca nos encoraja a viver com mais coragem, racionalidade e equilíbrio emocional, enfrentando a vida sem se deixar abater por medos que muitas vezes são ilusórios. A mensagem finaliza com uma crítica à procrastinação na vida, sugerindo que a verdadeira vida é vivida no presente, não no preparo para um futuro que pode nunca chegar.


XIII. Sobre medos infundados

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu sei que você tem muita garra. Pois mesmo antes de você começar a equipar-se com máximas que eram saudáveis e poderosas para superar obstáculos, você estava se orgulhando de sua disputa com a Fortuna; e isso é ainda mais verdadeiro agora que você se atracou com a Fortuna e testou seus poderes. Pois nossos poderes nunca podem inspirar uma fé implícita em nós mesmos, a não ser quando muitas dificuldades tenham nos cortejado por inúmeros lados e ocasionalmente tenham se atracado conosco. Somente dessa maneira o verdadeiro espírito pode ser testado, o espírito que nunca consentirá em submeter-se à jurisdição de coisas externas a nós, aquele que nunca abdicará do seu livre arbítrio.

2. Esta é marca de tal espírito. Nenhum lutador pode ir com alta expectativa para a luta se ele nunca foi espancado, o único concorrente que pode entrar com confiança na luta é o homem que viu seu próprio sangue, que sentiu seus dentes chacoalharem sob o punho do seu adversário, que foi derrubado e sentiu toda a força da carga do seu adversário, que foi abatido não só no corpo, mas também em espírito, aquele que, quantas vezes cai, levanta-se novamente com maior teimosia do que nunca.

3. Então, para manter a minha analogia, a Fortuna foi muitas vezes no passado preponderante sobre você e mesmo assim você não se rendeu, mas saltou ereto e manteve a sua posição ainda mais determinadamente. Pois a virilidade ganha muita força ao ser desafiada. No entanto, se você aprovar, permita-me oferecer algumas salvaguardas adicionais pelas quais você pode se fortalecer.

4. Existem mais coisas, Lucílio, suscetíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade. Eu não estou falando com você na linha estoica, mas em meu estilo mais suave. Pois é a nossa maneira estoica, falar de todas essas coisas que provocam gritos e gemidos, tanto sem importância como irrelevantes. Mas você e eu devemos proferir palavras grandiosas embora, os deuses sabem, verdadeiras. O que eu aconselho você a fazer é, não ser infeliz antes que a crise chegue, já que pode ser que os perigos que o empalidecem como se estivessem o ameaçando agora, nunca cheguem sobre você; eles certamente ainda não chegaram.

5. Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. Temos o hábito de exagerar, imaginar e antecipar a tristeza. A primeira dessas três faltas pode ser adiada no momento, porque o assunto está em discussão e o caso ainda está no tribunal, por assim dizer. O que eu chamo de insignificante, você considerará ser mais grave pois é claro que eu sei que alguns homens riem enquanto são açoitados e que outros estremecem com um tapa orelha. Consideraremos mais tarde se esses males derivam seu poder, de sua própria força ou de nossa própria fraqueza.

6. Faça-me um favor; quando os homens o rodeiam e tentam convencê-lo a acreditar que você é infeliz, considere não o que você ouve, mas o que você sente e tome conselho com seus sentimentos e se questione independentemente, porque você sabe seus próprios assuntos melhor do que qualquer um. Pergunte: “Há alguma razão por que essas pessoas devam compadecer-se de mim, por que elas deveriam estar preocupados ou até mesmo temerem alguma contaminação de mim, como se problemas pudessem ser transmitidos? Existe algum mal envolvido ou é apenas uma questão de mau relato, em vez de um mal? Coloque a pergunta voluntariamente a si mesmo: “Estou atormentado sem razão suficiente, estou melancólico e estou a converter o que não é mal no que é mal?

7. Você pode retorquir com a pergunta: “Como vou saber se meus sofrimentos são reais ou imaginários?” Aqui está a regra para tais assuntos: somos atormentados por coisas presentes ou por coisas vindouras ou por ambas. Quanto às coisas presentes, a decisão é fácil. Avalie se sua pessoa goza de liberdade e saúde e que você não sofra de nenhuma violência física. Quanto ao que lhe acontecerá no futuro, veremos mais adiante. Hoje não há nada de errado.

