Seria o estoicismo útil para religiosos? e para ateus e agnósticos? Sêneca diz que sim, e para todos. A ideia básica da carta 16 é deixada clara nas primeiras linhas. O estudo da filosofia é na verdade um amor à sabedoria, e não deve ser perseguido por questões triviais, como Sêneca deixa claro pouco depois: “não é um truque para fisgar o público; não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de fatos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão”(XVI, §3). Isso praticamente eliminaria quase toda filosofia acadêmica moderna.
No quinto parágrafo Sêneca apresenta um interessante argumento sobre por que a filosofia deveria ser nosso guia na vida, independentemente de nossas posições religiosas: “se a Fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente e a Fortuna desafiadoramente, ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a Fortuna.”
Observe as três possibilidades consideradas: Destino inexorável, ou o que hoje chamaríamos de determinismo; Deus como o planejador de tudo o que acontece no universo, semelhante à ideia cristã da Providência; ou o Acaso, o caos epicurista que caracteriza um cosmos no qual Deus não desempenha nenhum papel ativo.
Isso não é nada diferente do afirmado por Marco Aurélio em suas Meditações:
“Ou uma necessidade do destino e uma ordem inviolável, ou uma providência compassiva, ou um caos fortuito, sem direção. Se, pois, trata-se de uma necessidade inviolável, a que oferece resistência? E se uma providência que aceita ser compassiva, faça a ti mesmo merecedor do socorro divino. E se um caos sem guia, conforma- te, porque em meio de um fluxo de tal índole dispõe em seu interior de uma inteligência guia.” (Meditações XII, §14)
Sêneca, em seguida, puxa uma de suas citações positivas de Epicuro: “Isto também é um ditado de Epicuro: ‘Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.‘” (XVI, §7)
A carta conclui com esse contraste agradável e instrutivo, que leva a uma verdade profunda: “Suponha que a Fortuna leve você muito além dos limites de um rendimento privado, cubra-o com ouro, roupas em púrpura e traga-lhe a tal grau de luxo e riqueza que você possa cobrir a terra sob seus pés de mármore, que você possa não só possuir, mas andar sobre riquezas.; você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais… O falso não tem limites. ”(XVI, §8 e 9)
A carta de Sêneca serve como um lembrete de que a filosofia não é apenas um campo de estudo, mas um modo de vida que proporciona equilíbrio, sabedoria, e uma perspectiva sobre o que realmente importa na vida. Ele encoraja a prática contínua e a autoavaliação, além de alertar sobre os perigos dos desejos infundados pela sociedade.
XVI. Sobre filosofia, o guia da vida
Saudações de Sêneca a Lucílio.
1. Tenho certeza que está claro para você, Lucílio, que nenhum homem pode viver uma vida feliz, ou mesmo uma vida suportável, sem o estudo da filosofia; você sabe também que uma vida feliz é alcançada quando a nossa sabedoria é levada ao auge, mas que a vida é pelo menos suportável, mesmo quando a nossa sabedoria apenas começa. Essa ideia, no entanto, embora clara, deve ser fortalecida e implantada mais profundamente pela reflexão diária. É mais importante para você manter as resoluções que já fez do que ir e fazer novas. Você deve perseverar, deve desenvolver uma nova força através do estudo contínuo, até que o que era apenas uma boa disposição se torne um propósito bem estabelecido.
2. Por essa razão você não precisa mais vir a mim com muita conversa e declarações solenes; sei que você fez grandes progressos. Eu entendo os sentimentos que originam suas palavras, não são palavras fingidas ou enganosas. No entanto, vou dizer-lhe o que penso, que no momento tenho esperanças para você, mas ainda não perfeita confiança. E gostaria que você adotasse a mesma atitude em relação a si mesmo. Não há nenhuma razão porque você deva colocar muita confiança em si mesmo rapidamente e sem grande esforço. Examine-se, investigue-se e observe-se de várias maneiras, mas antes de tudo diga se é na filosofia ou meramente na própria vida que você fez progresso.68
3. Filosofia não é um truque para fisgar o público, não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de atos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão antes que seja extenuado, ou que nosso ócio possa ser aliviado de um tédio que nos irrita. Molda e constrói a alma, ordena nossa vida, guia nossa conduta, nos mostra o que devemos fazer e o que devemos deixar por fazer, ela senta ao leme e dirige o nosso curso enquanto nós titubeamos em meio a incertezas. Sem ela, ninguém pode viver intrepidamente ou em paz de espírito. Inúmeras coisas que acontecem a cada hora pedem conselhos e esses conselhos devem ser buscados na filosofia.
4. Talvez alguém diga: “Como pode a filosofia me ajudar, frente a existência da Fortuna? De que serve a filosofia, se Deus governa o universo? De que vale, se a Fortuna governa tudo? Não só é impossível mudar as coisas que são determinadas, mas também é impossível planejar de antemão contra o que é indeterminado; ou Deus já antecipou meus planos e decidiu o que devo fazer ou então a Fortuna não dá liberdade aos meus planos”.
5. Se a verdade, Lucílio, está em uma ou em todas estas perspectivas, nós devemos ser filósofos, se a Fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente e a Fortuna desafiadoramente, ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a Fortuna.
6. Mas não é meu propósito agora ser levado a uma discussão sobre o que está sob nosso próprio controle, se a presciência é suprema ou se uma cadeia de eventos fatais nos arrasta em suas garras ou se o repentino e o inesperado nos dominam. Volto agora ao meu aviso e à minha exortação, que não permita que o impulso do seu espírito se enfraqueça e fique frio. Mantenha-se firme nele e estabeleça-o firmemente, a fim de que o que é agora ímpeto, possa tornar-se um hábito da mente.
7. Se eu lhe conheço bem, você já está tentando descobrir desde o início da minha carta a pequena contribuição que ela traz para você. Peneire a carta e você a encontrará. Você não precisa se maravilhar com nenhum gênio meu porque, ainda assim, eu sou pródigo apenas com a propriedade de outros homens. Mas por que eu disse “outros homens”? O que quer de bom que seja dito por alguém é meu. Este é também um dito de Epicuro: “Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.”69
8. Os desejos da natureza são leves, as exigências da opinião são ilimitadas. Suponha que a propriedade de muitos milionários seja entregue em sua posse. Suponha que a Fortuna leve você muito além dos limites de um rendimento privado, cubra-o com ouro, roupas em púrpura e traga-lhe a tal grau de luxo e riqueza que você possa cobrir a terra sob seus pés de mármore, que você possa não só possuir, mas andar sobre riquezas. Adicione estátuas, pinturas e tudo o que a arte tem concebido para o luxo, você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais.
9. Os desejos naturais são limitados, mas aqueles que brotam da falsa opinião não tem ponto de parada. O falso não tem limites. Quando você está viajando em uma estrada, deve haver um fim, mas quando perdido, suas andanças são ilimitadas. Desista, portanto, de coisas inúteis, e quando você quiser saber se o que procura é baseado em um desejo natural ou em um desejo enganoso, considere se ele pode parar em algum ponto definido. Se você perceber, depois de ter viajado muito, que há um objetivo mais distante sempre em vista, você pode ter certeza que esta situação é contrária à natureza.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
68 Ou seja, apenas avançou em idade.