A carta aborda o medo da morte. É um grande auxilio para as pessoas que precisam fazer o que deve ser feito, mesmo sob risco pessoal. Sêneca foi rico e poderoso, agiu como primeiro ministro de Roma nos 5 primeiros anos do reinado de Nero. Também passou por muitos riscos e sofrimento. Foi condenado a morte por Calígula, escapando por ajuda de amigos e ficou 8 anos exilado por determinação de Cláudio. No fim foi condenado a cometer suicídio por Nero.
Sêneca aponta algo paradoxal no início de sua carta: Sêneca: “Por que antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro“(XXIV, §1)
Mas o futuro nunca chega e, portanto, você nunca pode ser totalmente infeliz. Não devemos nos aborrecer com problemas futuros, tornando-os um problema do presente. Não se preocupe com as coisas antes do tempo.
“Contemple este fardo obstrutivo que é o corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! ‘Eu morrerei’, você diz; você queria dizer: ‘Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte'”(XXIV, §17).
Saudações de Sêneca a Lucílio.
1. Você escreve-me que está ansioso pelo resultado de um processo judicial, com o qual um oponente colérico está lhe ameaçando e você espera que eu lhe aconselhe a vislumbrar um desenlace feliz e a descansar em meio aos encantos da esperança lisonjeira. Por que seria necessário conjurar problemas, que devem ser resolvidos de uma vez tão logo que cheguem, ou antecipar problemas e arruinar o presente por medo do futuro? É realmente tolo ser infeliz agora porque talvez possa vir a ser infeliz em algum tempo futuro.
2. Mas conduzi-lo-ei à paz de espírito por uma outra rota: se você quer desencorajar toda a preocupação, suponha que o que você teme que poder acontecer certamente acontecerá, qualquer que seja o problema, então meça-o em sua própria mente e estime a quantidade de seu medo. Você compreenderá assim que o que você teme é insignificante ou de curta duração.
3. E você não precisa gastar muito tempo em coletar ilustrações que o fortalecerão, cada época as produziu com abundância. Deixe seus pensamentos viajarem em qualquer época da história romana ou estrangeira e haverá múltiplos exemplos notáveis de feitos heroicos ou de intensa serenidade filosófica. Se perder este julgamento, pode acontecer algo mais grave do que você ser enviado ao exílio ou levado à prisão? Existe um pior destino que qualquer homem possa temer do que ser torturado pelo fogo ou sofrer uma morte violenta? Nomeie essas punições uma a uma e mencione os homens que as desprezaram, não é preciso sair à caça deles, é simplesmente uma questão de listá-los.
4. A sentença de condenação foi suportada por Rutílio como se a injustiça da decisão fosse a única coisa que o aborrecesse. O exílio foi suportado por Metelo com coragem, por Rutílio até mesmo com alegria, pois o primeiro só consentiu em voltar a Roma porque seu país o chamava, este se recusou a voltar quando Sula o convocou e ninguém naqueles dias ousava dizer não a Sula! Sócrates na prisão discursou e recusou-se a fugir quando certas pessoas lhe deram a oportunidade. Ele permaneceu lá, a fim de libertar a humanidade do medo das duas coisas mais graves: a morte e prisão.
5. Múcio colocou a mão no fogo. É doloroso ser queimado, mas quão mais doloroso é infligir tal sofrimento a si mesmo! Aqui estava um homem sem instrução filosófica, não preparado para enfrentar a morte e a dor por qualquer palavra de sabedoria e, equipado apenas com a coragem de um soldado, se puniu por sua ousadia infrutífera. Ele ficou de pé e observou sua própria mão direita caindo aos poucos sobre o braseiro do inimigo, nem retirou o membro dissolvente, com os seus ossos descobertos, até que seu inimigo removeu o fogo. Ele poderia ter conseguido algo mais bem-sucedido naquela batalha, mas nunca algo mais corajoso. Veja quão mais corajoso é um homem valente ao se assenhorar do perigo do que um homem cruel é para infringi-lo: Porsena estava mais pronto para perdoar Múcio por querer matá-lo do que Múcio para se perdoar por não ter matado Porsena!
6. “Oh”, diz você, “essas histórias foram repetidas à exaustão em todas as escolas, muito em breve, quando você chegar ao tema ‘Desprezo pela Morte’, você vai me falar sobre Catão”. Mas por que não lhe contar sobre Catão, como ele leu o livro de Platão naquela última noite gloriosa, com uma espada pousada sob o travesseiro? Ele tinha provido essas duas condições para seus últimos momentos, primeiro, que ele poderia ter a vontade de morrer, e segundo, que ele poderia ter os meios. Então ele regularizou seus negócios, assim como se pode ordenar o que está arruinado e perto de seu fim. Pensou que deveria fazer para que ninguém tivesse o poder de matá-lo ou a possibilidade de salvá-lo.
7. Desembainhando a espada, que tinha mantido sem mancha mesmo após todo derramamento de sangue, ele gritou: “Fortuna, você não conseguiu nada, resistindo a todos meus esforços. Eu tenho lutado até agora pela liberdade do meu país e não por mim mesmo, não me esforcei tão obstinadamente para ser livre, mas apenas para viver entre os livres. Agora, já que os assuntos da humanidade estão além da esperança, que Catão seja retirado para a segurança.”