8. “Mas,” você diz, “algo vai acontecer.” Em primeiro lugar, considere se suas provas dos problemas futuros são certas. Pois é mais comum que nos incomodemos com as nossas apreensões e que sejamos zombados por aquele zombador, o boato, que costuma instalar guerras, mas muito mais frequentemente liquida indivíduos. Sim, meu caro Lucílio, concordamos muito rapidamente com o que as pessoas dizem. Não colocamos à prova as coisas que causam o nosso medo, não as examinamos a fundo, titubeamos e nos retiramos exatamente como soldados que são forçados a abandonar seu acampamento por causa de uma nuvem de poeira levantada pelo estampido do gado ou são lançados em pânico pela divulgação de algum rumor não autenticado.

9. E, de alguma forma, é o relatório negligente que nos perturba mais. Pois a verdade tem seus próprios limites definidos, mas o que surge da incerteza é entregue à adivinhação e à licença irresponsável de uma mente assustada. É por isso que nenhum medo é tão ruinoso e tão incontrolável como o medo causado pelo pânico. Pois alguns medos são infundados, mas este medo é imbecil.

10. Vejamos, pois, atentamente o assunto. É provável que alguns problemas nos acontecerão, mas não é um fato presente. Quantas vezes o inesperado aconteceu! Quantas vezes o esperado nunca chegou a passar! E mesmo que seja destinado a ser, o que é que vale correr para encontrar seu sofrimento? Você sofrerá em breve, quando chegar a hora, então, enquanto isso, olhe para a frente, para coisas melhores.

11. O que você ganhará fazendo isso? Tempo. Haverá muitos acontecimentos, entretanto, que servirão para adiar ou para terminar ou para transmitir a uma outra pessoa as experimentações que estão próximas ou mesmo em sua própria presença. Um incêndio abriu o caminho para a fuga. Os homens foram derrotados por uma catástrofe. Às vezes o movimento da espada é parado na garganta da vítima. Alguns homens sobreviveram aos seus próprios carrascos. Mesmo a má Fortuna é inconstante. Talvez venha, talvez não, entrementes, agora, não está aqui. Então, esperemos coisas melhores.

12. A mente às vezes modela para si as formas falsas do mal quando não há sinais que apontem para algum mal, interpreta da pior forma alguma palavra de significado duvidoso ou imagina algum rancor pessoal ser mais sério do que realmente é, considerando não quão irritado o inimigo está, mas a que extensão poderá chegar sua ira. Mas a vida não vale a pena ser vivida, e não há limites para nossas dores, se entregarmos nossos medos ao máximo possível. Neste assunto, deixe a prudência ajudá-lo e despreze o medo com um espírito resoluto mesmo quando ele está à vista. Se você não pode fazer isso, combata uma fraqueza com outra e tempere o seu medo com esperança. Não há nada tão certo nesse assunto de medo como as coisas que tememos darem em nada e as coisas que esperamos nos decepcionarem, zombando de nós.

13. Consequentemente, pese cuidadosamente as suas esperanças assim como os seus temores, e sempre que todos os elementos estiverem em dúvida, decida em seu favor. Acredite no que você preferir. E se o medo ganha a maioria dos votos, incline-se na outra direção de qualquer maneira e deixe de incomodar sua alma, refletindo continuamente que a maioria dos mortais, mesmo quando não têm problemas realmente à mão, certamente os têm esperados no futuro, e tornam-se excitados e inquietos Ninguém resiste ao próprio impulso que tomou, quando começa a ser incitado à frente; nem regula o seu medo de acordo com a realidade. Ninguém diz: “o autor da história é um tolo e quem crê nela é um tolo, assim como aquele que a fabricou.” Nós nos deixamos derivar com cada brisa, estamos assustados com as incertezas, como se estivessem certas. Não observamos com moderação. A menor coisa vira o jogo e nos coloca imediatamente em pânico.

14. Mas eu tenho vergonha tanto de admoestá-lo severamente ou tentar iludi-lo com remédios tão suaves. Deixe outro dizer. “Talvez o pior não aconteça”. Você mesmo deve dizer. “Bem, e se isso acontecer, vamos ver quem ganha, talvez isso aconteça para o meu melhor interesse, pode ser que tal morte derrame crédito sobre a minha vida”. Sócrates foi enobrecido pelo chá de cicuta. Retire da mão de Catão56 sua espada, que lhe assegurou a liberdade, e você o privará da maior parte de sua glória.

15. Estou lhe exortando por demasiado tempo, já que você precisa de recordação e não de exortação. O caminho para o qual lhe guiarei não é diferente daquele em que a sua natureza o guia, você nasceu para a conduta que eu descrevo. Portanto, há mais razão para reforçar e alegrar as boas qualidades que já existem em você.

16. Mas agora, para fechar a minha carta, tenho apenas de estampar o selo habitual, ou seja, consignar uma mensagem nobre a ser entregue a você: “O tolo, com todos seus outros defeitos, tem este também: ele está sempre se preparando para viver.” Reflita, meu estimado Lucílio, o que significa essa palavra, e você verá quão revoltante é a inconstância dos homens que estabelecem cada dia novos fundamentos de vida e começam a construir novas esperanças mesmo à beira da sepultura.

17. Olhe dentro de sua própria mente para instâncias individuais, você pensará em homens velhos que estão se preparando naquela mesma hora para uma carreira política ou para viajar ou para o negócio. E o que é mais mesquinho do que se preparar para viver quando você já é velho? Eu não devo dar o nome do autor deste lema, exceto que é pouco conhecido e não é um daqueles ditos populares de Epicuro que eu me permiti elogiar e apropriar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


56 Marco Pórcio Catão Uticense), também conhecido como Catão, o Jovem, (para se distinguir do seu bisavô, Marco Pórcio Catão, o Velho), (Roma, 95 a.C. – Útica, 46 a.C.) foi um político romano célebre pela sua inflexibilidade e integridade moral. Partidário da filosofia estoica, era avesso a qualquer tipo de suborno. Opunha-se, particularmente, a Júlio César. Suicidou-se depois da vitória deste na Batalha de Tapso.

Carta 12: Sobre a Velhice

Na 12ª carta Sêneca explora a velhice não apenas como um estágio da vida, mas como uma fase repleta de ensinamentos e prazeres próprios. A carta reflete a autopercepção de Sêneca sobre sua própria velhice, utilizando exemplos cotidianos para ilustrar a passagem do tempo.

Ele começa recordando uma visita recente a uma de suas casas de campo, durante as quais ele reclamou a um de seus funcionários que estava gastando muito dinheiro na manutenção. Mas seu zelador protestou que a casa estava envelhecendo, e os reparos eram, portanto, totalmente justificados. Então Seneca escreve: “E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando? “(XII, §1)

Qual deve ser a atitude da pessoa sábia em relação à velhice? Sêneca coloca muito vividamente a Lucílio:

Vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: ‘Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado’ E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Quando um homem diz: ‘Eu tenho vivido!’, toda manhã que acorda, recebe um bônus.“(XII.9)

Como ele frequentemente faz nas cartas, Sêneca termina com um “presente”, uma citação significativa de outro autor, que neste caso é: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação. (XII, §10), outra referência ao suicídio a ser escolhido sob certas circunstâncias.

O ditado acima é de ninguém menos que Epicuro, o principal rival da escola estóica. Sêneca, então, imagina Lucílio protestando: “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. (XII, §11)

Mais uma vez, uma bela frase e um exemplo de verdadeira sabedoria: não importa de onde a verdade venha, uma vez descoberta, é nossa propriedade coletiva.

——

XII. Sobre a velhice

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Para onde quer que eu me vire, vejo evidências de meus avançados anos. Visitei recentemente a minha casa de campo e reclamei do dinheiro gasto na manutenção do prédio. Meu caseiro sustentou que as falhas não eram devidas a seu próprio descuido. Ele estava fazendo todo o possível, mas a casa era velha. E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando?