8. Assim dizendo, ele infligiu uma ferida mortal sobre seu corpo. Depois que os médicos o cauterizaram, Catão tinha menos sangue e menos forças, mas não menos coragem, enfurecido agora não só contra César, mas também consigo mesmo, reuniu suas mãos desarmadas contra sua ferida e expulsou, em vez de liberar, aquela nobre alma que tinha sido tão desafiadora de todo poder mundano.
9. Eu não estou agora a amontoar estas ilustrações com o propósito de exercitar seu espírito, mas com o propósito de encorajá-lo a enfrentar o que é considerado ser o mais terrível. E vou encorajá-lo com mais facilidade, mostrando que não só homens resolutos desprezaram aquele momento em que a alma expira por último, mas que certas pessoas, que eram covardes em outros aspectos, se igualaram à coragem dos mais corajosos. Tomemos, por exemplo, Cipião, o sogro de Cneu Pompeu: ele foi atirado sobre a costa africana por um vento de proa e viu seu navio no poder do inimigo. Ele, portanto, perfurou seu corpo com uma espada e quando perguntaram onde estava o comandante, ele respondeu: “Tudo está bem com o comandante”(Imperator se bene habet).
10. Estas palavras o elevaram ao nível de seus antepassados e não macularam a glória que o destino deu aos Cipiões na África. Foi uma grande ação conquistar Cartago, mas uma ação maior vencer a morte. “Tudo está bem com o comandante!” que forma de morrer haveria mais digna de um general e, especialmente, de um general das tropas de Catão?
11. Não remetê-lo-ei à história, nem colecionarei exemplos daqueles homens que ao longo dos séculos desprezaram a morte, pois são muitos. Considere essa nossa época, onde a prostração e o excesso de refinamento provocam queixas. Os exemplos incluirão homens de toda categoria, de toda Fortuna na vida, e de todas as épocas, que interromperam suas desgraças com a morte. Acredite em mim, Lucílio, a morte é tão pouco a temer que através de seus bons ofícios nada é temível.
12. Portanto, quando seu inimigo ameaçar, ouça despreocupadamente. Embora sua consciência o faça confiante, já que muitas coisas estão fora de seu controle, ambos esperam o que é absolutamente justo e se preparam contra o que é totalmente injusto. Lembre-se, no entanto, antes de tudo, de despir as coisas de tudo o que perturba e confunde e ver o que cada uma é no fundo, então você compreenderá que elas não contêm nada temível, com exceção do medo em si.
13. O que você vê acontecendo com meninos acontece também a nós mesmos que somos apenas meninos ligeiramente maiores: quando aqueles que eles amam, com quem eles se associam diariamente, com quem eles brincam, aparecem com máscaras, os meninos ficam assustados sem necessidade. Devemos tirar a máscara, não só dos homens, mas das coisas e restaurar a cada objeto seu próprio aspecto.
14. Por que são levantadas diante dos meus olhos espadas, fogueiras e uma multidão de verdugos que andam furiosos em torno de mim? Remova toda essa vã demonstração por trás da qual você se esconde e se engana! Não é senão a morte, a qual ontem mesmo um servo meu desprezou e afrontou sem temor! Para que toda essa grande ostentação, o chicote e o pelourinho? Por que preparam esses instrumentos de tortura, um para cada parte do corpo e todas essas outras máquinas inumeráveis para rasgar um homem um bocado de cada vez? Fora com todas essas coisas, que nos deixa entorpecidos de terror! E você, silencie os gemidos e ignore os gritos amargos da vítima que está na roda de tortura, pois não é outra coisa senão a dor, desprezada por aquele desgraçado atormentado pela gota, tolerada por um dispéptico, suportada corajosamente pela mulher em trabalho de parto. Menospreze você tal ofício! Se for possível suportar, é uma dor leve, se não, será uma dor breve!
15. Reflita sobre estas palavras que muitas vezes você ouviu e frequentemente proferiu. Além disso, prove pelo resultado se o que você ouviu e proferiu é verdade. Pois há uma acusação muito vergonhosa muitas vezes trazida contra a nossa escola: que lidamos com as palavras e não com as ações da filosofia. O que, você só neste momento aprende que a morte está pendente sobre sua cabeça, só neste momento de dor? Você nasceu para esses riscos. Pensemos em tudo o que pode acontecer como algo que acontecerá.
16. Eu sei que você realmente fez o que eu aconselho a fazer, eu agora lhe advirto que não afogue a sua alma nestas suas pequenas angústias. Se você fizer isso, a alma será entorpecida e terá muito pouco vigor disponível quando chegar a hora de levantar-se. Afaste seu pensamento de seu caso para o caso dos homens em geral. Diga a si mesmo que nossos pequenos corpos são mortais e frágeis. A dor pode alcançá-los de outras formas do que pelo poder do mais forte. Nossos próprios prazeres tornam-se tormentos. Banquetes trazem indigestão, bacanais trazem paralisia dos músculos e marasmo, hábitos libidinosos afetam os pés, as mãos e cada articulação do corpo.