2. Eu estava com raiva e usei a primeira oportunidade de exalar meu mal humor na presença do caseiro. “Está claro!” Exclamei eu, “que esses plátanos estão negligenciados, não têm folhas, seus ramos são tão retorcidos e enrugados, os caules estão ásperos e desalinhados! Isso não aconteceria se alguém afofasse a terra sob seus pés e os regasse.” O caseiro jurou por meu gênio protetor46 que “ele estava fazendo todo o possível e nunca relaxou seus esforços, mas aquelas árvores eram velhas”. Só entre nós, eu havia plantado essas árvores, eu as tinha visto em sua primeira florada.

3. Então, virei-me para a porta e perguntei: “Quem é aquele quebrantado? Vocês fizeram bem em coloca-lo na entrada, porque ele já está de saída,47 onde você o pegou?” Mas o escravo disse: “Você não me reconhece, senhor? Sou Felício, você costumava me trazer pequenas imagens,48 meu pai era o Filósito, o zelador, e eu sou seu escravo querido”. “O homem está louco”, comentei. “Meu escravo predileto tornou-se um menininho de novo? Mas é bem possível, seus dentes estão caindo.”49

4.Estou obrigado a admitir que minha velhice se tornou aparente. Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheia de prazer se alguém sabe como usá-la. As frutas são mais bem-vindas quando quase passadas. A juventude é mais encantadora em seu fim, o último drinque deleita o ébrio: é o copo que o sacia e dá o toque final em sua embriaguez.

5. Cada prazer reserva para o fim as maiores delícias que contém. A vida é mais deliciosa quando está em declive mas ainda não atingiu o fim abrupto. E eu mesmo acredito que o período que se encontra, por assim dizer, à beira do telhado, possui prazeres próprios. Ou então, o próprio fato de não desejarmos prazeres, toma o lugar dos próprios prazeres. Como é reconfortante ter cansado o apetite e ter acabado com ele!

6. “Mas,” você diz, “é um incômodo estar olhando a morte no rosto!A Morte, no entanto, deve ser olhada no rosto por jovens e velhos. Nós não somos convocados de acordo com nossa classificação alfabética na lista do censor.50 Além disso, ninguém é tão velho que seria impróprio para ele esperar mais um outro dia de existência. E um dia, lembre-se, é uma etapa na jornada da vida. Nosso escopo de vida é dividido em partes, consiste em grandes círculos que encerram menores. Um círculo abraça e limita o resto, atinge desde o nascimento até o último dia da existência. O próximo círculo limita o período de nossa juventude. O terceiro limita toda a infância em sua circunferência. Outra vez, há, em uma classe em si, o ano. Contém dentro de si todas as divisões de tempo pela adição da qual obtemos o total da vida. O mês é limitado por um anel mais estreito. O menor círculo de todos é o dia, mas mesmo um dia tem seu começo e seu término, seu nascer e seu pôr-do-sol.

7. Por isso Heráclito,51 cujo estilo obscuro lhe deu seu sobrenome, observou: “Um dia é igual a todos os dias”. Diferentes pessoas têm interpretado o ditado de maneiras diferentes. Alguns afirmam que os dias são iguais em número de horas, e isso é verdade pois se por “dia” queremos dizer vinte e quatro horas de tempo, todos os dias devem ser iguais, na medida em que a noite adquire o que o dia perde. Mas outros sustentam que um dia é igual a todos os dias por meio da semelhança, porque o espaço de tempo mais longo não possui nenhum elemento que não possa ser encontrado em um único dia, a saber, a luz e a escuridão, e até a eternidade faz esses revezamentos mais numerosos, não diferentes quando é mais curto e diferente novamente quando é mais longo…52

8. Portanto, todos os dias deveriam ser regulados como se fechassem a série, como se estivessem completando nossa existência. Pacúvio,53 que por muito tempo ocupava a Síria, costumava realizar um ritual de sepultamento em sua própria honra, com vinho e banquetes fúnebres, e depois ser levado da sala de jantar para seu sarcófago, enquanto os eunucos aplaudiam e cantavam em grego: “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida!

9. Assim Pacúvio vinha enterrando-se todos os dias. Vamos, no entanto, fazer por um bom motivo o que ele costumava fazer por um motivo vil, vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer:

Eu tenho vivido; O curso que a Fortuna estabeleceu para mim está terminado.54

E se os deuses se agradam em acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Esse homem é o mais feliz e está seguro em sua própria posse de si mesmo, pois pode esperar o amanhã sem receio. Quando um homem diz: “Eu tenho vivido!”, toda manhã ao acordar, recebe um bônus.

10. Mas agora eu devo concluir a minha carta. “O quê?”, você diz, “virá a mim sem qualquer contribuição?” Não tenha medo, trago algo e, melhor, mais do que algo, muito. Pois o que há de mais nobre do que o seguinte provérbio de que eu faço desta carta portadora: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.55 Claro que não. Em todos os lados encontram-se muitos caminhos curtos e simples para a liberdade e agradeçamos aos deuses que nenhum homem possa ser mantido na vida. Podemos desprezar os próprios constrangimentos que nos prendem.

11. “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem? Qualquer verdade, eu sustento, é minha propriedade. E continuarei a amontoar citações de Epicuro sobre você, para que todas as pessoas que juram pelas palavras de outrem e que valorizam o orador e não o que é dito, compreendam que as melhores ideias são domínio público.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


46 Na religião pagã romana, o gênio (genius) era uma das divindades domésticas individualmente associada a cada homem. Cada um possuía o seu genius (e a mulher seu juno). Especialmente venerado era o genius do chefe de família.

47 Uma alusão irônica ao funeral romano; os pés do cadáver apontando para a porta.

48 Pequenas figuras, geralmente de terracota, eram frequentemente dadas às crianças como presente durante o festival da Saturnalia. Neste festival, era costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, entre senhores e escravos. Nessa ocasião os escravos gozavam de uma grande liberdade em relação aos seus senhores. Ver Horácio, Sátiras, livro II, 7.

49 O antigo escravo se assemelha a uma criança na medida em que está perdendo os dentes (mas pela segunda vez).

50 Seniores” em contraste com “iuniores”.

51 Heráclito de Éfeso (ca 535 a.C. – 475 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o “Pai da dialética”. Recebeu a alcunha de “O Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, “Sobre a Natureza”, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.

52 O texto apresenta aqui uma lacuna.

53 A Síria era legalmente governada por Élio Lâmia, nomeado por Tibério, que, impedido de sair de Roma, administrava a província por intermédio do seu legado Pacúvio. Ver Tácito, Anais.

54 Trecho de Eneida, de Virgílio.

55 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 11: Sobre o rubor da modéstia

A 11ª carta a Lucílio trata de dois princípios estoicos cruciais.

Sêneca começa com o tópico improvável de corar, algo que simplesmente não podemos evitar, não importa o quão bravamente tentamos. Ele diz a seu amigo que “nenhuma sabedoria consegue remover as fragilidades naturais do corpo. O que é intrínseco e inato pode ser atenuado pelo treinamento, mas não totalmente superado“. (XI.1)

Esta é uma visão notável e um reconhecimento imediato dos limites da filosofia: a própria sabedoria, o principal bem de acordo com os estoicos, não pode superar nossas predisposições naturais e reações inatas. Se experimentarmos um constrangimento, coramos, se sentirmos medo ou raiva, não podemos evitar a precipitação da adrenalina. Tudo isso está fora do nosso controle e, portanto, Epicteto mais tarde diria, “não é nosso encargo“.

Isso estabelecido, Sêneca continua com o que ele pensa ser bom conselho:  cultivar a sabedoria apesar das suas limitações. Mas, como cultivamos sabedoria exatamente? Pode ser ensinada?  A resposta de Seneca é o estoicismo por excelência:

Estime um homem de grande caráter, e mantenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele estivesse observando você, e arranjando todas as suas ações como se ele as tivesse visto” (XI.8)… “Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave… Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua.” (XI.10)

Esta carta pode ser vista como um lembrete de que, apesar dos avanços tecnológicos e sociais, a essência da humanidade e seus dilemas éticos permanecem. A busca por virtude e a aceitação das próprias limitações são temas eternos que continuam relevantes para a auto-reflexão e crescimento pessoal. Sêneca nos lembra que, mesmo no esforço para sermos melhores, devemos aceitar e trabalhar com nossas imperfeições naturais.