17. Eu posso me tornar um homem pobre, eu serei então um entre muitos. Posso ser exilado, considerar-me-ei então nascido no lugar para o qual fui enviado. Eles podem me colocar em correntes. E então? Estou livre de obrigações agora? Contemple este fardo obstrutivo que é um corpo, ao qual a natureza me tem amarrado! “Eu morrerei”, você diz. Você quer dizer: “Eu deixarei de correr o risco da doença, deixarei de correr o risco de prisão, deixarei de correr o risco da morte”.
18. Não sou tão tolo para repetir neste momento os argumentos que Epicuro lançava e dizer que os terrores deste mundo são inúteis, que Íxion não gira em torno de sua roda, que Sísifo não arca com o peso de sua pedra, que as entranhas de um homem não podem ser restauradas e devoradas todos os dias. Ninguém é tão infantil como para temer Cérbero, ou as sombras, ou o traje espectral daqueles que são unidos por nada senão por seus ossos expostos. A morte nos aniquila ou nos desnuda. Se nós somos liberados então, lá permanece a melhor parte, depois que a tormenta é retirada, se somos aniquilados, nada permanece, tanto o que é bom quanto o que é mau são igualmente removidos.
19. Permita-me neste momento citar um versículo seu, primeiro insinuando que, quando você o escreveu, você quis dizer isso para si mesmo, não menos do que para os outros. É ignóbil dizer uma coisa e acreditar em outra e quão mais ignóbil é escrever uma coisa e acreditar em outra! Lembro-me de um dia que você estava lidando com o conhecido, que não caímos mortos de repente, mas que avançamos para a morte em passos lentos, morremos todos os dias.
20. Porque cada dia um pouco de nossa vida nos é tirada, mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. Contando até ontem, todo o tempo passado é tempo perdido. O próprio dia que passamos agora é compartilhado entre nós e a morte. Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu, da mesma forma, a hora final em que deixamos de existir não provoca por si só a morte, ela apenas completa o processo de morte. Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.
21. Ao descrever essa situação, você disse em sua eloquência costumeira, pois você é sempre impressionante mas nunca tão cáustico como quando está colocando a verdade em palavras apropriadas: “a morte vem gradualmente, a que nos leva é a morte última!” . Eu prefiro que você leia suas próprias palavras em vez de minha carta, pois então ficará claro para você que esta morte, da qual temos medo, é a última, mas não a única morte.
22. Vejo o que você está procurando, você está perguntando o que eu empacotei em minha carta, qual ditado estimulante de algum mestre, qual preceito útil. Assim, vou enviar-lhe algo que trata deste assunto em discussão. Epicuro censura aqueles que desejam, tanto quanto aqueles que se esquivam da morte: “É absurdo, diz ele, correr para a morte porque você está cansado da vida, quando é a sua maneira de viver que o fez correr para morte.”
23. E em outra passagem: “O que é tão absurdo quanto buscar a morte, quando é por medo da morte que você roubou a paz da sua vida?” E você pode acrescentar uma terceira declaração do mesmo cunho: “Os homens são tão irrefletidos, não, tão loucos, que alguns, por medo da morte, se obrigam a morrer”.
24. Qualquer dessas ideias que você ponderar, irá tonificar sua mente para a resistência tanto à morte quanto à vida. Pois precisamos ser admoestados e fortalecidos em ambos os sentidos, não amar ou odiar a vida em demasia. Mesmo quando a razão nos aconselha a acabar com ela, tal impulso não deve ser adotado sem reflexão ou precipitadamente.
25. O homem sóbrio e sábio não deve bater em retirada da vida, ele deve fazer uma saída conveniente. E acima de tudo, ele deve evitar a fraqueza que tomou posse de tantos, o desejo da morte. Pois assim como há uma tendência irrefletida da mente para com outras coisas, assim, meu caro Lucílio, há uma tendência irrefletida para a morte. Isso muitas vezes se apodera dos homens mais nobres e espirituosos, assim como dos covardes e dos abjetos. Os primeiros desprezam a vida, os últimos acham-na fastidiosa e não lhe suportam o peso.
26. Outros também são movidos por uma saciedade de fazer e ver as mesmas coisas e não tanto por um ódio à vida como por estarem enfastiados com ela. Deslizamos para essa condição, enquanto a própria filosofia nos empurra, e dizemos: “Quanto tempo devo suportar as mesmas coisas? Eu continuarei a acordar e dormir, estar com fome e ser saciado, ter calafrios e transpirar? Não há fim para nada, todas as coisas estão ligadas em uma espécie de círculo, elas fogem e elas são perseguidas. A noite está próxima aos calcanhares do dia, o dia aos calcanhares da noite, o verão termina no outono, o inverno apressa-se depois do outono e o inverno se suaviza na primavera, toda a natureza assim passa, só para voltar. Eu não vejo nada de novo, mais cedo ou mais tarde, o homem enjoa disto também.” Há muitos que pensam que a vida, não sendo dolorosa, é supérflua.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.