Continue lendo “Carta 11: Sobre o rubor da modéstia”

Carta 10: Sobre viver para si mesmo

Em sua décima carta Sêneca continua a ensinar evitarmos multidões e valorizarmos a introspecção, contudo, alerta que muitas vez não devemos confiar sequer em nós mesmo, já geralmente somos tolos e ignorantes.

Sêneca aconselha Lucílio a orar por uma mente sã e saúde, tanto mental quanto física, e a fazê-lo publicamente, sem vergonha. Ele critica aqueles que pedem a Deus coisas que não desejam que outros saibam, sugerindo que a verdadeira liberdade dos desejos é alcançada quando não há nada a esconder.

A carta termina com um provérbio de Atenodoro, enfatizando que a verdadeira ausência de desejo é quando alguém só pede a Deus o que poderia pedir abertamente:

 “Saiba que está livre de todos os desejos quando alcançar o ponto em que não pede nada a Deus senão o que você possa pedir publicamente”. Mas como homens são tolos! Eles sussurram as mais vis orações ao céu, mas se alguém os ouve, eles calam-se imediatamente. O que eles não querem que os homens saibam, pedem a Deus. Não acredito, então, poder te dar algum conselho mais sério que este: “Viva entre os homens como se Deus os observasse, fale com Deus como se os homens estivessem ouvindo”. (X, §5)


X. Sobre viver para si mesmo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Sim, eu não mudo minha opinião: evite as multidões, evite os poucos, evite mesmo o indivíduo. Não conheço ninguém com quem eu esteja disposto a compartilhá-lo. E repare o juízo que eu tenho de sua opinião: ouso confiar você a si próprio. Crates,43 dizem eles, o discípulo do mesmo Estilpo que mencionei em uma carta anterior, notou um jovem caminhando sozinho e perguntou-lhe o que ele estava fazendo sozinho. “Estou comungando comigo mesmo”, respondeu o jovem, “então, cuidado,” disse Crates, “você está conversando com um homem mau”!

2. Quando as pessoas estão de luto ou têm medo de alguma coisa, estamos acostumados a observá-las para que possamos impedi-las de fazer um uso errado de sua solidão. Nenhuma pessoa imprudente deve ser deixada sozinha; em tais casos, ela só planeja loucura e acumula perigos futuros para si ou para os outros. Ela coloca em jogo seus instintos básicos, a mente mostra o que o medo ou a vergonha costumavam reprimir, ela aguça a sua ousadia, agita as suas paixões e incita a sua ira. E, finalmente, o único benefício que a solidão confere, o hábito de não confiar em nenhum homem e de não temer testemunhas, é desperdiçado pelo tolo porque ele trai a si mesmo. Lembre-se, portanto, quais são minhas esperanças para você, ou melhor, o que eu estou prometendo, na medida em que a esperança é meramente o título de uma bênção incerta: não conheço ninguém com quem preferira que você se associasse, senão consigo mesmo.

3. Lembro-me da maneira grandiosa com que você lançou certas frases e quão cheias de força elas eram! Imediatamente me congratulei e disse: “Estas palavras não vieram da borda dos lábios, estas declarações têm uma base sólida. Este homem não é um dos muitos, ele tem consideração por seu real bem-estar.

4. Fale e viva desta maneira, cuide para que nada o retenha. Quanto às suas preces anteriores, você pode liberar os deuses de respondê-las. Ofereça novas orações, ore por uma mente sã e por uma boa saúde, primeiro de alma e depois de corpo. E é claro que você deve oferecer essas preces com frequência. Apele com ousadia a Deus, você não vai pedir a Ele o que pertence a outro.

5. Mas devo, como é meu costume, enviar um presente pequeno junto com esta carta. É um verdadeiro provérbio que eu encontrei em Atenodoro:44 “Saiba que está livre de todos os desejos quando alcançar o ponto em que não pede nada a Deus senão o que você possa pedir publicamente”. Mas como homens são tolos! Eles sussurram as mais vis orações ao céu, mas se alguém os ouve, eles calam-se imediatamente. O que eles não querem que os homens saibam, pedem a Deus. Não acredito, então, poder te dar algum conselho mais sério que este: “Viva entre os homens como se Deus os observasse, fale com Deus como se os homens estivessem ouvindo”.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


43 Crates de Tebas (c. 365 – c. 285 BC) foi um filósofo cínico. Crates doou seu dinheiro para viver uma vida de pobreza nas ruas de Atenas. Respeitado pelo povo de Atenas, ele é lembrado por ser o professor de Zenão de Cítio, o fundador do Estoicismo. Vários fragmentos dos ensinamentos de Crates sobreviveram, incluindo sua descrição do de um estado cínico ideal.

44 Atenodoro de Tarso ou Atenodoro Cananita (ca. 74 a.C. – 7) foi um filósofo estoico. Nasceu em Canana, perto de Tarso (no que é hoje a Turquia, foi aluno de Posidônio de Rodes e professor de Otaviano – o futuro imperador Augusto).

Carta 9: Sobre Filosofia e Amizade

Na nona carta Sêneca discorre sobre a complexa relação entre autossuficiência e a necessidade de amizade, refletindo sobre as ideias de Epicuro e os estoicos.

Em todo o texto o termo  “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.

A carta também explica o conceito estoico de indiferente: “Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.” (IX, §4)

  • Autossuficiência e Amizade: Sêneca começa discutindo a visão de Epicuro sobre a autossuficiência do sábio e como isso se relaciona com a necessidade de amizades. Epicuro critica a ideia de que o sábio não precisa de amigos, argumentando que mesmo o sábio deseja companhia.
  • Felicidade e Posse Interna: A felicidade genuína vem de dentro, não depende de bens externos ou mesmo de amigos. O sábio pode perder tudo e ainda assim se considerar completo.
  • Crítica ao Materialismo: Sêneca critica a visão de que a posse material ou poder pode trazer felicidade, destacando que a verdadeira felicidade reside na satisfação interna.

Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e  nos alerta sobre o risco das amizades por interesse:  “Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse.” (IX, §6 e 9 )

Assim, embora o sábio seja autossuficiente, isso não exclui a busca por amizades verdadeiras que enriquecem a vida sem depender delas para a felicidade. Sêneca nos a refletir sobre como a felicidade e a paz interior são cultivadas internamente, independentemente das perdas ou ganhos externos.


IX. Sobre filosofia e amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.33 Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.

2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.34 Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.

3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:35 nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.

4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.

5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,36 se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.

6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.

7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.

8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, autossuficiente como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.

9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”37; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.

10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.

11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?

12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da Fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.

13. “O homem sábio é autossuficiente”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio é autossuficiente para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a Fortuna.

14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.38 “Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”39 O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.

15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da Fortuna.

16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.40 Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.

17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.

18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,41 conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!

19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.

20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.

21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:

Infeliz é aquele que não se considera feliz.42

O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?

22. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


33 Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

34 O termo grego ἀπάθεια (Apatheia) significa literalmente “ausência de sofrimento”, daí vem o termo apatia em português.

35 Isto é, escola cínica.

36 Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

37 Em Latin, quas temporarias, tempo bom.

38 A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.

39 Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.

40 Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.

41 Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.

42 Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro.

Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

A oitava carta de Sêneca aborda a tensão entre a vida contemplativa e a ação social, uma questão central no estoicismo e na filosofia em geral. Sêneca defende um isolamento temporário não como um fim em si mesmo, mas como meio de melhor servir à sociedade, refletindo sobre o valor da introspecção e do estudo intenso.

Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar. “Fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade.

A carta de Sêneca encontra ressonância na modernidade, onde a busca por sucesso e bens materiais muitas vezes ofusca a busca por sabedoria e contentamento interior. A ideia de que a verdadeira liberdade vem da submissão à filosofia, ou a um sistema de valores elevados, é uma mensagem que ainda ressoa.

Uma frase forte da oitava carta de Sêneca a Lucílio, que resume muitos dos temas centrais da carta e do estoicismo em geral, é:
“Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia.”
Essa frase encapsula a ideia de que a verdadeira liberdade humana não vem da autonomia externa ou das posses materiais, mas da adesão a uma vida guiada pela razão e pela virtude, que é a essência da filosofia estoica. Ela sugere que a liberdade verdadeira é alcançada através da submissão à disciplina filosófica, que nos liberta das illusões e vicissitudes da fortuna e das paixões descontroladas.

(Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


VIII. Sobre o isolamento do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Uma objeção sua: “Você sugere que se evite a multidão, se retire do contato dos homens e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?”1 Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior.2 Nunca passo um dia em ociosidade, aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso. E quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechados, eu os mantenho em sua tarefa.

2. Tenho me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios. Estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para elas.3 Há certos conselhos sadios que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito, pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.

3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os presentes da fortuna, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação”. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados. Isso porque nós pensamos que nós as mantemos em nosso poder, mas são elas que nos prendem.

4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento, nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”. A fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.

5. Apegue-se pois, a esta regra sadia e sólida para a vida: que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande.

6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte ou carimbo meu selo sobre uma decisão ou presto ajuda ao senado ou por palavra ou ação presto meu apoio a um candidato qualquer? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas: eles estão lidando ao mesmo tempo com os planos humano e divino.

7. Mas devo parar e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade, pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”.4 O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da filosofia é a liberdade.

8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Publílio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços!5

9. Vou citar um versículo dele que diz respeito à filosofia e, particularmente, aquela frase sobre a qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:

Ainda é alheio o que você ganhou do acaso .

Alienum est omne, quicquid optando evenit.5

10. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: “O que a Fortuna fez não é seu”. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: “O bem que pode ser dado, pode ser removido.” Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo. Ao contrário dos epicuristas, que defendiam uma vida à margem das obrigações políticas e sociais, os estoicos aconselhavam a participação ativa do sábio nos assuntos do estado. Isto explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Sêneca. Ver George Stock, Estoicismo.

2 As condições sócio-políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como fez Sêneca a partir de 63 quando perdeu influência sobre Nero. Ver o tratado Sobre o Ócio em que Sêneca aprofunda o assunto.

3 Essas Cartas!

5 “excalceatis”, referência a comediantes ou mímicos.

6  Provérbios de Publílio Siro (Século 1 a.C.). Também conhecido como Publilio Sirio, ou como Publilius Syrius ou Publio Sirio. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

Carta 7: Sobre multidões

A sétima carta de Sêneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.

Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura  ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:

Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!‘ (VII, §4-5)”

Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. “(VII, §6)”

(imagem: Pollice Verso (polegar para baixo) – por Jean-Léon Gérôme )


VII. Sobre multidões

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado, alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.

2. Ligar-se à multidão é prejudicial. Não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar algum espetáculo, pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.

3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão, mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva.1 Eles estão expostos a golpes em todos os pontos e ninguém nunca desfere golpes em vão.

4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos, ao meio-dia, os jogam aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia para o intervalo.

5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo. Mas e você? Que crime você cometeu, pobre colega, que mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco de gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você2 não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender por si a ser cruel.

6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão: é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles. Tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultivemos nossas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.

7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância: o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta? Você deve imitar ou abominar o mundo.

8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau, simplesmente porque eles são muitos, nem deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo pois os homens aprendem enquanto ensinam.

9. O vão orgulho em divulgar suas habilidades não deve induzi-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adequasse a tal multidão; mas como ela é, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitem sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços. Foi por si mesmo que você aprendeu.

10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com você três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito3 diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão e uma multidão apenas tanto como um homem.

11. O seguinte também foi nobremente falado por ele ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor. Eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.4

12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens o louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro, seus autênticos bens são internos.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados eram frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceriam por toda a parte do dia.

2 A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

3 Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. – 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C. Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.